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Crise da Igreja (242)

Sermão - XI domingo depois de Pentecostes

Sermão de Dom Alfonso de Galarreta

Missa Pontifical, XI Domingo depois de Pentecostes

Capela Nossa Senhora da Conceição, Niterói – RJ

 

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, Amém.

Queridos Padres, queridos fiéis, infelizmente não sou capaz de pregar-lhes em português, de maneira que o farei em espanhol, com o cuidado de falar lentamente, e exercitando a paciência dos senhores.

A epístola deste domingo é tirada da primeira carta do Apóstolo São Paulo aos Coríntios, e contém admiravelmente o sentido e a definição do que é a Tradição. São Paulo diz aos Coríntios: “Lembro-vos o Evangelho que vos preguei, que vós recebestes, no qual estais firmes, e através do qual vos haveis de salvar, se o guardardes tal como vos preguei.” E imediatamente acrescenta: “Transmiti-vos o que recebi, que Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, que foi sepultado e ressuscitou segundo as Escrituras, que foi visto pelos Apóstolos”, que são as testemunhas que nos transmitem a fé e a Tradição.

E nessa mesma epístola, alguns capítulos antes, o apóstolo usa a mesma expressão, referindo-se à instituição do Santo Sacrifício da Missa. Ele diz aos Coríntios: “Recebi do Senhor Jesus o que vos transmiti.” E lhes dá então o relato da Santíssima Eucaristia, na Quinta-Feira Santa. Isto é precisamente a Tradição, é a transmissão e a recepção da verdadeira Fé, do verdadeiro culto, que temos de guardar se quisermos ser salvos.

E aí está esclarecido todo o problema da crise da Fé, e da crise da Igreja, porque o problema é que vivemos um processo profundo de ruptura com essa Tradição, de Fé, de culto, que nos vem do Senhor Jesus, de Nosso Senhor Jesus Cristo, através do Magistério constante a ininterrupto da Santa Igreja, dos Doutores, dos Santos, dos Santos Padres da Igreja, de toda uma plêiade de santos e de bispos, e de nossos ancestrais, de pais para filhos.

E São Paulo está muito consciente, anunciando-o várias vezes, que “virão tempos em que muitos apostatarão da verdadeira Fé, e aderirão a um espírito de erro, e a doutrinas dos demônios”, assim diz ele. E o farão porque não têm o amor da verdade, porque não amam a verdade, porque não obram a santificação de acordo com esta verdade, e porque, com prurido em seus ouvidos, afastam-se da verdade e aderem a fábulas de homens. E isto é o que estamos vivendo, desgraçadamente, na Igreja. Afastam-se da verdade, da Tradição, e aderem a uma série de fábulas hiper-sofisticadas que ninguém entende e que, sim, são mesmo evolutivas. A verdade divina não evolui, é permanente, “Veritas Domini manet in aeternum – A verdade do Senhor permanece eternamente”, mas a mentira, sim, é multiforme, e evolui sem parar.

Nesse sentido assistimos a um agravamento da situação na Santa Igreja, porque vamos chegando às conclusões mais extremas, aos frutos mais amargos destes falsos princípios. E vai se completando, por assim dizer, esta reforma modernista da Igreja Católica, segundo o pensamento moderno, do homem moderno. E atualmente assistimos a um recrudescimento da perseguição ao culto de sempre, à Missa chamada de São Pio V, que é a Missa de sempre, a Missa Tridentina de São Pio V. E vemos que há como um assalto aos últimos bastiões que ficaram ainda intactos, por exemplo, da ordem moral.

Nesta passagem em que São Paulo trata da Eucaristia, ele diz claramente que não se pode comungar deste Corpo e Sangue de Cristo estando em pecado mortal. Pois agora está permitido! O que dizer da aceitação de todas as desordens que vão se impondo à nossa sociedade, que são das mais torpes que existem, coisas contrárias à própria natureza?! E há uma aceitação crescente e uma tolerância - e uma justificação! – da parte de muitos homens da Igreja, e as vezes da parte de conferências episcopais inteiras.

E alguns Papas precedentes, tendo uma dívida com este pensamento modernista que triunfou no concílio, não se atreveram, graças a Deus, a irem contra esta ordem moral, matrimonial e sacramental. Esta barreira agora desapareceu. E até onde chegaremos, não se sabe. Porque justificando isto, o que é que não se pode justificar? Já que todo o resto é, relativamente, menos mau.

É um processo revolucionário que destrói absolutamente todo o dogma cristão, na Fé, no culto, a moral, os preceitos e mandamentos de Deus inscritos, inclusive, na natureza do homem, e ainda por cima, algo que os Papas precedentes tampouco ousaram tocar, destrói a constituição sacerdotal e hierárquica da Igreja Católica. Autoridades que são anticlericais! Que são anti-romanas, que destroem e vão demolindo a própria autoridade sacerdotal, episcopal, pontifical, a romanidade da Igreja. A Igreja está fundada sobre Pedro, que deve confirmar seus irmãos na Fé, e não semear a confusão e o erro. Mas é o que estamos vivendo, é patente, e é uma conclusão lógica dos princípios que se assentaram já, fazem 50 anos. Há uma vontade de introduzir na Igreja, contra o que foi instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo Ele mesmo, um espírito democrático, mas de democracia liberal, igualitária e não-discriminatória, é claro.

Neste processo, vemo-nos com este famoso sínodo, que já se concluiu no nível paroquial e no nível episcopal, e cujas conclusões são de deixar qualquer um estupefato, atônito, diante destas conclusões que eles estão tirando e das mudanças que estão pedindo. Teremos no ano que vem, em outubro, o sínodo dos sínodos, e veremos quais conclusões serão impostas a toda a Igreja. Mas este processo, por si só, já está destruindo a constituição hierárquica e sacerdotal da Igreja. É um processo revolucionário. Como disse o Sumo Pontífice há pouco tempo, a Igreja, a hierarquia é como uma pirâmide... para ele, é preciso, virar de cabeça para baixo a pirâmide, ou seja, dar o governo ao povo, e porem- -se todos à escuta do povo, que é infalível. Povo cuja Fé eles corromperam durante 50 anos, e que não sabe nem o que é a Fé católica. Este é quem vamos escutar para que nos diga o que é católico e como deve funcionar a Igreja conforme a este mundo, ao espírito deste mundo, e este é o processo que estamos vendo na Igreja.

No meio, então, desta situação, estão as circunstâncias em que devemos viver neste mundo, sobre as quais não vou estender-me, mas com tudo isso da famosa “pandemia”, e de todas as medidas que tomaram, com toda esta tensão, confusão e impedimento para exercício do culto, para participar no culto, para o ministério sacerdotal, e com a introdução de sistemas muito aperfeiçoados de supervisão, controle e vigilância... de perseguição. E, no entanto, nestes dois últimos anos – e isto é o que na realidade eu queria contar – há um crescimento na Tradição como nunca foi visto. Quando menos foi possível fazer, é então que há mais frutos! Muitíssima gente de boa-fé, a parte mais sã da Igreja que podemos chamar de oficial, volve-se à Tradição, e muitas vezes inclusive, vem para a Fraternidade. E são fenômenos universais, no mundo todo, admiráveis. Há priorados em que passamos de 80 pessoas para 400, em dois anos, outros de 400 para 1000, e assim poderia dar-lhes muitos casos. Há um crescimento das vocações, sacerdotais, religiosas, em todas as congregações da Tradição. Há famílias inteiras que voltam e passam, por assim dizer, para a Tradição.

Quer dizer que, ao mesmo tempo, vivemos um momento de graça. Isto deve encher-nos de confiança, porque isto é uma prova de que Deus permite os males, sempre, tendo em vista outros bens, bens que são maiores que os impedidos pelos males. Deus quer diretamente o bem, ou permite os males, porque nada lhe escapa. Não é que haja algo que escape à Providência, que é infalível e onipotente, mas sim que Deus ordena tudo para o bem de sua Igreja e ao bem dos eleitos. Isto é o que palpamos. A cruz é o que dá fecundidade na vida espiritual, na vida da Igreja. As provas e perseguições, Deus as permite, sempre, para dar-nos graças, dons e bens. Simplesmente temos de ter a Fé, para buscar e nos dispor para receber estes bens que Deus ordena àqueles que O amam.

São Paulo diz: “Tudo coopera para o bem dos que amam a Deus.” Epístola aos Romanos, no maravilhoso capítulo oitavo, Deus faz com que tudo concorra para o bem dos que o amam, e Santo Agostinho com Santo Tomás dizem: “Inclusive, inclusive os pecados.” Os nossos pecados e até os pecados de outra pessoa, deus os ordena, se O amamos ou voltamos ao seu amor, esta é a condição, Deus ordena tudo ao nosso bem.

Então, temos de ter um espírito sobrenatural, e ver em tudo esta ação da Providência, que em toda a cruz, pequena ou grande, uma doença, um sofrimento, um problema familiar, social, político, mundial, eclesiástico, Deus permite absolutamente tudo para um bem maior que o impedido.

Então toda esta mesma crise da Igreja, Deus a está permitindo tendo em vista alguns bens, claro, não sempre dos mesmos que sofrem os males, mas o bem dos eleitos e daqueles que amam a Deus, esta é a condição da nossa parte, permanecer no amor que Deus tem para conosco, permanecer no amor de Jesus Cristo como Ele nos disse. Permanecemos enquanto O amamos, e ao amá-lo cumprimos sua vontade, porque poder cumprir a vontade, os mandamentos e os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma consequência do amor que lhe temos, não é a causa, é a consequência. Não significa que amo a Deus por que guardo os mandamentos, mas guardo os mandamentos na medida em que amo a Deus, em que amo a Jesus Cristo. E se permaneço neste amor, São Paulo diz: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” Não há nada a temer. E acrescenta: “Absolutamente nada pode separar-nos do amor de Cristo.” Do amor de Cristo por nós.

E considerando todas as coisas que existem e por existir que poderiam romper este amor manifestado na cruz, de Deus para conosco, ele diz: “Nada, absolutamente nada, e nenhuma criatura, pode separar-nos do amor de Deus, manifestado em Cristo Jesus.” Precisamos crer neste amor, como diz São João: “Credidimus caritati - Cremos neste amor”. Mas devemos, além disso, confiar e esperar neste amor de Deus, sabendo que todo o mal que Deus permite, inclusive em nossa vida pessoal e privada, até a menor dificuldade, Deus o permita em vista de um bem, que é preciso saber buscar, e ao qual é preciso saber dispor-se, mediante a Fé, a Esperança e a Caridade, é a vida teologal, que nos ordena a Deus.

Amanhã celebraremos a festa do Imaculado Coração de Maria, e verão que a epístola foi tirada do livro da Sabedoria, e indica de maneira admirável e maravilhosa, qual é o ofício da Santíssima Virgem com respeito a nós na ordem espiritual. Para com cada um de nós, e para com a própria Igreja.

“Eu sou a mãe do belo amor, do temor, do conhecimento e da santa esperança.” A Santíssima Virgem nos engendra a esta vida sobrenatural e teologal, e é a Mãe, em nós, da Caridade, do belo amor, isto é, de uma caridade e um amor puros, totais, íntegros, sacrificados, entregues. Do temor de Deus, que inspirado pela caridade não é um temor servil, não somos escravos, somos filhos, e Deus é um Pai, providente, mas é Deus, ao qual devemos respeitar... e temer! E devemos temer perde-lo. Mãe do conhecimento, isto é, da sabedoria, da inteligência, da Fé, pela qual acedemos a este conhecimento de Deus, dos mistérios de Deus, dos mistérios sobrenaturais, dos mistérios de graça, dos mistérios de glória, Mãe do conhecimento. E Mãe da santa esperança, ou seja, de uma esperança que não tem uma mira puramente terrestre e humana, mas sobrenatural e eterna, esta é a santa esperança, e uma santa esperança que é inquebrantável, que não duvida, precisamente, deste cuidado infalível da providência do nosso Pai dos céus.

