Crise da Igreja (242)
Dom Lourenço Fleichman, OSB
Eis que, surpreendentemente, nos preparamos para conhecer o sexto papa do Concílio Vaticano II. Tendo já ultrapassado a marca dos 50 anos do seu início (1962), não podemos dizer que as coisas, no meio dessa crise, sejam previsíveis. Ainda há espaço para sustos e surpresas.
O papa Pio XII morreu em outubro de 1958. Com ele morria uma visão ainda tradicional da vida da Igreja, da moral, da liturgia, dos dogmas e da influência impressionante que a Igreja mantinha há dois mil anos sobre os caminhos da humanidade. Mesmo sendo constantemente perseguida e maltratada, os maus não conseguiam avançar sem freios e sem limites, porque havia uma palavra divina, um homem vestido de branco, sentado na Cátedra de S. Pedro, e que servia de consciência para todos os povos, para governantes e súditos, mesmo quando estes já não eram mais católicos.
Não que fosse obedecido e amado. Mas era uma referência, e o mundo não se entregava ao mal sem temer a condenação que viria da Igreja. Com isso, a decadência era contida; seguia seu curso, é verdade, mas em ritmo mais lento.
Foi eleito, então, para o trono de São Pedro, o cardeal Roncalli, o papa João XXIII. Descrito por seus historiadores como um homem simples, amigável, quebrando protocolos, conversando com todos, ficou conhecido como o “bom” papa João. Na verdade, seu espírito ecumenista data de muito tempo, como aparece em suas atividades de jovem bispo, na Bulgária, quando iniciou relações com os ortodoxos daquele país, ou em Paris, como Núncio. Em suas encíclicas, João XXIII dará provas de um pensamento liberal e equivocado, ao tentar assimilar as tendências de um mundo socialista para torná-lo aceitável dentro de uma doutrina católica que, para ele, devia ser aberta e tolerante. O resultado são textos dúbios, calcados em preocupações temporais de certa paz e de concórdia, isentas das exigências próprias do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Desenvolvia assim temas caros à maçonaria, como direitos humanos, dignidade da pessoa e afins, que fugiam completamente das preocupações espirituais de um catolismo tradicional, voltado para a defesa do depósito da fé e da Revelação sobrenatural .
João XXIII fará, então, a convocação do Concílio Vaticano II, e depois de propagar como finalidade a não condenação das heresias modernas, desejou um concílio voltado para conversas pastorais, troca de experiências e um otimismo beato sobre o futuro da Igreja. Pior do que isso foi a cumplicidade do chefe da Igreja com os revolucionários que tomaram de assalto o Concílio, sob a batuta do Cardeal Lienart. Logo no início do Concílio, este prelado exigiu a substituição dos textos já preparados para debate, por outros, liberais, que um grupo de bispos já havia preparado em segredo e por debaixo dos panos. João XXIII aceitou tal revolução, assim como aceitou outras que viriam em seguida, dando a esses progressistas da Aliança Europeia o domínio completo das ações do concílio.
No meio de tantas ambigüidades, aberturas e revoluções, não se pode admirar que o Concílio Vaticano II tenha estabelecido uma nova religião dentro de Roma e na alma do povo católico. O resultado terrível foi a perda da fé generalizada, a destruição da doutrina tradicional da Igreja, e a diminuição constante da sua autoridade moral e espiritual sobre os desígnios da humanidade.
Apesar de ter escrito textos com ideais maçônicos, visões naturalistas sobre a vida social e política, de ter mesmo mantido certas relações com a maçonaria, não se conhece provas cabais de que tenha sido, ele próprio, maçon. Não nos parece fonte fidedigna um ou dois livros escritos por maçons, onde se afirma tal relação. Claro está que interessa a esta seita secreta vangloriar-se de ter tido um papa no seu grêmio, o que tira desses autores qualquer valor histórico.
O cardeal Montini era Patriarca de Milão quando foi eleito no lugar de João XXIII. A porta do erro e da decadência tinha sido entreaberta por João XXIII, ela será escancarada por Paulo VI. Quando trabalhava na Secretaria de Estado do Vaticano, o bispo Montini recebera um castigo grave por ter mantido contatos com os comunistas de Moscou nas costas de Pio XII. Será afastado de Roma. O erro de Pio XII foi ter dado a este bispo desobediente uma diocese cardinalícia, mesmo não tendo recebido esta honraria do papa Pacelli. Será cardeal no 1º consistório de João XXIII, abrindo caminho para a sua eleição, poucos anos depois.
Com Paulo VI a Igreja verá um tempo de destruições. Todo o belo edifício doutrinário e sacramental da Igreja será demolido. Não sobrará pedra sobre pedra. Todos os sacramentos serão reformulados segundo o novo espírito, a missa nova será assinada, sendo mais um culto protestante do que verdadeira missa; a disciplina eclesiástica será tão mitigada que os escândalos sexuais começarão a surgir de todos os lados. A fé será ultrajada, com padres e bispos deturpando a divindade de Nosso Senhor, a perpétua virgindade de Maria, a natureza da revelação, a sacralidade dos ritos e sua eficácia. Enfim, tudo será abalado. A destruição será o resultado de um grande terremoto religioso. E o povo fiel perderá a fé sobrenatural e até mesmo a noção do que seja essa fé.
De João Paulo I só podemos dizer que deu a impressão de querer reverter o quadro de destruição, senão na questão de fé, pelo menos nas influências maçônicas dentro do Vaticano. Não teve tempo. Seu pontificado durou 33 dias, e muitos afirmam que foi assassinado.
João Paulo II dará continuidade à obra do Concílio Vaticano II, cabendo a ele a reconstrução de todo o edifício destruído por Paulo VI, mas agora com o novo espírito do Concílio. Terminará a reforma dos sacramentos, fará um novo Código de Direito Canônico, prosseguirá a reforma completa da Cúria Romana, publicará o novo Catecismo oficial, nova tradução oficial da Bíblia, nova Via Sacra, modificando até mesmo o Rosário da Virgem Maria. Além disso, levará o ecumenismo ao seu ponto mais afastado da verdadeira fé católica, instituindo os encontros de Assis, onde todas as religiões enviam seus chefes para rezarem juntos, significando que pouco importa a religião de cada um. Desse encontro heretizante, surgirá o que o papa chamou de “espírito de Assis”, um novo espírito que passa a governar a Igreja de Vaticano II.
Finalmente, Bento XVI, que ainda é papa quando escrevemos esse editorial, apesar de ter tido algumas atitudes mais conservadoras, jamais renunciou à obra do Concílio, nem mesmo se permitiu diminuir a influência deste sobre seu pensamento e seus atos.
Suas encíclicas dão prova dessa influência constante do Concílio, mesmo dos textos claramente opostos à doutrina católica, como Gaudium et Spes, freqüentemente citado pelo papa. Tomemos como exemplo a primeira encíclica, Deus Caritas est , onde Bento XVI envereda por certa tese acadêmica sobre a noção de amor. Mas não consegue se livrar dela ao abordar a questão do amor como está no Novo Testamento, e faz comparações do amor divino em termos de Eros e Agape, no mínimo, inconvenientes.
Essa tendência intelectualista de escrever teses aparece também nas demais encíclicas do papa. Em Spes Salvi, a erudição é grande, mas o espírito católico fica de lado, jamais encontrando a definição clara do dogma católico sobre a virtude da Esperança. Em Caritas in Veritate, o papa faz o elogio da Populorum Progressio, de Paulo VI, sobre a política e desenvolvimento dos povos, sob o enfoque liberal do Concílio Vaticano II.
Em nenhum momento Bento XVI apresenta a doutrina católica pelo seu dogma, por aquilo que ela tem de imutável e eterno. Sempre reflexões, aberturas, autores estrangeiros ao catolicismo e mesmo inimigos da fé são convidados à mesa de “discussões” de Bento XVI. O grande sucesso desses textos junto aos novos católicos desse mundo de hoje deve-se mais à imensa ignorância que se tem da verdadeira fé, do que à fidelidade da doutrina ali contida.
Todos os seus livros, mesmo aqueles contendo erros graves de tempos mais progressistas, foram reeditados depois de se ter tornado papa, e jamais ouvimos de sua boca um sinal de querer mudar o que antes escrevera.
Se, por um lado, escreveu o Motu Proprio Summorum Pontificum, em 2007, afirmando que a missa tradicional nunca fora ab-rogada e pode ser celebrada, não se vê interesse, no Vaticano, em defender a causa de tantos padres que são perseguidos por seus bispos diocesanos e impedidos de celebrar a missa de sempre. De certa forma, o Motu Próprio serviu para confirmar e estender a perseguição, pois ela agora se aplica também a padres diocesanos mais conservadores.
Mais tarde, em 2009, teve a coragem de levantar as falsas excomunhões impostas aos quatro bispos da Fraternidade São Pio X, mas logo viu-se obrigado a dar explicações numa carta que escreveu a todo o clero. Ainda aqui, Vaticano II era como um manto que cobria todo o pensamento do papa.
Finalmente, ordenou que se recebesse uma comissão teológica da Fraternidade S. Pio X, para debater os pontos de litígio apresentados por esta. Após dois anos de debates, o impasse impediu que se prolongassem as conversas, pois os representantes do Vaticano não aceitavam que a doutrina progressista do Vaticano II se opunha à Tradição católica. Queriam de todas as maneiras forçar o pensamento em aceitar que Vaticano II estaria na continuidade da Tradição, mesmo diante de evidentes contradições.
Dessas conversas surgiram, em 2011-2012, tentativas de um entendimento prático que daria à Fraternidade um estatuto oficial reconhecido por Roma. Mas após meses de grandes angústias nos meios tradicionais, o próprio papa encerrou a conversa, afirmando, em carta pessoal ao Superior Geral da Fraternidade, que a aceitação do Vaticano II, dos ritos novos, do novo espírito, era exigência para um reconhecimento da Fraternidade.
Agora, diante da surpresa da renúncia do papa, nos deparamos com mais uma grave questão. O tempo todo, Bento XVI se refere ao seu ministério. Sempre que fala da renúncia, refere-se a esse ministério petrino. Temos a impressão que os próprios papas desse catolicismo deformado já não acreditam muito na realidade que lhes foi imposta pelo Divino Espírito Santo. Falam como se tivessem aceito uma função, como um acionista de grande empresa aceitaria ser Diretor Presidente por certo tempo. Aliás, faz parte da linguagem transformada pelo Vaticano II, chamar a esse ministério, de “serviço”, o que só vem reforçar essa triste impressão. E essa constatação nos faz lembrar aquelas palavras antigas de Mons. Marcel Lefebvre, quando afirmava que nós, os que guardamos a Tradição contra os detratores da Igreja, somos os verdadeiros defensores do papa e do papado. Eles próprios já não acreditam mais no poder sobrenatural do sucessor de Pedro.
O pontificado de Bento XVI não trouxe nenhuma solução aos graves problemas de fé que assolam a Igreja há décadas. O estilo tornou-se mais comportado, mais conservador na liturgia, mais intelectual nos escritos; porém, o naturalismo horizontal, o ecumenismo irenista onde cada qual encontra o seu deus e se sente bem, o liberalismo político e social e a oposição constante à Tradição da Igreja, continuaram até o fim. E a crise não terminou.
Estes são os papas do Vaticano II. Eles o fizeram, prosseguiram, impuseram ao povo católico sem se preocuparem se era da vontade de Deus ou para a salvação das almas. Da noite para o dia, uma missa sem sacrifício e sem cruz foi imposta, sob penas severas, a todos os padres. Muitas almas perderam a fé, escandalizadas pelo que viam acontecer na Igreja. Outras a perderam por terem absorvido o novo espírito de Vaticano II, tornando-se protestantes sem se darem conta. Paralelamente, o laicismo invadiu toda a Igreja, causando um esvaziamento impressionante dos mosteiros e casas religiosas. Muitos conventos fecharam as portas e foram vendidos para se tornarem museus ou escolas. O número de católicos foi diminuindo em todo o mundo e já não podemos mais falar de uma Civilização ocidental Católica, aquela impressionante herança dos mil anos de Idade Média, que formaram a Europa e o mundo católico.
Enquanto isso, os papas e bispos, ao longo desses últimos 50 anos, nunca conseguiram enxergar a realidade do mundo segundo a verdade de Deus. A todo momento interpretam os desastres, acidentes, guerras e tudo o mais com palavras pacifistas, moles, sem eficácia e sem sentido. Raras vezes atribuem os escândalos ao pecado e nunca se ouve um chefe católico se preocupar com a condenação eterna das almas. Só falam de uma falsa paz, só pregam a concórdia nessa vida, só se preocupam com o corpo do homem e sua felicidade na terra, e de salvar as aparências de certa “decência” boazinha.
Um novo papa será eleito. Humanamente não há nada que nos incline a achar que algum dos cardeais possa vir a restaurar a Igreja e ajudar as almas a se salvarem. Todos eles, para chegarem onde estão, aderiram de todo o coração aos desmandos desse maldito concílio que tanto mal trouxe para a Igreja e para as almas. Estão, pois, certos de que devem continuar a propagar esse Humanismo com tintas de religiosidade, que tudo contaminou.
Não temos preferências. Se for eleito um péssimo cardeal, progressista, destruidor, as coisas podem ficar mais claras, a evidência da falta de fé ficaria mais patente, o que nos ajudaria a segurar melhor a espada do bom combate. Por outro lado, a perseguição se tornaria mais amarga, e nós teríamos apenas a graça divina como sustento, o que já é nossa condição há 50 anos. Se for eleito um cardeal “conservador”, veremos as mesmas ambigüidades atuais perdurarem na Igreja. Cada vez que o papa falar em latim, ou celebrar uma missa mais conservadora, os blogs conservadores de plantão darão urras de alegria e dirão que o papa está restaurando a Igreja.
Mas Deus vomita os mornos e não aceita que a defesa da sua Igreja seja feita por homens cegos, ingênuos e débeis. Porque a restauração da Igreja só poderá ser realizada quando nós merecermos, por nossos sacrifícios e dores oferecidas, pelas humilhações e perseguições suportadas, pela constância das nossas orações e das nossas lágrimas. Somente assim o Divino Espírito Santo realizará o milagre da conversão de um papa. Sem essa conversão espetacular, espiritual, sem que o papa entenda na fé, ao menos em parte, todo o enlace da crise atual, não haverá grandes mudanças no horizonte da Igreja.
Peçamos a São José, esposo da Virgem Maria, protetor da Santa Igreja, e a São Miguel Arcanjo, chefe da milícia celeste, que nos permita ver com nossos olhos, ouvir com nossos ouvidos, o dia abençoado em que tal conversão chegará ao coração do sucessor de São Pedro.
(Editorial da Revista Permanência 269)
“A heresia individual, com o laicismo liberal, torna-se social e política” (M.Ayuso)
“Da forma dada à sociedade, segundo esteja de acordo ou não com as Leis Divinas, depende o bem ou o mal das almas. Diante dessas considerações e previsões, como poderia ser lícito à Igreja (...) permanecer espectadora indiferente diante dos perigos que os seus filhos enfrentam; calar ou fingir não enxergar situações que (...) tornam difícil ou praticamente impossível uma conduta de vida cristã ?” (Pio XII, Radiomensagem “A Solenidade”, Pentecostes de 1941).
Prólogo
Miguel Ayuso, professor de Direito Constitucional na Universidade Comillas de Madri, Presidente da União de Juristas Católicos, escreveu, em 2008, um livro muito interessante sobre as relações entre a Igreja e o Estado, traduzido em italiano pelas Edizione Scientifiche Italiane, de Nápoles, em 2010, com o título “A Constituição cristã dos Estados”(1). Em seu livro, o célebre jurista toma em consideração inclusive o tema da liberdade religiosa, tal como foi enfrentado pelo Decreto Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II e o compara com o ensinamento do Direito Público Eclesiástico, colocando às claras as diferenças entre a doutrina tradicional e o ensinamento pastoral de Vaticano II de um ponto-de-vista cientificamente jurídico.
Breve excursus das relações entre Estado e Igreja
Na Antiguidade pagã era inconcebível a ideia da separação entre poder temporal e espiritual. A esfera política e a religiosa se identificavam. A religião era considerada uma virtude social ou política, enquanto a impiedade era, além de um pecado, um crime político bem grave, uma vez que a unidade da Cidade se baseava sobre o princípio da piedade em relação à Divindade (2)
O Cristianismo sempre ensinou a dependência da sociedade temporal em relação à religiosa e, a partir de Constantino, orientou também na prática o bem comum temporal ao sobrenatural e espiritual. Esses dois poderes são distintos (diferentemente de como era no paganismo), mas não separados (diferentemente de como é no laicismo) (3).
A partir da Revolução Francesa se chega à neutralidade ou separação entre Estado e Igreja, que vai da indiferença à perseguição. É a época da secularização ou do laicismo, que tentaram abater indiretamente a Fé cristã atacando diretamente a Cristandade ou a Constituição cristã dos Estados europeus (4). Nessa época procurou-se destruir a ordem natural e divina mediante a Revolução ou a subversão das relações entre temporal e espiritual, natureza e graça, razão e fé. Em parte, foi bem sucedido o intento descristianizando a sociedade temporal mediante as ideias e as instituições políticas. A heresia de individual, com o laicismo liberal, torna-se social e política(5). A Revolução é uma doutrina social ou política, que quer fundar a sociedade temporal, não sobre Deus, mas sobre o homem. A Contra-Revolução é a doutrina política que funda o Estado sobre Deus e Sua Lei (6).Ora, “a toda ação corresponde uma reação igual e contrária”. Logo, se a Revolução “heretizou” socialmente, a Contra-Revolução deve dar um remédio não só individual, mas social e político à heresia social que o laicismo liberal é. Se a Revolução quer aniquilar a Cristandade ou o Estado católico para depois destruir a própria Fé, a Contra-Revolução (que não é uma Revolução de sinal trocado, mas é o contrário per diametrum da Revolução) quer restaurar a Civilização cristã, ou seja, a moral social cristã como ensinada pela Tradição apostólica e, depois, inscrita nas Constituições civis a partir de Constantino (7).
O Magistério da Igreja é citado por Ayuso para demonstrar o quanto exposto. Pio VI, na Alocução ao Consistório, de 9 de março de 1789, condena as liberdades modernas e na encíclica Adeo nota, de 1791, condena a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”. Gregório XVI, na encíclica Mirari Vos, de 1832, condena o catolicismo liberal. Leão XIII, na encíclica Diuturnum illud, de 1881, na Immortale Dei, de 1885, na Libertas, de 1888, e, por fim, na Annum ingressi, de 1902, expõe a doutrina católica sobre as relações entre Igreja e Estado e condena toda doutrina separacionista dos dois poderes. São Pio X, na encíclica Vehementer nos, de 1906 e na Notre Charge Apostolique, de 1910, condena a separação entre o poder temporal e espiritual e o modernismo político ou “Democracia Cristã”. Pio XI, em Quas Primas, de 1925, fala da Realeza social ou política de Cristo e condena o laicismo. Por fim, Pio XII, na encíclica Summi Pontificatus, de 1939, na Radiomensagem Benignitas et humanitas, de 1944 e no Discurso aos juristas católicos italianos, de 1953, continua o mesmo ensinamento de união e subordinação entre os dois poderes e de condenação da sua separação(8).
Questão social, política e moral católica
A Questão Social, isto é, a relação entre trabalhador e patrão, não é somente econômico-financeira, mas sobretudo moral e religiosa. De fato, para Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, a economia é a virtude de prudência aplicada à família (diferente da área de negócio, crematística ou finanças, que é a arte de arriscar-se); e a política é a virtude de prudência aplicada à sociedade temporal. Para resolver o conflito, que surgiu no século XIX entre trabalhadores e patrões – segundo o Magistério – não basta uma resposta puramente financeira ou de salário, mas deve se elevar um pouco e ver a questão à luz da Moral e da Fé. O problema operário – segundo Leão XIII na encíclica Rerum Novarum de 1891, Permoti nos de 1895 e Graves de communi re de 1901 – resolve-se, sobretudo, com a virtude de caridade e de justiça e, depois, com o justo salário. Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, explica beníssimo que o “desejo de novidade” ou a “rerum novarum cupiditas”, do campo político (Liberalismo) transbordou para o econômico-financeiro (Liberalismo/Socialismo). Logo, para resolver e refutar o problema liberal e social-comunista (primado da economia ou área de negócio, materialismo histórico), é preciso primeiro responder ao erro liberal (primado da liberdade como fim absoluto e não como meio para tomar o fim). O Papa mostra a ligação que há entre Revolução religioso-dogmática e revolução moral, já que a moral é a Fé praticada e vivida (“agere sequitur esse”), e, depois, entre Revolução política, que é a heresia dogmática e moral transferida do nível individual ao campo social, e Revolução econômico-financeira(9). “Depois da heresia individual vem a Revolução social ou política e, depois da Revolução é a hora do carrasco” (Donoso Cortès, Ensaio sobre o Catolicismo, o Liberalismo e o Socialismo).
Miguel Ayuso entendeu perfeitamente o caráter do Magistério eclesiástico dos séculos XIX e XX de contestação da modernidade. A Igreja enfrentou os temas de caráter político (Liberalismo), cultural (Tomismo/modernismo), econômico-financeiro (social-comunismo), oferecendo uma doutrina completa e orgânica sobre a Realeza Social além de individual, temporal além de espiritual, de Cristo já sobre esta terra, além de no Paraíso.
A ruptura ou Revolução de Vaticano II
Se a Modernidade é a Revolução filosófica, dogmática, moral, política e econômica (modernismo, liberalismo, libertarismo, socialismo) a doutrina católica tradicional é a Contra-modernidade ou Contra-revolução. Infelizmente, com o Concílio Vaticano II foi “esquecida com desenvoltura esta Tradição. (...) Esquecimento acompanhado muitas vezes de desprezo”(10). A causa de tal ruptura com a Tradição apostólica em matéria de doutrina social Miguel Ayuso encontra na “fase de conformismo (conciliar e pós-conciliar) com respeito à modernidade”(11). Entenda-se: “modernidade” significa pensamento filosófico moderno subjetivista e relativista, que vai de Descartes a Hegel, e não significa “fazer-se compreender pelo homem de hoje”, o que é completamente legítimo e normal, mas totalmente diferente da condescendência eclesiástico-pastoral com a “modernidade”. A Igreja havia contestado e refutado a modernidade com o Magistério tradicional dos séculos XIX e XX, referindo-se à doutrina de Papa Gelásio I. Infelizmente, com a Declaração sobre a liberdade religiosa ou Dignitatis humanae subverteu-se ou “revolucionou-se” a doutrina de dogmática em pastoral e pressionou-se os “católicos a conformarem-se à modernidade (...) e a sair do gueto em que a Igreja tradicional os havia reduzido (12), contrariando o dizer de São Paulo “: “Nolite conformari huic saeculo!”.
O Magistério tradicional contrasta com a Modernidade
A conclusão que Miguel Ayuso tira é que, se o Magistério constante e tradicional da Igreja contestou e refutou a modernidade subjetivista e relativista (Liberalismo, Modernismo, libertarismo e social-comunismo), o ensinamento pastoral de Vaticano II chegou mesmo à “renúncia da tradicional doutrina política – baseada sobre a Constituição cristã dos Estados – (...) [e revelou-se] incapaz de delinear uma nova estratégia” (13), ou seja, não apenas abandonou a doutrina social tradicional sobre relações entre Estado e Igreja, mas não consegiu nem mesmo propor uma alternativa filosofico-política adequada ao surgimento do novo laicismo, sempre mais radical e paroxístico.
O Vaticano II se rendeu à Modernidade
Renderam-se em face da modernidade e da pós-modernidade sem mostrar resistência, esperando não serem perseguidos mas deixados em paz, não se quis opor uma resistência doutrinal (filosófica e teológica) ao mundo contemporâneo e calou-se, logo, fugiram da frente do lobo que veio despedaçar o rebanho, esperando serem poupados, como o mercenário e o mau pastor do Evangelho, que “trai as ovelhas não só fugindo, mas também calando” (São Gregório Magno). A tática ‘não-pastoral’ de não condenar, desaprovar e criticar o erro, equivale à atitude do mercenário, que cala quando vê o lobo vir, ao invés de gritar e de alertar o seu rebanho. É por esse motivo que não apenas doutrinalmente houve ruptura entre ensinamento pastoral e falível do Vaticano II e Tradição apostólica, mas também pastoralmente, isto é, ao calar a doutrina e os princípios no caso prático e no modo de agir, o Vaticano II revelou-se um imenso fracasso, porque em vez de avisar que um perigo repousava, nos anos 60, sobre a Cristandade e a Fé Católica (pense-se no Comunismo e em 1968), quis calar-se para não parecer “profeta de desgraças”, e, analogamente no pós-concílio mais recente (2005-2011) não se alertou o rebanho contra o perigo do teoconservadorismo, do catolicismo liberal, do judeo-cristianismo e do ateísmo devoto, os quais estão matando hoje também aquele “pequeno rebanho”, que tinha resistido ao modernismo e neomodernismo. É evidente a todos que para ensinar a verdade (por exemplo que 1+1=2) não se pode aprovar o erro (1+1=3) e, logo, não se pode não condenar.
Combater e promover. O professor Ayuso comenta: “Trata-se não apenas de combater aquilo que é socialmente nocivo em relação ao influxo que exercita sobre as almas, mas também de promover aquilo que é socialmente benéfico, em virtude de seu valor intrínseco”(14). De fato, não se pode ser somente “contra” ou limitar-se a pars destruens ou negativa, mas ocorre também propor alguma coisa “pró”, ou seja, de positivo(15).
Não se pode calar, senão “as pedras gritarão”
Pio XII tinha previsto esse perigo e o denunciara já em 1941: “Da forma dada à sociedade, segundo esteja de acordo ou não com as Leis Divinas, depende o bem ou o mal das almas. Diante dessas considerações e previsões, como poderia ser lícito à Igreja (...) permanecer espectadora indiferente diante dos perigos que os seus filhos enfrentam; calar ou fingir não enxergar situações que (...) tornam difícil ou praticamente impossível uma conduta de vida cristã ?” (Pio XII, Radiomensagem “A Solenidade”, Pentecostes de 1941). Não se pode calar ou fingir não enxergar o perigo de uma situação que torna difícil viver cristãmente. Ora, a “liberdade das falsas religiões”, o abandono do ideal do Estado Católico ou da Realeza Social de Cristo, sancionados pelo Concílio Vaticano II são exatamente uma situação ou um modo de vida que torna praticamente impossível a prática cristã. Os homens de Igreja caíram num tipo de “surdo-mudismo” pelo qual fingem não terem ouvido de modo a não deverem falar. Não podem permanencer espectadores indiferentes, que olham mas não gritam: “Lobo ! Socorro! Perigo! Atenção!”. Seria aceitar na prática e implicitamente, mesmo se não explicitamente ou por princípio, o erro e o mal, ou seja, a negação prática do primeiro princípio da moral per se conhecido: “malum vitandum, bonum faciendum”. Ora, quem nega os princípios per se conhecidos não é escusável por ignorância invencível, porque estes são evidentes a todo mundo, são mostrados, não demonstrados. Como os homens de Igreja hoje calam esta verdade social, esta – como disse Jesus – é gritada pelas pedras, isto é, pelos monumentos do passado, que testemunham uma verdade histórica: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava os Estados” (Leão XIII, Immortale Dei, 1885). Que tremenda responsabilidade não haver querido condenar o erro, não haver querido alertar a Cristandade e os fiéis cristãos contra o perigo. Não o tendo desaprovado ou condenado, implicitamente se o aprovou. “Um Papa bom não é um bom Papa”, dizia padre Innocenzo Colosio. “O médico piedoso faz a chaga gangrenosa”, recita o provérbio popular. O excesso de “bondade” pode se tornar a máxima crueldade (“summo bonarietas, summa malvigatas”).
Pars destruens et construens. Miguel Ayuso explica muito bem que “a Igreja não age em política apenas ‘negativamente’, mediante condenações (...), mas também intervém positivamente, declarando quais são os princípios que devem presidir a organização de uma comunidade” (16). A neutralidade, o pluralismo ou a indiferença do Estado em matéria religiosa não são princípios conformes à Tradição apostólica quanto às relações de Igreja e Estado, assim como está ensinado pela Sagrada Escritura, pelos Padres da Igreja do século IV e pelo Magistério, a partir do Papa Gelásio I (496) até Pio XII (1958).
A Cristandade já existe e não está por ser inventada
São Pio X ensinou formalmente – retomando o Magistério tradicional de seus predecessores, continuado pelos seus sucessores até Pio XII – que “a Civilização cristã não deve ser inventada, nem a Cidade deve ser construída sobre as nuvens. Ela existiu e existe. É a Civilização cristã, a Cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e estabelecê-la e restaurá-la e restabelecê-la, incessantemente, sobre os fundamentos naturais e divinos, contra os ataques sempre novos da utopia malsã, da Revolução e da impiedade: omnia instaurare in Christo” (Notre Charge Apostolique, 1910). A solução do problema político (relações entre Estado e Igreja) e social (relações entre mundo do trabalho e capital) é simplicíssima, porque não existe nada por ser inventado, basta instaurar ou fundar uma Pólis ou Civitas católica, baseada na Lei divina e natural nos lugares onde não tenha ainda começado a existir e restaurá-la ou consertá-la lá onde existiu, mas foi assaltada pela Revolução, que quer separar o Estado e a Igreja, os trabalhadores e os patrões, a justiça e a caridade, a economia e a moral, destruindo assim a Civitas christiana. Até 1968, havia ainda vestígios, traços ou “ruínas” dessa Civilização cristã, (que tinha sido somente ferida, ainda que gravemente) e bastava restaurar as ruínas como se faz com as obras de arte dos séculos passados. Hoje ela está aniquilada ou ferida de morte pelo assalto da Revolução maçônica, que invadiu inclusive o ambiente eclesiástico, como denunciou Paulo VI mesmo: “a fumaça de Satanás penetrou na Igreja de Deus”. Por isso, agora na Europa (o berço da Cristandade), é preciso não mais restaurar a Civilização cristã, mas sim instaurá-la, mas sempre sobre os idênticos fundamentos (Lei eterna e natural) e princípios (cooperação de subordinação ou hierarquização do temporal em relação ao espiritual).
Nova Cristandade. Não é preciso inventar a “nova Cristandade” como fizeram Maritain (Humanismo Integral, 1936) (17) e Dignitatis humanae (1965), construindo-a sobre as “nuvens” da doutrina liberal e laicista da separação entre Igreja e Estado. Leão XIII, mesmo antes de São Pio X, havia escrito: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava os Estados” (Immortale Dei, 1885). Essa é a doutrina social substancialmente imutável da Igreja: o Estado fundado sobre a Lei natural e divina e dirigido pelos princípios da reta filosofia e da Revelação sobrenatural, em cooperação de subordinação hierarquizada com o poder espiritual. Podem existir tonalidades acidentais nessa doutrina (plenitudo potestatis ou potestas indirecta in temporalibus ratione peccati), mas não essenciais (liberdade das falsas religiões posta no mesmo plano daquela da única verdadeira Religião, e indiferença religiosa da sociedade temporal ou separação do Estado e da Igreja).
A Nova Cristandade maritainiana e conciliar
O Concílio Vaticano II. Infelizmente, na Declaração Dignitatis humanane se encontra uma fratura, uma mutação substancial, com a doutrina tradicional contida na Sagrada Escritura e na Tradição apostólica (que são as duas fontes da Revelação), sob a guia do Magistério constante da Igreja (de Papa Gelásio I até Pio XII). Pio XII disse desse ensinamento sobre as relações entre Igreja e Estado que “está definitivamente estabelecido quanto aos seus pontos fundamentais, é suficientemente amplo para ser adaptado às múltiplas vicissitudes dos povos, desde que isso não aconteça às custas dos seus princípios imutáveis e permanentes. (...). Isso é em todo aspecto obrigatório. Nem se pode distanciar disso sem perigo para a Fé e a ordem moral” (Discurso ao Congresso da Ação Católica italiana, 29 de abril de 1945).