A epístola continua e atribui outros frutos à Santíssima Virgem: “Em mim está toda a graça da doutrina e da verdade.” A doutrina espiritual, a doutrina da vida, e a verdade que é de conhecer qual é a vontade de Deus em minha vida. “Em mim está toda a esperança de vida e de virtude.” Quer dizer, da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Deus, a vida da graça. E as virtudes, são as virtudes sobrenaturais. “Vinde a mim todos os que me desejais, e saciai-vos de meus frutos, meu espírito é mais doce do que o mel.” Não somente a alma da Santíssima Virgem é cheia de frutos, mas é ainda doce, consoladora. “O meu espírito é mais doce do que o mel e o possuir-me é mais doce que o mel e que o favo de mel.” E logo termina-se esta epístola dizendo: “Aquele que me escuta não será confundido.” E como precisamos nestes tempos, justamente cheios de confusão, de não sermos confundidos. “Aquele que me escuta não será confundido, quem obra por mim não pecará, e quem me torna conhecida, alcançará a vida eterna.” Quer dizer, temos de recorrer à Virgem, como à nossa Mãe na ordem da graça, em toda esta ordem, e buscar nela estes bens, porque Ela é nossa Mãe, porque é Medianeira universal. Mas também temos de ser servidores, vassalos e apóstolos do Coração de Maria e da Santíssima Virgem, para que ela assim, desta maneira, seja o caminho que nos conduza até Nosso Senhor Jesus Cristo, e até Deus.

 

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém

Devemos fazer proselitismo?

Pe. Bernard de Lacoste, FSSPX

 

O Papa Francisco frequentemente e com muita energia condena o proselitismo dos católicos. Esse tema volta e meia reaparece nos seus comunicados orais e escritos. Por que uma tal insistência? Qual é a doutrina católica nessa matéria?

 

1. O sentido da palavra proselitismo

O termo deriva de “prosélito”, que etimologicamente significa “recém vindo a um país estrangeiro”. Essa palavra é usada na Bíblia para designar os gentios ou não-judeus que viviam de modo estável com o povo de Israel, e tinham o propósito de entrar na Aliança e observar a lei de Moisés. Daí, passou para a linguagem cristã. O proselitismo é a atitude daqueles que buscam converter os demais para a sua fé. Nos nossos dias, o termo adquiriu uma conotação negativa e designa um comportamento frequentemente agressivo, desprovido de respeito pelos outros. É assimilado a uma propaganda intempestiva e mesmo a uma certa violência destinada a fazer novos adeptos. O uso corrente da palavra nos leva a fazer as distinções seguintes:

Quanto ao modo, é preciso distinguir um bom proselitismo, que usa da mansidão e busca convencer respeitando a liberdade do interlocutor; e o mau proselitismo, agressivo, violento e ameaçador.

Quanto ao fim procurado, deve-se distinguir entre o proselitismo louvável, que visa o bem da pessoa; e o condenável, que procura explorar o próximo em proveito de uma seita.

É evidente que os dois significados negativos do termo (quanto ao modo e quanto ao fim) não correspondem ao espírito católico. Todo católico deve rejeitar esses proselitismos. O espírito missionário se inspira na caridade teologal e rejeita a agressividade sectária.

Mas, para além dessa conotação pejorativa, compreendido como uma simples tentativa de convencer alguém a se tornar católico, com o recurso de argumentos racionais; esse comportamento é católico? O Papa Francisco responde negativamente, como demonstram as citações abaixo.

 

2. O que diz o Papa Francisco

No avião, retornando de Bangladesh, no dia 2 de dezembro de 2017, o papa disse: “A paz começa a se romper neste campo quando começa o proselitismo. E existem tantos modos de proselitismo. Isto não é Evangelho”[1].

Durante as Jornada Mundial da Juventude, na Cracóvia, um jovem o interrogou sobre a conduta que deveria ter com um bom amigo ateu, “o que devo fazer para mudá-lo, para convertê-lo?”. O papa respondeu-lhe prontamente: “A última coisa que tu deves fazer é dizer algo. Tu vives o Evangelho e se ele te perguntar porque fazes isto, podes explicar a ele porque o fazes e deixe que o Espírito Santo o atraia”[2] A conversão só pode vir da “força e da mansidão do Espírito Santo”, e não de uma tentativa de “convencer mentalmente, com apologética, razão”.

O Papa Francisco declarou também, na Conferência de Imprensa de 21 de junho de 2018: “no movimento ecumênico, devemos tirar do dicionário uma palavra – proselitismo. É claro? Não pode haver ecumenismo com proselitismo, é preciso escolher: ou és de espírito ecumênico, ou és um ‘proselitista’”[3].

Do mesmo modo, em Marrocos, 31 de março de 2019: “Os caminhos da missão não passam pelo proselitismo, que sempre leva a um beco sem saída [...] A Igreja cresce não por proselitismo, mas por testemunho”[4].

No seu discurso de maio de 2019, o papa alertou para uma confusão possível entre evangelização e proselitismo. “Evangelização é testemunho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado. É Ele quem atrai [...] Não é procurar novos sócios para esta “sociedade católica”, não, é mostrar Jesus; que Ele se mostre na minha pessoa, no meu comportamento; e abrir espaços a Jesus com a minha vida.”[5]

A evangelização liberta, enquanto o proselitismo faz perder a liberdade, afirmou o papa em setembro do mesmo ano[6].

Não se trata de um ensinamento novo. Bento XVI, numa homilia de 13 de março de 2007, no Brasil, disse: “A Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por ‘atração’: como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu amor, que culminou no sacrifício da Cruz, assim a Igreja cumpre a sua missão na medida em que, associada a Cristo, cumpre a sua obra conformando-se em espírito e concretamente com a caridade do seu Senhor”[7].

Em 1986, João Paulo II se dirigia nesses termos aos participantes de um colóquio teológico judaico-cristão: “Vosso colóquio pode ajudar a evitar o erro do sincretismo, a confusão da nossa identidade recíproca de crentes, a sombra e suspeição de proselitismo. Efetivamente, levais adiante as perspectivas do Concílio Vaticano Secundo, que também tem sido o tema dos documentos posteriores da Comissão da Santa Sé pelas relações religiosas com o judaísmo”[8]. Também escreveu em 28 de junho de 2003: “Ao mesmo tempo, desejo uma vez mais asseverar aos pastores, aos irmãos e irmãs das Igrejas Ortodoxas que a nova evangelização não deve de modo algum ser confundida com o proselitismo, sem com isto negar o dever do respeito da verdade, liberdade e dignidade de cada pessoa”[9].

Essas citações mostram que o Papa Francisco, na mesma linha dos seus dois predecessores, não se opõe à evangelização. Ele encoraja mesmo os católicos a serem missionários, como se lê em Evangelii Gaudium (cap. 5), mas compreende o termo evangelização em sentido restrito: mostrar o exemplo de vida católica, ser um testemunho do Evangelho por seu comportamento. Em revanche, não quer que os católicos lancem mão de argumentos para convencer os não-católicos a abraçarem o catolicismo. Em outros termos, se alguém quer se converter ao catolicismo, o processo tem de ser espontâneo, sem que algum católico o tenha ocasionado por meio de uma discussão. O uso da apologética para favorecer uma conversão é condenado.

Assinalemos que o Papa João Paulo II foi mais longe ao condenar não apenas a tentativa de conversão por meio de argumentos apologéticos, mas mesmo toda a tentativa de conversão no que concerne os judeus: “Cada uma de nossas religiões [católica e judia], na plena consciência dos laços que as unem, e em primeiro lugar aquele laço de que fala o Concílio, quer ser reconhecida e respeitada na sua identidade própria, para além de todo sincretismo e de toda apropriação equívoca”[10]. Diz ainda aos judeus: “Sim, por meio da minha voz, a Igreja Católica, fiel ao que o Segundo Concílio Ecumênico do Vaticano declarou, reconhece o valor do testemunho religioso do vosso povo”[11]. “Será necessário precisar, sobretudo para aqueles que se mantém céticos, e até mesmo hostis, que esta aproximação não há de confundir-se com certo relativismo religioso e menos ainda com uma perda da identidade? [...] Deus conceda aos cristãos e aos judeus encontrarem-se mais, realizarem trocas em profundidade e a partir da identidade de uns e de outros, sem nunca a obscurecerem de nenhum lado, mas procurando verdadeiramente a vontade de Deus que se revelou!”[12]

Bento XVI diz exatamente a mesma coisa aos judeus: “mesmo nos aspectos que, em virtude da nossa íntima convicção de fé, nos distinguem uns dos outros aliás, de forma específica em tais aspectos devemos respeitar-nos e amar-nos reciprocamente”[13].

 

3. Aplicação prática

Esse ensinamento dos papas recentes não ficou apenas na teoria. Foi posto em prática no apostolado. Já em 1993, os representantes da Igreja católica se comprometeram a não procurar a conversão dos cismáticos ortodoxos. Eis o que a Santa Sé assinou nos acordos de Balamand (no. 22): “Nós o rejeitamos [o uniatismo] como método de procura da unidade. (...) A ação pastoral da Igreja católica, quer latina, quer oriental, não procura mais fazer com que os fiéis passem de uma Igreja à outra; em outras palavras, não visa mais o proselitismo entre os ortodoxos. Visa responder às necessidades espirituais dos seus próprios fiéis e não tem nenhuma vontade de expansão às custas da Igreja ortodoxa”[14].

A mesma prática foi ensinada com respeito aos judeus: não se deve mais buscar convertê-los ao catolicismo. É o que lemos no documento da Comissão pelas relações religiosas com o judaísmo, datado de 10 de dezembro de 2015: “A Igreja católica não conduz e não promove nenhuma ação missionária institucional específica em direção dos judeus”[15].

Está claro: ainda que haja um testemunho, não é para converter.

 

4. Uma insistência impressionante

Se proselitismo é algo bem comum entre os muçulmanos ou entre as seitas, não é entre os católicos do século XXI, donde uma legítima interrogação sobre a pertinência das proposições do papa. O vaticanista Sandro Magister observa com exatidão: “Se por ‘proselitismo’, o Papa Francisco entende uma atividade missionária exercida de modo exagerado, forçado, que se mediria pelo número de novos batizados, onde terá ele encontrado algo do tipo para classificar como um real ‘perigo’ ‘ressurgindo’ no seio da Igreja católica? Mistério. Porque, se há uma realidade incontestável na Igreja desses últimos cinquenta anos, não é o excesso, mas antes o colapso do esforço missionário.”

 

5. Um ensinamento que não é católico

O termo proselitismo não é usado habitualmente na Igreja. Fala-se antes em espírito missionário ou apostolado. Mas, se considerarmos a realidade designada por essa palavra, é fácil constatar que o proselitismo foi praticado por muitos santos. Pensemos, por exemplo, no século II d.C., em São Justino, espírito aberto e conhecedor das filosofias do seu tempo. Após sua conversão ao cristianismo, usou de toda a sua energia, pela palavra e pela pluma, para converter os não-cristãos, notadamente os judeus, à religião de Cristo. Basta ler o seu Diálogo com o judeu Trifão para constatar com que ardor argumenta a fim de convencer que apenas a religião católica é a verdadeira. Ele foi detido em Roma por seu proselitismo e executado no ano 166, pois não queria renegar a sua fé. Mencionemos também São Francisco de Sales que, por seu proselitismo, converteu a quase totalidade da província do Chablais, que era protestante, ao catolicismo. E que dizer dos santos Martinho, Bonifácio, São Francisco Xavier, Pedro Canísio, Josaphat etc? Conta-se que São Domingos, em 1204, foi confrontado no Languedoc com a heresia albigense. Sentia-se tomado de uma profunda compaixão por aquelas almas abusadas, que marchavam para a perdição eterna. Uma noite, numa hospedaria de Toulouse, compreendeu que o estalajadeiro era cátaro. “Domingos soube consertar essas inconsequências e confusões. Com força, discutiu sem fraquejar. Com amor, soube persuadir. O homem não pôde resistir ao Espírito que falava por aquela boca de tanta convicção. Ao raiar do dia, aceitou a luz. Domingos partiu feliz de ter ganho um irmão, transtornado pelo contato íntimo com a heresia, entusiasmado com esse primeiro sucesso apostólico para além das fronteiras da sua Castela”[16]. É de temer que o Papa Francisco condene o zelo de São Domingos pela conversão das almas.

 

6. O que diz Santo Tomás?

Ao se interrogar sobre os debates públicos entre católicos e hereges, o Doutor Angélico escreve: “Não se deve discutir sobre os artigos da fé, como duvidando deles; mas para manifestar-lhes a verdade e refutar os erros. Por isso é necessário, para a confirmação da fé, disputar às vezes com os infiéis; ora, defendendo a fé, conforme aquilo da Escritura: Sempre aparelhados para responder a todo o que vos pedir razão daquela esperança que há em vós. Ora, para convencer os errados, segundo ainda a Escritura: Para que passa exortar conforme à sã doutrina, e convencer aos que contradizem”[17].

Santo Tomás, eco fiel da Tradição, reconhece aqui a legitimidade da discussão e do debate com o fim de convencer o herege da verdade do catolicismo.

 

7. O que diz o Magistério da Igreja?

O Papa Pio XI em Mortalium ânimos, mostrou que o único ecumenismo católico é aquele que consiste não em um diálogo inter-religioso mutuamente enriquecedor, mas no zelo pelo retorno dos desviados ao único aprisco: “não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.”[18]

E São Pio X escreveu na Carta ao Sillon, em 1910: “... se Jesus foi bom para os transviados e os pecadores, não respeitou suas convicções errôneas por sinceras que parecessem; amou-os a todos para os instruir, converter e salvar”[19].

Esse ensinamento se funda em uma verdade que os papas sempre recordaram, e sobre a qual Pio IX muito insistiu: “Conhecemos perfeitamente o dogma católico, a saber, que fora da Igreja ninguém pode ser salvo”[20]. É essa convicção que levou os apóstolos e, após eles, milhares de católicos, a evangelizar os infiéis, a arriscar suas vidas e mesmo de derramar seu sangue para tirar os desviados dos seus erros e lhes transmitir o ensinamento da Igreja. Tal foi a resposta a ordem de Cristo: “Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei.”[21]

 

8. A fonte desse erro

A recusa de toda forma de proselitismo tem origem nos erros eclesiológicos do concílio vaticano II. Recusando o dogma “Fora da Igreja não há salvação”, os modernistas pretendem que “pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem”[22]. João Paulo II concluiu: “E no Espírito Santo, cada indivíduo, cada povo tornou-se — através da Cruz e da Ressurreição de Cristo — filho de Deus, participante da vida divina e herdeiro da vida eterna”[23]

Ao invés de dizer que a Igreja de Cristo é a Igreja católica, o concílio escreveu que a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja católica[24], deixando entender que a Igreja de Cristo se estenderia para além da Igreja católica, de modo imperfeito, graças aos elementos de Igreja presentes nas outras confissões cristãs. Mencionemos, enfim, essa afirmação inaceitável do concílio: “O espírito de Cristo não se recusa servir-se delas [das Igrejas e comunidades separadas] como meios de salvação”[25].

Esses erros destruíram o espírito missionário. Se é possível salvar-se sem ser católico, para que se dar ao trabalho de buscar converter os infiéis? No máximo, ajudar o homem a tomar consciência da sua dignidade divina.

 

9. Conclusão

Se por proselitismo compreendemos o zelo ardente pela conversão das almas ao catolicismo, esse proselitismo é católico. É o espírito missionário. É o espírito dos apóstolos. É um efeito da caridade para com o próximo. Se o meu próximo está em erro e em vias de danação, farei tudo o que depender de mim para esclarecê-lo e reconduzi-lo ao bom caminho. Para tanto, rezarei por ele, darei bom exemplo e mesmo, ainda que desagrade ao Papa Francisco, buscarei falar-lhe e tentar convencer-lhe, com delicadeza e prudência, de que Cristo fundou uma única religião, fora da qual não há salvação.

 

(Courrier de Rome, nov/2021 - Tradução: Pemanência)

 


[2] Ibidem.

[10] Anzitutto, ciascuna delle nostre religioni, nella piena consapevolezza dei molti legami che la uniscono all’altra, e in primo luogo di quel “legame” di cui parla il Concilio, vuole essere riconosciuta e rispettata nella propria identità, al di là di ogni sincretismo e di ogni equivoca appropriazione.

[16] M. H. Vicaire, Histoire de saint Dominique.

[17] Suma Teológica, IIa. IIae, q. 10 art. 7 ad 3. (http://permanencia.org.br/drupal/node/4764)

[19] Carta Apostólica Notre Charge Apostolique, 25 de agosto de 1910.

[20] Encíclica Quanto Conficiamur, 10 de agosto de 1863.

[21] Mt 28,19.

[24] Lumen Gentium no. 8.

[25] Unitatis Redintegratio no. 9.

Um critério e uma palavra

Gustavo Corção

Nos textos do Concílio Vaticano I que transcrevemos nos últimos artigos -- e mais especialmente aquele que trata da infalibilidade, e da autoridade ensinante da Igreja e do Sumo Pontífice, vimos bem realçado um bom critério, com que se reconhece entre todas a voz da Igreja de Cristo, e com o qual qualquer fiel, pela infalibilidade natural da razão nos seus primeiros princípios e até o nível do senso comum nos mais próximos e evidentes corolários poderá discernir a santa doutrina da "outra", e obedecer ao enérgico conselho do Apóstolo que manda repelir os pregadores de "outro evangelho", sejam eles apóstolos, papas ou anjos (Gl 1, 8).

Este critério é o seguinte: só se reconhece a voz da Igreja, e só se reconhece a autenticidade de seu ensino e portanto o valor benéfico e salvífico de qualquer ato de sua hierarquia, onde a idéia de continuação de uma identidade tiver claro realce, ou pelo menos não for obscurecida e até contrariada pela idéia de uma inovação. Retomemos por exemplo o texto do cap. IV da Sessão IV do Concílio Vaticano I, onde se concentra o condicionamento e a definição da infalibilidade: "Pois, em verdade, aos sucessores de São Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que propaguem uma nova doutrina segundo suas próprias revelações MAS PARA QUE COM SUA ASSISTÊNCIA GUARDEM santamente e exponham fielmente a revelação transmitida pelos apóstolos, isto é, o depósito da fé" (op. cit., pág. 492).

Ora, se percorrermos os mais significativos textos conciliares e pós-conciliares observaremos sem dificuldade que a idéia de inovação é obsessiva e define bem o espírito que as guiou.

Antes de exemplificarmos e de tirar consequências, insistamos no valor teológico, metafísico, e de senso comum de nosso critério. De início todos nós sabemos que as coisas criadas estão em constante movimento, sobretudo as coisas corpóreas, e por conseguinte, a mobilidade está mais do lado da matéria, enquanto a imutabilidade está no lado de Deus, no lado do espírito, e até no da forma inteligível das coisas deste inquieto mundo, ou deste "restless universe", como disse Max Born, prêmio Nobel de Física. Psicologicamente segue-se que a atitude de uma alma é tanto mais alta e mais sábia quanto mais procurar as coisas, e idéias imutáveis; e será tanto mais pueril, primitiva ou selvagem quanto mais vivamente se interessar pelas coisas móveis, por tudo que passa e que muda.

Ora, a tragédia de nosso tempo, decorrente de quatro ou cinco séculos de empirismo crescente, está no fato de ter atingido as cúpulas da Igreja o primado da novidade sobre o da perenidade. Creio que qualquer leitor já percebeu que dentro desta atmosfera é difícil falar de Deus, e que tudo convida a falar de evoluções e revoluções. Ou de nada: que é o grande assunto. 

Na Sagrada Escritura o termo novo tem um sentido de especial elevação quando se refere ao único necessário, que poderíamos chamar o único novo. Em três livros principais este termo significa a única grande coisa nova na história do mundo, antes da qual o amargo Dom de Ciência dos autores do Eclesiastes diziam: nihil novum sub sole, para marcar a melancólica monotonia de um universo em irresistível processo de envelhecimento.

Em contraste com o desprezo bem assinalado em toda a Sagrada Escritura pelas novidades menores que fazem comichões nos ouvidos e na alma, o termo novo tem uma sonoridade de anúncio do Céu quando o apóstolo grita: -- "Quem está em Cristo é uma nova criatura; o mundo antigo passou, eis que tudo é novo" (2Cor 5, 17). Em Isaías, em previsão do advento do Verbo, lemos: "Eis que eu crio um novo céu e uma nova terra" (Is 65,17); no Apocalipse, sempre com referência à segunda vinda de Cristo: "Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido" (...) E o que estava sentado no trono disse: "Eis que faço tudo novo" (Ap 21, 1-5).

Não é preciso mais para bem assinalar o transcendente sentido do termo novo, e por isso mesmo, a severidade com que todas as grandes vozes católicas vêem o gosto de novidades nas coisas de Deus e de sua Igreja que vem mais do século e da matéria, do que de Cristo e do espírito.

***

Até aqui já estamos armados de um critério muito firme, e de um sinal muito significativo para demarcar a linha divisória que separa os que querem, a todo preço, guardar a Fé católica até o fim, dos que toleram ou até saboreiam as novidades que mais os prendem ao mundo ou à esteira dos acontecimentos do que à Cruz de Nosso Senhor. Em tempos tranquilos, ou relativamente estáveis que eu ainda alcancei nos dias em que a infinita misericórdia de Deus me devolveu a graça e os dons de meu batismo, dispúnhamos de sinais mais claros para discernir a voz da Igreja, sua doutrina, seus mandamentos e, para resistir às seduções do vozerio do mundo, tínhamos o critério tradicional da autoridade suprema da Igreja: "ubi Petri, ibi Ecclesia".

Quando porém o próprio papado se divide, como ocorreu nos tempos do grande cisma do Ocidente, ou quando o vértice da Igreja é atingido pelas tempestades do século, Deus não abandona seu povo aos caprichos de pastores desencaminhados, e com graças especiais guardará as almas que se prendem à santa doutrina tradicional, imutável, que foi assinada com o Sangue de nosso Salvador. Pela prática da oração, da meditação e da boa leitura teremos a alma dotada de fino ouvido para logo nos livrar dos primeiros pruridos do amor próprio, dos sopros do demônio, ou da propaganda do mundo. Esta é a idéia principal de nossa modesta contribuição de hoje. E agora ilustramos a teoria com um exemplo.

***

Temos aqui neste livro, Nuevas Normas de la Missa, editado pela B.A.C. em texto bilingue, Madrid, 1970, uma Constituição Apostólica assinada pelo Sumo Pontífice, que começa a apresentação do Novo Missal por esta referência àquele promulgado por São Pio V, que até poucos anos atrás era para nós a joia, o livro principal de nossa missa quotidiana. Começa assim a Constituição Apostólica: "O Missal Romano promulgado em 1570 por Nosso Predecessor São Pio V em continuidade com os decretos do Concílio de Trento, sempre foi considerado como um dos numerosos e admiráveis frutos que aquele Sacrossanto Concílio disseminou por toda a Igreja de Cristo. E durante 4 séculos (1570/1970) constituiu a norma da Celebração do Sacrifício Eucarístico para os sacerdotes de rito latino, e foi levado a quase todas as nações do mundo pelos arautos do Evangelho. Nem se deve esquecer que inumeráveis santos alimentaram a piedade e o amor de Deus com as leituras bíblicas e as orações do Missal cuja disposição geral remontava, no essencial, a São Gregório Magno...”

Neste ponto da leitura, minha filha parou, e com ar de admiração, perguntou-me:

-- Mas então por que é que substituíram essa joia por outro missal? Qual foi a razão principal alegada?

Na continuação da leitura veremos que foi alegada a conveniência de acomodar o novo missal à “mentalidade contemporânea”.