Ruptura e não continuidade. É mesmo isso que Dignitatis humanae fez. Ora, se o ensinamento pastoral de Vaticano II discorda daquele dogmático constante e infalível da Igreja, deve ser modificado e tornado conforme à Tradição apostólica. Especialmente hoje, de frente ao assalto final do laicismo agressivo e daquele mascarado de teoconservadorismo, é preciso retornar à Tradição apostólica e antes de tudo repropor a doutrina da cooperação subordinada entre Estado e Igreja para depois procurar trabalhar na prática à restauração das condições a fim de que a Civilização cristã possa renascer, permitindo aos indivíduos, às famílias e aos corpos intermédios realizarem facilmente a sua finalidade próxima ordenada ao fim último sobrenatural. A Civilização cristã não deve ser inventada ex novo, mas agora instaurada, porque, infelizmente, já não há mais nada para restaurar. A pós-modernidade e o pós-concílio destruíram os vestígios, as ruínas ou restos da Cristandade que ainda sobravam.
A Igreja não pode não fazer “política”
O homem é um animal naturalmente social. Disso vem a necessidade de ensinar, hoje mais do que nunca, a doutrina social da Igreja e de não se trancar nas sacristias, como desejavam os católicos liberais, mascarando tal rebaixamento ao catolicismo liberal sob uma máscara de excessivo espiritualismo ou angelismo desencarnado, cujo lema é “não é preciso fazer política!”. Ao contrário, a realidade, e logo, a verdade, é que o homem é composto de alma e de corpo, que é um animal racional e também social, isto é, político, feito para viver na Societas ou na Pólis, e não é um anjo, um ente desencarnado ou um monge que vive isolado. Os monges são casos “excepcionais” e “heróicos” que confirmam a regra.
O Perigo do Angelismo ou do espiritualismo exagerado. O erro dos conservadores e de alguns “tradicionalistas” católicos atuais é o de eliminar o elemento social da natureza humana, que, ao contrário, foi criada por Deus naturalmente sociável. (Aristóteles, Politica, VI; Santo Tomás de Aquino, De regimine principum, lib. I, cap. 14) e de querer transformar o homem num singular indivíduo (como o liberalismo individualista) sem espaço social e político, para endereçá-lo, com um empurrão puramente natural (mesmo se vem do padre, que permanence sempre um homem, mesmo que consagrado e não é Deus, mas só um instrumento de Deus para ajudar os fiéis a fazerem a Vontade de Deus, que não é necessariamente a do sacerdote) em direção a uma vida consagrada e à qual, ao contrário, só Deus chama e, na qual, só com a ajuda de Deus se persevera. “Não fostes vós que me escolhestes, mas Eu que vos escolhi” disse Jesus no Evangelho aos Seus Apóstolos. A vocação é um conselho e não um preceito e não se pode obrigar a seguir um conselho sob pena de pecado (18).È preciso contestar, refutar e contrastar o lacicismo, na teoria e na prática, arruinar tal modo de vida subversivo e revolucionado, fazer a históriamais do que sofrê-la passivamente e tentar criar as condições de um viver social, que facilite o viver espiritual. Como “a Graça pressupõe a natureza, aperfeiçoa-a, e não a destrói” (Santo Tomás de Aquino), assim a Fé pressupõe a humanidade civilizada (19), aperfeiçoa-a, mantém-na viva, e não a deve destruir. Do mesmo modo, a vocação sagrada pressupõe a vida familiar, social e política, aperfeiçoa-a, e não a deve aniquilar. Se não houvesse uma sociedade familiar, não poderia haver um “chamado” e se a sociedade temporal, ao invés de ajudar o indivíduo e a família a chegar ao próprio fim, obstaculizasse-o, os “chamados” seriam muito menos. É por isso que é preciso “dar a César o que é de César (obediência às leis temporais conformes à lei natural) e a Deus o que é de Deus (a adoração)”.
É possível hoje um Estado Católico ?
Doutrinalmente. A questão pareceria, à primeira vista e superficialmente, um anacronismo, como até Miguel Ayuso concorda (20). De fato, historicamente não existe hoje nenhum Estado católico, mas a questão doutrinal que se põe é se seja possível fazê-lo reviver. Na teoria ou quanto ao princípio doutrinal a resposta é evidente: o Estado não pode ser neutro, dada a sociabilidade natural do homem, da família e da sociedade temporal, que devem todas as três dar a Deus o culto e a adoração que Lhe é devida. Na prática ou nos fatos, contudo, encontramo-nos diante do enorme problema da pastoral sobre a liberdade religiosa (Dignitatis humanae) do Vaticano II, que não se contrapôs à modernidade ou à sociedade permissivista (21), mas entrou em diálogo simpatizante com ela e acelerou a secularização ou descristianização da sociedade. Miguel Ayuso traz o exemplo da Ley de libertad religiosa de 1967, pedida por Paulo VI ao general Francisco Franco e a consequente Nova Concordata espanhola de 1978 (22), similar àquela italiana de 1984 (que ab-rogou a Concordata de 1929), definida por João Paulo II como “ideal”, em quanto se passou (na Espanha como na Itália) do Estado confessional, que reconhecia Religião católica como religião oficial de Estado, ao Estado neutro em matéria religiosa. Ayuso comenta: “Estamos assistindo à separação consciente e desejada entre Igreja e sociedade, depois que foi consumada a separação entre a Igreja e o Estado”(23). Hoje, encontramo-nos em uma sociedade anti-cristã por princípio e na prática, que seria melhor chamar de “Dis-sociedade” (Marcel de Corte) ou “Sinagoga de Satanás” (Apocalipse 2, 9), que é a “Contra-Igreja” ou o “perigo maçônico” (Ernest Jouin) (24). Se a doutrina católica sobre as relações entre Estado e igreja é imutável(25), infelizmente, “a linguagem (...) em seguida ao Vaticano II, distingue-se claramente da precedente. (...). O direito à liberdade religiosa levanta não poucas dificuldades do ponto-de-vista do Magistério tradicional”(26). Ou seja, não existe continuidade real entre Tradição apostólica e Dignitatis humanae (de agora em diante ‘DH’), mesmo se esta continuidade vem afirmada, mas não demonstrada. Ayuso encontra em ‘DH’ um tipo de heterodoxia pública, isto é, um erro em matéria de doutrina social e política (27).
Prudencialmente. Ayuso se pergunta se um retorno imediato ao Estado católico é realista. A realidade hodierna, em que, ou não se toma nem mesmo em consideração o problema das relações hierarquizadas entre poderes político e espiritual ou se as tem como atualmente insustentável, “ é assim – e isso é ainda pior – da parte da própria hierarquia eclesiástica”(28), não favorece na prática tal retorno imediato, antes o torna humanamente impossível e só miraculosamente viável. Certamente, é necessário evitar os dois erros opostos por excesso (fanatismo ideológico simplista: tudo e agora) e por defeito (oportunismo pragmatístico: renúncia dos princípios e/ou aquiescência prática com o erro), mas é preciso sempre tender ao ideal ou à doutrina da cooperação hierarquizada e subordinada entre Estado e Igreja, que é “uma moral invariável da ordem política (...), não é algo de meramente facultativo, (...) mas é o constitutivo interno [ou a essência] da sociedade temporal”(29), ainda que na prática esta hoje é dificilmente viável no imediato ou no futuro próximo, mas não absolutamente impossível de se realizar gradualmente ou no futuro remoto. É preciso, então, “recolocar em pé – como escreve Ayuso – a doutrina da Igreja (...) sobre as bases da Tradição” (30). Sobretudo, não se deve nunca desesperar, nem quanto à salvação eterna da própria alma e nem quanto à salvação temporal da sociedade, a qual deve e pode voltar a cumprir o seu dever e chegar ao seu fim: o bem estar temporal dos cidadãos subordinado ao bem estar espiritual dos mesmos. De fato, Deus é a Causa Primeira do homem, “animal racional”, que vive em uma sociedade imperfeita de ordem natural (família) e perfeita de ordem temporal (Estado) e sobrenatural (Igreja). Por isso o Estado deve trabalhar em cooperação hierárquica com a Igreja, como o corpo com a alma. Deus é onipotente e providente, seja para a alma singular e a sua salvação, seja para a família e a sociedade (temporal e religiosa). Então deve-se esperar a salvação eterna da própria alma como também o estabelecimento do Reino Social de Cristo e trabalhar por estes. De fato, “quem quer o fim, toma os meios”.
Conclusão
● “A Igreja não pode, sem trair a própria missão, deixar de afirmar que existe uma lei moral natural (...) à qual devem estar submetidos os poderes públicos. Esse é o núcleo do Estado católico”(31), como ensinou Pio XI na sua primeira encíclica Ubi Arcano Dei de 1922, sintetizada no lema desse Papa: “Pax Christi in Regno Christi”. O “pecado original” da modernidade consistiu no ter posto no homem e não em Deus o fundamento da vida social e política do Estado (“eritis sicut Dii”). O antropocentrismo social ou político é o ‘princípio e fundamento’ da filosofia e da civilização modernas, como o antropocentrismo individualístico o é do modernismo. A heresia dogmática modernistas se transformou em Revolução social liberal ou modernismo político (cf. São Pio X, Notre Charge Apostolique, 1910)(32). Todas ou quase todas as Revoluções sociais nascem de erros filosóficos e de heresias dogmático-morais.
● A Verdade filosófica, dogmática e moral foi sintetizada teocentricamente pelo lema de São Paulo: “Non est Potestas nisi a Deo”, a Contra-Igreja o revolucionou antropocentricamente em: “Non est poetestas nisi ab Homine”(33). Assim a heresia dogmática modernistas influiu na Revolução política democrático-cristã e esta acabou por demolir os último traços ou “ruínas” de uma civilização, que era ainda cristã antes de ser demo-cristianizada. Certamente, ‘DH’ teve um papel filosófico, teológico e político nesse processo de laicização ou secularização. O Bispo espanhol, Dom José Guerra Campos tinha convidado a “reedificar a doutrina [social] da Igreja” por causa das notáveis “incoerências na pregação atual”(34). Com ‘DH’, assiste-se ao fenômeno de penetração do laicismo em ambiente católico e eclesial até ao ponto de que a separação entre Igreja e Estado é pregada pelos próprios homens de Igreja. O pós-concílio agravou o erro laicista de ‘DH’ até ao ponto de fazer rever as Concordatas com a Espanha (1978) e a Itália (1984) em sentido separacionista, o que foi definido como “ideal” por João Paulo II no que concerne à Concordata italiana de 1984. O próprio João Paulo II, na Carta apostólica aos Bispos franceses, de 11 de fevereiro de 2005, por ocasião do primeiro centenário da lei francesa de 1905 sobre a separação de Igreja e Estado (lei condenada por São Pio X na encíclica Vehementer nos, 1906) escreveu: “O princípio da laicidade(...) pertence à doutrina social da Igreja”. Isto é, o “Estado livre e Igreja livre” de Cavour se tornaram doutrina social católica!!!
●Só Deus nos pode fazer sair de uma situação de apostasia geral, que penetrou até no santuário e nas mentes dos hierarcas da Igreja. Ele, de fato, prometeu-nos: “Portae inferi non praevalebunt adversus eam”.
[Tradução: Permanência]
NOTAS
(1) www.edizioniesi.it / info@edizioniesi.it / 116 paginas. E também: http://www.deastore.com/libro/la-costituzione-cristiana-degli-stati-miguel-ayuso-edizioni-scientifiche-italiane/9788849520774.html
(2) M. Ayuso, La costituzione cristiana degli Stati, “Edizioni Scientifiche Italiane”, Napoles, 2010, p. 13. Cfr. J. A. Widow, El ombre, animal politico, Santiago del Cile, Editorial Universitaria, 1984.
(3) Ibidem, p. 14.
(4) Ibidem, p. 18. Cfr. ainda Ramòn Orlandis, Pensamientos y occurrencias, Barcelona, Balmes, 2000; Francisco Canals, Polìtica española: pasado y futuro, Barcelona, Acervo, 1977.
(5) Ibidem, p. 21.
(6) Cfr. A. De Mun, Ma vocation sociale, Paris, Lethielliieux, 1908.
(7) Ibidem, p. 22.
(8) Ibidem, pp. 24-26. Cfr. M. Ayuso, La revoluciòn liberal y sus metamorfosis ante el pensamento catòlico, in J. M. Sànchez, Polìtica y religiòn en la crisis de la modernidad, Madri, Fundaciòn Tomàs Moro, 2000; A. Gambra, Los catòlicos y la democrazia. Génesis històrica de la democrazia cristiana, Madri, Speiro, 1982.
(9) M. Ayuso, La costituzione cristiana degli Stati, cit., p. 27.
(10) Ib., p. 28.
(11) Cfr. F. Rodrìguez, Introduciòn a la polìtica social, Madri, Civitas, 1979; M. Ayuso, La polìtica, officio del alma, Buenos Aires, Nueva Hispanidad, 2007; Id., Koinòs. El pensamiento politico de Rafael Gambra, Madri, Speiro, 1998; D. Castellano, L’ordine della politica, Napoles, Edizioni Scientifiche Italiane, 1996, tradução espanhola, La naturaleza de la polìtica, Barcelona, Scire, 2006; Id., De Christiana Republica, Napoles, ESI, 2004; Id., Costituzione europea, diritti umani e libertà religiosa, Napoles, ESI, 2005; Id., L’ordine politico-giuridico, Napoles, ESI, 2007; Id., La politica tra Scilla e Cariddi, Napoles, ESI, 2010; A. d’Ors, Ensayos de téoria polìtica, Pamplona, Eunsa, 1979; F. E. de Tejada, Europa, tradizione, libertà, Napoles, ESI, 2005; J. Ousset, Pour Qu’il Règne, Paris, Office international, IIa ed., 1970.
(12) Ib., p. 29. Sobre a Tradição apostólica e as novidades de Vaticano II cfr. Brunero Gherardini, Concilio Ecumenico Vaticano II. Un discorso da fare, Frigento, Casa Mariana Editrice, 2009; Id., Tradidi quod et accepi. La Tradizione, vita e giovinezza della Chiesa, Frigento, Casa Mariana Editrice, 2010; Id., Concilio Vaticano II. Il discorso mancato, Turim, Lindau, 2011; Id., Quaecumque dixero vobis. Parola di Dio e Tradizione a confronto con la storia e la teologia, Turim, Lindau, 2011.
(13) M. Ayuso, La costituzione cristiana…, cit., p. 36.
(14)La costituzione cristiana…, cit., p. 38.
(15) Cfr. A. Millàn Puelles, Sobre el hombre y la sociedad, Madri, Rialp, 1976.
(16) La costituzione cristiana…, cit., p. 39. Cfr. V. Rodrìguez, Temas clave del humanismo cristiano, Madri, Speiro, 1984.
(17) Cfr. J. Meinvielle, Il cedimento dei cattolici al liberalismo. Critica a Maritain, Roma, Sacra Fraternitas Aurigarum, 1991.
(18) Cfr. P. C. Landucci, La sacra vocazione, Roma, Paoline, 1956.
(19) Cfr. M. de Corte, Essai sul la fin d’une civilisation, Paris, De Médicis, 1949.
(20) La costituzione cristiana…, cit., p. 71.
(21) J. Guerra Campos, Amor, deber y permissivismo, Madri, Adue, 1978.
(22) M. Ayuso, Las murallas de la ciudad, Buenos Aires, Nueva Hispanidad, 2001.
(23) La costituzione cristiana…, cit., p. 75.
(24) Cfr. J. Meinvielle, Influsso dello gnosticismo ebraico in ambiente cristiano, Roma, Sacra Fraternitas Aurigarum, 1989.
(25) Cfr. D. Castellano, L’aristotelismo cristiano di Marcel De Corte, Florença, Pucci-Cipriani, 1975; Id., La razionalità della politica, Napoles, ESI, 1993; J. Orlandis, Historia y espìritu, Pamplona, Eunsa, 1975;
(26) Ib., p. 84. Cfr. L. E. Palacios, Nota critica a la declaratiòn conciliar sobre libertad religiosa, in “Anales de la Real Academia de Ciencias Morales y Politicas”, Madri, n. 56, 1979, pp. 45 ss.
(27) La costituzione cristiana…, cit., p. 85.
(28) La costituzione cristiana…, cit., p. 91.
(29) La costituzione cristiana…, cit., p. 89. Cfr. J. Guerra Campos, Hacìa la estabilizatiòn polìtica, Madri, Uniòn Editorial, 1983; M. Ayuso, Une culture pour l’Europe de démain, Paris, Editions Universitaires, 1992; D. Castellano, Razionalismo e diritti umani, Turim, Giappichelli, 2003.
(30) La costituzione cristiana…, cit., p. 91.
(31)La costituzione cristiana…, cit., p. 106.
(32) D. Composta – D. Castellano, Questione cattolica e questione democristiana, Padoa, Cedam, 1987.
(33) Cfr. C. Fabro, La svolta antropocentrica di Karl Rahner, Milão, Rusconi, 1974; Id., L’avventura della teologia progressista, Milão, Rusconi, 1974.
(34) J. Guerra Campos, La Iglesia y la comunidad polìtica, XIV centenario del III Concilio di Toledo, 1989
Pe. Philippe Toulza, FSSPX
Como explicar o declínio da evangelização na Europa? A rigor, a resposta a essa pergunta é que qualquer decréscimo no Cristianismo tem como sua causa, ao menos na porção adulta que afeta, uma falta de cooperação com a ação de Deus. De fato, a graça nunca falta; se a evangelização não se consuma, então isso se dá porque o homem, a quem ela está destinada, apresentou um obstáculo a ela. A descristianização ocorre quando, em um grupo humano, uma proporção crescente de almas não mais adere à fé ou, embora se mantendo católica, negligencia seu progresso em direção a Deus ou mesmo abandona a fé (ou a vida católica). Durante o iluminismo, o filósofo Julien de la Mettrie (1709-1751) foi um desses casos; ele nasceu em uma família católica na Bretanha, e seu pai achava que ele poderia ser um Padre. Ele preferiu dedicar-se ao estudo da medicina, o que o levou ao materialismo, ao ateísmo e ao libertinismo; ele espalhou essas convicções em seus escritos e entrou para a história como um exemplo lamentável de secularização. Aqueles responsáveis pela descristianização são, portanto, homens como ele e outros que rejeitam, em maior ou menor grau, para si mesmos ou para aqueles sob seus auspícios conforme o caso, as exigências do Reinado de Cristo.
Essa explicação põe a culpa em várias portas de entrada e, portanto, não é muito específica. Por essa razão, muitos preferem explicar essa descristianização não pelas suas verdadeiras causas, que devem ser buscadas nas almas, mas por aquilo que incita as almas a se afastarem de Cristo. Algumas dessas causas começaram a agir em Pentecostes: o demônio e o mundo. Outras causas estão mais intimamente conectadas a circunstâncias específicas, e são essas causas que nos interessam: quais delas levaram à secularização da Europa?
O pensamento moderno
Uma realidade tão complexa quanto a descristianização e realizada em um continente inteiro ao longo de vários séculos, necessariamente, é resultado de diversas causas: a perda das raízes [de um povo] devido à industrialização, a subversão das sociedades intelectuais, o apoio eclesiástico à escravidão, o avanço do hedonismo, etc. E alguns fatores trabalharam no sentido de promover outros fatores. Porém, o consenso geral é que a principal causa da descristianização é a modernidade. A começar com o Renascimento, a Europa pensou que estava redescobrindo a grandeza da natureza humana que o teocentrismo medieval, supostamente, havia escondido. Havia dúvida quanto a se a raça humana realmente tinha o pecado original e se o homem realmente precisava bater no próprio peito. Então, com o ímpeto da reforma protestante, toda autoridade religiosa parecia perigosa à liberdade; seguindo Rousseau e, após, Kant, a Europa divinizou a autonomia do homem. Assim como Descartes, no Século XVII, havia recusado argumentos que apelassem à autoridade na Filosofia, os pensadores modernos questionaram o dogma; eles não tinham mais a fé da mãe de Villon. No fim, levantes políticos como aqueles de 1789 desafiaram as instituições. Pedia-se liberdade de expressão do pensamento. A aliança entre o trono e o altar era denunciada. Padres eram suspeitos de serem gananciosos e o jugo da moralidade foi jogado fora; o ódio de Voltaire se espalhava. A diversidade religiosa, mesmo aquela entre católicos e protestantes, tornou-se um pretexto para rejeitar a autoridade dos Padres; havia tantas religiões na terra… o fato do Catolicismo ser a religião de nossos pais bastava para torná-lo mais crível que as outras?
Os direitos humanos eram opostos à “intolerância” do passado, a razão à fé, a independência à lei. Essas ideias modernas encorajavam as almas e as instituições a se afastarem da religião tradicional. O resultado é que, hoje, como Danièle Hervieu-Léger escreve, “o Catolicismo, que era a matriz social, política e cultural do mundo ocidental, hoje, até mesmo nas áreas onde ele desenvolve seu poder civilizatório, é cada vez mais ostracizado às margens da vida social. É apenas uma questão privada de um número cada vez menor de indivíduos; ele não mais molda profundamente as condutas e as consciências”
A modernidade não é o único problema; a descristianização também tem sido atribuída ao progresso científico e tecnológico. Isso tem fundamento? É verdade que, nos Séculos XVI e XVII, o conhecimento humano da natureza progrediu; muitas descobertas foram feitas na astronomia, na mecânica e na geografia; os homens pararam de atribuir a seres espirituais os fenômenos que, agora, a ciência era capaz de explicar. Atenágoras e São Tomás haviam, por exemplo, atribuído o movimento das estrelas à ação dos anjos, mas, agora, a gravitação universal explicava esse movimento e parecia desacreditar a Teologia. Ao mesmo tempo, a imprensa, instrumentos ópticos e, mais tarde, o motor a vapor aumentaram o domínio humano sobre a natureza. As condições de vida melhoraram, o que colocou em parênteses a esperança na vida eterna. A ciência médica, em breve, seria capaz de proteger os homens da praga; eles realmente precisavam rezar? Primeiro os meios de transporte e, depois, as comunicações tornaram-se mais rápidos e levaram a contatos com outras civilizações, que viam nossa religião de uma perspectiva diferente. Em suma, o progresso científico e tecnológico não apenas estavam em conformidade com o pensamento moderno, eles também o ajudaram a florescer. Apesar disso, eles não eram mais que uma oportunidade favorável à descristianização, e não sua verdadeira causa; pois a ciência, em si mesma, não se opõe à religião. Além disso, ainda que o pensamento moderno tivesse sido impedido de florescer por alguma razão, o progresso científico e tecnológico ainda teria sido realizado, assim como aconteceu na Idade Média cristã. A descristianização da Europa não teve outra causa principal senão o crescimento da modernidade.
Qual foi a atitude da Igreja diante dele? Primeiramente, ela o deplorou. O edifício da Europa cristã estava rachando, suas paredes estavam desabando, ela ameaçava ruir; para o Corpo Místico de Cristo, era um golpe ao panorama da fé sobrenatural. O destino de São Thomas More foi emblemático desse tempo. Chanceler do Rei da Inglaterra, ele rejeitou a nova lei promulgada pela Coroa que separava o país da unidade da Igreja. Por isso, ele foi aprisionado na Torre de Londres até seu julgamento; terminou sendo decapitado, assim como Cosme, Damião e Cecília séculos antes. Em 1535, durante essas provações, ele escreveu um livro no qual contemplava A Tristeza de Cristo no Jardim das Oliveiras. Suas meditações também expressam sua própria tristeza diante da morte. Pode-se ver, nelas, também, a tristeza da Igreja face à descristianização da Europa, uma descristianização na qual o cisma que se formava do outro lado do Canal era um passo que levaria a Inglaterra ao anglicanismo. Mas a Igreja não se limitou a deplorar a perda de influência. Ela reagiu, e a história de sua ação compõe-se de duas grandes fases. Da reforma até o Vaticano II, a Igreja se opôs à modernidade. Após o Concílio, ela escolheu uma nova atitude. Passemos a analisar essas duas fases.
Oposição inicial
Até metade do Século XX, a apreensão da Igreja face à secularização se expressava, acima de tudo, nos documentos do Magistério. Eles revelam que, entre 1517 e 1965, o julgamento da Santa Sé sobre a modernidade era severo. Do Século XIX em diante, a maioria desses documentos eram encíclicas. Elas todas se baseiam numa arquitetura razoavelmente semelhante, da qual a Quanta Cura de Pio IX é um bom exemplo. Nesse texto, escrito em 1864, o Papa descreve o nascimento de uma nova ideia sobre o papel da religião na sociedade; ele deplorava o naturalismo dessa ideia e respondeu a ela com os ensinamentos tradicionais sobre os direitos públicos da Igreja. Pio IX baseava sua encíclica em dois pressupostos:
1. A secularização vem do erro e do mal. Quanta Cura estigmatizava as “calúnias dos hereges”, os “livros venenosos”, as “doutrinas ímpas”, as “iníquas maquinações dos malvados” e as “monstruosas opiniões”. O que levou Pio IX a ser tão severo foi o fato de que, 16 anos antes, forças revolucionárias o haviam despojado de uma parte dos Estados Papais. Em Novembro de 1848, o chefe de governo da Santa Sé, Pellegrino Rossi, até mesmo foi assassinado por rebeldes quando o Palácio do Quirinal foi cercado pelos seguidores de Giuseppe Mazzini. O Papa teve de fugir à noite. Pio IX sentiu a revolução na própria pele.
2. A oposição da Igreja à modernidade é justa, e os meios usados nessa oposição sempre foram prudentes. Na visão de Pio IX, seus predecessores “nada cuidaram tanto como descobrir e condenar […] todas as heresias e erros” com “apostólica fortaleza”, e ele desejava seguir “os passos ilustres de Nossos Predecessores”. Nem Pio IX, nem os outros pontífices se arrependeram da oposição da Igreja à modernidade. Eles convidavam os Bispos a rezar, a serem cautelosos na escolha dos candidatos ao sacerdócio, a pregar a verdade ainda mais, a refutar os erros, a recuperar as almas; eles proibiram publicações más e impuseram sanção após sanção. Mais tarde, Leão XIII optaria por um tom menos virulento em seus ensinamentos. Nenhum Papa agiu exatamente da mesma maneira que os outros, mas todos eles eram unânimes nesses dois pressupostos.
Alguns podem alegar que houve tréguas nesse confronto entre a Igreja e a modernidade. Por exemplo, Leão XIII pediu aos católicos franceses que apoiassem a República; Pio XI condenou a Action Française; Pio XII deu discursos de rádio modernos; outras concessões podem ser mencionadas também… Essas observações são verdadeiras; apesar disso, de Leão X a Pio XII, a conduta da Igreja, de modo geral, foi constante.
A grande tormenta
No começo do pontificado de João XXIII, essa descristianização ainda era causa de preocupação. Dom Marcel Lefebvre adentrou o anfiteatro conciliar em 1962 indagando-se sobre como a contra-atacar. Pois o seu tempo como Bispo em Tulle havia aberto os olhos do ex-missionário na África para a realidade da Europa: seminários vazios, clero desanimado, igrejas quase sem fiéis. A perseverança da juventude era causa especial de preocupação para os padres paroquianos. Já em 1938, François Mauriac havia escrito: “A primeira comunhão de uma criança é o sinal oficial e reconhecido de que ela vai abandonar Cristo e a Igreja”
O que tinha de ser feito? Essa questão preocupou os padres do Vaticano II, e um texto sobre as relações da Igreja com o mundo foi preparado. Ele levou à constituição Gaudium et Spes: nela, o Concílio promulgou um ponto de virada na conduta da Igreja. De acordo com certos Padres Conciliares, a oposição entre a Igreja e o mundo não apenas não havia solucionado o distanciamento entre os homens e a religião, mas havia aumentado ainda mais essa realidade. A Igreja havia perdido o apoio do poder secular, e, agora, ela precisava encontrar uma nova forma de se equilibrar; ela havia perdido a confiança das pessoas e precisava tornar-se mais atraente. Em suma, a Igreja precisava adaptar-se à situação. Bento XVI fala sobre essa ação: “O Catolicismo, que havia construído e adornado o mundo ocidental, parecia, cada vez mais, perder sua força. Ele parecia esgotado, e o futuro parecia estar destinado a ser governado por outras forças espirituais. Essa sensação de perda do presente por parte do Catolicismo e a tarefa que decorria dela foi bem expressada pelo termo aggionarmento. O Cristianismo precisava estar no presente, para ser capaz de formar o futuro”. Os Papas do Concílio delinearam, em essência, o caminho a ser seguido. No discurso inaugural de 1962, João XXIII insistiu que o passado não havia sido tão maravilhoso quanto eles haviam pensado, nem os tempos presentes tão ruins quanto eles haviam considerado, paradoxalmente unindo o conhecimento da secularização com um otimismo oculto; ele concluiu com a promessa de que, dali em diante, a Igreja seria mais misericordiosa. No discurso de encerramento de 1965, Paulo VI louvou o que ele acreditava que a Igreja tinha em comum com o humanismo contemporâneo: o culto do homem. Esses discursos, em conjunto com os textos do Concílio, definiram a nova atitude. Os dois pressupostos anteriores foram abandonados e substituídos por dois pressupostos, estes contrários:
1. Nem tudo na modernidade era falso ou mau. Muitas das aspirações dos homens eram justas. A severidade do julgamento da Igreja sobre o mundo foi substituída por um otimismo benevolente para obter uma reconciliação.
2. Na oposição histórica da Igreja ao mundo moderno, certas posturas haviam sido contrárias ao Evangelho e demandavam arrependimento.
Baseada nesses dois pressupostos, a nova postura da Igreja viria a afetar os três poderes eclesiásticos:
1. O Magistério: ele deveria denunciar menos os erros e enfatizar mais os elementos convergentes do Catolicismo com as culturas nas quais ele era forçado a viver; o primeiro desses elementos era a convicção de que o homem é bom. O diálogo entre religiões tornou-se uma palavra de ordem do Magistério. Abertura ao mundo.
2. Os sacramentos: decidiu-se que os ritos seriam reformados para os tornar mais aceitáveis aos nossos tempos, menos austeros e mais populares. A fronteira clara entre o profano e o sagrado foi questionada.
3. As leis da Igreja: elas se tornaram menos numerosas, menos repressivas à natureza humana, e as autoridades se mostrariam, dali em diante, mais flexíveis no controle da fidelidade a essas leis.
Nem tudo foi definido no Concílio, mas tudo foi expressado ou experimentado em decorrência dele. Parte das atividades paroquiais estaria, dali em diante, direcionada à criação de um ´mundo mais justo´. Juntamente com outras religiões e os governos, a Igreja tinha a intenção de combater a desigualdade econômica, trabalhar pela paz e promover os direitos humanos. A Teologia do Papa Wojtyla deu a esses objetivos uma densidade intelectual. Enquanto regimes totalitários causavam grandes desgraças a várias nações, João Paulo II explicava que a pessoa humana era o alfa e o ômega do governo. Seu personalismo foi visto como uma maneira de escapar do coletivismo.
O fim de Cristo Rei
Como sinal dessa amizade com a modernidade, o conceito de Cristandade foi abandonado. Essa decisão não foi uma mera coincidência. De fato, a aliança entre o altar e o trono havia sido uma força inestimável na oposição às ideias modernas, mas essas ideias não eram mais demonizadas. E o Catolicismo, enquanto religião do Estado, não era mais conducente à liberdade e soberania do povo.
Cristo, portanto, foi destronado. Até o começo do Século XX, a missão recebida d´Ele aplicava-se ao homem nas três dimensões que Deus lhe havia dado na criação: como indivíduo, como membro de uma família e como um cidadão. Os Padres liberais haviam negado a terceira dimensão. Eles proclamaram a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae); o Vaticano II não foi além disso, ele não chegou a apoiar a neutralidade religiosa do Estado. Mas o Papa e os Bispos encerraram o trabalho depois dele. Eles assentiram à descristianização dos governos que já havia sido imposta à Igreja aqui e ali. Ela errou -- alegaram eles -- ao se envolver na política. Teodósio foi julgado e condenado, digamos assim. O historiador Jean Delumeau chegou a dizer que a Cristandade havia sido maléfica à fé, pois a religião de nossos ancestrais era frágil, e sua fidelidade aos mandamentos, rara! A Cristandade havia fracassado; na verdade, ela era responsável por esse fracasso: “A presente descristianização é, em grande parte, o preço a se pagar por aquela enorme aberração que durou um milênio e meio”
Delumeau estava, apenas, seguindo o rumo indicado pelas autoridades da Igreja. Esse novo rumo era como um tapa na cara dado por Paulo VI em Pio IX e seus predecessores. Pois, até 1965, se a religião causava alguma oposição, era uma oposição entre a Igreja e o mundo. Mas, com 1965, uma nova oposição nasceu, uma oposição entre aqueles que aderem ao passado da Igreja – e Dom Lefebvre estava entre eles – e aqueles que não mais o fazem.