-- Hein? E o que é que se entende por “mentalidade contemporânea”?

-- Páginas adiante, 17 e seguintes, a mesma Constituição Apostólica nos dá amostra desse modelo a que se deveriam acomodar as normas do Sacrifício Eucarístico: “... vivamente confiamos que a NOVA ordenação do Missal permitirá a todos, sacerdotes e fiéis, preparar seus corações à Celebração da Ceia do Senhor com RENOVADO (?) espírito religioso e ao mesmo tempo sustentados por uma meditação mais profunda das Sagradas Escrituras (...). E nesta REVISÃO do Missal Romano, além das MUDANÇAS trazidas às três partes, à Oração Eucarística, ao Ordinário da Missa e ao Lecionário, outras seções foram também REVISADAS. Uma atenção particular se dedicou às orações (...) de modo que às NOVAS necessidades correspondam FÓRMULAS NOVAS...”

Com a palavra e o critério escolhidos por nós para esta análise, já sentimos o timbre de uma língua diferente daquela empregada por Pio IX, nos textos do Concílio Vaticano I. Cada vez mais brutalmente se configura diante de nossa consciência boquiaberta, o que já chamamos de tenebrosa evidência.

 

(19/8/76)

Obstáculo inconveniente

Pe. Robert Brucciani, FSSPX

O Rito Tridentino da Missa é sinal de contradição e um obstáculo inconveniente para a revolução que tomou controle das instituições da Igreja no Concílio Vaticano II (1962-1965)

 

O Rito Tridentino da Missa

O Rito Tridentino da Missa é a oração suprema da Igreja, que expressa, perfeitamente, sua doutrina e santidade. Não é um sinal passivo da doutrina e da santidade, como um crucifixo ou uma imagem, mas um sinal eficaz, um sacramento, que produz o que representa, trata-se de um sacramento de fé e sacralidade, um estandarte vivo. É o momento da vitória sobre o pecado e a morte. É o meio pelo qual a vitória vem às almas através dos séculos.

Sim, ele permaneceu inalterado em sua essência ao longo dos séculos. É o mesmo sacrifício, com o mesmo Padre, com o mesmo propósito e com as mesmas palavras pronunciadas por Cristo. As orações que adornam a consagração (o Cânone da Missa) foram acrescentadas no curso dos primeiros seis séculos e estavam definidas ao tempo do Papa São Gregório Magno (590-604). O Papa São Pio V, seguindo um decreto do Concílio de Trento, promulgou a bula Quo primum tempore para definir o Rito da Missa da Igreja Latina para todos os tempos. Dali em diante, o Rito passou a ser conhecido como o Rito Tridentino da Missa.

Quando a Igreja e o Estado caminhavam de mãos dadas, a Cristandade era ordenada em direção à Missa. Hillaire Belloc, em seu Europe and the Faith, salientava que qualquer historiador medieval que não entendesse o que é o Santíssimo Sacramento (e, portanto, o que é o Santo Sacrifício da Missa) não conseguiria entender os motivos de seus ancestrais e, portanto, as grandes crises da história civil.

A Missa era o pináculo, a joia e a força-motriz da civilização. Era o encontro do Céu com a terra: Deus descendo a nós; o homem subindo e tocando a Deus.

 

O que aconteceu com a Missa?

Ah, pela queda de Adão, o eco do Non serviam de Satã irá ressoar pela história até o final dos tempos. O desejo natural do homem pela Divindade sempre competirá com a tentação de se fazer Deus.

Vieram revoluções e derrubaram a Igreja na sociedade civil (reforma protestante), depois Jesus Cristo (o iluminismo), depois Deus (as revoluções francesa e comunista), depois a ordem natural que Ele criou (a cultura da morte e, agora, a ideologia woke).

A revolução mais devastadora de todas, porém, foi aquela na qual o Non serviam ressoou nos corredores da própria Igreja. No Concílio Vaticano II, o homem tentou se deificar e colocar Deus a seu serviço.

 

O homem redefinido

De acordo com o Concílio, a dignidade do homem não era mais a possibilidade de ser elevado pela graça de Deus a compartilhar da vida divina, e sim a sua autonomia, pela qual o homem se tornava como Deus:

- Autonomia da vontade para escolher o bem ou o mal, livre das coações da lei natural ou revelada (i.é, liberalismo);

- Autonomia do intelecto para aderir a “verdades” independentes da realidade (i.é, relativismo intelectual);

- A supremacia da consciência sobre a Lei Eterna como guia do comportamento humano (i.é, relativismo moral);

- Posse, pela própria natureza, dos meios para alcançar seu fim último, que é um fim meramente natural, ao invés de depender da graça sobrenatural para um fim que é sobrenatural (i.é, naturalismo).

Santo Agostinho dizia que “Deus criou o homem para que o homem possa se tornar Deus”. Isso é verdade se compreendermos esse poder de "se tornar Deus” como sinônimo de "participar da Sua Vida Divina por meio da graça sobrenatural"; mas é falso se o compreendermos como sinônimo de "tornar-se autônomo", como o documento conciliar Dignitatis Humanae sugere.

 

A religião redefinida

O homem, portanto, foi redefinido no Concílio, assim como a sua religião. A nova religião é a Religião do Homem, pela qual os homens se tornam autônomos.

A Igreja dessa nova religião, a Igreja de Cristo, parece abraçar toda a humanidade como já tendo sido redimida pelo Filho de Deus (Gaudium et Spes). A Igreja Católica meramente “subsiste” nessa Igreja de Cristo, afirmação calculada para dar a entender que a Igreja de Cristo é mais ampla que a Igreja Católica e que a adesão na Igreja de Cristo através do batismo, da graça santificante, ou da submissão à autoridade, doutrina e liturgia da Igreja não são necessários.

A Igreja de Cristo, de acordo com Lumen gentium, é um sinal eficaz ou sacramento de união de toda a raça humana com Cristo. É, claramente, uma nova Igreja, e seus fiéis receberam um novo nome: “o povo de Deus”.

 

A liturgia redefinida

Para uma nova religião e uma nova Igreja, era necessário uma nova liturgia. Portanto, o Novus Ordo Missae foi promulgado no dia 03 de Abril de 1969 e, após, recebeu a permissão de ser alterado livremente.

De fato, trata-se de uma liturgia maligna, pois ela, objetivamente, obscurece o sacrifício de Cristo ao apresentar a Missa como uma refeição, e obscurece o sacerdócio ao tornar o Padre o presidente de uma assembleia. Na prática, pelo seu frequente desrespeito ao Santíssimo Sacramento, arrastou Deus pela terra e tratou-O de maneira insultante. Seu efeito foi o de assassinar a vida sobrenatural dos fiéis, secar as vocações e esvaziar as Igrejas.

 

Summorum pontificum & Traditionis custodes

Após quase 40 anos de autodestruição, o Papa Bento XVI reconheceu que parte da culpa do declínio da Igreja é da liturgia pobre, mas falhou em perceber os erros doutrinais dos quais ela adveio. Em 2007, promulgou Summorum pontificum, que deu a qualquer Padre o direito de celebrar a Missa no Rito Tridentino novamente. O resultado foi feliz, pois, ao serem expostos à lex orandi tradicional, muitos fiéis descobriram ou redescobriram a lex credendi da Igreja, que o Concílio havia tentado suplantar.

O Rito Tridentino começou a ser considerado uma ameaça à revolução e ao seu sonho de uma nova Religião do Homem; uma religião a serviço da Nova Ordem Mundial, de modo que o Papa Francisco promulgou um novo motu próprio, Traditionis custodes no dia 16 de Julho de 2021, para anular Summorum pontificum e dar à luz o aparato necessário para limitar o Rito Tridentino na Igreja conciliar.

No motu próprio, o Papa Francisco justifica suas medidas alegando que o Rito Tridentino da Missa é causa de desunião na Igreja. Essa acusação, bem como o título do motu próprio, não é pouco irônica, pois a promulgação do Novus Ordo Missae foi, talvez, a maior causa de desunião em toda a história da Igreja. O novo rito da Missa rompeu a unidade de liturgia, a unidade de língua, a unidade de cultura e, mais importante que tudo, a unidade de fé e de vida sobrenatural ao longo do mundo e dos séculos. É uma nova liturgia de uma nova religião, para servir a uma concepção falsa do homem.

 

Obstáculo inconveniente

Se o Rito Tridentino da Missa é tido como causa de desunião, isso se deve apenas ao fato de que contradiz a revolução sendo-lhe um obstáculo inconveniente. Mas um dia a revolução desmoronará.

 

Sancte Joseph, Protector sanctae Ecclesiae, ora pro nobis

"Novidades conciliares": Dignitatis Humanae, Gaudium et Spes, Lumen Gentium cap. 3.

Dignitatis Humanae

Uma enésima reviravolta doutrinal aconteceu na declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, na qual os Padres conciliares e os redatores do documento (sobretudo o jesuíta Courtney Murray, Mons. Pavan e o dominicano Hamer) proclamaram, em contradição patente com as condenações constantes da Santa Sé, que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa [...] de tal sorte que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra sua consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo sua consciência, em privado ou em público, sozinho ou associado a outros.

“[O Concílio Vaticano II] declara que o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana [...] Este direito [...] deve ser reconhecido de tal maneira que constitua um direito civil.”1

O documento conciliar afirma a seguir: “O direito à liberdade religiosa não é fundado numa disposição subjetiva da pessoa, mas em sua própria natureza”, razão pela qual este direito persiste “mesmo naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar a verdade e aderir a ela: seu exercício não pode ser entravado desde que a ordem pública esteja resguardada.”2

Dignitatis Humanae afirma então o direito a não ser impedido de professar publicamente e promover ativamente uma religião falsa, designando este direito como um direito inalienável fundado sobre a dignidade da própria natureza do homem.

É em sentido diametralmente oposto que o Magistério constante da Igreja sempre se exprimira, como resumiu o Papa Leão XIII: “Se a inteligência aderiu a opiniões falsas, se a vontade escolheu o mal e se apega a ele, nem uma nem a outra atinge sua perfeição, todas as duas decaem de sua dignidade nativa e se corrompem. Então não é permitido divulgar e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar esta licença sob a tutela e a proteção das leis”3. O Papa Pio XII reafirmou também, pela enésima vez, nove anos apenas antes do início do Concílio Vaticano II, a eterna doutrina católica: “O que não corresponde à verdade e à lei moral não tem objetivamente nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação.”4

Segundo Dignitatis Humanae, ao contrário, até a seita dos “Filhos de Deus” (hoje “Família de amor”), que pratica a prostituição e a pedofilia; até os discípulos de seitas satânicas (com que lógica discriminá-los dos outros “portadores de direito”?), assim como qualquer outra pseudo “confissão religiosa” teriam o direito estrito de não serem impedidos de praticar o mal, desde que uma hipócrita “ordem pública” seja resguardada; dito de outro modo, basta-lhes a simples legalidade exterior, o beneplácito de um Estado agnóstico, ateu na prática. O documento insiste e precisa ainda, com inacreditável insolência, que “seria fazer injúria à pessoa humana e à própria ordem estabelecida por Deus para os seres humanos recusar ao homem o livre exercício da religião na sociedade desde que a justa ordem pública seja resguardada”5 e “o poder civil [...] ultrapassa seus limites se atribui-se o direito de dirigir ou impedir os atos religiosos” (exteriores e públicos).6

Consequentemente:

Segundo Dignitatis Huamane a Santa Igreja Católica teria durante quase dois milênios feito “injúria à pessoa humana e à própria ordem estabelecida por Deus”, pois ela sempre negou, por um lado, o direito ao exercício público das falsas religiões e, por outro, sempre inculcou o princípio segundo o qual o Estado, dada a possibilidade de distinguir a verdadeira religião das falsas, tem o dever de apoiá-la e reconhece-la até juridicamente como a única verdadeira, além do dever de impedir o exercício público dos falsos cultos (que podem, no máximo e em certos casos, para evitar males maiores, serem apenas tolerados; o que se tolera continua a ser sempre falso e permanece um mal, enquanto o que tem direito só pode ser aquilo que tem caráter de verdadeiro e de bom).