(The Angelus, Set-Out 2020. Tradução: Permanência)
Christopher Ferrara
Este artigo, adaptado de uma conferência dada no simpósio de 2018 do Forum Romano em Lago di Garda, Itália, examina a atual crise sem precedentes na Igreja em sua origem: o levante neo-modernista durante o período entre guerras, culminando na catástrofe conhecida como a “abertura ao mundo” no Vaticano II.
A “abertura ao mundo” conciliar foi ajudada poderosamente por dois iludidos visionários “conservadores” cujos papéis foram absolutamente decisivos: Jacques Maritain e seu discípulo Papa Montini, cujo relacionamento e conexão mútua com ninguém menos que Saul Alinsky são o foco deste trabalho.
Não é mais possível negar de boa-fé que o resultado do Concílio tenha sido a propagação de uma enfermidade eclesial que afeta agora praticamente cada região do Corpo Místico, enfermidade essa que ambos Maritain e Montini deploraram ruidosamente em seus estágios iniciais, ao mesmo tempo em que se recusavam resolutamente a admitir sua própria participação, e a do Concílio, no crescente desastre.
Por mais de cinqüenta anos, autores e comentadores tradicionalistas, observando o óbvio, documentaram o declínio eclesial que se espalhava em cada setor da Igreja e alertaram incessantemente que a mania reformista que o Concílio desencadeou — sob os aplausos de ambos Maritain e Montini e de seus iludidos reformadores “conservadores” — terminaria num desastre final para o elemento humano da Igreja. O desastre final chegou com o irrefreável papado de Jorge Mario Bergoglio e seu círculo de colaboradores homossexuais e simpatizantes do movimento homossexual, que ele tem elevado sistematicamente a posições de poder a serviço de sua verdadeira ditadura sobre a Igreja.
Admitindo precisamente aquilo que observadores tradicionalistas vêm dizendo sobre Bergoglio nos últimos cinco anos e meio, o padre Thomas Rosica, ferrenho apoiador do movimento homossexual, declara: “O papa Francisco rompe com as tradições católicas sempre que quer, porque ele está ‘livre de apegos desordenados’. Nossa Igreja entrou realmente numa nova fase: com o advento do primeiro papa jesuíta, ela é agora governada abertamente por um indivíduo, mais do que apenas pela autoridade da Escritura ou mesmo pelos preceitos de Tradição mais Escritura.”
O que Rosica está louvando não é nada menos que a tentativa de impor um culto de personalidade sobre a Igreja universal, livre de qualquer doutrina ou prática que o chefe do culto considere inaceitável. A “nova fase” é, de fato, o estágio terminal da revolução pós-conciliar na Igreja.
A próxima fase na história da Igreja será uma restauração total de cada elemento da Tradição que a revolução derrubou. Mas parece agora que essa inevitável restauração terá de envolver uma intervenção divina das mais dramáticas, porque salvo umas poucas comunidades tradicionalistas remanescentes, o elemento humano da Igreja, da cabeça aos pés, tornou-se incapaz de se afastar definitivamente do que foi feito ou do que se permitiu fazer em nome do mais desafortunado concílio ecumênico da história da Igreja. Para lembrar a profecia de Nossa Senhora do Bonsucesso:
Para a libertação da escravidão dessas heresias, aqueles a quem o amor misericordioso de meu Filho Santíssimo destinará para essa restauração necessitarão de grande força de vontade, constância, valor e muita confiança em Deus. Para pôr à prova essa fé e confiança dos justos, haverá ocasiões em que tudo parecerá perdido e paralisado. Será, então, o feliz princípio da restauração completa.
[…]
Durante esse tempo desafortunado, a injustiça entrará até aqui, no meu jardim reservado. Disfarçada sob o nome de uma falsa caridade, ela causará estragos nas almas. O rancoroso demônio tentará semear discórdia, valendo-se de membros putrefatos, que, mascarados pela aparência de virtude, serão como sepulcros apodrecidos emanando a pestilência da putrefação, causando a morte moral em alguns e a tibieza em outros.
[…]
A atmosfera saturada do espírito de impureza, à maneira de um mar imundo, correrá pelas ruas, praças e logradouros públicos… Quase não haverá almas virgens no mundo.
[…]
Como a Igreja sofrerá naquela ocasião a noite escura da falta de um Prelado e Pai para olhar sobre ela com amor paternal, gentileza, força e prudência! Muitos sacerdotes desanimarão, colocando suas almas em grande perigo. Ora com instância, clama sem cansar e chora com lágrimas amargas, pedindo ao Pai Celeste que, por amor do Coração Eucarístico de seu Santíssimo Filho e de seu Precioso Sangue derramado com tanta generosidade, e pela profunda amargura e sofrimentos de sua cruel Paixão e morte, compadeça-se de seus ministros e ponha termo quanto antes a tempos tão nefastos, enviando a esta Igreja o Prelado que deverá restaurar o espírito de seus sacerdotes.
Apesar de ter vivido para se arrepender da ruína eclesiástica que ele mesmo provocou e que, então, buscou desesperadamente reparar — muito pouco, muito tarde — o Papa Montini foi um revolucionário formado pelo Modernismo “conservador” de outro revolucionário: Jacques Maritain. Como Montini famosamente admitiu: “Sou um discípulo de Maritain. Chamá-lo-ei de meu mestre.” O livro de Maritain, Humanismo Integral (1936), não foi nada menos que o “‘petit livre rouge’ (‘pequeno livro vermelho’ ) de toda uma geração de cristãos” , isto é, católicos liberais como Montini, filhos dos “patriotas” da alta burguesia do Estado italiano criado pela violência revolucionária do chamado Risorgimento. Como o próprio Maritain, Montini foi seduzido pelo fogo fátuo de uma Nova Era da humanidade na qual a Igreja, alegremente reconciliada com a democracia pluralista e a concepção moderna de direitos, seria o fermento de uma Nova Cristandade, livre das incapacitantes estruturas do que Maritain repudiava como a ultrapassada “idade sacra” da Cristandade medieval para a qual jamais poderia haver qualquer tipo de retorno. Montini e Maritain foram figuras típicas dos falsos profetas da modernidade que não conseguiam enxergar, mesmo enquanto tudo acontecia diante de seus olhos, o que os Papas pré-conciliares previram que aconteceria caso a Igreja tentasse acomodar seu ensinamento ao espírito da época com sua inegociável exigência de extinção do estado confessional católico.
“O Primeiro Papa Moderno” , o discípulo iludido de um leigo iludido, levaria a Igreja a um desastroso desvio do caminho de todos os seus predecessores, apenas para encontrar-se, ao final, “diante do projeto, que jaz destruído, de todo o seu pontificado.” . Em seu O Camponês do Garona, publicado em 1966, Maritain uniu-se a Montini ao lamentar o que se seguiu ao Concílio Vaticano II, embora absolvendo o Concílio de qualquer culpa pelo levante neomodernista pós-conciliar, ainda que seu próprio “pensamento”, que espalhou um culto internacional de Maritainismo ao qual Montini pertencia, tenha contribuído para facilitar aquele levante durante e após o Vaticano II.
Maritain e Alinsky
Em O Camponês, Maritain escreve sobre seu próprio relacionamento com um companheiro revolucionário, Saul Alinsky: “entre os meus contemporâneos ainda vivos enquanto escrevo essas linhas, só consigo ver três revolucionários que fazem jus ao nome: Eduardo Frei no Chile, Saul Alinsky na América, e eu mesmo na França, sendo porém um peso-leve ao lado desses outros, já que minha vocação como filósofo encobriu completamente qualquer talento que pudesse ter como agitador.... Saul Alinsky, grande amigo meu, é um corajoso e admiravelmente dedicado organizador de ‘comunidades do povo’ e um líder anti-racista cujos métodos são tão efetivos quanto heterodoxos.”
Muito inexplicavelmente, Maritain ficou encantado com o judeu agnóstico organizador de comunidades e fumante de charutos, a quem conheceu pela primeira vez em 1945 durante sua permanência temporária nos Estados Unidos ao final da guerra. Bernard Doering, especialista em estudos sobre Maritain, observa que sempre que Maritain e Alinsky se encontravam, “passavam longas horas explorando o sonho democrático de um povo que fizesse seu próprio destino. Ambos aceitavam a democracia como a melhor forma de governo.”
A alardeada carreira de Alinsky como paladino da justiça social em Chicago, onde desenvolveu profundas conexões com os padres e prelados progressistas da arquidiocese de Chicago, produziu pouco ou nada em termos de verdadeira justiça. Entretanto, instado por ninguém menos que Maritain, Alinsky viria a produzir alguns livros influentes sobre como ser um efetivo agitador de turbas e inescrupuloso ludibriador político na promoção de causas socialistas. Desde “seus primeiros dias de amizade na América nos tempos da guerra,” escreve Doering, “Maritain vinha insistindo, para não dizer incitando incansavelmente, Alinsky a publicar uma explicação sobre seus métodos de organização de comunidades; um tipo de manual para uma autêntica revolução.”
Alinsky escreveu o seu Reveille for Radicals (Convocação para Radicais) especificamente a pedido de Maritain, cedendo-lhe os direitos exclusivos para a tradução francesa. Numa carta de recomendação para uma bolsa de financiamento para Alinsky, Maritain o descreve como um “tomista prático” — exemplo do quão elástico era o assim chamado Tomismo de Maritain. Na mesma carta, ele descreve Alinsky como “uma nobre alma, um homem de profunda pureza moral...”
Foi também Maritain quem estimulou a publicação da última obra de Alinsky, o infame Rules for Radicals (Regras para Radicais), de 1971, que influenciaria ambas as carreiras de Barack Obama e Hillary Clinton. Aparentemente, ou Maritain não leu ou decidiu negligenciar boa parte do conteúdo do livro cuja publicação ele iria depois enaltecer. O livro é dedicado “ao primeiro radical que o homem conheceu; aquele que se rebelou contra o establishment e o fez tão efetivamente que pelo menos ganhou o seu próprio reino — Lúcifer.” Em suas páginas, Alinsky declara: “O dogma é o inimigo da liberdade humana. O dogma tem de ser vigiado e detido a cada volta e reviravolta do movimento revolucionário.” Ato contínuo, contradiz a si mesmo estabelecendo um dogma após o outro, incluindo:
1) O “direito sagrado” à revolução.
2) A máxima de que “a humanidade foi e é dividida em três partes: os que têm, os que não têm, e os que têm pouco e querem mais.” “A vida espiritual dos que têm”, diz Alinsky, é meramente “uma justificação ritualista de suas posses.”
3) Várias regras éticas para o paladino da justiça social, incluindo o direito de empregar chantagem e outros meios imorais se realmente necessários para alcançar o seu fim: a chamada justiça social.
De acordo com as regras éticas de Alinsky, “a única e real questão sobre a ética dos meios e dos fins é e sempre foi: ‘Esse fim particular justifica esse meio particular?’” “Padrões éticos”, diz Alinsky, “têm de ser elásticos para serem ampliados com os tempos.” “Dizer que meios corruptos corrompem os fins é acreditar na imaculada conceição de fins e princípios”, declara ainda.
Alinsky chega a citar Maritain — desonestamente e fora de contexto — para sustentar sua posição de que não jogar sujo por “medo de macular a nós mesmos diante do contexto histórico não é uma virtude, mas uma forma de fugir da virtude.” Os julgamentos éticos, diz Alinsky, “têm de ser feitos no contexto da época na qual a ação ocorreu, e não a partir de qualquer outro ponto de vista cronológico”, e “quanto menos importante for o fim desejado, mais deve-se aceitar se envolver nas avaliações éticas dos meios.”
Eis um exemplo da “pureza moral” de Alinsky, retirado das páginas de Rules for Radicals:
Sempre acreditei que controle de natalidade e aborto são direitos pessoais a serem exercidos pelo indivíduo. Se lá no meu começo, quando eu organizava a vizinhança do bairro Back of the Yards em Chicago, que era 95% católico-romana, eu tivesse tentado passar essa idéia, mesmo considerando a experiência dos residentes, cuja difícil situação econômica era agravada por famílias grandes, isso teria sido o fim do meu relacionamento com a comunidade.
Alguns anos depois, após estabelecer relacionamentos sólidos, fiquei livre para falar sobre qualquer coisa, incluindo controle de natalidade. Lembro de conversar sobre isso com o então chanceler da cúria católica. Naquele ponto, o assunto não estava mais limitado a perguntas como, “Por quanto tempo ainda você acredita que a Igreja Católica pode se agarrar a essa noção arcaica e ainda sobreviver?”
Isso foi escrito na mesma época em que a oposição neo-modernista ao ensinamento da Igreja sobre matrimônio e procriação impelia Montini a produzir o documento que viria a se tornar a Humanae Vitae. Apesar de tudo isso, Maritain escreveu ao seu amado amigo Alinsky em 1971, uma de suas últimas cartas, para elogiar Rules for Radicals como: “Um grande livro, admiravelmente livre, absolutamente destemido, radicalmente revolucionário.... Considero o livro um marco histórico. Se as pessoas da classe média puderem se organizar e desenvolver um senso de bem comum e um desejo por esse bem — e se Saul estiver lá para inspirá-las — elas serão capazes de mudar o cenário social inteiro em prol da liberdade.” Após umas poucas e tímidas objeções ao posicionamento amoral e à ética utilitarista de Alinsky, objeções pelas quais se desculpa, Maritain conclui sua epístola elegíaca ao agitador agnóstico judeu: “Sabes que estou contigo com todo o meu coração e alma. Reza por mim, Saul. E Deus te abençoe. A ti, a fervente admiração e o permanente amor de seu velho Jacques.”
Numa entrevista que deu à uma revista de má reputação muito pouco antes de morrer de ataque cardíaco em 1972 aos 63 anos, o homem a quem Maritain pediu orações declarou que escolheria sem hesitar o inferno ao céu:
REVISTA: Tendo aceitado sua própria mortalidade, você acredita em algum tipo de vida após a morte?
ALINSKY: Às vezes me parece que a pergunta que as pessoas deviam fazer não é se existe vida após a morte, mas se existe vida após o nascimento. Eu não sei se há ou não alguma coisa depois disto. Jamais vi evidências para um lado ou para o outro e não acho que mais alguém tenha visto. Mas o que sei é que a obsessão do homem com a pergunta vem de sua recusa teimosa em encarar sua própria mortalidade. Digamos que se existe uma vida após a morte, e se eu tenho de dizer algo sobre ela, escolho sem reservas ir para o inferno.
REVISTA: Por quê?
ALINSKY: O inferno seria o céu para mim. Durante toda a minha vida estive com os que não têm nada. Por aqui, se você é um dos que não têm nada, é porque lhe falta dinheiro. No inferno, se você é um dos que não têm nada, é porque lhe falta virtude. Assim que eu chegar ao inferno, começarei a organizar os que não têm nada por lá.
REVISTA: Por que eles?
ALINSKY: Eles são meu tipo de gente.
Alinsky e Montini
A íntima amizade de 30 anos entre o “velho Jacques” e Alinsky deu origem a uma conexão entre Alinsky e o principal discípulo de Maritain, o futuro Papa Paulo VI. Montini era então Arcebispo de Milão, posto ao qual havia sido enviado sem ter sido criado cardeal, após Pio XII ter perdido a confiança nele por conta de suas tendências modernistas.
Em seu estudo The Radical Vision of Saul Alinsky (A Visão Radical de Saul Alinsky), P. David Finsk observa que “por anos Jacques Maritain falou com aprovação para Montini sobre as organizações de comunidades democráticas fomentadas por Saul Alinsky.” Em conseqüência, em 1958 Maritain arrumou uma série de encontros entre Alinsky e o Arcebispo Montini em Milão. Antes dos encontros, Maritain tinha escrito a Alinsky para contar-lhe que, como narra Finsk: “o novo cardeal estava lendo os livros de Saul e o contataria em breve.”
Houve três encontros entre Montini e Alinsky em Milão durante a primavera de 1958. Em 20 de junho de 1958, Alinsky escreveu a Maritain: “Tive três maravilhosos encontros com Montini e estou certo de que você já teve notícias dele desde então.” Entre os assuntos discutidos, de acordo com Nicholas Hoffman, conversaram sobre como enfrentar o aumento da influência comunista no norte industrial da Itália sem “reforçar os elementos reacionários que têm menos interesse na democracia do que em esmagar o trabalhador.” Em outras palavras, o velho jogo liberal de usar a ameaça de uma armadilha política para dirigir o povo às garras de outra: opor ao comunismo o socialismo moderado, do mesmo jeito que se enfrentou o socialismo com o Parti de l'Ordre na França. E, de fato, o socialismo moderado tornou-se a política italiana sob o governo de Aldo Moro, eleito numa aliança com os socialistas em 1963.
Jamais saberemos exatamente o que se passou entre Montini e Alinsky durante aqueles “três maravilhosos encontros” em Milão, mas sabemos o que Alinsky, em Chicago, tendo retornado da Itália, escreveu para George Shuster dois dias antes do conclave que elegeu João XXIII: “Não, eu não sei quem será o próximo Papa, mas se for Montini, as bebidas serão por minha conta nos próximos anos.”
O que Alinsky sabia? O que aprendeu em seus “três maravilhosos encontros” com o homem que logo se tornaria o Primeiro Papa Moderno? Ele aprendeu aquilo que Maritain já sabia sobre seu discípulo: que se e quando Montini se tornasse Papa, haveria uma revolução na Igreja.
E assim aconteceu. Seria Montini quem declararia após o Concílio, nas páginas de L’Osservatore Romano (3 de julho de 1974): “As palavras importantes do Concílio são novidade e atualização... A palavra novidade nos foi dada como uma ordem, como um programa.” Nunca na história da Igreja um Papa havia proferido tal disparate num pronunciamento público para a Igreja universal.
Cegueira Intencional, Contenção Desesperada
Como observa Doering: “Cada uma das realizações do Concílio Vaticano II listadas por Maritain na primeira parte de O Camponês do Garona havia sido proposta 30 anos antes em Humanismo Integral” como “pré-requisito para uma revolução radical e uma transformação cristã da ordem temporal.”
Mas a Igreja pós-conciliar testemunhou, não uma “transformação cristã da ordem temporal”, mas antes o que o próprio Maritain, escrevendo em 1966, observava com assombro como “uma completa temporalização do cristianismo!” — acompanhada por um acelerado colapso da fé e da disciplina católicas sem precedentes na história da Igreja. Ambos Montini e Maritain ficaram se perguntando por quê. É claro, esse desastre absoluto não poderia de forma alguma ter algo a ver com aquilo que Maritain e seu discípulo haviam ajudado a desencadear no Concílio, cujos documentos, particularmente Gaudium et Spes, Dignitatis Humanae e Apostolicam Actuositatem (Sobre o Apostolado dos Leigos), respiram ao “fino” Modernismo de Maritain — exatamente aquilo que Pio XI havia reprovado na Ubi Arcano Dei, apenas 14 anos antes da aparição de Humanismo Integral:
Porque quantos são os que admitem a doutrina católica acerca da autoridade civil e o dever de obedecer-lhe, o direito de propriedade, os direitos e deveres dos trabalhadores agrícolas e industriais, as relações do poder religioso com o civil, os direitos da Santa Sé e do Romano Pontífice, os privilégios dos bispos; finalmente, os direitos de Cristo, Criador, Redentor e Senhor sobre todos os homens e sobre todos os povos?
No entanto, esses mesmos católicos falam, escrevem e obram como se os ensinamentos e as ordens dadas em tantas ocasiões pelos Sumos Pontífices, especialmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, houvessem perdido seu vigor nativo ou estivessem já completamente obsoletas.
Essa maneira de agir constitui uma espécie de modernismo moral, jurídico e social. Nós o condenamos com a mesma solenidade com que condenamos o modernismo dogmático.
Em O Camponês, Maritain expõe a delirante linha social modernista da nova era, proposta por Cavour, de “uma Igreja livre num Estado livre”, que de fato significa uma Igreja subjugada num Estado tirânico. “No Concílio”, vangloria-se Maritain em sua arrebatada prosa francesa, “a Igreja rompeu as amarras que fingiam protegê-la e livrou-se dos fardos que as pessoas costumavam pensar que a equipavam melhor para a obra de salvação. Livre doravante desses fardos e dessas amarras, ela espelha melhor a verdadeira face de Deus, que é Amor, e para si pede apenas liberdade. Ela abre suas asas de luz.”
Sendo o visionário iludido que era, Maritain não reconhece a realidade histórica que os Papas pré-conciliares deploraram unanimemente. A Igreja não havia sido libertada dos seus assim chamados “fardos e amarras” no Estado confessional católico da assim chamada “idade sacra”; antes, tinha visto os seus direitos serem roubados pela força e pela violência, levados por rios de sangue à medida que um Papa após o outro condenava os destruidores da civilização cristã e os erros fatais sobre os quais sua nova ordem se baseava. Aquilo que Maritain saudava, então, era a rendição formal da Igreja à modernidade política.
E apesar disso, no mesmo livro, publicado apenas um ano após o encerramento do Concílio, Maritain lamentava um desenvolvimento eclesial que ele nunca havia observado antes do Concílio. Parecia que a Igreja estava repentinamente se ajoelhando diante do mundo: “A presente crise tem muitos e diversos aspectos. Um dos mais curiosos espetáculos que ela nos oferece é um tipo de ajoelhamento diante do mundo, que se revela de milhares de formas.”
Apenas quatro anos antes, na época da abertura do Concílio, Maritain não teria conseguido observar tal ajoelhamento, mas não consegue ou não quer fazer qualquer ligação entre a situação emergente e a alardeada “abertura” do Concílio ao próprio mundo diante do qual tantos homens da Igreja Católica estavam de repente dobrando o joelho. Pelo contrário, ele se apressa em isentar o Concílio:
Se houver profetas da vanguarda ou da retaguarda que imaginem que nossos deveres para com o mundo, tais como trazidos à luz sob a graça do Espírito Santo pelo Concílio Vaticano II, apagam o que o próprio Senhor Jesus e seus Apóstolos disseram sobre o mundo — o mundo me odeia, o mundo não pode receber o Espírito da verdade, se alguém ama o mundo o amor do Pai não está nele, e todos os outros textos que lembrei antes — eu sei o que deve ser dito de tais profetas... eles estão furando os próprios olhos com o dedo de Deus.
Não é possível evitar razoavelmente a conclusão de que ambos Maritain e seu discípulo Papa Montini fecharam voluntariamente seus próprios olhos ao inegável fato de que essa repentina postura de se ajoelhar diante do “mundo moderno” estava conectada com o próprio Concílio, cujo inexplicável (para não dizer estulto) otimismo sobre o mesmo mundo impedia estritamente qualquer admissão de que o mundo odiava Cristo mais do que nunca; que mais do que nunca o mundo rejeitava a sua Palavra; que mais do que nunca o amor do mundo estava excluindo o amor do Pai.
Apesar de sua insistência em absolver o Concílio de qualquer cumplicidade com a repentina “temporalização do cristianismo”, Maritain tinha admitido anteriormente, mesmo durante o Concílio, que havia algo seriamente errado com os seus procedimentos. Escrevendo no início de 1964 para outro de seus amigos íntimos, o novelista franco-americano e homossexual enrustido Julien Green, Maritain confiou o seguinte sobre o que estava acontecendo na aula conciliar:
Soltar as rédeas como fez João XXIII era absolutamente necessário, mas ao mesmo tempo um risco e tanto. Tudo o que é profissionalmente intelectual (professores, universidades, seminários) me parece estar ou deteriorado ou numa posição muito perigosa. Uma certa exegese enlouqueceu e tornou-se estúpida.
Há um novo modernismo cheio de orgulho e rebeldia que me parece mais perigoso do que aquele do tempo de Pio X. (Afinal de contas, foi um espetáculo bem estranho ver todos os bispos do Concílio — a Igreja Docente — cada um flanqueado por seu especialista, professor ou erudito pedante da Igreja Discente, dos quais um bom número estava fora de sua especialidade intelectual, e entre os quais quase nenhum possuía qualquer sabedoria.) Então, é no meio de todo esse burburinho que a obra do Espírito Santo é realizada.
O “burburinho” que Maritain descreveu, esse repentino “novo modernismo” emergente, foi uma catástrofe eclesial iniciada bem no meio do Concílio. Ele, como seu estudante Montini, simplesmente se recusou a ver isso.
Talvez tenha vindo a calhar que ninguém menos que a dupla Maritain e Montini tenha corrido para resgatar o legado de seu precioso Concílio por meio do Credo do Povo de Deus, de Paulo VI. Como Sandro Magister revela num importante ensaio, em 1967, logo após a publicação de O Camponês, Maritain, então com 85 anos, ouviu do Cardeal Journet que este estava para ter uma reunião com o Papa sobre o já caótico estado pós-conciliar da Igreja, o que incluía a publicação do radicalmente herético Catecismo Holandês. Maritain escreveu de volta para dizer que tinha tido uma idéia: “O Soberano Pontífice devia redigir uma profissão de fé completa e detalhada, na qual tudo o que está realmente contido no Símbolo de Nicéia seria explicitamente apresentado. Isso será, na história da Igreja, a profissão de fé de Paulo VI.”
Journet apresentou a sugestão de Maritain ao Papa em sua reunião em janeiro de 1968, durante a qual disse a Paulo VI que o estado da Igreja era “trágico”, a ponto de os holandeses ousarem “substituir uma ortodoxia por outra na Igreja, trocando a ortodoxia tradicional pela ortodoxia moderna”, como a comissão papal que havia avaliado o Catecismo Holandês havia alertado. Em meio ao que já se constituía como uma emergência doutrinal, o primeiro Sínodo dos Bispos, que havia se reunido em Roma em setembro de 1967, já havia apresentado ao Papa “uma declaração dos pontos essenciais da fé”, aconselhando-o a reafirmá-los. Paulo VI reuniu-se novamente com Journet e lhe disse que o cardeal e Maritain (!) deviam “preparar para mim um esboço do que vocês acham que deve ser feito”.
Maritain redigiu então uma profissão de fé baseada no Credo Niceno, enviando-a a Journet, que a entregou a Montini. A redação de Maritain, quase sem emendas, tornou-se o Credo do Povo de Deus, solenemente proclamado por Paulo VI em 30 de junho de 1968. Ao ler o texto do Credo no jornal, Maritain se deu conta de que Paulo VI havia usado essencialmente a sua redação.
Considere as impressionantes implicações: menos de três anos após o encerramento do grandioso Concílio Vaticano II, infinitamente enaltecido por ter se abstido de uma mera confirmação da doutrina e do dogma católicos em favor de uma nova e vital formulação da Fé que, agora sim, apelaria ao comichão dos ouvidos do “homem contemporâneo”, Montini teve de publicar um texto emergencial que era precisamente uma confirmação da doutrina e do dogma católicos — redigido pelo leigo que havia sido seu mentor!
Nas imortais palavras do Arcebispo Dom Marcel Lefebvre após ter visto uma demonstração da Missa Nova fabricada pelo Consilium de Bugnini: “Isto é real?”
Conclusão: a Amarga Colheita de uma Amizade Revolucionária
O relacionamento entre Maritain, Montini e Alinsky foi um reflexo inicial da fusão de facto do elemento humano da Igreja com o mundo — a “temporalização do cristianismo” que Maritain foi forçado a reconhecer — que desde então vem caracterizando a crise pós-conciliar como um todo. Por isso o New York Times foi capaz de observar logo no início do pontificado bergogliano que ninguém menos que Barack Obama tinha “se adequado perfeitamente numa paisagem urbana católica dos anos 80 forjada pelo espírito do Vaticano II, pela influência da teologia da libertação e pelo progressismo do Cardeal Joseph L. Bernardin, arcebispo de Chicago, que clamava por uma ‘ética de vida consistente’ que tecesse vida e justiça social numa ‘veste sem costura’.”
O Times observa que Obama, o jovem organizador comunitário no ambiente católico progressista de Chicago, ambiente cuja criação deveu muito a Alinsky, teve como mentor Gregory Galluzzo, “um ex-padre jesuíta e discípulo do organizador Saul Alinsky.” Obama chegou a “ter um pequeno escritório com duas janelas de vidro canelado no andar térreo da paróquia do Santo Rosário, um belo edifício de tijolos vermelhos no lado Sul, de onde ele podia descer pelo corredor até o escritório do Pe. William Stenzel, levar um cigarro até a boca e perguntar, ‘vamos almoçar?’.”
Como o Times observa adiante, ao operar sob as asas da Arquidiocese de Chicago, “Obama tornou-se um rosto familiar nas paróquias de maioria negra no lado Sul. Na Igreja dos Santos Anjos, considerada um centro da vida católica negra, ele conversava com o padre e com o filho adotado do padre sobre como encontrar famílias dispostas a adotar crianças problemáticas. Em Nossa Senhora dos Jardins, assistia a Missas dedicadas à paz e à história dos negros e consultava o Pe. Dominic Carmon sobre programas para combater o desemprego e a violência. Na neogótica Santa Sabina, começou uma amizade com o Pe. Michael L. Pfleger, o atiçador [isto é, ultramodernista dissidente da doutrina e do dogma] padre branco de uma das maiores paróquias negras da cidade.”
Como Senador do Estado de Illinois, Obama, o paladino da justiça social oriundo da Chicago de Alinsky e da arquidiocese de Bernardin, por sua vez corrupta e infestada de homossexuais, recusaria seu apoio ao Born Alive Protection Act, apresentado ao legislativo do estado quando foi revelado que os bebês sobreviventes de abortos feitos em mulheres com gravidez avançada em hospitais de Chicago eram abandonados para morrer após terem nascido. Como Presidente dos Estados Unidos, ele defenderia o “aborto de nascimento parcial”, o subsídio compulsório de contracepção exigido de freiras católicas, e “orientações” federais para “banheiros transgêneros” em escolas públicas. E hoje em dia, os bispos católicos da América, muitos dos quais provavelmente votaram em Obama, estão unidos na convicção de que Donald Trump, usurpador da Nova Ordem Mundial, precisa ser impedido.
Contemple a mais recente e amarga colheita de uma amizade revolucionária entre homens da Igreja Católica e o mundo, exemplificada desde cedo pela ligação entre Jacques Maritain, Saul Alinsky e “o Primeiro Papa Moderno”.
(The Remnant. Traduzido e publicado na Revista Permanência 296)
Poucos católicos conhecem a Instrução Permanente da Alta Venda, um documento secreto redigido no início do século XIX no qual se descreve um plano de subversão da Igreja Católica. A Alta Venda foi a mais importante loja dos Carbonários, uma sociedade secreta italiana ligada à Maçonaria e que, juntamente com ela, foi condenada pela Igreja Católica. Em seu livro Freemasonry and the Anti-Christian Movement (Maçonaria e o Movimento Anticristão), o Padre Cahill, S.J. afirma que a Alta Venda era “considerada o principal centro de comando da Maçonaria Européia” . Os Carbonários tiveram sua principal atuação na Itália e na França.
Em seu livro Athanasius and the Church of Our Time (Atanásio e a Igreja do Nosso Tempo), Mons. Rudolf Graber cita um maçom que teria declarado que “o objetivo [da Maçonaria] não é mais destruir a Igreja, mas utilizá-la, infiltrando-se nela” . Em outras palavras, como a Maçonaria não pode destruir completamente a Igreja de Cristo, planeja não somente erradicar a influência do Catolicismo na sociedade, como também utilizar a estrutura da Igreja como um instrumento de “renovação”, “progresso” e “iluminação” para promover muitos de seus próprios princípios e objetivos.
Descrição geral
A estratégia preconizada na Instrução Permanente da Alta Venda é surpreendente em sua audácia e astúcia. Desde o início, o documento aborda um processo que levará décadas a ser concretizado. Aqueles que o redigiram sabiam que não veriam realizado o plano que ali esboçavam. Eles estavam inaugurando uma obra que seria realizada durante gerações sucessivas de iniciados. “Em nossas fileiras, morre o soldado, mas o combate continua.”
A Instrução fez um chamado pela difusão de idéias liberais em toda a sociedade e dentro das instituições da Igreja Católica, de modo que leigos, seminaristas, clérigos e prelados seriam, ao longo dos anos, gradualmente imbuídos de princípios progressistas.
Com o tempo, essa mentalidade estaria de tal modo difundida, que as concepções dos novos padres a serem ordenados, dos bispos a serem consagrados e dos cardeais a serem nomeados estariam em consonância com o pensamento moderno enraizado na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa e em outros “Princípios de 1789” (igualdade religiosa, separação de Igreja e Estado, pluralismo religioso, etc.).
Finalmente, o Papa que seria eleito dentre esses novos religiosos iria liderar a Igreja no caminho da “iluminação” e da “renovação”. Os idealizadores desse plano afirmaram que não tencionavam colocar um maçom na Cátedra de Pedro. Seu objetivo era criar um ambiente que produziria, com o passar do tempo, um Papa e uma hierarquia que já teriam assimilado completamente as idéias do Catolicismo liberal, ao mesmo tempo em que se considerassem católicos fieis.
Esses líderes católicos, então, não se oporiam mais às idéias modernas da Revolução (como havia sido a prática constante dos Papas desde 1789 até 1958 — com a morte do Papa Pio XII —, que condenaram esses princípios liberais), mas, ao contrário, iriam reuni-las dentro da Igreja. O resultado final seria o clero e os leigos católicos marchando sob a bandeira do Iluminismo, acreditando marchar sob a bandeira das chaves apostólicas.
Isso é possível?
Aos que considerem esse plano inverossímil demais — um objetivo que muito dificilmente seria alcançado pelo inimigo — deve-se dizer que tanto o Papa Pio IX como o Papa Leão XIII solicitaram a publicação da Instrução Permanente da Alta Venda, sem dúvida para impedir a ocorrência de tal tragédia.
Entretanto, se se configurasse uma situação tão desastrosa, haveria obviamente três meios inequívocos de reconhecê-la:
- Ela produziria uma perturbação de tal magnitude que o mundo inteiro iria perceber a ocorrência de uma enorme revolução na Igreja Católica, em sintonia com as idéias modernas. Estaria claro para todos que teria havido uma “atualização”.
- Seria introduzida uma nova teologia que estaria em contradição com os ensinamentos anteriores.
- Os próprios maçons anunciariam seu triunfo, acreditando que a Igreja Católica tivesse finalmente compreendido determinados pontos, tais como a igualdade religiosa, o estado laico, o pluralismo e quaisquer outros compromissos alcançados.
A autenticidade dos documentos da Alta Venda
Os papéis secretos da Alta Venda que caíram nas mãos do Papa Gregório XVI abrangem um período que vai de 1820 a 1846. Eles foram publicados, por solicitação do Papa Pio IX, por Cretineau-Joly em sua obra L’Église romaine en face de la Révolution (A Igreja Romana em face da Revolução) .
Com o Breve de aprovação datado de 25 de fevereiro de 1861, dirigido ao autor, o Papa Pio IX garantiu a autenticidade desses documentos, mas não permitiu que ninguém divulgasse os verdadeiros membros da Alta Venda implicados nessa correspondência.
O texto integral da Instrução Permanente da Alta Venda também está contido no livro do Mons. George E. Dillon, Grand Orient Freemasonry Unmasked (A Maçonaria do Grande Oriente Desmascarada). Quando o Papa Leão XIII recebeu uma cópia do livro do Mons. Dillon, ficou tão impressionado que determinou que fosse elaborada e publicada uma versão italiana da obra, às suas expensas .
Na Encíclica Humanum Genus (1884), Leão XIII exortou os líderes católicos a “arrancar a máscara da Maçonaria e deixar que ela seja vista como realmente é” . A publicação desses documentos é um meio de “arrancar a máscara”. E se os Papas solicitaram a publicação dessas cartas, é porque desejavam que todos os católicos fossem informados sobre os planos das sociedades secretas de subverter a Igreja a partir do seu interior — de modo que os católicos ficassem alertas para impedir que tal catástrofe acontecesse.
A Instrução Permanente da Alta Venda
O que se segue não é a Instrução inteira, mas apenas as seções mais pertinentes à nossa discussão. No documento (com grifos nossos), lê-se:
Nosso objetivo final é o de Voltaire e da Revolução Francesa — a destruição final do Catolicismo, e até mesmo da idéia cristã...
O Papa, quem quer que ele seja, jamais virá até as sociedades secretas; as sociedades secretas é que devem dar o primeiro passo em direção à Igreja, com a finalidade de conquistar ambos.
A tarefa que iremos desempenhar não é trabalho de um dia, um mês ou um ano. Ela pode durar vários anos, talvez um século, mas em nossas fileiras o soldado morre, e o combate continua.
Não tencionamos atrair os Papas para a nossa causa, torná-los neófitos dos nossos princípios, propagadores de nossas idéias. Esse seria um sonho ridículo; e se por alguma eventualidade, cardeais ou prelados, por exemplo, por livre e espontânea vontade ou acidentalmente, tiverem acesso a uma parte de nossos segredos, isso não será de forma alguma um incentivo para desejar sua elevação à Cátedra de Pedro. Tal elevação arruinar-nos-ia. Só a ambição já bastaria para levá-los à apostasia, e as exigências do poder forçá-los-iam a nos sacrificar. O que devemos pedir, o que devemos esperar, assim como os Judeus esperam pelo Messias, é um Papa de acordo com nossas necessidades...
Assim nós marcharemos com mais segurança em direção à tomada da Igreja do que através dos panfletos de nossos irmãos na França e até mesmo do ouro da Inglaterra. Vocês querem saber a razão para isso? É que com isso, a fim de despedaçar a grande pedra sobre a qual Deus construiu a Sua Igreja, não precisamos mais do vinagre de Aníbal, ou de pólvora, ou mesmo de nossas armas. Teremos o dedo mínimo do sucessor de Pedro envolvido na conspiração, e para os fins desta cruzada, esse dedo mínimo é tão eficiente quanto todos os Urbanos IIs e todos os São Bernardos da Cristandade.
Não temos dúvidas de que atingiremos o objetivo final de nossos esforços. Mas quando? Mas como? O desconhecido ainda não foi revelado. Não obstante, como nada irá nos desviar de nosso plano, e ao contrário, tudo tende para ele, como se amanhã mesmo o sucesso já viesse a coroar o trabalho apenas esboçado, nós desejamos, nesta instrução, que permanecerá secreta para os meros iniciados, dar aos funcionários encarregados da suprema Venda [Loja] alguns conselhos que eles deverão incutir em todos os irmãos, na forma de instrução ou de um memorando...
Então, para assegurarmos um Papa com as características necessárias, é preciso primeiramente modelar para este Papa uma geração digna do reinado que sonhamos. Deixem os velhos e os de idade madura de lado; procurem os jovens, e se possível, até mesmo as crianças.
...Vocês irão forjar para si mesmos, com baixo custo, uma reputação de bons católicos e genuínos patriotas.
Tal reputação introduzirá nossas doutrinas junto ao clero jovem, bem como profundamente nos monastérios. Em poucos anos, por força dos acontecimentos, esse jovem clero terá ascendido a todas as posições hierárquicas; eles irão formar o conselho soberano, serão chamados a escolher o Pontífice que irá reinar. E este Pontífice, assim como a maioria de seus contemporâneos, estará mais ou menos imbuído com os princípios (revolucionários) italianos e humanitários que nós começaremos a colocar em circulação. É um pequeno grão de mostarda que confiaremos à terra, mas o sol da justiça irá desenvolvê-lo completamente, e vocês verão um dia a rica colheita que será proporcionada por essa pequena semente.
No caminho que estamos traçando para nossos irmãos existem grandes obstáculos a serem conquistados, diversas dificuldades a serem enfrentadas. Eles triunfarão sobre tais dificuldades por sua experiência e clarividência, mas o objetivo é tão esplêndido que é importante lançar todas as velas ao vento para alcançá-lo. Vocês querem revolucionar a Itália? Olhem para o Papa cujo retrato nós acabamos de traçar. Vocês desejam estabelecer o reino dos escolhidos sobre o trono da prostituta da Babilônia? Deixem o clero marchar sob o seu estandarte, acreditando marchar sob a bandeira das chaves apostólicas. Vocês pretendem fazer desaparecer o último vestígio dos tiranos e opressores? Lancem suas armadilhas [redes] como Simão Barjonas; lancem-nas nas sacristias, nos seminários e nos monastérios, em vez de lançá-las no fundo do mar. E se vocês não tiverem pressa, nós lhes prometemos uma pesca ainda mais milagrosa que a dele. O pescador de peixes tornou-se o pescador de homens; vocês semearão amigos em torno da Cátedra Apostólica. Terão assim pregado uma revolução com tiara e pluvial, marchando com a cruz e o estandarte, uma revolução que precisará ser pouco instigada para lançar fogo aos quatro cantos do mundo.
Cabe-nos agora examinar quão bem sucedido foi esse plano.
O Iluminismo, meu amigo, está “soprando no vento”
Durante o século XIX, os princípios liberais do Iluminismo e da Revolução Francesa foram se difundindo cada vez mais na sociedade, em detrimento da Fé e do Estado Católicos. As noções supostamente “mais amáveis e gentis” de pluralismo religioso, indiferentismo religioso, uma democracia que acredita que toda autoridade vem do povo, falsas noções de liberdade, separação de Igreja e Estado, reuniões inter-religiosas e outras novidades estavam se apoderando das mentes da Europa pós-Iluminista, infectando tanto estadistas como eclesiásticos.
Os Papas do século XIX e do início do século XX travaram guerra contra essas tendências perigosas. Com perspicácia e presença de espírito enraizadas em uma descomprometida certeza da Fé, esses Papas não se deixaram enganar. Sabiam que princípios falsos, ainda que pareçam honestos, jamais produzem bons frutos ― e aqui se tratava de princípios sumamente maus, pois decorriam não só da heresia, mas da apostasia.
Tal como generais que reconhecem o dever de manter suas posições a qualquer preço, esses Papas dispararam incessantemente canhões potentes contra os erros do mundo moderno. As Encíclicas eram suas munições, e eles nunca erraram o alvo.
O ataque mais devastador veio na forma do monumental Syllabus dos Erros, de 1864, do Papa Pio IX, e quando a fumaça esvaneceu, os envolvidos na batalha podiam discernir sem erro quais soldados cerravam fileira de qual lado. As linhas demarcatórias estavam claramente traçadas. Nesse grande Syllabus, Pio IX condenou os principais erros do mundo moderno, não porque fossem modernos, mas porque essas novas idéias se baseavam em um naturalismo panteísta e, portanto, eram incompatíveis com a doutrina católica e destrutivas para a sociedade.
Os ensinamentos do Syllabus eram contrários ao Liberalismo, e os princípios do Liberalismo eram contrários ao Syllabus. Isso era reconhecido por todas as partes sem questionamentos. O Padre Denis Fahey referiu-se a esse confronto como Pio IX versus a Deificação Panteísta do Homem. Do lado oposto da trincheira, o maçom francês Ferdinand Buisson declarou: “Uma escola não pode se manter neutra entre o Syllabus e a Declaração dos Direitos do Homem” .
“Católicos Liberais”
Contudo, o século XIX viu surgir uma nova geração de católicos em utópica busca de um acordo entre as partes. Esses homens esquadrinhavam, entre os princípios de 1789, aqueles que acreditavam ser “bons”, e tentaram introduzi-los na Igreja. Muitos clérigos, infectados pelo espírito da época, caíram nesta rede que havia sido “lançada nas sacristias e nos seminários”. Eles ficaram conhecidos como “católicos liberais”. O Papa Pio IX observou que eles eram os piores inimigos da Igreja. Não obstante, seu número aumentou.
O Papa São Pio X e o Modernismo
Esta crise atingiu seu ápice por volta do início do século XX, quando o Liberalismo de 1789, que até então “soprara no vento”, rodopiou e transformou-se no furação do Modernismo. O Padre Vincent Miceli identificou esta heresia, descrevendo a “trindade dos pais” do Modernismo da seguinte forma:
- Seu ancestral religioso é a Reforma Protestante;
- Seu pai filosófico é o Iluminismo;
- Sua linhagem política origina-se na Revolução Francesa.
O Papa São Pio X, que ascendeu ao papado em 1903, reconheceu o Modernismo como a praga mais mortal a ser detida. Afirmou como principal obrigação do Papa garantir a pureza e a integridade da doutrina católica, no qual dever, frisou, ele falharia se nada fizesse.
São Pio X travou guerra com o Modernismo, publicou uma Encíclica (Pascendi) e um Syllabus (Lamentabili) contra ele, instituiu o Juramento Anti-Modernista a ser prestado por todos os padres e professores de teologia, expurgou os seminários e universidades dos modernistas e excomungou os recalcitrantes e impenitentes.
São Pio X efetivamente interrompeu a disseminação do Modernismo na sua época. Relata-se, no entanto, que, cumprimentado por ter suprimido esse grave erro, ele imediatamente respondeu que, apesar de seus esforços, não havia conseguido matar a besta, senão apenas sufocá-la nos subterrâneos. E advertiu que, se os líderes eclesiásticos não fossem vigilantes, ela re-emergiria mais virulenta que nunca.
A Cúria em estado de alerta
Um drama pouco conhecido que se desenrolou durante o reinado do Papa Pio XI demonstra que a corrente subterrânea do pensamento Modernista estava viva e com saúde no período imediatamente posterior a São Pio X.
O Padre Raymond Dulac relata que, no consistório secreto de 23 de maio de 1923, o Papa Pio XI questionou os trinta Cardeais da Cúria sobre a oportunidade de convocação de um concílio ecumênico. Estiveram presentes ilustres prelados, como os cardeais Merry del Val, De Lai, Gasparri, Boggiani e Billot. Os cardeais desaconselharam a convocação do concílio.
O Cardeal Billot advertiu que “a existência de profundas discrepâncias no seio do próprio episcopado não pode ser ocultada... [Elas] correm o risco de dar margem a discussões que se prolongarão indefinidamente.”
Boggiani recordou as teorias modernistas, das quais, segundo ele, uma parte do clero e dos bispos não estava isenta. “Essa mentalidade pode inclinar alguns padres a apresentarem moções, a fim de introduzir métodos incompatíveis com as tradições católicas.”
Billot foi ainda mais preciso. Ele expressava seu receio de ver o concílio “manobrado” pelos “piores inimigos da Igreja, os modernistas, que já estavam se preparando, conforme alguns indícios demonstravam, para levar adiante a revolução na Igreja, um novo 1789” .
Ao desencorajar a idéia de um concílio por tais razões, os cardeais mostraram-se mais aptos a reconhecer os “sinais dos tempos” do que todos os teólogos pós-conciliares reunidos. Contudo, a sua cautela pode ter se baseado em algo mais profundo. Eles podem também ter sido assombrados pelos escritos do infame illuminé, o excomungado Canon Roca (1830-1893), que pregou a revolução e a “reforma” da Igreja e previu uma subversão da Igreja que seria causada por um concílio.
Os delírios revolucionários de Canon Roca
Em seu livro Athanasius and the Church of Our Times (Atanásio e a Igreja do Nosso Tempo), Mons. Graber refere-se à previsão de Canon Roca de uma Igreja nova e iluminada, a qual seria influenciada pelo “socialismo de Jesus e dos Apóstolos” .
Em meados do século XIX, Roca havia previsto: “A nova Igreja, que poderá não ser capaz de manter nada da doutrina escolástica e da forma original da antiga Igreja, receberá, no entanto, consagração e jurisdição canônica de Roma.” Mons. Graber, comentando esta previsão, observou: “Há alguns anos isso era inconcebível, mas hoje...?” .
Canon Roca também previu uma “reforma” litúrgica. Com referência à futura liturgia, ele acreditava “que o culto divino na forma estabelecida pela liturgia, o cerimonial, o ritual e os regulamentos da Igreja Romana passarão brevemente por transformações em um concílio ecumênico, o qual irá restabelecer a simplicidade venerável da era de ouro dos Apóstolos, em consonância com os ditames da consciência e da civilização moderna” .
Ele anteviu que o referido concílio levaria a “um perfeito acordo entre os ideais da civilização moderna e o ideal de Cristo e Seu Evangelho. Isso será a consagração da Nova Ordem Social e o solene batismo da civilização moderna.”
Roca também falou sobre o futuro do Papado: “Há um sacrifício iminente que representa um ato solene de expiação... O Papado cairá; ele morrerá sob o punhal sagrado forjado pelos padres do último concílio. O césar papal é uma hóstia [vítima] coroada para o sacrifício” .
Roca previu com entusiasmo uma “nova religião”, um “novo dogma”, um “novo ritual”, um “novo sacerdócio”. “Ele chama os novos sacerdotes de ‘progressistas’ [sic]; fala sobre a ‘supressão’ da batina e sobre o casamento de padres” .
Ecos arrepiantes de Roca e da Alta Venda são percebidos nas palavras do rosa-cruz Dr. Rudolf Steiner, que declarou em 1910: “Nós precisamos de um concílio e de um Papa para proclamar isso” .
O grande Concílio que nunca aconteceu
Por volta de 1948, ao ser solicitado pelo ferrenhamente ortodoxo Cardeal Ruffini, o Papa Pio XII considerou a possibilidade de convocar um concílio geral e até envolveu-se durante alguns anos nos preparativos necessários. Há indícios de que elementos progressistas em Roma finalmente dissuadiram Pio XII de realizar esse concílio, pois foram detectados sinais inequívocos de que ele estaria em sintonia com a Humani Generis. Como esta grande Encíclica de 1950, o novo concílio iria combater “falsas opiniões que ameaçam minar os fundamentos da doutrina católica” .
Tragicamente, o Papa Pio XII convenceu-se de que estava em idade muito avançada para fazer frente a essa gigantesca tarefa e resignou-se com a idéia de que “isso é tarefa para o meu sucessor” .
Roncalli para “consagrar o Ecumenismo”
Ao longo do pontificado do Papa Pio XII (1939-1958), sob a hábil liderança do Cardeal Ottaviani, o Santo Ofício assegurou um ambiente católico seguro, mantendo os cavalos selvagens do Modernismo firmemente encurralados. Muitos dos atuais teólogos do Modernismo desdenhosamente relatam como eles e seus amigos haviam sido amordaçados durante esse período.
Contudo, nem mesmo Ottaviani podia prever o que estava por acontecer em 1958. Um novo tipo de Papa, “que os progressistas acreditavam estar a favor de sua causa” , iria assumir a cátedra pontifical e forçar um relutante Ottaviani a retirar o ferrolho, abrir o curral e preparar-se para a debandada.
Entretanto, tal estado de coisas já havia sido considerado. Ao receber a notícia da morte de Pio XII, o velho Dom Lambert Beauduin, amigo do Cardeal Roncalli (o futuro João XXIII), confidenciou ao Padre Louis Bouyer: “Se elegerem Roncalli, tudo será salvo; ele seria capaz de convocar um concílio e consagrar o ecumenismo” .
E foi o que aconteceu: o Cardeal Roncalli foi eleito e convocou um concílio que “consagrou” o ecumenismo. A “revolução com tiara e pluvial” estava a caminho.
A Revolução do Papa João
É de conhecimento geral e foi amplamente noticiado que um grupo fechado de teólogos liberais (periti) e bispos dominou o Concílio Vaticano II (1962-1965) com uma agenda destinada a obter uma Igreja fiel à sua imagem, através da implementação de uma “nova teologia”. Críticos e defensores do Vaticano II estão de acordo quanto a este ponto.
Em seu livro Vatican II Revisited (O Concílio Vaticano II Revisitado), Dom Aloysius J. Wycislo (um rapsódico advogado da revolução do Vaticano II) declara com entusiasmo que “teólogos e estudiosos da Bíblia que haviam permanecido em silêncio, sem se manifestar durante anos, emergiram como periti [especialistas em teologia que aconselharam os bispos no Concílio], e seus livros e comentários escritos após o Vaticano II tornaram-se leituras populares” .
Ele observa que “a Encíclica Humani Generis do Papa Pio XII [1950] teve... um efeito devastador sobre a obra de vários teólogos pré-conciliares” , e explica que, “durante a preparação inicial do Concílio, esses teólogos (principalmente franceses, além de alguns alemães), cujas atividades haviam sido restringidas pelo Papa Pio XII, permaneciam em silêncio. O Papa João tacitamente removeu a proibição que atingia alguns dos mais influentes clérigos. Contudo, muitos ainda eram vistos com suspeição por membros do Santo Ofício” .
Dom Wycislo entoa louvores a progressistas triunfantes como Hans Küng, Karl Rahner, John Courtney Murray, Yves Congar, Henri de Lubac, Edward Schillebeeckx e Gregory Baum, reputados suspeitos antes do Concílio, mas que agora eram os luminares da teologia pós-Vaticano II.
Com efeito, aqueles que o Papa Pio XII havia considerado inaptos a percorrer as vias do Catolicismo estavam agora no controle da cidade. E como que para coroar os seus feitos, o Juramento Anti-Modernista foi silenciosamente suprimido pouco depois do encerramento do Concílio. São Pio X acertou sua previsão. A falta de vigilância permitiu que o Modernismo voltasse de modo vingativo.
“Marchando sob um novo estandarte”
Foram travadas incontáveis batalhas no Vaticano II entre os integrantes do Grupo Internacional de Padres (Coetus Internationalis Patrum), que lutaram para manter a Tradição, e o grupo progressista do Reno. Tragicamente, no fim das contas, foi este último, o elemento liberal e modernista, que prevaleceu.
Era óbvio, para qualquer um que tivesse olhos para ver, que o Concílio abria as portas para muitas idéias que antes haviam sido anatematizadas, que iam de encontro aos ensinamentos da Igreja mas que estavam de acordo com o pensamento modernista. Isso não aconteceu acidentalmente. Foi proposital.
Os progressistas no Concílio Vaticano II evitaram condenar os erros dos modernistas. Eles também plantaram deliberadamente ambigüidades nos textos do Concílio, que esperavam explorar após o seu término. Tais ambigüidades foram utilizadas para promover o ecumenismo que havia sido condenado pelo Papa Pio XI, uma liberdade religiosa condenada pelos papas do século XIX e do início do século XX (especialmente o Papa Pio IX), uma nova liturgia em consonância com o ecumenismo que o Arcebispo Bugnini exaltou como “uma importante conquista da Igreja Católica”, uma colegialidade que atinge o cerne da primazia papal e uma “nova atitude diante do mundo” — especialmente em um dos mais radicais documentos do Concílio, Gaudium et Spes.
Como os autores da Instrução Permanente da Alta Venda haviam imaginado, as noções da cultura liberal finalmente conquistaram a adesão de importantes membros da hierarquia católica e se espalharam por toda a Igreja. O resultado disso foi uma crise de fé sem precedentes, a qual continua se agravando. Ao mesmo tempo, incontáveis clérigos que ocupavam posições de destaque, obviamente inebriados pelo “espírito do Vaticano II”, continuaram exaltando as reformas pós-conciliares que permitiram essa calamidade.
Júbilo nas arquibancadas maçônicas
Contudo, não apenas muitos líderes da Igreja, mas também maçons celebraram esses acontecimentos. Eles se regozijaram com o fato de que os católicos haviam finalmente “visto a luz”, pois aparentemente muitos dos seus princípios maçônicos haviam sido sancionados pela Igreja.
Em seu livro Ecumenism Viewed by a Traditional Freemason (O Ecumenismo Visto por um Maçom Tradicional), Yves Marsaudon, do Rito Escocês, exaltou o ecumenismo fomentado durante o Vaticano II. Ele assim se expressou:
Os católicos... não devem esquecer que todos os caminhos levam a Deus. E eles terão de aceitar que essa corajosa idéia do livre-pensamento, que nós podemos realmente chamar de uma revolução, jorrando de nossas lojas maçônicas, espalhou-se prodigiosamente sobre a cúpula de São Pedro.
O espírito de dúvida e revolução pós-Vaticano II obviamente aqueceu o coração do maçom francês Jacques Mitterrand, que, em tom de aprovação, escreveu:
Algo mudou dentro da Igreja, e as respostas do Papa às indagações mais urgentes, tais como o celibato dos padres e o controle de natalidade, são ardorosamente debatidas na própria Igreja; a palavra do Soberano Pontífice é questionada por bispos, padres e fiéis. Para um maçom, um homem que questiona o dogma já é um maçom sem o avental.
Marcel Prelot, um senador da região de Doubs, na França, vai mais adiante e descreve o que aconteceu. De acordo com ele:
Nós havíamos lutado sem sucesso durante um século e meio para que nossas opiniões prevalecessem na Igreja. Finalmente, com o Vaticano II, nós triunfamos. A partir de então, as proposições e os princípios do catolicismo liberal foram definitiva e oficialmente aceitos pela Santa Igreja.
A declaração de Prelot merece um comentário, pois devemos fazer uma distinção entre a Igreja e os homens da Igreja. Apesar das reivindicações dos maçons, é impossível que erros doutrinários sejam “definitiva e oficialmente aceitos pela Santa Igreja” como tais. A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, não pode incorrer em erro. Nosso Senhor prometeu que “as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). Mas isso não significa que os homens da Igreja, mesmo aqueles que ocupam as posições mais elevadas, não possam ser infectados com o espírito liberal da época e promover idéias e práticas opostas ao seu Magistério perene.
Uma ruptura com o passado
Aqueles “conservadores” que negam que vários pontos do Vaticano II constituem uma ruptura com a Tradição e com os pronunciamentos do Magistério anterior — pelo menos por ambigüidade, implicações e omissões — não conseguiram ouvir os verdadeiros promotores e ativistas do Concílio, que reconhecem isso descaradamente.
Yves Congar, um dos artesãos da reforma, observou com tranqüila satisfação que “a Igreja havia tido, pacificamente, a sua Revolução [Comunista] de Outubro” .
O mesmo Padre Yves Congar afirmou que a Declaração sobre Liberdade Religiosa do Vaticano II é contrária ao Syllabus do Papa Pio IX. Ele assim se pronunciou sobre o Artigo 2 da Declaração:
Não se pode negar que um texto como esse diz materialmente algo diferente do Syllabus de 1864, e até mesmo o contrário das proposições 15 e 77-79 deste documento.
Finalmente, alguns anos depois, o Cardeal Ratzinger, aparentemente não abalado com essa afirmação, escreveu que considera o texto conciliar Gaudium et Spes como um “contra-Syllabus”. Assim se exprimiu o Cardeal:
Se for desejável fazer um diagnóstico do texto [Gaudium et Spes] como um todo, poderíamos dizer que (juntamente com os textos sobre a liberdade religiosa e as religiões do mundo) trata-se de uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus... Contentemo-nos em dizer aqui que o texto é uma espécie de contra-Syllabus, e, como tal, representa, por parte da Igreja, uma tentativa de reconciliação oficial com a nova era inaugurada em 1789.
A nova era inaugurada em 1789 consiste, de fato, na elevação dos “Direitos do Homem” acima dos direitos de Deus.
Na verdade, este comentário do Cardeal Ratzinger é perturbador, especialmente porque proveio do homem que, como chefe da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, está agora encarregado de zelar pela pureza da doutrina católica. Mas podemos também citar um depoimento semelhante do progressista Cardeal Suenens, ele próprio um Padre Conciliar, que falou em termos de “antigos regimes” que chegaram ao fim. As palavras utilizadas por ele para exaltar o Concílio são as mais reveladoras, as mais arrepiantes e as mais contundentes. Suenens declarou que “o Vaticano II é a Revolução Francesa na Igreja” .
A situação dos documentos do Vaticano II
Durante anos, os católicos têm exercido suas atividades baseados na noção equivocada de que devem aceitar o Concílio pastoral, Vaticano II, com a mesma expressão de fé devida aos Concílios dogmáticos. Não é o caso, entretanto.
Os Padres Conciliares referiram-se repetidamente ao Vaticano II como um concílio pastoral, não preocupado em definir a fé, mas em implementá-la.
A afirmação de que o Vaticano II é inferior a um concílio dogmático é ratificada pelo testemunho do Padre Conciliar Thomas Morris, o qual, por sua vontade expressa, não foi revelado senão após a sua morte:
Fiquei aliviado quando fomos informados de que este Concílio não tinha por objetivo definir ou emitir declarações finais sobre doutrina, porque uma declaração sobre a doutrina deve ser mui cuidadosamente formulada, e eu tendia a considerar os documentos do Concílio provisórios e passíveis de reforma.
No encerramento do Vaticano II, os bispos solicitaram ao Secretário-Geral do Concílio, o Arcebispo Pericle Felici, aquilo que os teólogos chamam de “nota teológica” do Concílio, ou seja, o “peso” doutrinário dos ensinamentos do Vaticano II. Felici respondeu assim:
Devemos distinguir, dentre os esquemas e os capítulos, aqueles que foram objeto de definições dogmáticas no passado; pois, no que concerne às declarações com caráter de novidade, devemos ter reservas.
Após o encerramento do Vaticano II, Paulo VI deu sua explicação:
Há aqueles que perguntam que autoridade, que qualificação teológica o Concílio tencionou dar aos seus ensinamentos, sabendo que ele evitou emitir definições dogmáticas solenes investidas da infalibilidade do Magistério Eclesiástico. A resposta é conhecida por todos os que se lembrarem da declaração conciliar de 6 de março de 1964, repetida em 16 de novembro de 1964. Devido ao caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar, de modo extraordinário, dogmas com nota de infalibilidade...
Em outras palavras, ao contrário de um Concílio dogmático, o Vaticano II não exige uma adesão incondicional de fé.
As declarações prolixas e ambíguas do Vaticano II não estão em pé de igualdade com os pronunciamentos dogmáticos. Conseqüentemente, as novidades do Vaticano II não são incondicionalmente obrigatórias para os fiéis. Os católicos podem “ter reservas” e mesmo resistir a quaisquer ensinamentos do Concílio que estejam em conflito com o Magistério perene dos séculos.
“Uma Revolução com Tiara e Pluvial”
A revolução pós-Vaticano II possui todas as características necessárias ao cumprimento dos desígnios da Instrução Permanente da Alta Venda, bem como das profecias de Canon Roca:
- O mundo inteiro testemunhou uma profunda mudança dentro da Igreja Católica, em uma escala internacional. Uma mudança que está em sintonia com o mundo moderno.
- Os defensores e detratores do Vaticano II demonstram que determinadas orientações doutrinárias do Concílio constituem uma ruptura com o passado.
- Os próprios maçons se regozijam de que, graças ao Concílio, as suas idéias “se difundiram prodigiosamente sobre a cúpula de São Pedro”.
A Paixão da Igreja
Assim, a paixão que a nossa Santa Igreja está sofrendo no presente momento não é um grande mistério. Ao ignorarem de modo imprudente os papas do passado, nossos atuais líderes da Igreja erigiram uma estrutura que está desabando sobre si mesma. Embora o Papa Paulo VI tenha lamentado que “a Igreja está em um estado de autodemolição”, ele, como o atual Pontífice, insistiu que o desastroso aggiornamento, responsável por essa autodemolição, continuasse a pleno vapor.
Diante de tal “desorientação diabólica” (termo que a irmã Lúcia, de Fátima, utilizou para descrever a atual mentalidade de muitos integrantes da hierarquia católica), a única resposta para todos os católicos envolvidos é:
- rezar muito, especialmente o Rosário;
- aprender e viver a doutrina tradicional e a moral da Igreja Católica tal como constam nos escritos anteriores ao Vaticano II;
- aderir à Missa Tridentina, na qual se encontram a Fé e a devoção Católicas em sua plenitude, não afetadas pelo ecumenismo de hoje;
- resistir com todas as forças às tendências liberais pós-Vaticano II, que causam estragos ao Corpo Místico de Cristo;
- instruir a outros caridosamente nas Tradições da Fé e adverti-los sobre os erros dos tempos;
- rezar para que um retorno contagiante à sanidade possa atingir um número suficiente de membros da hierarquia;
- depositar grande confiança em Nossa Senhora e em seu poder de reorientar a nossa Igreja de volta à Tradição Católica;
- nunca ceder.