Dignitatis Humanae promoveu o agnosticismo do Estado, isto é, o ateísmo prático do Estado, que não teria mais nenhum dever em relação ao verdadeiro Deus e à verdadeira religião, nem mesmo o de conformar suas leis com as de Cristo, já que deve permanecer – sempre segundo Dignitatis Humanae, naturalmente – acima dos partidos para garantir que “não ocorra nenhuma discriminação” entre os cidadãos por motivos religiosos.7

Mas – gostaríamos de perguntar à hierarquia “conciliar” fomentadora deste liberalismo “católico” – uma vez aprovado o agnosticismo-ateísmo de Estado, uma vez declarada a incapacidade ou incompetência presumida deste último para emitir julgamentos em matéria religiosa (e, portanto, para distinguir entre o erro e a verdade, e consequentemente também entre o bem e o mal), como se poderá pretender que este Estado garanta uma ordem pública justa?8

As contradições e absurdos de Dignitatis Humanae são evidentes e os resultados concretos e amedrontadores desta ideologia católico-liberal que os Padres do Vaticano II quiseram impor, em contradição com o Magistério eterno e para agradar ao “mundo moderno”, estão hoje sob os olhos de todos: o ateísmo laico do Estado, tão exaltado pelos “Padres conciliares” triunfa hoje por todos os lados, sabotando a Igreja, corrompendo as almas, destruindo – sempre com o discurso enganador e o sorriso nos lábios – a sociedade católica e as famílias através da pornografia distribuída a mão cheias, pela promoção de leis favorecendo divórcio e aborto, por uma escola do Estado que produz permanentemente novos cidadãos “democratas” impregnados até a medula de idéias maçônicas e iluministas etc., e pouco se importando – senão, como seria um Estado leigo? – com os apelos e as lamentações estéreis e contraditórias dos “papas conciliares” em matéria de contracepção, divórcio, aborto, homossexualidade, manipulações genéticas, eutanásia, liberação da droga...

A audácia chegou ao auge, entretanto, quando os redatores de Dignitatis Humanae, na introdução (que Paulo VI mandou acrescentar para tentar tranquilizar os que se opunham a esse texto), na qual se assegurava que a Declaração “não traz nenhum prejuízo à doutrina católica tradicional sobre o dever moral do homem e das associações a respeito da verdadeira religião e da única Igreja de Cristo”.9 Basta, ao contrário, ler os documentos da Santa Sé sobre este assunto, de Gregório XVI a Pio XII – sem falar dos mais antigos – para perceber exatamente o contrário: todos os Papas precedentes condenam o que Paulo VI e os “Padres do Vaticano II” aprovam e vice-versa.

 

Gaudium et Spes

Na Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre o mundo contemporâneo, os padres conciliares anunciaram ao mundo que “... o Concílio se propõe antes de tudo a julgar nessa luz os valores mais considerados por nossos contemporâneos e ligá-los a sua fonte divina. Pois estes valores, na medida em que procedem do engenho humano, que é um dom de Deus, são muito bons; mas não é raro que a corrupção do coração humano os afaste da ordem desejada: é por isso que eles necessitam ser purificados”.10

Esses famosos “valores considerados por nossos contemporâneos” e que constituem a base ideológica da Gaudium et Spes, não são outra coisa senão a liberdade, a igualdade e a fraternidade (o tríptico da Revolução maçônica francesa de 1789), das quais o documento conciliar tratou de modo difuso. Gaudium et Spes é, em suma, o documento oficial exprimindo a vontade dos homens do Vaticano II de se reconciliar com as Revoluções de 1776 (Estados Unidos) e de 1789 (França), promotoras destes pseudo “valores”. A obra de decantação do espírito anticristão – larvado ou virulento – que os regenerasse (a “purificação” evocada acima) permitiria, segundo os relatores da Gaudium et Spes, a sua introdução na doutrina e na práxis da Igreja: esta se reconciliaria plenamente com o “mundo moderno” neopagão, nascido precisamente destas Revoluções e impregnado destes “valores”.

Infelizmente para os “Padres conciliares”, diante destas admiráveis perspectivas de pacificação e de fraternidade universal erigidas sobre bases naturalistas e, portanto, maçônicas, se armavam as barreiras das múltiplas condenações dos Soberanos Pontífices contra o espírito da Revolução, matriz dos “valores” em questão, dos quais os papas tinham demonstrado que eles eram inseparáveis. Eis, por exemplo, as palavras claras e precisas com que o Papa Bento XV tinha condenado as “novas idéias” da Revolução francesa, tão caras aos “padres do Vaticano II”:

“Depois dos três primeiros séculos desde as origens da Igreja, ao longo dos quais o sangue dos cristãos fecundou toda a terra, pode-se dizer que jamais a Igreja correu perigo semelhante a este que se manifestou no fim do século dezoito, ocasião em que uma filosofia em delírio, prolongamento da heresia e da apostasia dos Inovadores, adquiriu sobre os espíritos um poder universal de sedução e provocou um abalo profundo, com o propósito determinado de fazer ruir os fundamentos cristãos da sociedade, não somente na França, mas pouco a pouco em todas as nações”.11

Antes dele, São Pio X tinha afirmado sem possibilidade de equívoco:

“Nosso cargo apostólico nos impõe velar sobre a pureza da fé e sobre a integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis dos perigos do erro e do mal, sobretudo quando o erro e o mal lhes são apresentados numa linguagem fascinante, que, dissimulando o caráter vago das idéias e o equívoco das expressões sob o ardor do sentimento e da sonoridade das palavras, pode inflamar os corações por ideais sedutores, mas funestos. Tais foram em tempos recentes as doutrinas dos pretensos filósofos do século dezoito, as da Revolução e do liberalismo, tantas vezes condenadas”.12

Mas, para os “novos teólogos” autores da Gaudium et Spes (entre os quais figurava infelizmente também o Padre conciliar Karol Wojtyla), tudo isso não passava de uma “doutrina velha” da Igreja do passado, ainda fechada em seu “dogmatismo” arcaico, e que devia de agora em diante dar lugar à nova Igreja conciliar, pronta a fazer as pazes com todos os inimigos de Deus.

O espírito naturalista e antropocêntrico da Revolução que invadiu a Gaudium et Spes emerge, em uma leitura atenta, em diversas passagens do documento, apesar de mergulhado no habitual contexto “tranquilizador”, aparentemente ainda católico.

Este espírito não católico, antropocêntrico, se nota, por exemplo – simples ponta de um iceberg – na afirmação ambígua segundo a qual “crentes e não crentes estão geralmente de acordo sobre este ponto: tudo sobre a terra deve estar ordenado para o homem, seu centro e seu cume”.13 Ou ainda quando se procurava fazer crer que o homem é “a única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma”14, contra o ensinamento da Revelação, pela qual Deus criou tudo para Si15, pois o fim último de toda criatura é Deus e não o homem.

Gaudium et Spes se apresentava em suma como um documento que, apesar das habituais precauções adotadas pelos redatores, queria evidentemente romper com o ensinamento da Igreja e negar as condenações dos Soberanos Pontífices contra o mundo moderno, isto é, contra o pensamento moderno que quer substituir Deus pelo homem. De resto, o “novo teólogo” Joseph Ratzinger admitia isso francamente: “Se se procura um diagnóstico global do texto [Gaudium et Spes – n.d.r], poder-se-ia dizer que ele é (ligado como os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões do mundo) uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus [...]. Contentemo-nos com a constatação de que o texto desempenha o papel de um contra-Syllabus na medida em que representa uma tentativa de reconciliação oficial com o mundo tal como ele se tornou desde 1789”.16

É difícil compreender com que lógica Paulo VI pôde depois falar da “abertura ao mundo” programada pelo Vaticano II como de “uma verdadeira invasão do pensamento mundano na Igreja”17, lamentando-se da presença da “fumaça de Satanás” no “Templo de Deus”.18

 

Lumen Gentium, c. 3

No capítulo 3, no. 22 da Lumen Gentium, aparecem os resultados evidentes do esforço titânico dos novos modernistas para atacar o Primado jurisdicional do Soberano Pontífice.

A ala liberal modernista do Concílio conseguiu comprometer o dogma do Primado papal de jurisdição graças à introdução da noção de “colegialidade episcopal”, que implica a necessidade de um governo colegial da Igreja: o Papa dividiria o poder de agora em diante com os bispos, praticamente em igualdade com eles, reduzindo seu Primado a um simples primado de honra (como “Primus inter pares”, primeiro entre os iguais)

Aqui também o intuito “ecumênico” dos conjurados é claro: uma vez eliminado o Primado de jurisdição (isto é, de governo) do Papa, a Igreja católica se tornaria finalmente aceitável por aqueles – ortodoxos e protestantes – que não queriam e não querem reconhecer a autoridade suprema do Vigário de Cristo. Mas tal Igreja—e isso é evidente para todo mundo, a não ser para os “Padres do Vaticano II” – não seria mais aquela que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou sobre Pedro e seus sucessores, apesar de que, para falar como Pio XII, tudo teria sido “unificado, mas para a ruína”.19

A reação de um grupo de cardeais e de bispos do Coetus Internationalis Patrum conseguiu parcialmente abrandar o golpe e convencer Paulo VI a precisar o sentido do texto – afastando a interpretação abertamente democrática proposta pelos neo-modernistas – pelo acréscimo de uma Nota explicativa praevia que, entretanto, num estilo montiniano clássico, deixava intacto o texto do documento.20

Assim se conseguiu evitar o pior, ao menos por curto tempo, mas o abalo tinha sido forte demais e os primeiros desabamentos começaram a se manifestar com rapidez.

Se é verdade que a ala progressista do Concílio não chegou a obter a capitulação completa do Papado (difícil demais de obter de improviso sem uma lavagem cerebral prévia e progressiva dos fiéis), conseguiu, entretanto, plantar sólidas premissas para isso, começando a introduzir na Igreja o vírus da democracia, da assembléia e do Sínodo (concretizado logo depois no parlamentarismo do Sínodo dos bispos, das Conferências episcopais, dos diversos Conselhos – presbiteriais, pastorais etc.) que mais tarde explodiram no pós-Concílio. Se bem que a proposta feita pelo próprio João Paulo II (!) de mudar o modo de exercício do Primado papal e, portanto, de aniquilá-lo na prática – ainda que, como costuma ocorrer, por vias alternativas e em etapas progressivas – para agradar aos habituais heréticos impenitentes e irredutíveis (cf. Encíclica Ut unum sint), não constitua outra coisa senão o fruto quase maduro desta colegialidade herética.

 

A confissão de Paulo VI: o discurso de encerramento do Vaticano II

Ainda que não se trate de um documento conciliar no sentido estrito, é interessante trazer algumas passagens realmente significativas da homilia pronunciada por Paulo VI por ocasião do encerramento do seu Concílio¸em sete de dezembro de 1965.

Feliz com os resultados obtidos, Paulo VI se deixou levar a confissões que, pondo em relevo o espírito não católico no qual os trabalhos conciliares tinham sido conduzidos, deveriam ser suficientes para abrir os olhos de bastante gente. “O humanismo laico profano – exclamou Paulo VI – apareceu enfim com sua verdadeira estatura e, num certo sentido, desafiou o Concílio. A religião do Deus que se fez homem se encontrou com a religião (porque é uma religião) do homem que se fez Deus. O que aconteceu? Um choque, uma luta, um anátema? Tudo isso poderia ter acontecido, mas não aconteceu [...] Reconheçam ao menos este mérito, vós humanistas modernos, que renunciai a transcendência das coisas supremas, e sabei reconhecer nosso humanismo: nós também, nós mais do que qualquer outro, nós temos o culto do homem.”

Um discurso completamente nas antípodas do grito do Apóstolo dos Gentios, que exclamou: “Se alguém não ama o Senhor, que seja anátema”21, não hesitando em pôr os fiéis em guarda contra o “filho da perdição”, o Anticristo que, no meio da apostasia geral, se oporá e elevará “acima de tudo que se chama Deus ou objeto de culto até a se sentar em pessoa no Templo de Deus, se tornando a si mesmo por Deus”22 Mas eis, ao contrário, que Paulo VI se apresenta com seu Vaticano II que, em vez de lançar o anátema contra o humanismo moderno (isto é, contra a “religião do homem que se faz Deus” como o Anticristo), o abraça fraternalmente. Não mais excomunhões, não mais Syllabus – triste herança dos sombrios tempos pré-conciliares – mas uma união híbrida e sacrílega entre o catolicismo e o mundo anticristão, entre a Igreja e as ideias da Revolução.

Não era difícil prever o que aconteceria: derrubadas as muralhas que separam a Igreja do mundo, isto é, as barreiras entre a Verdade e o erro, e entre o bem e o mal, o rebanho se dispersaria. Os Papas “conciliares”, enganados por uma falsa teologia e pelos complôs dos inimigos jurados da Igreja, se transformariam paulatinamente em capelães da Nova Ordem Mundial maçônica, novos Pontífices de uma super igreja ecumênica e liberal, reduzida a uma simples fachada, lugar de reencontro de todas as religiões. A paz sobrenatural prometida por Jesus Cristo a seus fiéis se transformaria em uma paz completamente terrestre para unir todos os povos na apostasia, da qual o encontro inter-religioso de oração em Assis, em 1986, não passou de um primeiro sinal.

 

(Continua)

  1. 1. DH no. 2/a.
  2. 2. DH no. 2/b.
  3. 3. Encíclica Immortale Dei.
  4. 4. Alocação Ci riesce, 6 de dezembro de 1953.
  5. 5. DH no. 3/d.
  6. 6. DH no. 3/e.
  7. 7. DH no. 6/d.
  8. 8. DH no. 3 e no. 7/c.
  9. 9. DH no. 1/d.
  10. 10. GS no. 11/b.
  11. 11. Carta Anno iam exeunte, 7 de março de 1917.
  12. 12. Nosso cargo apostólico – carta sobre “O Sillon”, 25 de agosto de 1910.
  13. 13. GS no. 12/a.
  14. 14. GS no. 24/d.
  15. 15. Col 1, 16.
  16. 16. J. Ratzinger, Les príncipes de la théologie catholique, ed. Téqui, 1982, pág. 426.
  17. 17. 23 de novembro de 1973.
  18. 18. 30 de junho de 1972.
  19. 19. Humani Generis.
  20. 20. Paulo VI adotará mais tarde a mesma tática “dupla face” em relação ao Novo catecismo holandês herético dos anos 70
  21. 21. 1Cor 16, 22.
  22. 22. 2Ts 2, 3-4.

A Guerra Fútil da Outra contra o Catolicismo

Robert Morrison

 

Como vários católicos atentos observaram, o Motu Proprio Traditionis Custodes, de Francisco, encerrou abruptamente a confusa campanha da “hermenêutica da continuidade”, que tinha por objetivo convencer o mundo de que, apesar de tudo o que transparecia, as reformas do Vaticano II estavam em continuidade com a religião Católica de sempre. Como deixa claro a carta que acompanha Traditionis Custodes, é necessário escolher entre as crenças e práticas que os católicos mantiveram por quase dois mil anos e aquelas que decorreram do Vaticano II. Ora, se fossem as mesmas, por que seria necessário escolher entre elas?

Ao passo que a tentativa de eliminar a ruptura entre o Catolicismo e a religião animada pelo Vaticano II (a Outra[1]) tenha sido sempre irremediavelmente frustrante e fútil, avaliar as diferenças entre as duas religiões é, em comparação, simples e iluminador. Para esse fim, vale considerar: o papel da Outra na guerra movida por Satanás; como e por que as duas religiões são diferentes; o propósito da nova religião; por que o Catolicismo é a única religião rejeitada pela Outra; e, finalmente, quão incoerente é a Outra.

 

O papel da Outra na guerra movida por Satanás

Poderíamos nos ver tentados a considerar a situação atual da Igreja como uma refutação de sua indefectibilidade. De fato, muitos abandonam a Fé porque acreditam erroneamente que a Igreja foi derrotada. Todavia, Deus tem nos dado razões abundantes para nos mantermos firmes na Fé, mesmo se parece que os inimigos triunfaram: temos a promessa de Nosso Senhor de que as portas do inferno não prevalecerão (Mt 16, 18), e dois mil anos de história onde vemos a Igreja resistir a assaltos aparentemente insuportáveis.

Além disso, há importantes aparições da Santíssima Virgem Maria trazendo avisos proféticos sobre a infiltração na Igreja. No início do século XVII, María del Buen Suceso de La Purificación (comumente conhecida como Nossa Senhora do Bonsucesso) apareceu à Venerável Madre Mariana de Jesus Torres, uma freira de clausura do Convento Real da Imaculada Conceição em Quito, Equador. Sua mensagem a respeito de eventos que ocorreriam no século XX é de particular interesse para os católicos de hoje:

“Nesse momento supremo de necessidade da Igreja, aquele que deve falar, calará. Tempos funestos sobrevirão, nos quais aqueles que deveriam defender em justiça os direitos da Igreja sem temor servil nem respeito humano, darão as mãos aos inimigos da Igreja para fazer o que estes querem. Ai do erro do sábio, ai daquele que governa a Igreja, o pastor do rebanho que meu Santíssimo Filho lhe confiou! Mas quando eles parecerem triunfantes; quando a autoridade abusar de seu poder, cometendo injustiças e oprimindo os fracos, sua queda estará próxima. Paralisados, serão atirados ao chão.”

Claramente Nossa Senhora quis que entendêssemos que haveria um tempo em que pareceria que as autoridades visíveis da Igreja “dariam as mãos aos inimigos da Igreja para fazer o que estes querem”. E ainda assim, não conseguimos detectar ali nenhum sinal de que essas calamidades significariam que a Igreja teria deixado de ser Igreja ou que teria perdido a proteção do Espírito Santo.

Sob a mesma luz das aparições marianas, revelando que a Igreja prevalecerá apesar dos assaltos diabólicos, podemos considerar a visão do Papa Leão XIII de que Deus daria a Satanás uma janela de tempo para que este tentasse destruir a Igreja. Essa visão levou o papa a compor a grande oração a São Miguel Arcanjo incluída nas Orações Leoninas, assim como um exorcismo contra Satanás, que inclui a seguinte passagem (na versão original):

“As hostes astuciosíssimas encheram de amargura a Igreja, Esposa Imaculada do Cordeiro, e inebriaram-na com absinto; puseram-se em obras para realizar todos os seus ímpios desígnios. Ali onde está constituída a Sede do Beatíssimo Pedro e Cátedra da Verdade para iluminar os povos, aí colocaram o trono de abominação da sua impiedade, para que, ferido o Pastor, dispersassem as ovelhas.”

Certamente o Papa Leão XIII não considerava que uma situação tão terrível na Igreja representasse uma negação da consoladora doutrina da indefectibilidade. E nem nós devemos fazê-lo. Antes, à medida que vemos os assaltos contra a Igreja aumentarem, devemos multiplicar nossos esforços para aceitar toda graça com que Deus nos cumulará.

O estabelecimento da Outra em oposição ao Catolicismo é uma das mais importantes realizações de Satanás e de seus lacaios na guerra contra Deus. Satanás busca insultar a Deus e Sua Igreja e levar para o inferno tantas almas quanto possível. Mas sabemos com certeza que, no fim, Satanás perderá — temos de lutar para nos encontrarmos do lado vencedor, aderindo sempre ao verdadeiro Catolicismo, custe o que custar.

 

Como e por que as duas religiões são diferentes

Não fosse pela continuidade visível do papado (que, é claro, os sedevacantistas negam), seria auto-evidente que o Catolicismo e a Outra são religiões diferentes: as crenças de uma estão frequentemente em desacordo com as da outra, e quase não há semelhança entre as práticas litúrgicas das duas religiões. Nenhum Santo do período anterior ao Vaticano II reconheceria a Outra como católica; nenhum profeta da Outra aceita realmente as crenças que os mártires morreram para proteger.

Além das diferenças entre crenças e práticas litúrgicas, há uma profunda disparidade na forma como seus adeptos creem nas verdades professadas por essas religiões. No Ato de Fé, podemos ver a base católica para crer:

“Senhor Deus, creio firmemente que há um só Deus em três pessoas realmente distintas, Pai, Filho e Espírito Santo; que dá o céu aos bons e o inferno aos maus, para sempre. Creio que o Filho de Deus se fez homem, padeceu e morreu na cruz para nos salvar, e ao terceiro dia ressuscitou. Creio em tudo mais que crê e ensina a Igreja Católica, Apostólica, Romana, porque Vós, ó Deus, revelastes todas essas coisas; Vós, que sois a eterna verdade e sabedoria que não pode enganar nem ser enganada.”

O Ato de Fé contém certas Verdades católicas, e naturalmente omite muitas outras — mas cremos “em tudo mais que crê e ensina a Igreja Católica” porque Deus, que não pode enganar nem ser enganado, as revelou. Uma vez que vemos a Igreja como o organismo estabelecido por Jesus para transmitir fielmente a Fé a todas as pessoas até o fim dos tempos, cremos baseados na autoridade da Igreja e sabemos que possuímos a mesma Fé que possuiu cada católico que foi para o Céu.

E na Outra, como se crê? Felizmente essa religião tem apenas sessenta anos de idade, então deveria ser relativamente fácil rastrear suas crenças até chegar àquelas de seus pais fundadores. Infelizmente, entretanto, as crenças da Outra mudam o tempo todo. Mesmo quando as crenças permanecem as mesmas, isso talvez só aconteça porque um grupo de bispos não obteve os votos necessários para persuadir outro grupo de bispos de que a religião deve mudar.

Esse processo de mudança contínua é, na verdade, um aspecto importante dessa religião. Em seu discurso de encerramento do Vaticano II, o Papa Paulo VI falou sobre o amor da nova religião pela mudança perpétua:

“Nunca talvez como no tempo deste Concílio a Igreja se sentiu na necessidade de conhecer, avizinhar-se, julgar retamente, penetrar, servir e transmitir a mensagem evangélica, e, por assim dizer, atingir a sociedade humana que a rodeia, seguindo-a na sua rápida e contínua mudança.”

Não temos a menor ideia das mudanças que ocorrerão amanhã, porque apenas uma coisa é certa na Outra: não pode haver qualquer retorno ao verdadeiro Catolicismo!

 

O propósito da nova religião

Se nos dermos conta de que a verdadeira mente por trás da Outra é o Príncipe das trevas, poderemos ver que o propósito da nova religião não pode ser outro senão insultar a Deus e à Sua Igreja e levar almas para o inferno. Mas os agentes humanos da nova religião não acreditam mais no inferno (exceto, talvez, como um destino para aqueles terríveis católicos tradicionalistas), então geralmente buscam outro propósito para promover a Outra.