“Somente Ela pode nos salvar”
Tendo em vista que a atual batalha é essencialmente sobrenatural, não devemos ignorar a ajuda sobrenatural que nos foi dada em Fátima, em 1917. Todos os católicos envolvidos com a causa deveriam cumprir fielmente os pedidos de Nossa Senhora de Fátima, e sobretudo rezar e trabalhar para a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Essa será a chave para a destruição dos “erros da Rússia”, não apenas na Rússia, mas no mundo inteiro, incluindo a Igreja. Pois no prometido Triunfo do Coração Imaculado, os agentes impenitentes do Liberalismo, do Modernismo e do Naturalismo estarão todos reunidos em um grande encontro ecumênico com o Príncipe deste Mundo, para compartilhar o mesmo golpe de calcanhar com que a Rainha do Céu esmagará suas cabeças.
Apêndice I
O Ódio da Maçonaria à Igreja Católica
O maior impedimento para a discussão de tópicos tais como a Alta Venda é que muitas pessoas, incluindo os católicos, recusam-se a acreditar que a Maçonaria realmente odeie a Igreja a ponto de travar uma campanha inflexível e sofisticada contra ela.
Contudo, evidências do ódio da Maçonaria ao Catolicismo e seu objetivo declarado de destruir a Igreja são confirmadas em documentos católicos e maçônicos.
Durante a Revolução Francesa, o conhecido grito de guerra da Maçonaria era “derrubar Trono e Altar” — ou seja, monarquias e o Catolicismo. No fim do século XVIII, o Padre Augustin Barruel escreveu que “o objetivo de sua conspiração é derrubar todos os altares em que Cristo é adorado” .
Um dos exemplos mais dramáticos do ódio da Maçonaria a Cristo e Sua Igreja encontra-se na Declaração do Congresso Internacional de Genebra, de 1868, e é mencionado novamente no excelente livro do Mons. Dillon, Grand Orient Freemasonry Unmasked (A Maçonaria do Grande Oriente Desmascarada). Um trecho da declaração produzida durante o Congresso diz o seguinte:
Abaixo Deus e Cristo! Abaixo os déspotas do Céu e da Terra. Morte aos padres! Esse é o lema de nossa grande cruzada.
Os Pontífices contra os Pagãos
Os grandes e vigilantes Papas do fim do século XVIII, do século XIX e da primeira metade do século XX estavam constantemente soando o alarme contra as sociedades secretas, seus princípios liberais e seu ódio ao Cristianismo.
Em seu livro Freemasonry and the Anti-Christian Movement (A Maçonaria e o Movimento Anticristão), o Padre E. Cahill, S.J., escreve:
As condenações papais à Maçonaria são tão severas e demolidoras em seu teor que não encontram nada similar na história da legislação da Igreja. Durante os últimos dois séculos, a Maçonaria foi expressamente anatematizada por no mínimo dez papas diferentes e condenada direta ou indiretamente por quase todos os pontífices que se sentaram na Cátedra de São Pedro... Os papas acusam os maçons de atividades criminosas, “obscenidades”, culto a Satanás (acusação sugerida em alguns documentos papais), infâmia, blasfêmia, sacrilégio e das mais abomináveis heresias de tempos antigos, da prática sistemática de assassinato, de traição contra o Estado, de princípios anárquicos e revolucionários, de favorecer e promover o que agora é chamado de Bolchevismo [Comunismo russo], de corromper e perverter as mentes dos jovens, de hipocrisia e mentira vergonhosas, por meio das quais os maçons procuram ocultar sua maldade sob um manto de probidade e respeitabilidade, quando na realidade são a própria “Sinagoga de Satanás”, cujo objetivo direto é a destruição completa do Cristianismo.
Papa Leão XIII
De todas as condenações papais à Maçonaria, a Encíclica Humanum Genus, de 1884, do Papa Leão XIII possui um vigor e um brilho sem paralelo. Não se encontra em nenhum outro pronunciamento magisterial uma explicação e condenação mais completa e concisa dos erros da Maçonaria. Nessa Encíclica, o Papa repetidamente enfatiza que o objetivo da Maçonaria é nada menos do que a completa destruição da Igreja e do Cristianismo. Ele assim se expressa:
Sem fazer mais segredo de seu propósito, eles agora se erguem audaciosamente contra o próprio Deus. Planejam a destruição da Santa Igreja pública e abertamente, e isso com o propósito manifesto de privar completamente as nações da Cristandade, se possível fosse, das bênçãos que obtivemos através de Jesus Cristo, nosso Salvador.
O Papa Leão explica que, tendo em vista que a Maçonaria se baseia no Naturalismo, ela é anticristã em sua essência. O Naturalismo afirma que a natureza e a razão humanas são supremas, e que não existem verdades reveladas por Deus nas quais os homens sejam obrigados a acreditar.
Os naturalistas negam a autoridade da Igreja Católica como a voz de Deus sobre a terra, e, conseqüentemente, “é contra a Igreja que a raiva e o ataque dos inimigos [maçons] são principalmente dirigidos” . O Papa Leão XIII refere-se ao testemunho de “homens bem informados” tanto no passado, como mais recentemente, os quais “declararam ser verdade que o principal desejo dos maçons é atacar a Igreja com uma hostilidade irreconciliável, e que não descansarão enquanto não tiverem estabelecido seus objetivos” .
Ele também destaca que os maçons consideram lícito “atacar impunemente os próprios fundamentos da Religião Católica, por meio do discurso, de escritos e do ensino” .
O Papa Leão explicou que um de seus meios mais poderosos de lutar contra a Igreja é a promoção do indiferentismo religioso — a idéia de que na verdade não importa a religião de cada um. Essa idéia solapa todas as religiões, mas particularmente o Catolicismo, pois somente a Igreja Católica ensina com firmeza (e demonstra de modo vigoroso) que ela é a Única Verdadeira Religião estabelecida por Deus.
Os próprios maçons se jactam de ter sido a força motriz por trás da “Declaração dos Direitos do Homem” e da Revolução Francesa. Sua intenção é privar a civilização de seus fundamentos cristãos e apoiá-la sobre o Naturalismo, no qual Deus não tem lugar. Foi a esse objetivo corrupto que o Papa Leão XIII se referiu quando afirmou: “Desejar destruir a religião e a Igreja que Deus estabeleceu, e cuja perpetuidade Ele assegura por Sua proteção, e trazer de volta após um lapso de dezoito séculos os modos e costumes dos pagãos, é sinal de loucura e audaciosa impiedade” .
Portanto, aqueles que se recusam a acreditar que a Maçonaria está trabalhando pela destruição da Igreja o fazem simplesmente porque não querem acreditar na verdade. Os Soberanos Pontífices e os maçons fornecem abundantes testemunhos do ódio maçônico e da guerra declarada à Igreja Católica.
[Nota da Permanência: Publicamos a seguir a resposta que o Arcebispo Carlo Maria Viganò escreveu ao jornalista Stephen Kokx, do jornal americano Catholic Family News. ]
Caro Sr. Kokx,
Li com grande interesse seu artigo “Perguntas a Viganò: Sua Excelência está correto sobre o Vaticano II, mas o que ele pensa que os católicos devem fazer agora”, que foi publicado pelo Catholic Family News no dia 22 de agosto. Estou satisfeito de responder às suas perguntas, que tratam de matérias muito importantes para os fiéis.
Você pergunta: “O que ‘separar-se’ da Igreja conciliar seria na visão do Arcebispo Viganò?” Vou responder-lhe com outra pergunta: O que significa separar-se da Igreja Católica de acordo com os apoiadores do Concílio? Apesar de ser evidente que nenhuma compactuação é possível com aqueles que propõem as doutrinas adulteradas do manifesto ideológico conciliar, devemos notar que o simples fato de ser batizado e ser membros vivos da Igreja não implica aderência ao time conciliar; isso é verdade, acima de tudo, para os fiéis e também para os clérigos seculares e regulares que, por várias razões, consideram-se, sinceramente, católicos e reconhecem a Hierarquia.
Ao invés, o que precisa ser esclarecido é a posição daqueles que, embora se declarando católicos, abraçam as doutrinas heterodoxas que se espalharam ao longo da décadas, com ciência de que elas representam uma ruptura com o Magistério precedente. Nesse caso, é lícito duvidar da sua aderência real à Igreja Católica, na qual eles, porém, detêm posições oficiais que lhes conferem autoridade. É uma autoridade ilicitamente exercida, se o seu propósito é forçar os fiéis a aceitar a revolução imposta desde o Concílio.
Uma vez que esse ponto tenha sido esclarecido, é evidente que não são os fiéis tradicionais – ou seja, os verdadeiros católicos, nas palavras de São Pio X – que devem abandonar a Igreja, na qual eles têm direito de permanecer e da qual seria trágico separarem-se; mas, ao invés, são os modernistas, que usurpam o nome católico, precisamente porque é, apenas, o elemento burocrático que permite que eles não sejam considerados como integrantes de uma seita herética. Essa alegação deles serve, na verdade, para evitar que eles terminem entre as centenas de movimentos heréticos que, ao longo dos séculos, acreditaram ser capazes de reformar a Igreja a seu bel prazer, colocando seu orgulho acima do ensinamento de Nosso Senhor. Mas assim como não é possível reivindicar cidadania de uma terra da qual não se conhece a língua, o Direito, a fé e a tradição; assim também é impossível para aqueles que não têm a fé, a moral, a liturgia e a disciplina da Igreja Católica arrogar-se o direito de permencer dentro dela e, até mesmo, ascender os degraus da Hierarquia.
Portanto, não cedamos à tentação de abandonar – ainda que com uma justa indignação – a Igreja Católica sob o pretexto de que ela foi invadida por hereges e fornicadores; são eles quem devem ser expulsos do Templo Sagrado em uma obra de purificação e penitência que deve começar com cada um de nós.
Também é evidente que há casos generalizados em que os fiéis encontram problemas sérios ao frequentar sua paróquia, assim como há cada vez menos Igrejas onde a Santa Missa seja celebrada no Rito Católico. Os horrores desenfreados por décadas em muitas de nossas paróquias e templos tornam impossível assistir a uma “Eucaristia” sem correr o risco de ser escandalizado e até de colocar a fé em risco, assim como é muito difícil assegurar uma educação católica, a recepção dos sacramentos de forma digna e uma direção espiritual sólida para si e para seus filhos. Nesses casos, os leigos têm o direito e o dever de buscar Padres, comunidades e institutos que sejam fiéis ao Magistério perene. E que eles saibam acompanhar a louvável celebração da liturgia no Rito Antigo com adesão à sólida doutrina e à sólida moral, sem se renderem ao Concílio.
A situação, certamente, é mais complicada para os sacerdotes, que dependem hierarquicamente, do seu Bispo ou superior religioso, mas que, ao mesmo tempo, têm o direito de permanecer católicos e de celebrar no Rito Católico. De um lado, os fiéis têm maior liberdade de movimento para escolher a comunidade na qual eles buscarão a Missa, os Sacramentos e a instrução religiosa, mas têm menor autonomia devido ao fato de que ainda dependem de um Padre; de outro lado, os sacerdotes têm menor liberdade de movimento, pois estão encardeados a uma diocese ou ordem e estão sujeitos à autoridade eclesiástica, mas eles têm maior autonomia devido ao fato de que podem, legitimamente, decidir celebrar a Missa e ministrar os Sacramentos no Rito Tridentino e pregar de acordo com a sólida doutrina. O Motu Proprio Summorum Pontificum reafirmou que os fiéis e Padres têm o direito inalienável – e que não pode ser negado – de desfrutar a liturgia que mais perfeitamente expressa sua Fé Católica. Mas esse direito deve ser usado hoje não apenas para preservar a forma extraordinária do rito, mas para testemunhar a adesão ao depositum fidei que encontra perfeita expressão apenas no Rito Antigo.
Diariamente, recebo cartas agonizantes de Padres e religiosos que são marginalizados, transferidos ou ostracizados por causa de sua fidelidade à Igreja: a tentação de encontrar um ubi consistam (um lugar onde ficar) longe da ira dos inovadores é forte, mas devemos buscar exemplo nas perseguições que muitos Santos enfrentaram, incluindo Santo Atanásio, que nos oferece um modelo de como agir em face à heresia espalhada e à perseguição furiosa. Como meu venerável irmão, o Bispo Athanasius Schneider, muitas vezes lembrou, o arianismo, que afligiu a Igreja no tempo do Santo Doutor de Alexandria no Egito, foi tão espalhado entre os Bispos que, ao olhar para aqueles tempos, podemos quase acreditar que a ortodoxia católica havia desaparecido completamente. Mas foi graças à fidelidade e ao testemunho heróico dos poucos Bispos que permaneceram fiéis que a Igreja soube como se reerguer. Sem esse testemunho, o arianismo não teria sido derrotado; sem nosso testemunho, o modernismo e a apostasia globalista desse pontificado não serão derrotados.
Não é, portanto, uma questão de trabalhar dentro ou fora da Igreja: os trabalhadores são chamados a obrar na Vinha do Senhor, e é lá que eles devem permanecer mesmo que seja ao custo das suas próprias vidas; os pastores são chamados a pastorar o Rebanho do Senhor, a manter os lobos vorazes longe e a expulsar os mercenários que não estão preocupados com a salvação das ovelhas e dos cordeiros.
Esse trabalho oculto e, normalmente, silencioso tem sido feito pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que merece reconhecimento por não ter permitido que a chama da Tradição fosse extinta em um momento em que celebrar a Missa antiga era considerado subversivo e razão para excomunhão. Seus Padres têm sido um salutar espinho no lado da hierarquia que viu neles um paradigma inaceitável para os fiéis, uma lembrança constante da traição cometida contra o povo de Deus, uma alternativa inadmissível ao novo caminho conciliar. E, se a fidelidade deles tornou inevitável a desobediência ao Papa com as sagrações espiscopais, graças a elas a Fraternidade conseguiu proteger-se do ataque furioso dos inovadores e, meramente por sua existência, tornou possível a liberação do Rito Antigo, que, até então, era proibido. Sua presença também permitiu que as contradições e erros da seita conciliar ficassem evidentes, sempre piscando um olho para os hereges e idólatras, mas implacavelmente rígida e intolerante com a Verdade Católica.
Considero o Arcebispo Lefebvre um exemplar confessor da Fé e acho que, a essa altura, é óbvio que a sua denúncia do Concílio e da apostasia modernista é mais relevante que nunca. Não devemos esquecer que a perseguição à qual o Arcebispo Lefebvre foi submetido pela Santa Sé e pelo episcopado mundial serviu, acima de tudo, como meio de intimidação para os católicos que eram refratários em relação à revolução conciliar.
Eu também concordo com a observação de Sua Excelência, o Bispo Bernard Tissier de Mallerais, sobre a coexistência de duas entidades em Roma: a Igreja de Cristo foi ocupada e ocultada pela estrutura conciliar modernista, que se estabeleceu na mesma hierarquia e usa a autoridade de seus ministros para prevalecer sobre a Esposa de Cristo e nossa Mãe.
A Igreja de Cristo – que não apenas subsiste na Igreja Católica, mas é exclusivamente a Igreja Católica – apenas está obscurecida e eclipsada por uma estranha e extravagante Igreja estabelecida em Roma, de acordo com a visão da Beata Anna Catarina Emmerich. Ela coexiste, como o joio com o trigo, na Cúria Romana, nas dioceses, nas paróquias. Não podemos julgar nossos pastores em suas intenções, nem supor que todos eles estão corrompidos em fé e moral; ao contrário, esperamos que muitos deles, até agora intimidados e em silêncio, compreenderão, à medida que a confusão e a apostasia continuem a se espalhar, a enganação a que foram submetidos e, finalmente, sacudirão o seu torpor. Há muitos leigos que estão erguendo suas vozes; outros, necessariamente, seguirão, em conjunto com bons Padres, certamente presentes em cada diocese. Esse despertar da Igreja militante – eu ousaria chamá-lo quase de ressurreição – é necessário, urgente, e inevitável: nenhum filho tolera que sua mãe seja ultrajada pelos servos, ou que seu pai seja tiranizado pelos administradores de seus bens. O Senhor nos oferece, nessas dolorosas situações, a possibilidade de ser Seus aliados nessa batalha sagrada sob o Seu estandarte: o Rei que é vitorioso sobre o erro e a morte nos permite compartilhar da honra da vitória triunfal e da recompensa eterna que deriva dela, após ter suportado e sofrido com Ele.
Mas, para merecer a glória imortal dos Céus, somos chamados a redescobrir – em um tempo emasculado, esvaziado de valores como honra, fidelidade à própria palavra e heroísmo – um aspecto fundamental da fé de cada pessoa batizada: a vida cristã é uma milícia, e, com o Sacramento da Confirmação, somos chamados a ser soldados de Cristo, debaixo de cuja insígnia devemos combater. É claro que, na maior parte dos casos, é um combate, essencialmente, espiritual, mas, ao longo do curso da história, temos visto com que frequência, diante da violação dos direitos soberanos de Deus e da liberdade da Igreja, também foi necessário tomar armas: recebemos esse ensinamento pela resistência extenuante para repelir as invasões islâmicas em Lepanto e nos arredores de Viena, pela perseguição dos Cristeros no México, dos Católicos da Espanha, e, mesmo hoje em dia, pela cruel guerra contra os cristãos ao redor de todo o mundo. Jamais pudemos entender tão bem como hoje o ódio teológico vindo dos inimigos de Deus, inspirado por Satã. O ataque a tudo que lembra a Cruz de Cristo – à Virtude, ao Bem e ao Belo, à pureza – deve nos inspirar a nos levantar, em um salto de altivez, para reivindicar nosso direito não apenas de não ser perseguido por nossos inimigos externos, mas também, e acima de tudo, de ter fortes e corajosos pastores, Santos e tementes a Deus, que farão exatamente o que seus predecessores fizeram por séculos: pregar o Evangelho de Cristo, converter indivíduos e nações e expandir o Reino do verdadeiro Deus pelo mundo.
Somos chamados a fazer um ato de Fortaleza – uma virtude cardeal esquecida, que, não por acaso, é chamada pelos gregos de força viril, ἀνδρεία – ao sabermos como resistir aos modernistas: uma resistência que é fundada na Caridade e na Verdade, que são atributos de Deus.
Se você apenas celebrar a Missa Tridentina e pregar a sólida doutrina sem jamais citar o Concílio, o que eles poderão fazer a você? Jogá-lo para fora das Igrejas talvez, e o que mais? Ninguém jamais poderá preveni-lo de renovar o Santo Sacrifício, mesmo que seja em um altar improvisado em um porão ou sótão, como os Padres refratários fizeram durante a Revolução Francesa, ou como acontece, ainda hoje, na China. E, se eles tentarem afastá-lo, resista: o Direito Canônico serve para manter o governo da Igreja direcionado aos seus fins principais, não para os demolir. Deixemos de achar que a culpa do cisma está naqueles que o denunciam e não, ao invés, naqueles que o causam: aqueles que são cismáticos e hereges são os que flagelam e crucificam o Corpo Místico de Cristo, não aqueles que O defendem ao denunciar os carrascos!
Os leigos podem esperar que seus ministros se comportem como tais, preferindo aqueles que provem que não estão contaminados pelos erros presentes. Se uma Missa se torna ocasião de tortura para os fiéis, se eles são forçados a assistir a sacrilégios ou a apoiar heresias e divagações indignas da Casa do Senhor, é mil vezes preferível ir a uma Igreja onde o Padre celebra o Santo Sacrifício dignamente, no rito que nos foi dado pela Tradição, pregando em conformidade com a sólida doutrina. Quando os Padres e Bispos diocesanos perceberem que o povo cristão pede o Pão da Fé, e não as pedras e escorpiões da neo-Igreja, eles deixarão de lado seus temores e atenderão aos legítimos pedidos dos fiéis. Os outros, verdadeiros mercenários, vão mostrar-se pelo que realmente são e só juntarão ao redor deles aqueles que compactuam com seus erros e perversões. Eles serão exterminados por eles mesmos: o Senhor seca o pântano e torna árida a terra na qual crescem amoreiras; ele extingue vocações em seminários corruptos e em conventos rebeldes à Regra.
Os fiéis de hoje têm um dever sagrado: consolar os bons Padres e os bons Bispos, reunindo-se ao redor deles como ovelhas ao redor de seus pastores. Dar-lhes hospitalidade, ajudá-los, consolá-los em suas dificuldades. Criar comunidades na qual não predominem a fofoca e a divisão, mas a caridade fraterna no laço da fé. E, como na ordem estabelecida por Deus – κόσμος – os sujeitos devem obediência à autoridade e não podem fazer nada além de resistir quando ela abusa do seu poder, nenhuma culpa lhes será atribuída pela infidelidade de seus líderes, nos quais está a seríssima responsabilidade pela maneira como eles exercem o poder vicariante que lhes foi dado. Não devemos nos rebelar, mas opor-nos; não devemos nos contentar com os erros de nossos pastores, mas rezar por eles e admoestá-los respeitosamente; não devemos questionar sua autoridade, mas a maneira como eles a usam.
Estou certo, com uma certeza que me vem da fé, de que o Senhor não deixará de recompensar nossa fidelidade, após nos ter punido pelos erros dos homens da Igreja, dando-nos Santos Padres, Santos Bispos, Santos Cardeais e, acima de tudo, um Santo Papa. Mas esses Santos virão de nossas famílias, de nossas comunidades, de nossas Igrejas: famílias, comunidades e Igrejas nas quais a graça de Deus deve ser cultivada com oração constante, com frequência constante da Missa e dos Sacramentos, com o oferecimento de sacrifícios e penitências que a Comunhão dos Santos nos permita oferecer à Divina Majestade para expiar nossos pecados e aqueles de nossos irmãos, incluídos aqueles que exercem autoridade. Os fiéis têm um papel fundamental nisso ao guardarem a Fé nas suas famílias, de tal modo que nossos jovens, educados no amor e no temor de Deus, possam um dia ser pais e mães responsáveis, mas também dignos ministros do Senhor, Seus arautos nas ordens religiosas masculinas e femininas, e Seus apóstolos na sociedade civil.
A cura da rebelião é a obediência. A cura da heresia é a fidelidade ao ensinamento da Tradição. A cura do cisma é a devoção filial aos Pastores Sagrados. A cura da apostasia é o amor de Deus e de Sua Santa Mãe. A cura do vício é a prática humilde da virtude. A cura da corrupção da moral é viver na constante presença de Deus. Mas a obediência não pode se corromper em servilismo; o respeito devido à autoridade não pode ser degenerado em reverência da corte. E não esqueçamos que, se é dever dos fiéis obedecer a seus Pastores, é um dever ainda mais grave dos Pastores obedecer a Deus, usque ad effusionem sanguinis.
+ Carlo Maria Viganò, Arcebispo
1º de Setembro de 2020
O texto a seguir é a íntegra da fala de Monsenhor Carlo Maria Viganò no evento Catholic Identity Conference (Conferência da Identidade Católica), ocorrido entre 23 e 25 de outubro de 2020 em Pittsburgh, estado da Pensilvânia. O original está disponível neste link: https://catholicfamilynews.com/blog/2020/10/26/scapegoating-francis-how-...
Como a revolução do Vaticano II serve à Nova Ordem Mundial
Arcebispo Carlo Maria Viganò, Núncio Apostólico
“Segui-me, e deixai os mortos enterrarem seus mortos”
Mt. 8:22
1. VIVEMOS TEMPOS EXTRAORDINÁRIOS
Como todos provavelmente já compreendemos, estamos em um momento histórico; fatos do passado, que pareciam desconectados, provaram, agora, estar inequivocamente conectados, tanto nos princípios que os inspiraram quanto nos objetivos que eles buscaram. Um olhar justo e objetivo à atual situação força a captar a perfeita coerência entre a evolução da estrutura política global e o papel que a Igreja Católica assumiu no estabelecimento da Nova Ordem Mundial. Para ser mais exato, falo do papel que a maioria aparente da Igreja, que, na realidade, é pequena numericamente, mas extremamente poderosa e que, por razões de concisão, resumirei com o título de deep church*
Obviamente, não há duas Igrejas, algo que seria impossível, blasfemo e herético. Nem a verdadeira Igreja de Cristo fracassou na sua missão, transformando-se numa seita. A Igreja de Cristo não tem nada com aqueles que, nos últimos 60 anos, executaram um plano de ocupação dela. A sobreposição da hierarquia católica pelos membros da deep church não é um fato teológico, mas sim uma realidade histórica que desafia categorias usuais e, como tal, deve ser analizado.
Sabemos que os planos de uma Nova Ordem Mundial consistem no estabelecimento da tirania pela maçonaria: um projeto que remonta à Revolução Francesa, à Era das Luzes, ao fim das Monarquias Católicas, e à declaração de guerra à Igreja. Podemos dizer que a Nova Ordem Mundial é a antítese da sociedade cristã, que ela seria a realização da diabólica Civitas Diaboli – Cidade do Demônio – contraposta à Civitas Dei – Cidade de Deus – no eterno combate entre Luz e Escuridão, Bem e Mal, Deus e Satã.
Nesse combate, a Providência colocou a Igreja de Cristo e, de modo particular, o Sumo Pontífice como kathèkon – isto é, aquele que se opõe à manifestação do mistério da iniquidade (2Ts 2: 6-7). E a Sagrada Escritura nos adverte que, quando da manifestação do Anticristo, esse obstáculo – o kathèkon – terá deixado de existir. Parece-me bastante evidente que o fim dos tempos está se aproximando diante dos nossos olhos, pois o mistério da iniquidade espalhou-se ao redor do mundo, com o desaparecimento da oposição corajosa do kathèkon.
A respeito da incompatibilidade da Cidade de Deus e da Cidade de Satã, o conselheiro Jesuíta de Francisco, Antonio Spadaro, põe de lado a Sagrada Escritura e a Tradição, adotando os embrassons-nous bergoglianos. De acordo com o Diretor de La Civiltà Cattolica, a encíclica Fratelli Tutti
“também é uma mensagem de forte valor político, porque – poderíamos dizer – ela inverte a lógica do apocalipse que prevalece hoje em dia. É a lógica fundamentalista que luta contra o mundo, porque ela acredita ser ele o oposto de Deus, isto é, um ídolo, e, portanto, algo que precisa ser destruído o quanto antes para acelerar o fim dos tempos. O abismo do apocalipse, na verdade, ante o qual não há mais irmãos: apenas apóstatas ou mártires correndo ‘contra’ o tempo […] Não somos militantes ou apóstatas, mas todos irmãos” [1]
Essa estratégia de descredibilizar o interlocutor com o estigma de “integralista”, evidentemente, tem o objetivo de facilitar a ação do inimigo dentro da Igreja, buscando desarmar a oposição e desencorajar qualquer dissensão. Também a encontramos na esfera civil, na qual os democratas e o deep state se arrogam o direito de decidir a quem dar legitimidade política e quem condenar, sem direito de recurso, ao ostracismo midiático. Esse método é sempre o mesmo, pois aquele que o inspira é o mesmo. Assim como a falsificação da História e das fontes é sempre a mesma: se o passado desautoriza a narrativa revolucionária, os seguidores da Revolução censuram o passado e substituem fato histórico por um mito. Até mesmo São Francisco é vítima dessa adulteração que faria dele o porta-voz da pobreza e do pacifismo, que são tão alheias ao espírito da ortodoxia católica quanto são essenciais à ideologia dominante. Prova disso é a última e fraudulenta citação do Poverello de Assis em Fratelli Tutti para justificar o diálogo, o ecumenismo e a fraternidade universal da anti-Igreja bergogliana.
Não cometamos o erro de apresentar os eventos atuais como “normais”, julgando o que acontece com parâmetros legais, canônicos e sociológicos que essa normalidade demandaria. Em tempos extraordinários – e a presente crise da Igreja é, de fato, extraordinária –, os eventos vão além do ordinário que nossos ancestrais conheceram. Em tempos extraordinários, vemos um Papa enganar os fiéis; vemos os Príncipes da Igreja acusados de crimes que, em outros tempos, teriam causado horror e atraído punições severas; contemplamos, em nossas Igrejas, ritos litúrgicos que parecem ter sido inventados pela mente perversa de Cranmer; vemos Prelados introduzir o ídolo imundo de pachamama na Basílica de São Pedro; e ouvimos o Vigário de Cristo pedir perdão aos adoradores desse simulacrum se um Católico o atira ao Tibre. Nesses tempos extraordinários, ouvimos um conspirador – Cardeal Godfried Danneels – dizer-nos que, desde a morte de João Paulo II, a Máfia de São Galo estava planejando eleger um deles para a Cátedra de Pedro, que terminou sendo Jorge Mario Bergoglio. Diante dessa revelação desconcertante, podemos perfeitamente ficar perplexos com o fato de que nem Cardeais, nem Bispos expressaram suas indignações, nem pediram que a verdade seja trazida à tona.
A coexistência do bem e do mal, dos santos e dos réprobos no corpo eclesial sempre acompanhou os acontecimentos terrenos da Igreja, a começar pela traição de Judas Iscariotes. E, de fato, tem muito significado que a anti-Igreja esteja tentando reabilitar Judas – e, juntamente com ele, os piores heresiarcas – como modelos exemplares, “anti-santos” e “anti-mártires” e, portanto, legitimizando a si mesmos em suas heresias, imoralidades e vícios. A coexistência – como eu dizia – dos bons e dos maus, da qual o Evangelho fala na parábola do joio e do trigo, parece ter se transformado na prevalência dos ruins sobre os bons. A diferença é que vícios e crimes antes detestados, hoje, são não apenas praticados e tolerados cada vez mais, mas até mesmo encorajados e louvados, enquanto a virtude e a fidelidade ao ensinamento de Cristo são menosprezados, ridicularizados e até condenados.
2. O ECLIPSE DA VERDADEIRA IGREJA
Por 60 anos, estamos testemunhando o eclipse da verdadeira Igreja por uma anti-Igreja que tem se apropriado de seu nome, ocupado a Cúria Romana e seus Dicastérios, Dioceses e Paróquias, Seminários e Universidades, Conventos e Mosteiros. A anti-Igreja usurpou a autoridade da verdadeira Igreja, e seus ministros trajam suas vestes sacras; ela usa o prestígio e o poder da Igreja para se apropriar de seus tesouros, ativos e finanças.
Assim como acontece na natureza, esse eclipse não toma lugar de uma vez só: ele sai da luz à escuridão quando um corpo celestial se insere entre o sol e nós. Esse é um processo relativamente lento, porém inexorável, no qual a lua da anti-Igreja segue sua órbita até cobrir o sol, gerando um cone de sombra que se projeta sobre a Terra. Hoje, estamos nesse cone sombrio doutrinal, moral, litúrgico e disciplinar. Ainda não é o eclipse total que veremos no fim dos tempos sob o reino do Anticristo. Mas é um eclipse parcial, que nos permite ver a coroa luminosa do sol circulando o disco negro da lua.
Esse processo que levou ao atual eclipse da Igreja começou com o modernismo sem a menor sombra de dúvidas. A anti-Igreja seguiu sua órbita apesar das condenações solenes do Magistério, que, àquela altura, brilhava com o esplendor da Verdade. Mas, com o Concílio Vaticano II, a escuridão dessa entidade espúria cobriu a Igreja. Inicialmente, ela obscureceu apenas uma pequena parte, mas a escuridão aumentou gradativamente. Quem apontava para o sol, dizendo que a lua o estava obscurecendo, era acusado de ser um “profeta da desgraça”, com aquelas formas de fanatismo e intemperança que advêm da ignorância e do preconceito. O caso do Arcebispo Marcel Lefebvre e de alguns outros prelados confirma, de um lado, a visão profética desses pastores e, de outro, a reação desarticulada de seus adversários, que, por medo de perderem poder, usaram toda a sua autoridade para negar as evidências e mantiveram suas verdadeiras intenções escondidas.
Para prosseguir na analogia: podemos dizer que, no céu da Fé, um eclipse é um fenômeno raro e extraordinário. Mas negar que, durante esse eclipse, a escuridão se espalha – simplesmente porque isso não aconteceria em circunstâncias ordinárias – não é um sinal de fé na indefectibilidade da Igreja, mas, em vez, uma negação obstinada da evidência, ou má-fé. A Santa Igreja, de acordo com as promessas de Cristo, jamais será derrotada pelas portas do inferno, mas isso não significa que ela não será – ou já está sendo – encoberta por uma falsificação infernal, aquela lua que, não por acaso, vemos sob os pés da Mulher da Revelação: “Depois apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a luz debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça” (Rev 12:1)
A lua está debaixo dos pés da Mulher, que está acima de toda mutabilidade, acima de toda corrupção terrena, acima da lei do destino e do reino do espírito deste mundo. E isso porque essa mulher, que é, ao mesmo tempo, imagem de Maria Santíssima e da Igreja, está amicta sole, coberta com o Sol da Justiça que é Cristo, “isenta de todo o poder demoníaco, pois ela toma parte no mistério da imutabilidade de Cristo” (Santo Ambrósio). Ela permanece incólume, senão no seu reino militante, certamente no reino padecente do purgatório e no reino triunfante do Paraíso. São Jerônimo, comentando a Escritura, lembra-nos que “as portas do inferno são os pecados e vícios, especialmente os ensinamentos dos hereges”. Sabemos, portanto, que mesmo a “síntese de todas as heresias”, representada pelo modernismo e sua atualizada versão conciliar, jamais poderá obscurecer definitivamente o esplendor da Esposa de Cristo, mas apenas pelo breve período do eclipse que a Providência, em sua infinita sabedoria, permitiu, para tirar dele um bem maior.
3. O ABANDONO DA DIMENSÃO SOBRENATURAL
Nessa conferência, desejo, de maneira especial, falar da relação entre a revolução do Vaticano II e o estabelecimento da Nova Ordem Mundial. O elemento central dessa análise é trazer à tona o abandono, por parte da hierarquia eclesiástica, mesmo a do topo, da dimensão sobrenatural da Igreja e de seu papel escatológico. Com o Concílio, os inovadores apagaram a origem divina da Igreja do seu horizonte teológico, criando uma entidade de origem humana, semelhante a uma organização filantrópica. A primeira consequência dessa subversão ontológica foi a necessária negação do fato de que a Igreja de Cristo não está (e não poderia estar) sujeita a mudanças por parte daqueles que exercem autoridade vicariante em nome do Senhor. Ela não é propriedade do Papa, nem dos Bispos, nem dos teólogos e, assim, qualquer tentativa de “aggiornamento” a rebaixa ao nível de uma empresa que, para gerar lucro, renova sua oferta comercial, vende suas ações e segue a moda do momento. A Igreja, por sua vez, é uma realidade divina e sobrenatural: ela adapta sua maneira de pregar o Evangelho às nações, mas jamais pode mudar o conteúdo de um único iota (Mt 5:18), nem negar sua força transcendente ao se rebaixar a um mero serviço social. Do outro lado, a anti-Igreja, orgulhosamente, reivindica o direito de realizar uma mudança de paradigma não apenas mudando a maneira como a doutrina é exposta, mas a doutrina em si. Isso é confirmado pelas palavras de Massimo Faggioli sobre a nova encíclica Fratteli Tutti:
“O pontificado do Papa Francisco é como um novo padrão para os integralistas católicos e aqueles que igualam continuidade material e tradição: a doutrina católica não apenas se desenvolve. Às vezes, ela realmente muda: por exemplo, no tocante à pena de morte e à guerra” [2]
Insistir no que o Magistério ensina é inútil. A alegação descarada dos inovadores de ter direito de mudar a fé segue, obstinadamente, o approach modernista.
O primeiro erro do Concílio consiste, principalmente, na falta de uma perspectiva transcendente – resultado de uma crise espiritual que já estava latente – e na tentativa de criar um paraíso na terra, com um horizonte humano estéril. Na linha desse approach, Fratelli Tutti vê a realização de uma utopia terrena e a redenção social na fraternidade humana, pax œcumenica entre religiões e no acolhimento de imigrantes.
4. O SENTIMENTO DE INFERIORIDADE E INADEQUAÇÃO
Como eu já escrevi em outras ocasiões, as demandas revolucionárias da Nouvelle Théologie encontraram solo fértil nos Padres Conciliares em razão de um grave complexo de inferioridade em relação ao mundo. Houve um tempo, no período pós-guerra, quando a revolução conduzida pela maçonaria nas esferas civil, política e cultural penetraram na elite católica, persuadindo-a de sua inadequação face um desafio de sua época, que era inescapável. Ao invés de indagar a si mesmos e sua fé, essa elite – Bispos, teólogos, intelectuais – imprudentemente atribuiu responsabilidade pelo fracasso iminente da Igreja à sua sólida estrutura hierárquica e a seu ensinamento doutrinário e moral monolítico. Ao contemplar a derrota da civilização europeia que a Igreja havia ajudado a construir, a elite pensou que a falta de concordância com o mundo foi causada pela intransigência do Papado e pela rigidez moral dos Padres, que não desejavam fazer as pazes com o Zeitgeist e “abrirem-se”. Esse approach ideológico advém de uma falsa ideia segundo a qual, entre a Igreja e o mundo contemporâneo, pode haver uma aliança, uma consonância, uma amizade. Nada poderia estar mais distante da verdade, pois jamais haverá descanso na luta entre Deus e Satã, entre a Luz e a Escuridão. “Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar” (Gen 3:15). Essa é uma inimizade desejada pelo próprio Deus, que coloca Maria Santíssima – e a Igreja – como inimigos eternos da antiga serpente. O mundo tem seu próprio príncipe (Jo 12:31), que é o “inimigo” (Mt 13:28), um “homicida desde o princípio” (Jo 8:44) e um “mentiroso” (Jo 8:44). Pregar um pacto de não-beligerância com o mundo significa entrar em acordo com Satã. Isso arruína e perverte a própria essência da Igreja, cuja missão é converter o máximo de almas a Cristo para a maior glória de Deus, sem jamais abaixar as armas àqueles que querem atrai-las a si e à condenação.
O sentimento de inferioridade e de fracasso perante o mundo que a Igreja tem criou a “tempestade perfeita” para a revolução se enraizar nos Padres Conciliares e, por extensão, no povo cristão, no qual a obediência à Hierarquia havia sido cultivada, talvez, mais do que a fidelidade ao depositum fidei. Permitam-me ser mais claro: a obediência aos Pastores Sagrados certamente é louvável se as ordens são legítimas. Mas a obediência deixa de ser uma virtude e, na verdade, torna-se servilismo se ela se torna um fim em si mesma e se ela contradiz o propósito ao qual ela deveria estar ordenada, a saber, a Fé e a Moral. Devemos acrescentar que esse sentimento de inferioridade foi introduzido no corpo eclesial com mostras de grande pompa, como a remoção da tiara por Paulo VI, a devolução do estandarte Otomano conquistado em Lepanto, as espalhafatosas aproximações ecumênicas do cismático Atenágoras, os pedidos de perdão pelas Cruzadas, a abolição do Index, o foco do Clero nos pobres em lugar do dito “triunfalismo” de Pio XII. O coup de grâce dessa atitude foi codificado na liturgia reformada, que expressa sua vergonha do dogma católico ao silenciá-lo – e, portanto, ao negá-lo indiretamente. Essa mudança ritual engendrou uma mudança doutrinal, que levou os fiéis a acreditarem que a Missa é um simples banquete fraternal e que a Santíssima Eucaristia é um mero símbolo da presença de Cristo entre nós.
5. “IDEM SENTIRE” DA REVOLUÇÃO E DO CONCÍLIO
O sentimento de inadequação dos Padres Conciliares foi intensificado pelas obras dos inovadores, cujas ideias heréticas coincidiam com as demandas do mundo. Uma análise comparativa do pensamento moderno confirma o idem sentire [mesmo sentimento ou mesmo pensamento] dos conspiradores com cada elemento da ideologia revolucionária:
- a aceitação do princípio democrático como a fonte legitimadora do poder, no lugar do direito divino da Monarquia Católica (incluindo o Papado);
- a criação e acumulação de órgãos de poder, no lugar da responsabilidade pessoal e da hierarquia institucional
- a erosão do passado histórico, avaliado pelos parâmetros atuais, que não defendem a tradição e a herança cultural
- a ênfase na liberdade dos indivíduos e o enfraquecimento do conceito de responsabilidade e dever
- a evolução contínua da moralidade e da ética, agora privadas de sua natureza imutável e de qualquer referência ao transcendente
- a natureza secular do Estado, no lugar da devida submissão da ordem civil ao Reinado de Jesus Cristo e da superioridade ontológica da missão da Igreja sobre aquela da esfera temporal
- a igualdade das religiões não apenas perante o Estado, mas como um conceito geral ao qual a Igreja deve se conformar, contrária à defesa objetiva e necessária da verdade e da condenação do erro
- o falso e blasfemo conceito de dignidade do homem como conatural a ele, baseado na negação do pecado original e da necessidade da Redenção como pressupostos para agradar a Deus, assim merecendo Sua graça e atingindo a bem-aventurança eterna;
- a diminuição do papel das mulheres e um menosprezo ao privilégio da maternidade;
- o primado da matéria sobre o espírito;
- a relação fideísta com a ciência [3], face um criticismo impiedoso da religião baseado em falsos fundamentos científicos
Todos esses princípios, propagados pelos ideólogos da maçonaria e pelos apoiadores da Nova Ordem Mundial, coincidem com as ideias revolucionárias do Concílio:
- a democratização da Igreja começou com Lumen Gentium e, hoje, concretiza-se no caminho sinodal bergogliano;
-a criação e acumulação de órgãos de poder tem sido atingida delegando-se funções decisórias às Conferências Episcopais, aos Sínodos de Bispos, às Comissões, aos Concílios Pastorais, etc;
- o passado e as gloriosas tradições da Igreja são julgados de acordo com a mentalidade moderna e condenados para obter aprovação do mundo moderno;
- a “liberdade dos filhos de Deus” teorizada pelo Vaticano II tem sido estabelecida sem consideração alguma das obrigações morais dos indivíduos, que, de acordo com as fábulas conciliares, estão todos salvos independentemente das suas disposições interiores e do estado de suas almas;
- o ofuscamento de referências morais perenes tem levado à revisão doutrinária sobre a pena capital; e, com Amoris Laetitia, à admissão de adúlteros públicos aos sacramentos, assim rompendo o edifício sacramental;
- a adoção do conceito de secularismo tem levado à abolição da religião estatal nas nações católicas. Encorajada pela Santa Sé e pelo Episcopado, isso tem levado à perda da identidade religiosa e ao reconhecimento dos direitos das seitas, assim como à aprovação de normas que violam a lei natural e divina;
- a liberdade religiosa teorizada em Dignitatis Humanae é, hoje, levada às suas consequências lógicas mais extremas com a Declaração de Abu Dhabi e com a última encíclica, Fratelli Tutti, tornando a missão salvífica da Igreja e a até mesmo a Encarnação obsoletas;
- teorias sobre a dignidade humana na esfera católica têm levado a confusão quanto ao papel do laicato em relação ao papel ministerial do clero e ao enfraquecimento da estrutura hierárquica da Igreja. Enquanto isso, a adoção da ideologia feminista é um prelúdio à admissão das mulheres às Sagradas Ordenações;
- uma preocupação desordenada com as necessidades temporais dos pobres, tão típica das esquerdas, tem transformado a Igreja em uma associação assistencial, limitando sua ação à esfera meramente material, quase a ponto de abandonar a esfera espiritual;
- subserviência à ciência moderna e ao progresso tecnológico tem levado a Igreja a desautorizar a “Rainha das Ciências” [a fé], a “desmitificar” milagres, a negar a inerrância da Sagrada Escritura, a encarar os mistérios mais sagrados de nossa santa religião como “mitos” ou “metáforas”, sacrilegamente sugerindo que a transubstanciação e até mesmo a ressurreição são “magia” (expressão esta entendida não literal, mas simbolicamente) e a descrever os sublimes dogmas marianos como “tonterias” [tolices]
Há um aspecto quase grotesco desse rebaixamento da Hierarquia para se adequar ao pensamento corrente. O desejo da hierarquia de agradar a seus carrascos e de servir a seus inimigos sempre chega atrasado e fora de tempo, dando a impressão de que os Bispos são irremediavelmente atrasados, fora de sintonia com seus tempos. Eles são tão coniventes com sua própria extinção que nos levam a crer que essa demonstração de submissão cortesã ao politicamente correto advém não de uma verdadeira persuasão ideológica, mas do medo de serem deixados de lado, de perder poder e de não mais ter aquele prestígio que o mundo ainda lhes dá de qualquer maneira. Eles não percebem – ou não querem admitir – que o prestígio e autoridade que têm vêm da autoridade e prestígio da Igreja de Cristo, e não falsificação miserável e digna de pena que eles criaram.
Quando essa anti-Igreja estiver definitivamente estabelecida no eclipse total da Igreja Católica, a autoridade de seus líderes dependerá do grau de submissão à Nova Ordem Mundial, que não tolerará qualquer divergência de seu credo e aplicará impiedosamente esse dogmatismo, fanatismo e fundamentalismo que muitos Prelados e autoproclamados intelectuais criticam naqueles que permanecem fiéis ao Magistério hoje. Dessa maneira, a deep church continua a possuir a marca “Igreja Católica”, mas será escrava do pensamento da Nova Ordem, situação que remonta aos judeus, que, após negarem o Reinado de Cristo ante Pilatos, tornaram-se escravos da autoridade civil de seu tempo: “Não temos rei, senão César” (Jo 19:15). O César dos nossos tempos nos ordena fechar as Igrejas, vestir uma máscara e suspender as celebrações sob pretexto de uma pseudopandemia. O regime comunista persegue os católicos chineses, e o mundo não ouve nada além de silêncio vindo de Roma. Amanhã, um novo Tito saqueará o templo, transportando o espólio para algum museu, e a vingança divina através das mãos dos pagãos será realizada novamente.
6. O PAPEL DOS CATÓLICOS MODERADOS NA REVOLUÇÃO
Alguns dizem que os Padres Conciliares e os Papas que presidiram essa assembleia não perceberam as consequências que a sua aprovação dos documentos do Vaticano II teriam para o futuro da Igreja. Se esse foi o caso – isto é, se tivesse havido algum arrependimento posterior da aprovação apressada de textos heréticos ou próximos da heresia –, é difícil compreender por que eles não conseguiram fazer cessar, imediatamente, os abusos, corrigir os erros, esclarecer mal-entendidos e omissões. E, acima de tudo, é incompreensível por que a autoridade eclesiástica tem sido tão implacável com aqueles que defendem a Verdade Católica e, ao mesmo tempo, tem sido tão complacente com os rebeldes e hereges. De qualquer modo, a responsabilidade pela crise conciliar deve ser colocada sobre a Autoridade que, mesmo em meio a milhares de apelos à colegialidade e ao pastoralismo, tem protegido suas prerrogativas, exercendo-as apenas em uma direção, a saber, contra o pusillus grex [pequeno rebanho] e jamais contra os inimigos de Deus e da Igreja. As raríssimas exceções em que um teólogo herege ou um religioso revolucionário foram censurados pelo Santo Ofício apenas confirmam uma regra que tem sido aplicada por décadas; isso tudo sem mencionar que muitos deles têm sido reabilitados sem que precisassem abjurar de seus erros e foram até mesmo promovidos a posições institucionais na Cúria Romana ou no Pontifício Athenaeum.
Essa é a realidade de acordo com minha análise. Porém sabemos que, além da ala progressista do Concílio e da ala católica tradicional, há uma parte do episcopado, do clero e dos fiéis que tentam manter uma distância daquilo que consideram dois extremos. Estou me referindo aos chamados “conservadores”, isto é, um partido centrista do corpo eclesial que acaba servindo aos revolucionários porque, embora rejeitando seus excessos, compartilha dos seus princípios. O erro dos “conservadores” reside em dar uma conotação negativa ao tradicionalismo e em colocá-lo em um extremo oposto do progressismo. A aurea mediocritas [via media] deles consiste em, arbitrariamente, colocar-se não entre dois vícios, mas entre a virtude e o vício. Eles são aqueles que criticam os excessos de pachamama ou as declarações mais radicais de Bergoglio, mas não toleram que a autoridade do Concílio seja questionada, muito menos que se reconheça a conexão intrínseca entre o câncer conciliar e a atual metástase. A correlação entre conservadorismo político e conservadorismo religioso consiste em adotar a posição de “centro”, uma síntese entre a tese “direitista” e a antítese “esquerdista”, tudo de acordo com o approach hegeliano tão festejado pelos apoiadores moderados do Concílio.
Na esfera civil, o deep state tem causado dissensão política e social usando organizações e movimentos que se opõem apenas nas aparências, mas que, na realidade, são instrumentos de manutenção do poder. Semelhantemente, na esfera eclesial, a deep church usa os “conservadores” moderados para dar uma aparência de liberdade aos fiéis. O motu próprio Summorum Pontificum, por exemplo, embora dê liberdade para celebrar na forma extraordinária, exige saltem impliciter [ao menos implicitamente] que aceitemos o Concílio e reconheçamos a legalidade da liturgia reformada. Essa artimanha evita que aqueles que se beneficiam do Motu Proprio levantem qualquer objeção, pois isso ameaçaria a dissolução das comunidades Ecclesia Dei, e instiga no povo cristão a perigosa ideia de que uma coisa boa, para ter legitimidade na Igreja e na sociedade, necessariamente deve vir acompanhada de uma coisa ruim ou, ao menos, de algo menos bom. Porém, apenas uma mente transviada buscaria dar direitos iguais ao bem e ao mal. Não importa se alguém é pessoalmente a favor do bem, se ele reconhece a legitimidade daqueles que estão a favor do mal. Nesse sentido, a “liberdade de escolha” do aborto teorizada pelos políticos democratas encontra seu contrapeso na não menos aberrante “liberdade religiosa” teorizada pelo Concílio, que, hoje, é obstinadamente defendida pela anti-Igreja. Se não é permitido a um católico apoiar um político que defende o direito ao aborto, é menos permitido ainda aprovar um Prelado que defende a “liberdade” de um indivíduo de arriscar sua alma imortal ao “escolher” permanecer em pecado mortal. Isso não é misericórdia: isso é um grosseiro abandono do dever espiritual perante Deus para obter os favores e a aprovação dos homens.
7. “SOCIEDADE ABERTA” E “RELIGIÃO ABERTA”
Essa análise não poderia estar completa sem algumas palavras sobre a novilíngua tão popular na esfera eclesiástica. O vocabulário católico tradicional tem sido deliberadamente modificado para mudar o conteúdo que ele expressa. O mesmo tem acontecido na liturgia e na pregação, nas quais a clareza da exposição católica tem sido substituída por ambiguidade ou pela negação implícita da verdade dogmática. Os exemplos são inumeráveis. Esse fenômeno também remonta ao Vaticano II, que buscou desenvolver versões “católicas” dos slogans do mundo. De qualquer maneira, eu gostaria de enfatizar que todas essas expressões foram tomadas do léxico secularista e que também são parte da novilíngua. Pensemos na insistência de Bergoglio na “Igreja em saída”, na abertura como um valor positivo. Semelhantemente, agora cito Fratelli Tutti:
“Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses, assumindo em si o que é diverso” (Fratelli Tutti, 160)
“A Igreja é uma casa com as portas abertas” (ibid. 276)
“Queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação” (ibid.).
A Semelhança com a Sociedade Aberta almejada pela ideologia globalista de Soros é tão notável a ponto de quase constituir uma Religião Aberta que sirva de contraponto a ela.
E essa Religião Aberta está perfeitamente de acordo com as intenções do globalismo. Dos encontros políticos “para um Novo Humanismo”, abençoados pelos líderes da Igreja, à participação da intelligentsia progressista na propaganda verde, tudo segue o pensamento corrente, numa triste e grotesca tentativa de agradar ao mundo. O forte contraste com as palavras do Apóstolo é claro: “Porque agora, é o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo” (Gal. 1:10)
A Igreja Católica está sempre sob os olhos de Deus; ela existe para Sua glória e para a salvação das almas. A anti-Igreja vive sob os olhos do mundo, para agradar à blasfema apoteose do homem e à condenação das almas. Durante a última sessão do Segundo Concílio Ecumênico do Vaticano, ante todos os Padres Conciliares, essas chocantes palavras de Paulo VI ressoaram na Basílica do Vaticano:
“A religião do Deus que se faz homem se encontrou com a religião (pois tal ela é) do homem que se faz Deus. E o que aconteceu? Houve um choque, um combate, uma condenação? Poderia ter havido, mas não houve. A velha história do Samaritano foi o modelo de espiritualidade do concílio. Um sentimento de simpatia ilimitada permeou-o inteiramente. A atenção de nosso concílio foi absorvida pela descoberta das necessidades humanas (e essas necessidades crescem na proporção da grandeza que o filho da terra reclama para si mesmo). Mas nós conclamamos àqueles que se proclamam humanistas modernos e que renunciaram aos valores transcendentes das realidades mais elevadas a dar crédito ao concílio por ao menos uma qualidade e a reconhecer nosso próprio novo humanismo: nós, também, de fato, mais que qualquer outro, honramos a humanidade” [4]
Essa simpatia – no sentido etimológico de συμπάϑεια, isto é, participação no sentimento do outro – é a figura do Concílio e da nova religião (pois tal ela é) da anti-Igreja. Uma anti-Igreja nascida da união impura entre a Igreja e o mundo, entre a Jerusalém celeste e a Babilônia infernal. Notem bem: a primeira vez que um Pontífice mencionou o “novo humanismo” foi na sessão final do Vaticano II, e, hoje, nós o encontramos repetido como um mantra por aqueles que o consideram uma perfeita e coerente expressão da mens revolucionária [molde mental] do Concílio [5]
Sempre em vista dessa comunhão de intenções entre a Nova Ordem Mundial e a anti-Igreja, devemos lembrar o Compacto Global sobre a Educação, um projeto criado por Bergoglio “para causar uma mudança em escala planetária, para que a educação seja um gerador de fraternidade, paz e justiça. Uma necessidade ainda mais urgente nesses tempos marcados pela pandemia” [6] Promovido em colaboração com a Organização das Nações Unidades, esse “processo de formação no relacionamento e cultura de encontro também encontra lugar e valor numa ‘casa comum’ com todas as criaturas, pois as pessoas, uma vez formadas na lógica da comunhão e da solidariedade, já estão trabalhando para ‘recuperar a harmonia serena com a criação’” e para “configurar o mundo como um ‘espaço de verdadeira fraternidade’ (Gaudium et Spes, 37)” [7] Como podemos ver, a referência ideológica é sempre e apenas ao Vaticano II, porque apenas a partir daquele momento a anti-Igreja colocou o homem no lugar de Deus, a criatura no lugar do Criador.
O “novo humanismo”, obviamente, tem um aspecto ambiental e ecológico, no qual estão situados a Encíclica Laudato Sì e a Teologia verde – a “Igreja com um rosto amazônico” do Sínodo dos Bispos de 2019, com seu culto idolátrico da pachamama (mãe terra) na presença do Sinédrio Romano. A atitude da Igreja durante a Covid-19 demonstrou, de um lado, a submissão da hierarquia aos diktats do Estado, em violação à Libertas Ecclesiae, que o Papa deveria ter defendido firmemente. Também demonstrou a negação de qualquer dimensão espiritual da pandemia, substituindo a justa ira de Deus, ofendido pelos inumeráveis pecados da humanidade a das nações, por uma mais perturbadora e destrutiva fúria da Natureza, ofendida pela falta de respeito pelo ambiente. Eu gostaria de enfatizar que atribuir uma identidade pessoal à Natureza, quase dotada de intelecto e vontade, é um prelúdio à sua divinização. Nós já vimos um prelúdio sacrílego disso, debaixo do domo da Basílica de São Pedro.
A linha de fundo é esta: conformidade por parte da anti-Igreja com a ideologia dominante do mundo moderno cria uma verdadeira cooperação com poderosos representantes do deep state, a começar por aqueles trabalhando por uma “economia sustentável”, envolvendo Jorge Mario Bergoglio, Bill Gates, Jeffrey Sachs, John Elkann, Gunter Pauli [8].
É útil lembrar que a economia sustentável também tem consequências para a agricultura e o mundo do trabalho em geral. O deep state precisa garantir mão de obra barata através de imigração, o que, ao mesmo tempo, contribui para a neutralização das identidades religiosa, cultural e linguística das nações envolvidas. A deep church fornece uma base ideológica e pseudoteológica a esse plano de invasão, e, ao mesmo tempo, garante uma parte nos negócios lucrativos de hospitalidade. Podemos compreender a insistência de Bergoglio no tema dos migrantes, também reiterada em Fratelli Tutti: “Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos” (ibid. 39.) “As migrações constituirão uma pedra angular no futuro do mundo” (ibid. 40). Bergoglio usa a expressão “pedra angular”, alegando que não é possível imaginar um futuro sem migrações.
Permitam-me uma breve palavra sobre a situação política nos Estados Unidos às vésperas da eleição presidencial. Fratelli Tutti parece ser uma forma de apoio do Vaticano ao candidato do Partido Democrata, em clara oposição a Donald Trump, e vem poucos dias após Francisco ter recusado uma audiência ao Secretário de Estado Mike Pompeo em Roma. Isso confirma de que lado os filhos da luz estão, e de que lado os filhos das trevas estão.
8. AS FUNDAÇÕES IDEOLÓGICAS DA “FRATERNIDADE”
O tema da fraternidade, uma obsessão de Bergoglio, encontra sua primeira formulação em Nostra Ætate e em Dignitatis Humanae. A última encíclica, Fratelli Tutti, é o manifesto dessa visão maçônica, na qual o grito Liberté, Égalité, Fraternité substituiu o Evangelho em prol de uma unidade dos homens que escamota Deus. Reparemos que o Documento Sobre a Fraternidade Humana em Prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado em Abu Dhabi em 4 de fevereiro de 2019, foi orgulhosamente defendido por Bergoglio com as seguintes palavras:
“Do ponto de vista católico, o documento não foi um milímetro além do Concílio Vaticano II”
O Cardeal Miguel Ayuso Guixot, Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, comentou em La Civiltà Cattolica:
“Com o Concílio, o dique rachou e, então, rompeu: as águas do diálogo se espalharam com as declarações conciliares Nostra Ætate, sobre a relação entre a Igreja e os fiéis de outras religiões, e Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, temas e documentos que estão intimamente ligados um ao outro e que permitiram São João Paulo II dar vida a encontros como os de Assis em 27 de outubro de 1986 e Bento XVI, 25 anos mais tarde, permitir-nos viver, na cidade de São Francisco, o Dia para Reflexão, Dia´logo e Oração para Paz e Justiça no Mundo – Peregrinos da Verdade, Peregrinos da Paz. Portanto, o compromisso da Igreja Católica com o diálogo interreligioso, que abre caminho à paz e à fraternidade, é parte da sua missão original e tem suas raízes no Concílio” [9]
Novamente, o câncer do Vaticano II confirma estar na origem da metástase bergogliana. O fil rouge [fio comum] que une o Concílio ao culto de pachamama também passa por Assis, como meu irmão Athanasius Schneider acertadamente explicou em sua recente conferência [10]
E, por falar da anti-Igreja, o Bispo Fulton Sheen descreve o Anticristo: “Como sua religião será a fraternidade sem a paternidade de Deus, ele enganará até mesmo os eleitos” [11] Parece que estamos vendo a profecia do venerável Arcebispo americano se realizando diante de nossos olhos.
Não causa surpresa, portanto, que a infame Grande Loja da Espanha, após congratular seu paladino elevado ao Trono, novamente tenha feito homenagem a Bergoglio com estas palavras:
“O grande princípio dessa escola de iniciação não mudou em três séculos: a construção de uma fraternidade universal na qual seres humanos se chamem irmãos independentemente de suas crenças, suas ideologias, cor de suas peles, sua condição social, sua língua, sua cultura ou sua nacionalidade. Esse sonho fraternal entrava em rota de colisão com o fundamentalismo religioso, que, no caso da Igreja Católica, levou a duros textos condenando a tolerância da Maçonaria no Século XIX. A última encíclica do Papa Francisco mostra quão distante a presente Igreja Católica está de suas posições anteriores. Em ‘Fratelli Tutti’, o Papa abraça a Fraternidade Universal, o grande princípio da maçonaria moderna” [12]
A reação do Grande Oriente da Itália não foi diferente:
“Esses são os princípios que a Maçonaria sempre buscou e guardou para a elevação da Humanidade” [13]
Austen Ivereigh, o hagiógrafo de Bergoglio, confirma, satisfeito, essa interpretação, que qualquer católico deveria considerar no mínimo perturbadora [14]
Gostaria de lembrar que os documentos maçônicos da Alta Vendita, desde o Século XIX, revelam um plano de infiltração da Maçonaria na Igreja:
“Vós, também, deveis fisgar alguns amigos e levá-los aos pés do Palácio Apostólico. Vós tereis pregado uma revolução de tiara e pluvial, realizada debaixo da insígnia da cruz, uma revolução que só precisará de um pouco de ajuda para atear fogo aos últimos confins do mundo” [15]
9. A SUBVERSÃO DA RELAÇÃO INDIVIDUAL E SOCIAL COM DEUS
Permitam-me concluir esse exame dos links entre o Concílio e a presente crise ao enfatizar uma inversão que eu considero extremamente importante e significativa. Estou me referindo ao relacionamento do leigo individual e da comunidade de fiéis com Deus. Enquanto, na Igreja de Cristo, a relação da alma com o Senhor é eminentemente pessoal mesmo quando é transportada pelo Ministro Sagrado na prática litúrgica, na Igreja conciliar, a comunidade e o relacionamento grupal prevalece. Pensemos na insistência deles em querer fazer do Batismo de uma criança, ou o casamento dos noivos, um “ato da comunidade”; ou a impossibilidade de receber a Sagrada Comunhão individualmente, fora da Missa, e na prática comum de se aproximar da Eucaristia durante a Missa mesmo sem as condições necessárias. Tudo isso é sancionado baseado numa concepção protestantizada de participação no banquete eucarístico, do qual nenhum convidado está excluído. Com esse entendimento de comunidade, a pessoa perde sua individualidade, perdendo-se em uma comunidade anônima da celebração. Assim também, a relação do corpo social com Deus desaparece em um personalismo que elimina o papel de mediação tanto da Igreja, quanto do Estado. A individualização no campo moral enquadra-se nisso também, onde os direitos e preferências do indivíduo tornam-se razões para a erradicação da moralidade social. Isso é feito em nome de uma “inclusão” que legitima todo e qualquer vício e aberração moral. A sociedade – entendida como a união de vários indivíduos direcionada à busca de um objetivo comum – torna-se dividida em uma multiplicidade de indivíduos, cada um com seu próprio objetivo. Isso é o resultado de uma sublevação ideológica que precisa ser analisada profundamente em razão de suas consequências tanto na esfera eclesial quanto na civil. É evidente, porém, que o primeiro passo dessa revolução se encontra na mens conciliar, a começar pela doutrinação do povo cristão através da liturgia reformada, na qual o indivíduo se junta à assembleia ao se despersonalizar, e a comunidade se deturpa em uma coletividade de indivíduos ao perder sua identidade.
10. CAUSA E EFEITO
A Filosofia nos ensina que a uma causa sempre corresponde um certo efeito. Temos visto que as ações praticadas durante o Vaticano II têm tido o efeito desejado, dando forma concreta àquela virada antropológica, que, hoje, levou à apostasia da anti-Igreja e ao eclipse da verdadeira Igreja de Cristo. Devemos, portanto, compreender que, se desejamos desfazer os efeitos danosos que vemos, é necessário e indispensável remover os fatores que os causaram. Se esse é nosso objetivo, então é claro que aceitar – ou até mesmo aceitar parcialmente – aqueles princípios revolucionários tornaria nossos esforços inúteis e contraprodutivos. Devemos, portanto, ser claros quanto aos objetivos a serem alcançados, ordenando nossas ações em direção aos objetivos. Mas devemos estar cientes de que, nessa obra de restauração, nenhuma exceção aos princípios pode ser feita, precisamente porque deixar de compartilhá-los eliminaria qualquer chance de sucesso.