Podemos ver os propósitos dos agentes humanos em várias declarações proeminentes do próprio Vaticano II:

“A isto se propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II, que, ao mesmo tempo que une as melhores energias da Igreja e se empenha por fazer acolher pelos homens mais favoravelmente o anúncio da salvação, como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à semelhança da celeste.” [João XXIII – Discurso de abertura do Vaticano II]

“Em virtude da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo sincero.” [Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno]

“Promover a unidade é, efetivamente, algo que se harmoniza com a missão essencial da Igreja, pois ela é, ‘em Cristo, como que o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano’. Ela própria manifesta assim ao mundo que a verdadeira união social eterna flui da união dos espíritos e dos corações, daquela fé e caridade em que indissoluvelmente se funda, no Espírito Santo, a sua própria unidade.” [Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno]

“O humanismo laico e profano apareceu, finalmente, em toda a sua terrível estatura, e por assim dizer desafiou o Concílio para a luta. A religião que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião — porque o é — que é o culto do homem que quer ser Deus, encontraram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isso poderia ter-se dado, mas de fato não se deu. (...) A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas — que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra — absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós — e nós mais do que ninguém — somos cultores do homem. [Paulo VI – Discurso de encerramento do Vaticano II]

O propósito da nova religião é unir e servir a todos os homens, o que só pode ser feito removendo do Catolicismo tudo o que o mundo rejeita. Em seu Prometeu: A Religião do Homem, o Pe. Álvaro Calderón descreve a nova religião como “a Religião do Homem”, construída sobre os princípios do humanismo (que Paulo VI ratificou acima). O Pe. Calderón identifica uma mudança chave que precisava ser feita no Catolicismo para criar a nova religião:

“Tudo que o humanismo precisava para tornar o Evangelho amável e tirar proveito de seus benefícios era dissolver a Cruz de Cristo. Para o humanismo integral, o grande defeito do cristianismo medieval, em certo sentido o seu único, foi ter centrado o mistério de Cristo no Sacrifício, tingindo a religião com um matiz negativo, tão repugnante ao coração do homem. (...) O Verbo se fez homem para satisfazer a dívida dos homens com Deus, pois por sua obediência até a morte glorificou-O infinitamente, e trouxe aos pecadores a possibilidade da redenção. Para abolir a necessidade do preço de sangue, os magos do humanismo anularam a nota de débito. Se o pecado não nos deixa em dívida com Deus, o sacrifício da Cruz é um pormenor desnecessário no mistério de Cristo, e podemos deixá-lo de lado.”

Uma vez que se remove a Cruz de Cristo, com todas as suas implicações doutrinais e morais, a religião se torna muito mais confortável e aceitável para não-católicos. Quantas novidades trazidas pela Outra realmente permaneceriam de pé se seus proponentes ainda acreditassem e ensinassem que qualquer um que queira salvar sua alma tem de tomar sua cruz e seguir Jesus?

Cada mudança feita em nome do Espírito do Vaticano II tentou esvaziar o Catolicismo para desenvolver uma religião falsificada que possa avançar os objetivos globalistas com a autoridade visível da Igreja Católica. Assim, em vez de erradicar o pecado, podemos desviar o foco para a erradicação das emissões de carbono; em vez de ensinar o Evangelho às nações, podemos abraçar todos os homens do jeito que estão (contanto que estejam vacinados, é claro). A Outra é a força mais importante na tentativa de convencer a humanidade a abandonar sua resistência às demandas da Nova Ordem Mundial. Se, ao olhar para Roma, o mundo visse o verdadeiro Catolicismo em vez da Outra, o grande Reset jamais teria chance de êxito.

 

Por que o Catolicismo é a única religião rejeitada pela Outra?

Sabemos, pelo Encontro de Oração do Papa João Paulo II em Assis, que a nova religião abraça todas as outras. Francisco, é claro, voltou a enfatizar isso de várias maneiras.

O documento Nostra Aetate, do Vaticano II, forneceu a base para esses esforços de aceitação de todas as religiões, ainda que reserve um papel especial para Cristo:

“A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (cf. 2 Cor 5, 18-19). Exorta, por isso, os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os seguidores de outras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio-culturais que entre eles se encontram. A Igreja olha também com estima para os muçulmanos.”

Isso estabelece um padrão bastante baixo para que uma religião seja aceita pela Outra. Sem dúvida, então, a Outra deveria aceitar o Catolicismo, certo? Mas agora vemos, mais claramente que nunca, que a religião chamada Catolicismo é a única que Francisco não aceita mais. Isso é necessário porque, se o Catolicismo é aceito, todas as outras religiões devem ser recusadas. A observação do Pe. Calderón a esse respeito é perspicaz:

“O inimigo mortal do ‘humanismo integral’ é o catolicismo integral, em particular o tomismo, porque este possui de verdade todos os benefícios que aquele possui de aparência, além de saber de cor os seus sofismas.”

Tendo subvertido a Fé para servir a toda a humanidade, os inovadores têm de silenciar aqueles que realmente sabem que isso é heresia. Assim, o Catolicismo é a única religião que tem de ser esmagada pela Outra.

 

Quão incoerente é a Outra?

Pode-se pensar que a nova religião é apenas tão estulta quanto qualquer seita protestante média, com sua rejeição da Verdade católica em favor de crenças modificadas para se adequarem aos caprichos dos homens. Entretanto, diferentemente das seitas protestantes, a Outra tenta reter sua identidade católica para que possa servir melhor aos interesses da Nova Ordem Mundial. Por isso, a Outra sofre de uma esquizofrenia que seria cômica se não fosse tão destrutiva.

Assim, por exemplo, em nome da promoção da unidade católica, Francisco promulga Traditionis Custodes para banir a mais importante e visível fonte de unidade da Igreja, a Missa Tridentina. Então, em vez de uma Missa que conecte católicos uns com os outros mundo afora e ao longo da história da Igreja, o que resta é o Novus Ordo, que serve como um símbolo visível de divisão entre todos os católicos. É evidente que o Novus Ordo não apenas divorcia o católico de hoje dos católicos que viveram ao longo dos séculos, mas também de seus irmãos católicos que estão do outro lado do mundo. E porque Satanás tem um prazer perverso em escarnecer da Igreja, o Novus Ordo também é diferente de paróquia para paróquia dentro da mesma diocese; e diferente dentro da mesma paróquia dependendo do celebrante; e diferente até para um mesmo celebrante dependendo de qual versão das “Orações Eucarísticas” ele decide dizer num determinado dia.

Por pior que seja a situação litúrgica da Outra, temos de nos perguntar se a situação doutrinal — ao menos na prática — não é ainda mais incoerente. Há salvação fora da Igreja? Existe um inferno? Mulheres devem ser sacerdotes? Uniões simplesmente civis são louváveis? O pecado mortal deve impedir que alguém receba a Comunhão? Existe mesmo algo chamado pecado mortal?

Em cima disso tudo, adicionemos a incansável busca da Outra pela feiura na arte, na arquitetura e na música. Tragicamente, a obsessão da Outra pela feiura estética é comparada apenas à sua grotesca imoralidade.

Temos ouvido dizer que na nova religião 2+2=5, mas dizer isso é muito generoso. O paralelo adequado para a nova religião é dizer que 2+2=5, ou 7, ou talvez infinito, ou um Volkswagen, ou sua canção favorita, ou qualquer outra coisa que você queira, exceto 4. Se isso soa despropositado, pergunte a si mesmo por que não podemos manter as crenças e práticas que todos os Santos reconheceriam como católicas. Como pode o Catolicismo ter sido o único caminho de salvação ao longo de dois mil anos, e então — por meio de decretos de homens imorais — tornar-se o único banido?

Agora é evidente que Deus precisará intervir de maneira extraordinária para livrar a Igreja do flagelo da Outra, mas não estamos impotentes. Fomos avisados de que estes dias chegariam e que precisaríamos nos voltar para a Bem-aventurada Virgem Maria em busca de auxílio para perseverarmos. Que ela possa esmagar a cabeça de Satanás e a Outra que ele tenta impor sobre a Igreja! Rainha do Santíssimo Rosário, rogai por nós!

(Fonte: The Remnant Newspaper. Tradução: Permanência)


[1] O autor utiliza, no original em inglês, o neologismo Vatican2ism. Em nossa versão, optamos pela expressão “a Outra”, termo utilizado por Gustavo Corção na década de 1970 para designar a nova religião de Vaticano II.

Sobre "Traditionis custodes"

texto tirado do site oficial da FSSPX Brasil:

“ESSA MISSA, NOSSA MISSA, DEVE SER REALMENTE PARA NÓS COMO A PÉROLA DO EVANGELHO PELA QUAL TUDO RENUNCIAMOS, PELA QUAL ESTAMOS PRONTOS A VENDER TUDO.”

Caros membros e amigos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X,

O motu proprio Traditionis custodes e a carta que o acompanha causaram uma agitação profunda no ambiente dito ‘tradicionalista’. Pode-se notar, com boa lógica, que a era da hermenêutica da continuidade — com seus equívocos, ilusões e esforços impossíveis — acabou tragicamente, sendo posta de lado. Essas medidas, tão claras e nítidas, não tocam diretamente a Fraternidade São Pio X, mas devem ser para nós ocasião de uma reflexão profunda. Para fazer isso, é necessário elevar-nos aos princípios e colocarmo-nos uma questão simultaneamente antiga e nova: por que a Missa tridentina é o pomo da discórdia depois de cinquenta anos?

Antes de tudo, devemos nos lembrar que a santa Missa é a continuação, nos tempos, da luta mais renhida que há: a batalha entre o Reino de Deus e o reino de Satanás, essa guerra que chegou ao ápice no Calvário, com o triunfo de Nosso Senhor. Foi para essa luta, e essa vitória, que Ele se encarnou. Visto que a vitória de Nosso Senhor foi obtida pela cruz e por seu sangue, é compreensível que sua perpetuação aconteça, também, por meio de lutas e contrariedades. Todo cristão é chamado a esse combate: Nosso Senhor nos chama porque disse que “veio à terra para trazer a espada” (Mt 10, 34). Não é surpreendente que a Missa de sempre, que exprime perfeitamente a vitória definitiva de Nosso Senhor sobre o pecado, por seu sacrifício expiatório, seja ela mesma um sinal de contradição.

Contudo, por que essa Missa se tornou sinal de contradição dentro da própria Igreja? A resposta é simples, e cada vez mais clara. Depois de cinquenta anos, os elementos da resposta são evidentes para todos os católicos de boa vontade: a Missa tridentina expressa e veicula uma concepção da vida cristã — e, consequentemente, uma concepção de Igreja — que é absolutamente incompatível com a eclesiologia que procede do Concílio Vaticano II. O problema não é simplesmente litúrgico, estético, ou meramente formal. O problema é simultaneamente doutrinal, moral, espiritual, eclesiológico e litúrgico. Em poucas palavras, é um problema que toca todos os aspectos da vida da Igreja, sem exceção: é uma questão de fé.

De um lado encontra-se a Missa de sempre, estandarte de uma Igreja que enfrenta o mundo e que está certa de sua vitória, porque sua batalha não é outra que a continuação daquela que Nosso Senhor realizou para destruir o pecado e o reinado de Satanás. É pela Missa, e através da Missa, que Nosso Senhor alista as almas cristãs no seu próprio combate, fazendo que participem tanto de sua cruz como de sua vitória. De tudo isso decorre uma ideia fundamentalmente militante da vida cristã. Duas notas a caracterizam: o espírito de sacrifício e uma esperança inabalável.

Do outro lado ergue-se a Missa de Paulo VI, expressão autêntica de uma Igreja que busca estar em harmonia com o mundo, que dá ouvidos às exortações do mundo; uma Igreja que, em última instância, não tem mais de combater o mundo porque não tem mais nada a repreender; uma Igreja que não tem mais o que ensinar porque escuta os poderes desse mundo; uma Igreja que já não precisa do sacrifício de Nosso Senhor porque, tendo perdido a noção de pecado, não tem mais nada a expiar; uma Igreja que não tem mais como missão restaurar o reinado universal de Nosso Senhor, porque ela quer dar sua contribuição à construção de um mundo melhor, mais livre, mais igualitário, mais ecologicamente responsável; e tudo isso com recursos puramente humanos. À essa missão humanista a que se entregaram os homens da Igreja deve corresponder uma liturgia igualmente humanista e dessacralizada.

A batalha desses últimos cinquenta anos — que no dia 16 de julho teve um momento certamente significativo — não é a guerra entre dois ritos: é tão simplesmente a guerra entre duas concepções diferentes e opostas da Igreja e da vida cristã, absolutamente irredutíveis e incompatíveis entre si. Parafraseando Santo Agostinho, podemos dizer que duas Missas construíram duas cidades: a Missa de sempre construiu a cidade cristã, a nova Missa busca construir a cidade humanista e laica.