Portanto, deixemos de lado, de uma vez por todas, as vãs ilações acerca da presumida bondade do Concílio, da traição da vontade dos Padres Conciliares, da letra e do espírito de Vaticano II, do peso magisterial (ou da ausência dele) de seus atos e da hermenêutica da continuidade contra a da ruptura. A anti-Igreja tem usado a etiqueta “Concílio Ecumênico” para dar autoridade e força legal à sua agenda revolucionária, assim como Bergoglio chama seu manifesto político de lealdade à Nova Ordem Mundial de “carta encíclica”. A astúcia do inimigo conseguiu isolar a parte saudável da Igreja, dividida entre ter que reconhecer a natureza subversiva dos documentos conciliares, portanto devendo exclui-los do corpus magisterial, e ter que negar a realidade ao declará-los apoditicamente ortodoxos para salvaguardar a infalibilidade do Magistério. As Dubia foram uma humilhação àqueles Príncipes da Igreja, mas não desataram os nós doutrinários que foram levados à atenção do Pontífice Romano. Bergoglio não respondeu, exatamente porque ele não quer negar, nem confirmar os erros, assim expondo-se ao risco de ser declarado herege e perder o papado. Esse é o mesmo método usado pelo Concílio, no qual a ambiguidade e o uso de terminologia imprecisa evitam a condenação do erro implícito. Mas o jurista sabe muito bem que, para além da violação flagrante da lei, também se pode cometer um crime ao burlar a lei, utilizando-a para fins maus: contra legem fit, quod in fraudem legis fit (o que contorna a lei é contrário a ela).
11. CONCLUSÃO
A única maneira de vencer essa batalha é retornar ao que a Igreja sempre fez e parar de fazer o que a anti-Igreja nos pede atualmente – aquilo que a verdadeira Igreja sempre condenou. Coloquemos Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei e Sumo Sacerdote, de volta no centro da vida da Igreja; e, antes disso, no centro da vida de nossas comunidades, nossas famílias, de nós mesmos. Devolvamos a coroa a Nossa Senhora, Maria Santíssima, Rainha e Mãe da Igreja.
Voltemos a celebrar a Sagrada Liturgia tradicional dignamente e a rezar com as palavras dos Santos, não com as palavras desconexas dos modernistas e dos hereges. Comecemos, novamente, a saborear os escritos dos Padres da Igreja e dos Místicos e a atirar ao fogo as obras imbuídas de modernismo e sentimentalismo imanentista. Apoiemos, com orações e auxílio material, os vários bons Padres que permanecem fiéis à verdadeira Fé, e retiremos qualquer apoio daqueles que se mancomunaram com o mundo e suas mentiras.
E acima de tudo – eu lhes peço em nome de Deus! - deixemos de lado aquele sentimento de inferioridade que os nossos adversários nos acostumaram a aceitar: na guerra do Senhor, não é a nós que eles humilham (certamente merecemos humilhações por nossos pecados). Não: eles humilham a Majestade de Deus e a Esposa do Cordeiro Imaculado. A Verdade que nós abraçamos não vem de nós, mas de Deus! Permitir que a Verdade seja negada, aceitar que ela deve se justificar perante as heresias e os erros da anti-Igreja não é um ato de humildade, mas de covardia e pusilanimidade. Inspiremo-nos no exemplo dos Santos Mártires Macabeus, ante um novo Antíoco que nos pede que sacrifiquemos aos ídolos e abandonemos o verdadeiro Deus. Respondamos com as palavras deles, rezando ao Senhor: “Manda também agora diante de nós, ó Senhor dos céus, o teu bom anjo, a difundir o temor e o pavor. Que sejam feridos pela grandeza do teu braço aqueles que, blasfemando, avançam contra o teu santo povo” (2 Mac 15:23)
Permitam-me concluir minha conferência com uma lembrança pessoal. Quando eu era Núncio Apostólico na Nigéria, tomei conhecimento de uma magnífica tradição popular que surgiu durante a terrível guerra em Biafra e que continua até o dia de hoje. Eu pessoalmente tomei parte nela durante uma visita pastoral à Arquidiocese de Onitsha e fiquei muito impressionado. Essa tradição – chamada de “Crianças do Bloco de Rosários” - consiste em ajuntar milhares de crianças (mesmo as mais novas) em cada vilarejo ou vizinhança para recitar o Santo Rosário, pedindo a paz – cada criança segurando um pequeno pedaço de madeira, como se fosse um mini altar, com uma imagem de Nossa Senhora e uma pequena vela nela.
Até o dia 3 de novembro, convido todos a se juntarem em uma Cruzada de Rosários: uma espécie de tomada de Jericó, não com sete trombetas soadas por Padres, mas com as Ave Marias dos pequeninos e dos inocentes, para derrubar as paredes do deep state e da deep church.
Juntemo-nos aos pequeninos em um Crianças do Bloco de Rosários, implorando à Mulher vestida de Sol que o Reino de Nossa Senhora e Mãe seja restaurado e que o eclipse que nos aflige seja abreviado.
E que Deus abençoe essas santas intenções.
[1] Padre Antonio Spadaro sj, Fratelli Tutti, la risposta di Francesco alla crisi del nostro tempo, in Formiche, 4 Ottobre 2020 (qui).
[2] «Pope Francis’ pontificate is like a standard lifted up before Catholic integralists and those who equate material continuity and tradition: Catholic doctrine does not just develop. Sometimes it really changes: for example on death penalty, war», https://twitter.com/Johnthemadmonk/status/1313616541385134080/photo/1/; https://twitter.com/massimofaggioli/status/1313569449065222145.
[3] «Dovremmo evitare di cadere in questi quattro atteggiamenti perversi, che certo non aiutano alla ricerca onesta e al dialogo sincero e produttivo sulla costruzione del futuro del nostro pianeta: negazione, indifferenza, rassegnazione e fiducia in soluzioni inadeguate», cfr. https://www.avvenire.it/papa/pagine/papa-su-clima-basta-negazionismi-su-riscaldamento-globale.
[4] «Religio, id est cultus Dei, qui homo fieri voluit, atque religio – talis enim est aestimanda – id est cultus hominis, qui fieri vult Deus, inter se congressae sunt. Quid tamen accidit? Certamen, proelium, anathema? Id sane haberi potuerat, sed plane non accidit. Vetus illa de bono Samaritano narratio excmplum fuit atque norma, ad quam Concilii nostri spiritualis ratio directa est. Etenim, immensus quidam erga homines amor Concilium penitus pervasit. Perspectae et iterum consideratae hominum necessitates, quae eo molestiores fiunt, quo magis huius terrae filius crescit, totum nostrae huius Synodi studium detinuerunt. Hanc saltem laudem Concilio tribuite, vos, nostra hac aetate cultores humanitatis, qui veritates rerum naturam transcendentes renuitis, iidemque novum nostrum humanitatis studium agnoscite: nam nos etiam, immo nos prae ceteris, hominis sumus cultores». Paolo VI, Allocuzione per l’ultima sessione del Concilio Ecumenico Vaticano II, 7 Dicembre 1965, cfr. http://www.vatican.va/content/paul-vi/it/speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651207_epilogo-concilio.html
[5] https://twitter.com/i/status/1312837860442210304
[6] Cfr. www.educationglobalcompact.org
[7] Congregazione per l’Educazione Cattolica, Lettera Circolare alle scuole, università e istituzioni educative, 10 Settembre 2020, cfr. http://www.educatio.va/content/dam/cec/Documenti/2020-09/IT-CONGREGATIO-LETTERA-COVID.pdf
[8] https://www.lastampa.it/cronaca/2020/10/03/news/green-blue-la-nuova-voce-dell-economia-sostenibile-via-con-il-papa-e-bill-gates-1.39375988;https://remnantnewspaper.com/web/index.php/articles/item/2990-the-vatican-un-alliance-architects-of-death-and-doom
[9] Card. Miguel Ángel Ayuso Guixot, Il documento sulla Fraternità umana nel solco del Concilio Vaticano II, 3 Febbraio 2020. Cfr. https://www.laciviltacattolica.it/news/il-documento-sulla-fratellanza-umana-nel-solco-del-concilio-vaticano-ii
[10] https://www.cfnews.org.uk/bishop-schneider-pachamama-worship-in-rome-was-prepared-by-assisi-meetings
[11] Mons. Fulton Sheen, discorso radiofonico del 26 Gennaio 1947. Cfr. https://www.tempi.it/fulton-sheen-e-linganno-del-grande-umanitario
[12] https://www.infocatolica.com/?t=noticia&cod=38792
[13] https://twitter.com/grandeorienteit/status/1312991358886514688
[14] https://youtu.be/s8v-O_VH1xw
[15] «Vous amènerez des amis autour de la Chaire apostolique. Vous aurez prêché une révolution en tiare et en chape, marchant avec la croix et la bannière, une révolution qui n’aura besoin que d’être un tout petit peu aiguillonnée pour mettre le feu aux quatre coins du monde». Cfr. Jacques Cretineau-Joly, L’Église romaine en face de la Révolution, Parigi, Henri Plon, 1859 (qui).
Don Davide Pagliarani, Superior Geral
1. QUE REPRESENTA PARA A TRADIÇÃO O 50o ANIVERSÁRIO DA FSSPX?
Em primeiro lugar, este jubileu é ocasião de agradecer à Providência por tudo o que nos concedeu durante esses cinquenta anos, porque uma obra que não fosse de Deus não teria resistido à prova do tempo. Antes de tudo, devemos atribuir tudo isso a Deus.
Mas também e sobretudo, este jubileu é uma oportunidade para reavivarmos o nosso ideal de fidelidade ao que recebemos. Na verdade, depois de tantos anos, pode haver uma fadiga compreensível. Trata-se, portanto, de reavivar o nosso fervor na luta pelo estabelecimento do reino de Cristo Rei: que Ele reine primeiro nas nossas almas e em seguida ao nosso redor. É neste ponto particular que devemos trabalhar, seguindo Dom Marcel Lefebvre.
2. POR QUE, NA SUA OPINIÃO, O LEGADO QUE DOM MARCEL LEFEBVRE NOS DEIXOU SE RESUME NO DESEJO DE INSTAURAR O REINADO DE CRISTO?
A resposta me parece muito simples: é o amor de Nosso Senhor como Rei que fez do Arcebispo Lefebvre um santo prelado e um grande missionário, procurando apaixonadamente estender ao seu redor o reinado daquele que reinava em sua alma. É este amor que o levou a denunciar com veemência todos os que se opunham a ele. Ora, o santo Sacrifício da Missa é o meio por excelência para estender este reino e lutar contra seus inimigos. A voz de Dom Marcel Lefebvre tremia de emoção ao pronunciar estas belas palavras da liturgia, que resumem tanto o seu amor pela Missa como por Cristo Rei: “Regnavit a ligno Deus” (hino Vexilla Regis), Deus reina pelo madeiro da Cruz. Numa carta que escreveu pouco antes de sua morte a um ex-confrade de sua congregação original, o Arcebispo fez questão de dizer que, ao longo de sua vida, nunca havia trabalhado por outra coisa que não o reinado de Nosso Senhor. Isso resume tudo o que ele foi e tudo o que nos legou.
3. NESTE 24 DE SETEMBRO, POR SUA SOLICITAÇÃO, O CORPO DE DOM MARCEL LEFEBVRE FOI TRANSFERIDO PARA A CRIPTA DA IGREJA DO SEMINÁRIO DE ECÔNE. APESAR DA CRISE DO CORONAVIRUS, MUITOS SACERDOTES, SEMINARISTAS, RELIGIOSOS E FIÉIS PARTICIPARAM DA CERIMÔNIA. COMO FOI A EXPERIÊNCIA DESTE DIA?
Esta transferência fora solicitada no último Capítulo Geral, em 2018, e estou muito feliz que tenha se concretizado no espaço de dois anos. Embora caiba somente à Igreja canonizar um dia Dom Marcel Lefebvre, creio que ele já merece toda a nossa veneração, e uma sepultura digna de um santo bispo. Neste ano jubilar, este gesto quer ser a expressão da gratidão de todos os membros da FSSPX por aquele que a Providência suscitou como instrumento para salvaguardar a Tradição da Igreja, a Fé, a Santa Missa e para nos transmitir todos esses tesouros. O fato de tornar a ver, depois de trinta anos, o caixão de nosso fundador, e de ver nossos padres carregando-o nos ombros como no dia do seu funeral, foi particularmente comovente. Vi antigos confrades comovidos até as lágrimas.
4. QUANDO A FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X FOI FUNDADA, A MÍDIA DESCREVEU-A COMO UM "FENÔMENO FRANCÊS", DESTINADO A UMA EXISTÊNCIA MERAMENTE LOCAL. HOJE, A FSSPX É UMA COMUNIDADE GLOBAL. O QUE ISSO SIGNIFICA PARA SUA ADMINISTRAÇÃO?
Isso significa que a Casa Geral precisa coordenar as mais diversas situações. A própria tradição foi redescoberta em diferentes países, por meios diversos e de acordo com sensibilidades distintas. Isso explica o porquê da FSSPX não ter se desenvolvido da mesma maneira em todos os lugares ou ao mesmo tempo. Não é preciso dizer que uma obra de tal magnitude como a da FSSPX, com todas as suas facetas, não é administrada apenas pelo Superior Geral: ele é auxiliado nesta tarefa pelos Superiores maiores, que trabalham em países diferentes.
Mas a grande diversidade de situações não deve nos fazer subestimar o fato de que a unidade da FSSPX é baseada em um ideal e princípios comuns a todos os membros e a todos os fiéis sem distinção. Esta unidade é a nossa força, apesar das diferenças legítimas e inevitáveis. Além disso, por ser a FSSPX uma obra da Igreja, ela deve, de certa forma, reproduzir a capacidade da Igreja de oferecer aos fiéis de todo o mundo os mesmos princípios e a mesma fé, em que pese as suas diferenças.
5. APÓS DOIS ANOS À FRENTE DA FSSPX, QUE JULGAMENTO O SENHOR FAZ SOBRE O SEU DESENVOLVIMENTO?
A FSSPX existe há muito tempo no mundo. Não creio que a Providência nos peça nesse momento abrimos novas casas e ampliarmos mais, o que seria talvez da nossa parte uma falta de prudência. Em vez disso, julgo que a Fraternidade precisa se enraizar mais profundamente onde já está presente, a fim de ter comunidades mais fortes; sobretudo para que os jovens sacerdotes tenham tempo para amadurecer e completar a sua formação, o que nos permitirá prepará-los para diferentes responsabilidades, em particular, para a tarefa de prior, para que um dia sejam verdadeiros pais para os seus confrades e para as almas confiadas aos seus cuidados.
6. O SENHOR CONHECE TODOS OS PAÍSES ONDE A FRATERNIDADE ESTÁ PRESENTE? COMO O “TESOURO DA TRADIÇÃO”, DO QUAL O SENHOR FALOU APÓS SUA ELEIÇÃO, É COMUNICADO PELA FRATERNIDADE NO CONTEXTO ATUAL?
Devido ao Covid-19, existem alguns distritos que ainda não pude visitar, pelo que sinto muito. Este "tesouro" é comunicado pelos sacerdotes da Fraternidade em situações que necessariamente diferem entre si, mas que sempre permitem que os sacerdotes demonstrem um verdadeiro zelo. A este respeito, fiquei muito edificado com a inventividade dos nossos confrades, que, na medida do possível, encontraram soluções muito engenhosas para administrar os sacramentos durante o confinamento. Acima de tudo, alguns de nossos padres permaneceram isolados por vários meses em lugares onde a comunicação com outros padres se tornou impossível. Foi grande o seu mérito e gostaria de felicitá-los.
Ao mesmo tempo, também fui tocado pelas reações de nossos fiéis, que demonstraram muito desejo de receber os sacramentos, não pouparam esforços e fizeram sacrifícios consideráveis para demonstrar seu amor por Nosso Senhor. Essa crise certamente nos ajudou a sair da rotina e valorizar mais todos os tesouros que costumamos desfrutar.
Além disso, muitos católicos, que até agora nos observavam de longe, foram atraídos às nossas capelas, porque era para eles a única possibilidade de acesso aos sacramentos. Este é um fenômeno bastante difundido e todas essas almas demonstram grande gratidão à FSSPX.
7. QUAIS SÃO OS PROJETOS ATUAIS OU FUTUROS?
Por enquanto, os projetos são principalmente de natureza moral e, portanto, não são necessariamente projetos que possam ser constatados externamente. Em suma, trata-se de continuar a trabalhar o máximo possível para tornar a Fraternidade forte, unida, verdadeiramente ancorada em Deus, fiel à graça que a sustenta e, ouso dizer, sólida como um exército em linha, capaz de defender, com todos os meios à sua disposição, os tesouros que Deus lhe confiou e atacar aquilo que se lhe opõe; capaz, finalmente, como um exército digno desse nome, de lidar com os mais fracos de seus membros, os feridos, os desanimados e os que se encontram sob alguma provação.
8. O SENHOR É O QUARTO SUPERIOR GERAL DA FRATERNIDADE SÃO PIO X, APÓS DOM MARCEL LEFEBVRE, FRANZ SCHMIDBERGER E DOM BERNARD FELLAY. O SEU ESTILO DE GOVERNO DIFERE DO DELES?
Acho que cada personalidade é inevitavelmente diferente, e por isso traz uma experiência diferente. Além disso, cada época da história da Fraternidade é diferente, pois, depois de cinquenta anos, as circunstâncias e as pessoas não são as mesmas.
Dito isso, a Fraternidade foi sempre fiel ao que Dom Marcel Lefebvre ensinou e nos legou: salvaguardar a herança do nosso fundador e ser fiel ao seu espírito, essa é a principal preocupação de qualquer Superior Geral, seja ele quem for, e qualquer que seja sua personalidade. Por outro lado, a continuidade também é garantida pelo fato de que todo Superior Geral visa o mesmo fim: a salvaguarda do sacerdócio católico e da Tradição da Igreja, para o serviço das almas e da própria Igreja. Esta é uma realidade que transcende as diferenças de estilos e que permite que a necessária renovação dos superiores não seja uma ameaça à estabilidade da obra.
De minha parte, manter esta continuidade é um pouco mais fácil uma vez que tenho o privilégio inestimável de contar com o apoio de meus dois predecessores, Dom Fellay e Padre Schmidberger, eleitos conselheiros do Superior Geral no capítulo anterior. Para mim, não se trata de uma eleição puramente formal, para a realização de tarefas administrativas, mas a feliz possibilidade de apoiar-se em dois ex-superiores gerais, que conheceram bem o Fundador e a vida da Fraternidade durante décadas, dedicando-se ao seu serviço e merecendo hoje a mais elevada estima. Em particular, tive a alegria de contar com os valiosos conselhos de Dom Bernard Fellay, que continuou a residir na Casa geral durante dois anos. Pude admirar nesta ocasião uma grande disponibilidade para ajudar, aliada a uma notável discrição. A presença dos meus dois predecessores, portanto, compensa um pouco aquilo que definitivamente me faltaria se eles não estivessem lá.
9. OS ESTATUTOS DA FRATERNIDADE DÃO AO GERAL SUPERIOR DOIS OBJETIVOS ESPIRITUAIS: “1) Fazer tudo para manter, entreter e aumentar ´no coração dos membros uma grande generosidade, um profundo espírito de Fé e um zelo fervoroso no serviço da Igreja e das almas´; 2) ajudar os membros ´a não caírem na tibieza e fazerem concessões ao espírito do tempo´”. COMO O SENHOR PRETENDE ATINGIR ESSES OBJETIVOS?
O Superior Geral deve, antes de tudo, lembrar-se de que não poderá alcançar esses objetivos sem a obra da graça. Ele estaria errado se julgasse ser capaz de conseguir isso por meio de textos, lembretes ou outras medidas puramente exortativas.
Quanto a mim, estou profundamente convencido de que a chave da nossa fidelidade a estes objetivos está na virtude da pobreza. De fato, com o tempo, é inevitável que os membros da Fraternidade corram o risco de "se instalar" num certo conforto e permitir, desta forma, que o espírito do mundo se infiltre imperceptivelmente em nossas comunidades. Se isso acontecesse, acabaria repercutindo na generosidade dos membros e, portanto, na fecundidade de seu zelo apostólico.
10. O PARÁGRAFO IV DOS ESTATUTOS PREVÊ: “Assim que a Fraternidade poussuir casas em dioceses distintas, adotará as medidas necessárias a fim de obter o Estatuto de Instituto de Direito Pontifício”. ISSO CONDUZ À SEGUINTE PERGUNTA: COMO PODEMOS CUMPRIR ESSE DESEJO DE NOSSO VENERADO FUNDADOR EM FACE DA ATUAL CRISE DA IGREJA?
Os Estatutos da Fraternidade foram aprovados em 1970 a nível diocesano. Era normal que nosso Fundador já tivesse em mente uma aprovação a nível superior, uma vez que a Fraternidade estava destinada a se expandir por todo o mundo.
No entanto, como todos sabem, apesar de todos os seus esforços nessa direção, o Arcebispo, ao invés de receber uma aprovação de direito pontifício, sofreu em 1975 uma supressão pura e simples da Fraternidade São Pio X. Desde então, os Superiores da Fraternidade, a começar pelo próprio Dom Marcel Lefebvre, pensaram em soluções, mas essas têm se chocado sistematicamente com exigências doutrinais inaceitáveis por parte da Santa Sé. Certamente, essas exigências teriam permitido o reconhecimento canônico da Fraternidade, mas, ao mesmo tempo, teriam destruído seu valor moral. Assim, para dar o exemplo mais recente, quando a Congregação para a Doutrina da Fé, em 2017, quis exigir que a FSSPX aceitasse os ensinamentos do Concílio Vaticano II e reconhecesse a legitimidade da nova Missa: se a FSSPX tivesse aceitado as condições impostas naquela época, ela simplesmente teria se negado a si mesma, teria negado aquilo a que está apegada com todas as fibras do seu ser.
Portanto, parece-me que, como sempre foi a conduta de nosso fundador, convém seguir a Providência e não precedê-la.
11. OS CONTATOS COM O VATICANO CONTINUARÃO ESTAGNADOS?
Não depende da Fraternidade, nem de seu Superior Geral. O próprio Vaticano preferiu no momento não retomar as discussões doutrinárias, que a Fraternidade propôs para melhor expor sua posição e mostrar sua adesão à Fé católica e à Sé de Pedro.
O que é surpreendente é que o Vaticano nos pede ao mesmo tempo que regularizemos nossa situação canônica: isso cria uma situação inextricável e intrinsecamente contraditória, uma vez que a possibilidade de um reconhecimento canônico da Fraternidade São Pio X está constantemente sujeito a pré-requisitos doutrinários que permanecem absolutamente inaceitáveis para nós.
Acrescentaria que, quaisquer que sejam as opiniões pessoais sobre este assunto, é importante ter o cuidado de não se preocupar de forma quase obsessiva com questões tão delicadas, como às vezes acontece. Devemos recordar que, assim como a Providência nos orientou e nos assistiu desde a nossa fundação, também, a seu tempo, não deixará de nos dar sinais suficientes e proporcionados que nos permitirão tomar as decisões que as circunstâncias exigem. Esses sinais serão tais que sua evidência será facilmente perceptível pela Fraternidade, e a vontade da Providência se deixará perceber claramente.
12. NESTE ANO DE 2020, A CRISE RELACIONADA À COVID-19 TAMBÉM AFETOU A IGREJA E CONDICIONOU SUAS ATIVIDADES. COMO O SENHOR VÊ ISSO?
É interessante notar que, com a crise do Coronavirus, a hierarquia eclesiástica perdeu uma oportunidade de ouro para mover as almas para a verdadeira conversão e penitência, o que é sempre muito mais fácil quando os homens redescobrem de alguma forma a sua natureza mortal. Além disso, teria sido a ocasião de lembrar à humanidade, tomada de pânico e desespero, que Nosso Senhor é "a Ressurreição e a Vida".
Ao invés disso, a hierarquia preferiu interpretar a epidemia de forma ecológica, em perfeita coerência com os princípios caros ao Papa Francisco. Desse modo, o Covid-19 seria tão-somente o sinal de rebelião da Terra contra a humanidade, que abusou da exploração desmensurada dos seus recursos, da poluição das águas, da destruição das florestas etc. Isso é lamentável e incompatível com uma análise em que subsista um mínimo de fé e consciência do que é o pecado, que se mede em relação à majestade ofendida de Deus, e não à poluição da Terra.
Em sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (Jubileu da Terra), 1º de setembro de 2020, o próprio papa nos ensina a que conclusão moral a pandemia deve nos levar:
“De algum modo, a pandemia atual levou-nos a redescobrir estilos de vida mais simples e sustentáveis. [...] Foi possível constatar como a Terra consegue recuperar, se a deixarmos descansar: o ar tornou-se mais puro, as águas mais transparentes, as espécies animais voltaram para muitos lugares donde tinham desaparecido. A pandemia levou-nos para um encruzilhada. Devemos aproveitar este momento decisivo para acabar com atividades e objetivos supérfluos e destrutivos, e cultivar valores, vínculos e projetos criadores...”
Em suma, a crise do Covid-19 nos leva de volta para a “conversão ecológica”, pedra Angular da Encíclica Laudato si ´. Como se a santidade pudesse se resumir no respeito ao planeta.
13. TIVEMOS, NOS ÚLTIMOS DOIS ANOS, O SÍNODO SOBRE A AMAZÔNIA E A DECLARAÇÃO DE ABU DHABI, SOBRE A QUAL O SENHOR REAGIU EM UM COMUNICADO EM 24 DE FEVEREIRO DE 2019. COMO VÊ A SITUAÇÃO ATUAL APÓS TAIS EVENTOS?
Os últimos ensinamentos do Papa Francisco parecem, infelizmente, confirmar definitivamente a direção errada tomada no início de seu reinado. Com efeito, no dia 3 de outubro, o Papa assinou a Encíclica Fratelli tutti, que será supostamente o guia da segunda parte do seu pontificado, assim como Laudato si ' foi o ponto de referência da primeira parte. Esta encíclica é um verdadeiro desenvolvimento da Declaração de Abu Dhabi, Na qual se baseia. É preciso lembrar que esta última pretendia reconhecer a diversidade de religiões como expressão da vontade de Deus, todas elas chamadas a construir a paz. Aqui temos o resultado catastrófico do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, da liberdade religiosa e, acima de tudo, da negação da Realeza universal de Cristo e de seus direitos intangíveis.
É um texto longo que trata de muitos assuntos diferentes, mas possui uma unidade de fundo bastante clara: na verdade, este longo discurso do Papa desenvolve-se de forma ordenada e coerente em torno de uma ideia fundamental, a saber, a ilusão de que possa haver uma verdadeira fraternidade universal mesmo sem qualquer referência, direta ou indireta, a Cristo e sua Igreja. Ou seja, em torno de uma "caridade" puramente natural, uma espécie de filantropia vagamente cristã, à luz da qual se relê o Evangelho. Com efeito, ao lermos esta encíclica, temos a impressão de que é a filantropia que nos dá a chave de interpretação do Evangelho, e não o Evangelho que nos fornece a luz para iluminar os homens. Esta fraternidade universal é, infelizmente, uma ideia de origem liberal, naturalista e maçônica, e é sobre essa utopia apóstata que a sociedade contemporânea se construiu.
14. BISPOS COMO DOM ATHANASIUS SCHNEIDER E DOM CARLO MARIA VIGANÒ SUBLINHARAM A RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO ENTRE O CONCÍLIO VATICANO II E A CRISE ATUAL. COMO O SENHOR COMPREENDE O POSICIONAMENTO DESSES PRELADOS? DEVEMOS "CORRIGIR" O CONCÍLIO (SCHNEIDER) OU "ESQUECE-LO" (VIGANÒ)?
Desnecessário dizer que estamos muito contentes com essas reações, pois bispos que não são da FSSPX, nem possuem relação direta com ela, chegam finalmente, por outros meios e por outros caminhos, a conclusões semelhantes às que possuímos e, sobretudo, a conclusões capazes de iluminar e fazer com que muitas almas confusas reflitam. Isso é muito encorajador.
Infelizmente, não creio que possamos “esquecer” o Concílio sic et simpliciter, pois se trata de um acontecimento maior da história, assim como a queda do Império Romano ou a Primeira Guerra Mundial. Em vez disso, ele terá de ser seriamente discutido e, tudo o que contém de incompatível com a fé e a Tradição da Igreja, certamente terá de ser corrigido.
A própria Igreja resolverá a delicada questão da autoridade deste Concílio atípico e bizarro, e decidirá sobre a melhor maneira de corrigi-lo. Mas o certo é que um erro enquanto tal -- e o Concílio contém muitos -- não pode absolutamente ser considerado a voz da Igreja e atribuído a ela: podemos e devemos dizê-lo já. Além disso, os acontecimentos dos últimos anos, desde o pontificado de Bento XVI, mostraram aos homens de boa vontade que qualquer esforço hermenêutico, buscando interpretar o "erro" para fazer dele "uma verdade mal compreendida", não pode senão falhar miseravelmente. É um beco sem saída no qual, no qual é vão ingressar.
15. O JUÍZO DE DOM MARCEL LEFEBVRE SOBRE O CONCÍLIO E AS REFORMAS PÓS-CONCILIARES EM SEU LIVRO J´ACCUSE LE CONCILE (1976), E EM SUA CARTA AO CARDINAL OTTAVIANI (1966), GUARDAM A SUA ATUALIDADE?
Esse julgamento corresponde à posição que sempre foi, e sempre será, a da Fraternidade São Pio X -- não pode e não vai mudar. Vemos que, quanto mais os eventos se desenrolam, mais eles confirmam esse julgamento e ressaltam a perspicácia excepcional e sobrenatural do nosso fundador.
16. DOM ATHANASIUS SCHNEIDER, EM SEU LIVRO CHRISTUS VINCIT (PP. 152-155 DA EDIÇÃO FRANCESA), RECONHECE QUE SUA POSIÇÃO EM RELAÇÃO AOS ARGUMENTOS DA FRATERNIDADE EVOLUÍRAM POSITIVAMENTE. COMO O SENHOR ANALISA ESTA MUDANÇA? ACREDITA QUE É POSSÍVEL EM OUTROS PRELADOS?
Dom Schneider sempre demonstrou muita boa vontade, fruto de um espírito humilde e intelectualmente honesto. O que mais chama a atenção neste prelado é sua gentileza, combinada com a coragem de falar publicamente em favor da Tradição. Penso que são estas qualidades -- infelizmente muito raras -- que o permitiram seguir o curso que o conduziu às conclusões que hoje conhecemos.
Quanto aos demais prelados, estou convicto de que também eles podem seguir o mesmo percurso, mas apenas na medida em que tenham a mesma liberdade moral e o mesmo amor pela verdade. Certamente é uma intenção de oração para todos nós.
17. A MISSA TRIDENTINA É HOJE CELEBRADA POR OUTRAS COMUNIDADES, QUE NÃO EXISTIAM QUANDO A FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X FOI FUNDADA. ALÉM DISSO, HÁ SACERDOTES QUE TAMBÉM ESTÃO DESCOBRINDO ESSE RITO. COMO VÊ A EVOLUÇÃO DESSA SITUAÇÃO?
Constatamos que, sobretudo nos últimos anos, certo número de sacerdotes, descobrindo a Missa de todos os tempos, iniciou um itinerário que os levou gradualmente a descobrir a grandeza do seu sacerdócio e, de modo mais geral, o tesouro da Tradição. Este é um desenvolvimento muito interessante, porque é realmente tudo o que a Missa traz. Lembro-me bem do testemunho que recebi um dia de um padre que havia escolhido, não sem encontrar forte oposição, celebrar apenas a Missa Tridentina. Declarou enfaticamente que, ao celebrar esta Missa, foi levado a reconsiderar todo o seu sacerdócio e, consequentemente, tudo o que estava chamado a fazer como sacerdote: pregar, aconselhar às almas, ensinar o catecismo etc. Isso é muito bonito, e só podemos nos alegrar com tal regeneração, que aqui vemos nascer na própria alma do sacerdote.
Dito isto, é imperativo guardar a Missa Tridentina pela razão profunda de que constitui a expressão da nossa fé, em particular na divindade de Nosso Senhor, no seu Sacrifício redentor e, consequentemente, na sua realeza universal. Trata-se de viver a Santa Missa, entrando completamente em todos esses mistérios e, mais particularmente, no mistério de Caridade que ela contém. Tudo isso é incompatível com uma fé ecumênica, morna, centrada no homem; ou com uma apreciação puramente estética das riquezas do rito tridentino, como às vezes se verifica, infelizmente, entre aqueles que se sentem tentados a dissociar o uso do rito tridentino da necessidade de vivê-lo realmente, de penetrá-lo e, sobretudo, de se deixar assimilar por Nosso Senhor e por sua Caridade.
Em última análise, podemos dizê-lo: a própria Missa é esterilizada se não nos leva a viver em Cristo: per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso. De pouco serve se não produz em nós o desejo de imitar a Nosso Senhor pelo dom de nós mesmos. Essa generosidade mostra-se impossível em um contexto imbuído do espírito do mundo, ou sempre inclinado a se comprometer com ele. A fecundidade da Missa será tanto maior quanto as almas forem dispostas por um espírito ardente de sacrifício a doar-se generosamente a Cristo.
18. RECENTEMENTE, A MÍDIA DEU CONSIDERÁVEL REPERCUSSÃO AO ESCANDALO RELACIONADO AO CARDEAL BECCIU. O QUE O SENHOR ACHA ?
Não é preciso dizer que não cabe à FSSPX comentar sobre as responsabilidades uns dos outros neste assunto, ou investigá-lo. Dito isto, como filhos da Igreja, não podemos deixar de lamentar este escândalo que, infelizmente, a atinge e a humilha. Isso nos entristece inevitavelmente, pois a santidade da Igreja é obscurecida por ela. No entanto, devemos lembrar que, infelizmente, escândalos desse tipo sempre existirão na Igreja, e que Deus os permite misteriosamente em sua Sabedoria, para a santificação dos justos. Portanto, seria impróprio ficar escandalizado de forma farisaica, à maneira dos protestantes.
Para ir mais longe, acho importante sublinhar a atenção dispensada pela mídia secular acerca desse assunto. Essa atenção excede a que dedicam a outros acontecimentos da vida da Igreja, ou mesmo a que os imperadores da Idade Média podiam dedicar aos papas de seu tempo. Se lermos nas entrelinhas dos muitos artigos de jornais dedicados a este tema, reconheceremos uma certa complacência, uma satisfação doentia. Parece que o mundo secular não pode desperdiçar tão bela oportunidade de cuspir na face da Noiva de Cristo, a quem ainda juram indiferença. Isso deve nos fazer pensar e, acima de tudo, deve levar à reflexão todos aqueles que vivem sob a ilusão de que hoje a Igreja pode viver em paz diante de um mundo que se tornou efetivamente laico e teoricamente respeitador de todos. É falso. Por detrás da retórica liberal está sempre o desejo de ver a Igreja, não purificada, mas desacreditada e aniquilada. Não há acordo possível com este mundo.
19. COMO A FRATERNIDADE PODE LEVAR REMÉDIO, NA MEDIDA DOS SEUS MEIOS, À CRISE ATUAL?
Em primeiro lugar no nível doutrinário, a Fraternidade está ciente de que não pode abandonar suas posições. Queira ou não, elas constituem um ponto de referência a todos que, na Igreja, procuram a Tradição. É, portanto, em espírito de serviço uns aos outros, e à própria Igreja, que devemos manter a luz fora do alqueire, sem esmorecer.
No nível prático, os membros da Fraternidade devem demonstrar que seu apego ao Santo Sacrifício da Missa é um apego a um mistério de Caridade que deve refletir em toda a Igreja. Isso significa que uma Missa verdadeiramente vivenciada, que nos permite penetrar no mistério da Cruz, é necessariamente apostólica, e sempre nos incitará a buscar o bem do próximo, mesmo dos mais distantes, sem distinção. É uma atitude fundamental, uma disposição moral de benevolência que deve permear todas as nossas ações.
20. O OBJETIVO DA FRATERNIDADE É O SACERDÓCIO CATÓLICO E TUDO RELACIONADO COM ELE. ESSA É A RAZÃO DO SENHOR PREOCUPAR-SE PRINCIPALMENTE COM AS VOCAÇÕES, COM A SANTIFICAÇÃO DOS SACERDOTES E COM A FIDELIDADE À MISSA SE SEMPRE. QUAIS SÃO SUAS PREOCUPAÇÕES ATUAIS?
Eles são exatamente as que acaba de enumerar. Estou persuadido de que, na medida em que conseguirmos cumprir esses três objetivos de todo coração, nos serão dadas, no momento oportuno, as graças e as luzes de que necessitamos para o nosso futuro e para as decisões que teremos que tomar.
Ao perservar o sacerdócio, preservamos o que a FSSPX e a Igreja mais valorizam. Na verdade, cada vocação tem um valor infinito. A vocação é, sem dúvida, a graça mais preciosa que o Bom Deus pode dar a uma alma e à sua Igreja. Portanto, um seminário é o lugar mais sagrado que pode ser imaginado ou encontrado na terra. O Espírito Santo continua a atuar ali, como no Cenáculo, para transformar as almas dos candidatos ao sacerdócio e torná-los apóstolos. Devemos continuar a empenhar todos os nossos esforços nisso e a investir todas nossas energias morais e humanas nesse propósito. Tudo o que construirmos com base no sacerdócio de Nosso Senhor, e para perpetuar o sacerdócio de Nosso Senhor, permanecerá na eternidade.
21. QUE ENCORAJAMENTO O SENHOR DÁ AOS SACERDOTES E FIÉIS PERTENCENTES À TRADIÇÃO?
Gostaria de dizer-lhes que a Providência sempre guiou a Fraternidade e sempre a protegeu em meio a mil dificuldades. Esta mesma Providência, sempre fiel às suas promessas, sempre vigilante e generosa, não irá nos abandonar no futuro, porque deixaria de ser o que é -- o que é impossível, pois Deus permanece sempre o mesmo.
Em outras palavras, após cinquenta anos de existência da FSSPX, nossa confiança está ainda mais enraizada nos inúmeros sinais dessa benevolência manifestada durante todos esses anos.
Mas prefiro deixar a última palavra a Nosso Senhor mesmo: “Não temas, ó pequenino rebanho, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o (seu) reino.” (Lc 12, 32)
Menzingen, 11 de outubro de 2020,
Festa da Maternidade Divina da BVM
Entrevista com Dom Bernard Tissier de Mallerais feita pela revista norte-americana The Angelus.
The Angelus: Sua Excelência, como o senhor entende o termo romanità?
Dom Tissier: A palavra traz consigo a idéia da Roma cristã, ainda que não exclua a da Roma pagã, que estabeleceu a unidade da futura Cristandade por meio da língua latina e da organização da Roma imperial; afinal, os primeiros príncipes cristãos foram imperadores romanos. É por isso que não negligenciamos a Roma pagã ou mesmo os autores latinos pagãos em nossos estudos. É um fato que a Providência tenha querido que a Roma pagã tenha se tornado cristã, e esta é a transformação que celebramos com a Festa de São Pedro em 29 de junho. É o que o Papa São Leão Magno expressou nesta bela passagem na qual enaltece a conversão de Roma: “e tu, que eras mestra do erro, te tornaste discípula da verdade.”
The Angelus: O senhor está sugerindo primeiro uma Roma pagã e então...?
Dom Tissier: Então Roma se tornou a Roma dos Papas. Uma vez que os imperadores se transferiram para Bizâncio, Roma tornou-se inteiramente a Roma dos Papas, juntamente com os Estados Papais. Seria Roma, por meio dos Papas, que iria iluminar a Cristandade e organizá-la contra seus inimigos.
The Angelus: Quais foram as circunstâncias que levaram Marcel Lefebvre a descobrir Roma?
Dom Tissier: O jovem Marcel foi enviado a Roma por seu pai, o Sr. Lefebvre, uma vez que seu irmão René já estava no Seminário Francês de Roma, então sob a direção do padre Le Floch, a quem seu pai tinha em alta conta. O Sr. Lefebvre obrigou o seu filho a ir para lá: “Você vai para Roma, sem discussões. Não há como ficar na diocese de Lille, onde já existem influências liberais, modernistas. Em Roma, você estará sob a direção do padre Le Floch”, a quem ele via como um diretor que transmitiria a doutrina dos papas.
The Angelus: O que a romanità significava para o jovem seminarista?
Dom Tissier: Para ele, significava a continuidade da doutrina papal. Assim, por exemplo, durante as refeições no seminário, por ordem do padre Le Floch, as encíclicas papais sobre os tópicos importantes da política cristã eram lidas em voz alta. E o próprio padre Le Floch dava aulas sobre as encíclicas papais dos últimos dois séculos, começando com aquelas dos papas que condenaram a Maçonaria até a Revolução Francesa. Os Papas Pio VI e Pio VII foram suas vítimas. Pio VI viria a condenar os princípios da Revolução. Pio VII viria a assinar a Concordata com Napoleão como que para reviver a Igreja na França. Havia também a carta encíclica de Pio VII ao bispo de Troyes, lamentando que Luís XVIII tivesse reconhecido a Religião católica não como a religião do reino, mas apenas como aquela da maioria dos franceses. Já se tratava da apostasia de um líder de um Estado católico. Então vinham as grandes encíclicas de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, São Pio X e Pio XI, todas as quais, numa admirável continuidade, condenavam os erros liberais na política e ensinavam a doutrina do reinado social e político de Cristo Rei.
The Angelus: Seria correto dizer que Dom Lefebvre não teria sido o bispo tradicionalista que conhecemos se ele não tivesse estudado no Seminário Francês de Roma?
Dom Tissier: Bem correto, ainda que a expressão “bispo tradicionalista” não fosse a sua linguagem. Ele dizia a nós seminaristas: “Minha vida foi completamente transformada por minha estadia em Roma. Se eu não tivesse freqüentado o seminário em Roma, teria me tornado um simples padre diocesano sem a herança de São Pio X, que recebi em Roma dos padres Le Floch, Voegtli, Le Rohellec, Frey e Haegy.” Esses cinco professores transmitiram-lhe o espírito de São Pio X. Quando ele chegou em Roma pela primeira vez, o odor de santidade, as virtudes e a doutrina de São Pio X ainda estavam no ar, porque este havia morrido há apenas nove anos. A vida de Dom Lefebvre foi completamente transformada em virtude da graça de ter vivido em Roma.
The Angelus: Essa graça foi uma iluminação? Uma convicção? A visão idílica da Igreja em sua essência?
Dom Tissier: O arcebispo nos contava que durante seus dias de escola havia sido bem liberal. Eles pensavam que a separação entre Igreja e Estado era uma coisa boa — não em sua família! Ainda assim, na escola ele não havia aprendido os princípios da Cidade Católica. Foi em Roma que aprendeu que o Estado deve professar publicamente a Religião católica e defendê-la. Então, ao ir para o seminário, passou por uma conversão intelectual sobre a qual freqüentemente falava conosco. Dizia: “Fiquei muito feliz por ter me dado conta de que estava errado ao pensar que a separação entre Igreja e Estado era uma coisa boa. Eu era um liberal!” Quando ouvíamos isso de sua própria boca, ríamos e batíamos palmas; apesar de ser um pouco preocupante, porque diziam que “uma vez liberal, sempre liberal” — talvez o arcebispo tivesse mantido alguns vestígios de liberalismo. Mas nós não pensávamos isso dele.
The Angelus: Como Dom Lefebvre pretendia instilar esse apego a Roma, esse espírito romano, em seus seminaristas?
Dom Tissier: Uma vez que a Fraternidade foi fundada, primeiramente em Friburgo e depois em Ecône, a primeira coisa que ele quis fazer foi inaugurar um ano de espiritualidade, que ele não havia recebido em Roma, mas que depois tinha experimentado no noviciado dos Padres do Espírito Santo em Orly. No currículo havia um curso especial intitulado “Os Atos do Magistério”. Esse curso motivava a reflexão sobre os erros modernos e o engajamento na batalha contra eles. O objetivo era alistar os seminaristas, por assim dizer, no combate dos papas contra o liberalismo e o modernismo.
Mas alguns de seus colegas no noviciado realmente não alcançavam o propósito do curso. Para eles, era uma questão de discussão, enfrentamento e vitória intelectual sobre o liberalismo e o modernismo. Mas aquela não era a idéia do arcebispo. Para ele, era uma questão de compreender o espírito com o qual os papas haviam condenado os erros. E esse espírito era o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dom Lefebvre sempre conectava o combate intelectual contra os erros com o combate sobrenatural no nível da graça e, portanto, com Cristo Rei. Tinha sido pelo reinado de Cristo Rei que todos aqueles papas condenaram o modernismo. Então, não se tratava simplesmente de um curso sobre os erros modernos, mas de um comentário sobre os próprios textos das encíclicas dos romanos pontífices sobre esses grandes temas. Porque, apesar de algumas fraquezas em suas políticas, a doutrina desses papas era absolutamente esplêndida e em perfeita continuidade com o constante ensinamento da Igreja.
The Angelus: Roma é a sé do sucessor de São Pedro. Quando a suprema autoridade docente pronuncia algo tão seriamente como nessas encíclicas...
Dom Tissier: Em princípio, é a verdade! Mesmo que todos esses escritos pontifícios não fossem infalíveis, ainda assim o ensinamento do papa era obedecido, recebido com piedade e devoção, com obediência. Mas tenhamos cuidado! Para Dom Lefebvre, a romanità não é meramente: “O Papa falou numa encíclica, então é preciso seguir e obedecer.” A romanità é uma tradição. Uma ruptura seria o fim da romanità. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II foi a morte da romanità. Por isso a morte prematura de dois excelentes padres e teólogos romanos: Mons. Joseph Clifford Fenton, que havia lutado por anos e anos contra os teólogos modernos na década de 1950 na revista American Ecclesiastical Review e escrito seu explosivo diário manuscrito dos quatro anos do Concílio; e padre Alain Berto, um colega de classe de Dom Lefebvre no Seminário Francês de Roma, que havia sido secretário do Coetus durante o Concílio. Ambos não conseguiram aguentar a morte da romanità.
The Angelus: A Fraternidade tem uma casa em Albano, perto de Roma. Como isso veio a acontecer?
Dom Tissier: Dom Lefebvre comprou a propriedade em Albano, que estava esperando por ele e caiu em suas mãos graças a uma doação inesperada. Na noite de sua primeira visita a Albano ele lamentava não ter dinheiro suficiente para a compra. Seu chofer, Rémy Borgeat, lhe disse: “Monseigneur, vá em frente e compre! Preencha o cheque e deixe que São José o assine.” E eis que um benfeitor o convida para jantar, e ele tinha o milhão e meio necessário para comprar a propriedade.
The Angelus: Qual era sua intenção de uso para a propriedade de Albano?
Dom Tissier: O que ele queria fazer com ela? Ele queira que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X tivesse uma presença em Roma, da mesma forma que a Congregação do Espírito Santo tinha. Ele queria proporcionar um ano romano para todos os seus padres. Os padres, após sua ordenação, iriam a Albano para absorver o espírito romano. Eles teriam aulas sobre Roma, sobre o espírito romano, sobre a arqueologia e a história de Roma. E visitariam os monumentos, as igrejas, as relíquias e os papas em Roma.
The Angelus: Então os padres da Fraternidade não são antipapais e sedevacantistas?
Dom Tissier: Longe disso! É justamente o contrário. Dom Lefebvre tinha uma grande devoção pelos papas, mesmo por Pio XI, que havia condenado a Action Française. Mesmo por Paulo VI, o papa da Missa Nova, que suspendeu Dom Lefebvre, o arcebispo tinha um grande respeito.
The Angelus: O que de fato foi feito de Albano?
Dom Tissier: O ano dos padres só existiu mesmo por alguns meses. Em 1976, um pequeno grupo de padres, do qual eu não tive a boa sorte de participar, passou seis meses lá e depois foram enviados para seus ministérios. No fim, o ano dos padres acabou não se efetivando. Em seu lugar, nós tivemos um mês em Roma. Os seminaristas da teologia passariam um mês inteiro em Albano e todos os dias visitariam Roma.
The Angelus: Houve também um seminário estabelecido lá por um tempo, não foi?
Dom Tissier: Ah, sim! Eu havia esquecido! Entre 1978 e 1982, sob a direção do padre Bonneterre, havia dois anos de filosofia em Roma entre o ano de espiritualidade e a teologia em Ecône. Foi muito recompensante para eles.
The Angelus: O mês romano foi benéfico?
Dom Tissier: Eu fiz o meu e tenho memórias muito boas dele. Ficávamos hospedados em Albano e levantávamos todas as manhãs para sair, mas não muito cedo. (Os alemães, mais enérgicos, levantavam uma hora antes de nós.) Nós, franceses, levávamos as coisas com mais leveza; íamos de trem até a Estação Termini e então seguíamos para visitar as grandes basílicas romanas. Visitamos muitas igrejas praticamente desconhecidas com o padre Boivin, para os franceses, e com o padre Klaus Wodsack, para os alemães. Obviamente não seguíamos os mesmos itinerários, já que não tínhamos os mesmos interesses. Para o padre Wodsack, o objetivo era mostrar a influência dos imperadores do Sacro Império Romano, e para o padre Boivin, era mostrar o papel dos reis da França.
The Angelus: Os seminaristas obtiveram algum benefício?
Dom Tissier: Sim, de fato. Agora nossos jovens padres são capazes de liderar nossos fiéis na peregrinação a Roma e passar para eles algo do espírito romano — a romanità.
[Nota da Permanência: Publicamos abaixo um importante texto escrito outrora pelo então Pe. Rifán. Nele, sessenta e duas razões são dadas explicando porque, em consciência, não podemos assistir à Missa Nova (também conhecida por Missa do Papa Paulo VI) seja no vernáculo ou em latim. Muito embora o autor tenha variado de pensamento, elas mantém todo o seu valor]
1. Porque a Nova Missa não é uma profissão inequívoca de Fé católica (como a Missa Tradicional), é ambígua e protestante. Portanto, dado que rezamos de acordo com o que cremos, é natural que não possamos rezar com a Missa Nova na maneira protestante e ainda crer como Católicos!
2. Porque as mudanças não foram apenas pequenas mas de fato envolvem “uma renovação fundamental… uma mudança total… uma nova criação”. (Dom A. Bugnini, co-autor da Missa Nova).
3. Porque a Missa Nova nos leva a pensar que “as verdades podem ser alteradas ou ignoradas sem infidelidade para com aquele sagrado depósito da doutrina ao qual a Fé católica se encontra eternamente ligada”.
4. Porque a Missa Nova representa “um afastamento acentuado da teologia católica da Missa tal como foi formulada na Sessão XXII do Concílio de Trento”, o qual, ao estabelecer os “cânones”, forneceu uma “barreira insuperável contra qualquer heresia que atacasse a integridade do Mistério”.
5. Porque a diferença entre as duas Missas não reside simplesmente numa questão de mero pormenor ou apenas numa modificação de cerimônia, mas “tudo que é de valor perene recebe apenas um lugar de menor importância (na Missa Nova), mesmo que subsista”.
6. Porque “Reformas recentes têm mostrado plenamente que novas mudanças na liturgia não podem levar a nada, exceto a um completo desnorteamento dos fiéis, que já evidenciam sinais de ânsia e afrouxamento de fé”.
7. Porque em tempos de confusão tais como os que agora vivemos, somos guiados pelas palavras de Nosso Senhor: “Pelos seus frutos os conhecereis”. Os frutos na Missa Nova são: queda de 30% na assistência à Missa de domingo nos Estados Unidos (NY Times 24/5/75), declínio de 43% na França (Cardeal Marty), declínio de 50% na Holanda (NY Times, 5/1/76).
8. Porque “entre os melhores elementos do clero o resultado prático (da Missa Nova) é uma agonia de consciência…”.
9. Porque em menos de sete anos após a introdução da Missa Nova, o número de sacerdotes no mundo diminuiu de 413.438 a 243.307 – em quase 50% (Estatística da Santa Sé).
10. Porque “as razões pastorais que são aduzidas em apoio de tão grave ruptura com a tradição… não nos parecem adequadas”.
11. Porque a Missa Nova não manifesta Fé na Real Presença de Nosso Senhor – a Missa tradicional manifesta-a inequivocamente.
12. Porque a Missa Nova confunde a Real Presença de Cristo na Eucaristia com a Sua Presença Mística entre nós (aproximando-se à doutrina protestante).
13. Porque a Missa Nova torna indistinta o que deveria ser uma diferença bem definida entre o sacerdócio HIERÁRQUICO e o sacerdócio comum do povo (tal como o faz o protestantismo).
14. Porque a Missa Nova favorece a teoria herética que é a Fé do povo e não as palavras do sacerdote que torna presente Cristo na Eucaristia.
15. Porque a inserção da “Prece dos Fiéis” luterana na Missa Nova acompanha e expõe o erro protestante de todas as pessoas serem sacerdotes.
16. Porque a Missa Nova elimina o Confiteor do sacerdote, tornando-o coletivo com o povo, deste modo promovendo a recusa de Lutero em aceitar o preceito católico – que o sacerdote é juiz, testemunha e intercessor com Deus.
17. Porque a Missa Nova dá-nos a entender que o povo concelebra com o sacerdote – o que vai contra a teologia católica.
18. Porque seis ministros protestantes colaboraram na confecção da Missa Nova.
19. Porque, da mesma maneira que Lutero eliminou o Ofertório – visto que muito claramente exprime o caráter sacrifical e propiciatório da Missa – igualmente a Missa Nova cancelou-o, reduzindo-o a uma mera Preparação das Ofertas.
20. Porque uma parte importante da teologia católica foi afastada a fim de permitir aos Protestantes, embora mantendo a sua antipatia pela verdadeira Igreja Católico-Romana, utilizar o texto da Missa Nova sem dificuldade. O ministro protestante Thurian disse que um fruto da Missa Nova “será talvez que as comunidades não católicas poderão celebrar a Ceia do Senhor enquanto empregam as mesmas preces que as da Igreja Católica.” (La Croix 30/4/69).
21. Porque a maneira narrativa da Consagração na Missa Nova infere que é apenas in memoriam, e não um verdadeiro sacrifício (tese protestante).
22. Porque, através de omissões graves, a Missa Nova leva-nos a crer que é somente uma refeição (doutrina protestante) e não um sacrifício pela remissão dos pecados (doutrina católica).
23. Porque tais mudanças como: mesa em vez de altar, (o sacerdote) o padre voltado para o povo em vez de para o Tabernáculo, Comunhão na mão, etc., dão ênfase a doutrinas protestantes (p.e. a Missa é apenas uma refeição, o sacerdote somente um presidente da assembléia, etc.).
24. Porque os próprios Protestantes têm dito que “As novas preces católicas de Eucaristia abandonaram a falsa perspectiva de um sacrifício oferecido a Deus.” (La Croix 10/12/69).
25. Porque enfrentamos um dilema: ou ficamos protestantizados por assistirmos à Missa Nova, ou preservamos a nossa Fé católica, aderindo fielmente à Missa Tradicional de todos os Tempos.
26. Porque a Missa Nova foi idealizada de acordo com a definição protestante da Missa: “A Ceia do Senhor ou Missa é uma sagrada sinaxe ou assembléia do povo de Deus que se reúne sob a presidência do sacerdote a fim de celebrar o memorial do Senhor.” (Par. 7 Introd. ao novo Missal, definido a Missa Nova, 6/4/69).
27. Porque, por meio de ambigüidades, a Missa Nova pretende agradar aos Católicos enquanto agrada aos Protestantes: é portanto um instrumento de “duas línguas” e ofensivo a Deus, porque Ele detesta qualquer espécie de hipocrisia. “Malditos sejam… os de dupla língua, porque destroem a paz de muitos.” (Sirach 28;13).
28. Porque belos e familiares hinos Católicos que durante séculos inspiraram as pessoas foram tirados para fora, sendo substituídos por novos hinos com um sentimento fortemente protestante, assim reforçando ainda mais a impressão clara que não se assiste a uma função católica.
29. Porque a Missa Nova contém ambigüidades que sutilmente favorecem a heresia, sendo isto mais perigoso do que se fosse abertamente herética, dado que uma meia-heresia assemelha-se a uma meia verdade!
30. Porque Cristo tem apenas uma Esposa, a Igreja Católica e o seu serviço de adoração não pode ao mesmo tempo servir também religiões que são inimigos dela.
31. Porque a Missa Nova acompanha a forma da Missa herética anglicana de Cranmer, e os métodos empregados para a sua promoção seguem precisamente os métodos dos heréticos ingleses.
32. Porque a Santa Madre Igreja canonizou numerosos mártires ingleses que foram mortos porque recusaram participar numa Missa como é a Missa Nova!
33. Porque Protestantes que se converteram à Fé católica ficam escandalizados quando vêem que a Missa Nova é igual àquela em que participaram enquanto Protestantes. Um deles, Julien Green, pergunta “Por que convertermo-nos?”.
34. Porque a estatística demonstra que houve um grande declínio nas conversões ao catolicismo após a introdução da Missa Nova. As conversões, que tinham atingido 100.000 por ano nos Estados Unidos, diminuíram até menos de 10.000!
35. Porque a Missa Tradicional forjou muitos santos. “Inúmeros santos foram alimentados por ela com a devida piedade para com Deus…” (Papa Paulo VI, Const. Apost. Missale Romanum).
36. Porque a natureza da Missa nova é tal que facilita profanações da Sagrada Eucaristia, ocorrendo estas com uma freqüência que com a Missa Tradicional era inconcebível.
37. Porque a Missa Nova, não obstante as aparências, veicula uma nova Fé, e não a Fé católica. Veicula o modernismo e acompanha exatamente as táticas do modernismo, utilizando uma terminologia vaga a fim de insinuar e fazer progredir o erro.
38. Porque, introduzindo variações opcionais, a Missa Nova mina a unidade da liturgia, sendo cada sacerdote suscetível de se desviar de acordo com os seus caprichos, sob o disfarce de criatividade.
39. Porque muitos bons teólogos, canonistas e sacerdotes católicos não aceitam a Missa Nova, afirmando que não são capazes de celebrá-la em boa consciência.
40. Porque a Missa Nova eliminou tais coisas como: genuflexões (ficam apenas três), purificação dos dedos do sacerdote no cálice, nenhum contato profano dos dedos do sacerdote após a Consagração, pedra do altar e relíquias sagradas, três toalhas de altar (reduzidos a somente uma), tudo “servindo apenas para salientar quão ultrajantemente a fé no dogma da Real Presença é implicitamente repudiada.”
41. Porque a Missa Tradicional, enriquecida e madurecida por séculos de Sagrada Tradição, foi codificada (e não inventada) por um Papa que era um Santo, Pio V; enquanto a Missa Nova foi artificialmente fabricada.
42. Porque os erros da Missa Nova, acentuados na versão vernacular, estão mesmo presentes no texto latino da Missa Nova.
43. Porque a Missa Nova, com a sua ambigüidade e permissividade, expõe-nos à ira de Deus porque facilita o risco de celebrações inválidas. "Consagrarão validamente os sacerdotes num futuro próximo que não receberam a formação tradicional, e que fiam no Novus Ordo com a intenção de ‘fazer o que faz a Igreja?" São-nos lícitas certas dúvidas.
44. Porque a abolição da Missa Tradicional lembra-nos da profecia de Daniel 8,12: “E foi-lhe dado poder contra o sacrifício perpétuo por causa dos pecados do povo” e a observação de Santo Afonso de Ligório que sendo a Missa a melhor e mais bela coisa que existe na Igreja aqui na terra, o diabo sempre se esforçou através de hereges de privar-nos dela.
45. Porque nos lugares onde a Missa tradicional é mantida, a fé a o fervor do povo são maiores, enquanto o contrário verifica-se onde reina a Missa Nova. (Relatório sobre a Missa, Diocese de Campos, ROMA, Buenos Aires §69, 8/81).
46. Porque junto com a Missa Nova há uma nova catequese, uma nova moralidade, novas preces, novas idéias, um novo calendário – em suma, uma Nova Igreja, uma total revolução da antiga. “A reforma litúrgica… não se enganem, eis onde começa a revolução.” (Dom Dwyer, Arcebispo de Birmingham, porta-voz do Sínodo Episcopal).
47. Porque a própria beleza intrínseca da Missa Tradicional atrai almas; enquanto a Missa Nova, na falta de qualquer atrativo próprio, tem que inventar novidades e diversões a fim de apelar ao povo.
48. Porque a Missa Nova incorpora numerosos erros condenados pelo Papa São Pio V no Concílio de Trento (Missa inteiramente em vernáculo, as palavras de Consagração ditas em voz alta, etc. Vide Condenação do Sínodo Jansenista de Pistoia), e erros condenados pelo Papa Pio XII (p.e. altar em forma de mesa. Vide Mediator Dei).
49. Porque a Missa Nova quer transformar a Igreja Católica numa igreja nova e ecumênica que abranja todas as ideologias, todas as religiões – certas e erradas, verdade e erro; objetivo há muito ansiado pelos inimigos da Igreja Católica.
50. Porque a Missa Nova, ao remover as saudações e a bênção final quando o sacerdote celebra sozinho, mostra uma falta de crença na Comunhão dos Santos.
51. Porque o altar e o Tabernáculo agora se encontram separados, assinalando deste modo uma divisão entre Cristo e o Seu sacerdote e Sacrifício no altar, de Cristo na Sua Real Presença no Tabernáculo, duas coisas que, pela própria natureza, devem ficar juntas. (PIO XII).
52. Porque a Missa Nova já não constitui um culto vertical do homem a Deus, mas um culto horizontal entre os homens.
53. Porque a Missa Nova, embora pareça conformar-se às provisões do Concílio Vaticano II, na realidade se opõe às suas instruções, dado que o Concílio proclamou o desejo de conservar e promover o rito tradicional.
54. Porque a Missa Latina tradicional do Papa São Pio V nunca foi legalmente revogada e portanto permanece um autêntico rito da Igreja Católica por meio da qual os Católicos podem cumprir a sua obrigação dominical.
55. Porque o Papa São Pio V concedeu um indulto perpétuo, válido “para sempre”, para se celebrar a Missa Tradicional livre e licitamente, sem escrúpulo de consciência, sentença ou censura (Bula Papal ‘Quo Primum’).
56. Porque o próprio Papa Paulo VI, ao promulgar a Missa Nova, declarou que “O rito em si NÃO é uma definição dogmática…” (19/11/69).
57. Porque o Papa Paulo VI, quando lhe perguntou o Cardeal Heenan da Inglaterra se revogava ou proibia a Missa Tridentina, respondeu: “Não é a minha intenção de proibir absolutamente a Missa Tridentina”.
58. Porque “no Libera Nos da Missa Nova, a Santíssima Virgem, os Apóstolos e todos os Santos já não são mencionados; a Ela e a eles assim já não se pede a intercessão, mesmo em tempo de perigo.”
59. Porque em nenhuma das três novas Preces Eucarísticas (da Missa Nova) existe referência alguma… ao estado de sofrimento dos que faleceram, em nenhuma há a possibilidade de um particular Memento”, assim minando a fé na natureza redentora do Sacrifício.”
60. Porque muito embora reconheçamos a autoridade suprema do Santo Padre no seu governo universal da Santa Madre Igreja, sabemos que mesmo esta autoridade não nos pode impor uma prática que é tão CLARAMENTE contra a Fé: uma Missa que é equívoca e favorecedora da heresia por isso desagradável a Deus.
61. Porque, como consta no Concílio Vaticano I, “não se prometeu aos sucessores de Pedro o Espírito Santo, a fim de que pela Sua revelação pudessem fazer uma nova doutrina, mas sim a fim de com o Seu auxílio pudessem inviolavelmente manter e fielmente expor a revelação ou o depósito de fé entregue através do Apóstolos.” (D.S. 3070).
62. Porque a heresia, ou qualquer coisa que favoreça a heresia, não pode constituir matéria de obediência. A obediência fica ao serviço da Fé e não é a Fé que fica ao serviço da obediência! No caso precedente, então, “Deve-se obedecer antes a Deus que aos homens”. (Atos dos Apóstolos, 5, 29).