Se Deus permite tudo isso, é certamente por um bem maior. Antes de tudo para nós mesmos, que temos a oportunidade imerecida de conhecer a Missa tridentina e dela nos beneficiarmos; possuímos um tesouro a que nem sempre damos o devido valor, e que poderíamos vir, talvez, a guardar por hábito. Ora, quando algo de grande prezo é atacado ou desprezado, apreciamos melhor seu valor. Possa esse “choque”, provocado pela dureza dos textos oficiais de 16 de julho, servir para que nosso amor pelo rito tridentino se renove, se aprofunde, seja redescoberto; essa Missa, nossa Missa, deve ser realmente para nós como a pérola do Evangelho pela qual tudo renunciamos, pela qual estamos prontos a vender tudo. Aquele que não está pronto para derramar seu próprio sangue por essa Missa não é digno de celebrá-la. Aquele que não está disposto a tudo renunciar para protege-la não é digno de assistir a ela.

Eis no que deve consistir nossa primeira reação perante os eventos que acabaram de sacudir a Igreja. Que nossa própria reação, padres e fiéis católicos, sobrepuje de longe — por sua profundidade e valor— os comentários de todo o tipo, cheios de inquietação e muitas vezes sem esperança.

Deus certamente visa outro objetivo ao permitir esse novo ataque contra a Missa tridentina. Ninguém pode duvidar que durante esses últimos anos, muitos padres e fiéis descobriram essa Missa, e que através dela se aproximaram de um novo horizonte espiritual e moral, que lhes abriu o caminho da santificação de suas almas. As últimas medidas que foram tomadas contra a Missa obrigarão tais almas a tirarem todas as consequências do que elas descobriram: cabe a elas, agora, escolherem — com os elementos de discernimento que têm à disposição — o que se impõe a toda consciência católica bem formada. Muitas almas encontrar-se-ão diante de uma escolha importante concernente à fé, porque — repetimos — a Missa é a expressão suprema de um universo doutrinal e moral. Trata-se, portanto, de escolher a fé católica em sua integridade, e por ela Nosso Senhor Jesus Cristo, sua cruz, seu sacrifício, sua realeza. Trata-se de escolher seu sangue, de imitar o Crucificado e de segui-lo até o fim por uma fidelidade total, radical, firme.

A Fraternidade São Pio X tem o dever de ajudar todas as almas que se encontram, atualmente, consternadas e confusas. Em primeiro lugar, temos o dever de oferecer-lhes, pelos próprios

fatos, a certeza que a Missa tridentina não poderá jamais desaparecer da face da terra: trata-se de um sinal de esperança extremamente necessário.

Ademais, é preciso que cada um de nós, padre ou fiel, estenda para essas almas uma mão amiga, porque aquele que não tem o desejo de partilhar dos bens com que se beneficia é, de fato, indigno deles. É somente desse modo que se amará verdadeiramente as almas e a Igreja. Porque cada alma que ganhemos para a cruz de Nosso Senhor, e para o amor imenso que manifestou por seu sacrifício, será uma alma verdadeiramente ganha para sua Igreja, para a caridade que a anima e que deve também ser nossa, especialmente neste momento.

Confiamos essas intenções à Mãe das Dores, é a ela que dirigimos nossas orações, afinal ninguém mais do que Ela penetrou no mistério do sacrifício de Nosso Senhor e de sua vitória na Cruz. Ninguém mais do que Ela esteve tão intimamente associada a seus sofrimentos e a seu triunfo. Foi em suas mãos que Nosso Senhor colocou a Igreja inteira; portanto, é a Ela que foi confiado o que a Igreja tem de mais precioso: o testamento de Nosso Senhor, o santo sacrifício da Missa.

Menzingen, 22 de julho de 2021
Na Festa de Santa Maria Madalena
Dom Davide Pagliarani, Superior-Geral

A luta de São Pio X contra o modernismo

Pe. Hervé Gresland, FSSPX

 

Louis Jugnet expõe do seguinte modo a situação que São Pio X encontrou ao subir na cátedra de Pedro, em 4 de agosto de 1903:

Hoje em dia todos sabem a que ponto o fim do pontificado de Leão XIII, apesar da sua doutrina tão magnificamente ilustrada, foi marcado pela eclosão de ideias falsas na Igreja, na Alemanha, na França, na Inglaterra e na Itália. Basta ler as Memórias de Loisy para ver o quanto a filosofia, a teologia, a história, a exegese, a disciplina eclesiástica e o pensamento político-social estavam impregnados dos erros da moda. Porém, graças ao que Loisy chamou, com um eufemismo divertido, de ´um forte movimento de opinião e de verdade´, designando assim grupos de pressão muito influentes (São Pio X falará mais tarde de “clandestinum foedus[1]), possuindo ramificações por toda parte, nos seminários, nas faculdades católicas, no Episcopado e mesmo em alguns círculos da Cúria, seria quase impossível de obter do Magistério romano uma medida minimamente eficaz.”[2]

Esta apresentação nos permite compreender o papel capital que São Pio X desempenhou na ação contra o modernismo. Em face deste erro multiforme, a primeira medida do seu pontificado foi a condenação, já no final de 1903, das principais obras do Pe. Alfred Loisyt, um dos chefes de fileira do modernismo.

Em 1907, outras medidas mais genéricas vieram completar essa ação. Em 15 de abril de 1907, em uma alocução consistorial, o papa declarou que os que mais devem ser temidos são os que, dentro da Igreja, professam “erros monstruosos”.

No dia 3 de julho de 1907, a Sagrada Congregação do Santo Ofício publicou o decreto Lamentabili condenando 65 proposições[3].

 

A Encíclica Pascendi

No dia 8 de setembro do mesmo ano, São Pio X promulgou a Encíclica Pascendi pela qual desmascarou e condenou com força e clareza o modernismo. Essa encíclica surpreendeu não apenas os modernistas que trabalhavam às ocultas para espalhar as suas ideias, mas também muitos católicos adormecidos que não haviam percebido de modo algum o mal profundo que ameaçava a Igreja e a doutrina católica. Essa encíclica foi um clarão dissipando as trevas.

Desde as primeiras palavras, São Pio X indicou que seu primeiro dever de papa é o de “guardar com todo o desvelo o depósito da fé”. E continou dizendo que a razão que o levou a se pronunciar sem demoras é que “os partidários do erro já não devem ser procurados entre os inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, eles se ocultam no próprio seio da Igreja.”[4]

Os modernistas não são apenas inimigos da Igreja, mas os seus piores inimigos, diz o papa, pois agem desde o interior da Igreja. Inicialmente, São Pio X usou da paciência e da mansidão para tentar reconduzi-los ao reto caminho, mas foi em vão. Agora, ele os denuncia publicamente: “Há, pois, um dever de quebrar o silêncio, que agora seria culpável. É hora de tornar bem conhecidos à Igreja esses homens tão mal disfarçados.”

A Encíclica expóe longamente as doutrinas modernistas e as analisa para demonstrar o laço lógico que há entre elas; demonstra que o modernismo constitui um sistema bem organizado, e que as partes são solidárias. A Encíclica decompõe os modernistas em diferentes personagens[5] a fim de passar em revista, uma após a outra, as idéias que professam. Ela remonta aos princípios errôneos na origem deste erro: se o modernismo é um erro religioso, sua raiz profunda é uma filosofia falsa. Esta é a fonte envenenada da qual tudo decorre, e é muito normal que assim seja, pois, no progresso do espírito humano – seja consciente ou inconsciente – tudo começa pela filosofia e depende dela. O papa começa, portanto, pela exposição do filósofo modernista.

 

O filósofo modernista

Os modernistas estabelecem como base do seu sistema o que chamamos de agnosticismo, que consiste no seguinte: só podemos conhecer as coisas aparentes, perceptíveis aos nossos sentidos; nossa razão não pode conhecer nada para além disso, não pode estar certa de uma verdade que ultrapassa o domínio dos sentidos, não pode possuir certeza intelectual. As consequências são imensas: a inteligência não pode conhecer nada sobre Deus, nem mesmo a sua existência: Deus é incognoscível. Ela não pode conhecer nada tampouco de uma revelação que Deus nos teria dado, nem dos motivos de credibilidade da fé.

Então, como o homem pode conhecer Deus e a religião? Posto que não pode lhes encontrar fora de si mesmo, todo acesso lhe estando vedado desse lado, ele vai encontrar-lhes em si mesmo. Eis a segunda face do modernismo, o seu segundo princípio, que chamamos de imanentismo. Isso quer dizer que a explicação da religião encontra-se no homem, mais precisamente, na vida do homem: “Em consequência, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade”. “O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião”, inclusive da religião católica. Esse sentimento que aparece na consciência é a “revelação” e, ao mesmo tempo, aquilo que os modernistas chamam de “fé”. Vê-se a importância fundamental do sentimento interior, da experiência individual, para os modernistas.

Na doutrina católica, o objeto da fé, o seu conteúdo, é exterior a nós. No modernismo, a fé vem do coração do homem, do seu foro interno. Somos nós que fazemos a fé, que forjamos aquilo em que cremos. A fé é, antes de mais nada, “vivida”; é preciso “partir da vida”, isso é uma verdadeiro lugar-comum na Igreja nos últimos 50 anos.

Assim, o modernismo não crê mais nas verdades contidas no Credo, mas produz sua própria opinião pessoal em função do que descobre e sente: “Para mim, Deus é isso ou aquilo, Jesus Cristo é isso ou aquilo”. A fé torna-se puramente subjetiva, e toda afirmação da realidade sobrenatural colide com esse muro subjetivo: “Isso é verdade... para você. Portanto, creia no que quiser, mas não queira impô-lo aos demais.”

 

O teólogo modernista

Posto que o modernismo coloca a fé (ou aquilo que chama de “fé”) na experiência vivida do divino, muitas consequências se seguem em todos os domínios: o conteúdo da fé deve ser relativizado, assim como a teologia.

A fé reside no sentimento religioso, mas o homem possui uma inteligência que quer exercer o seu papel de reflexão, é para ela uma necessidade natural. Por meio da sua inteligência, o crente vai trabalhar a sua fé, vai pensá-la, especificá-la, traduzir em formulas o que se passa na sua consciência: esses serão os dogmas, que buscam exprimir a fé de maneira mais ou menos adequada. Os dogmas são, pois, obra humana.

Se o sentimento interior do homem muda, se a consciência evolui, a fé que é o seu produto também evolui, e é necessário modificar o dogma para adaptá-lo ao novo pensamento. Como os sentimentos religiosos que traduzem, os dogmas devem, portanto, ser vivos, eles podem e devem evoluir. Daí esse aspecto de permanente construção a partir do “vivenciado”, de perpétua reinterpretação, que não poupa até mesmo os dogmas.

Do mesmo modo, não há mais verdades estabelecidas, definitivas, às quais o homem tenha de aderir, pois os modernistas não as querem. A verdade deve viver, e quem diz vida diz movimento: “A verdade não é mais imutável que o homem, pois que evolui com ele, nele e por ele.”[6] Permanece o núcleo, todo o resto evolui ao sabor dos tempos, das culturas, das circunstâncias históricas, da experiência e da vivência do “povo de Deus”. Finalmente, o dogma não se reveste mais de grande importância. O modernismo é, portanto, um evolucionismo radical.

 

Consequências desses princípios

Apliquemos esses princípios a diferentes pontos para mensurar a sua repercussão:

- A tradição católica transmite o objeto da fé; a tradição modernista se torna a transmissão da experiência da fé, daquilo que os crentes experimentam nas suas vidas. Ela é viva -- repetem sem cessar – e, portanto, evolutiva.

- O modernismo possui uma “fé” que, ao invés de se fundar no Deus que se revela, enraíza-se em um terreno puramente humano. Posto que a fé provém do sentimento religioso, “chega-se a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Em verdade, há algo mais capaz de destruir toda a ordem sobrenatural?”

- Esse naturalismo tem por consequência o indiferentismo religioso. Com efeito, a que título certas experiências religiosas seriam mais verdadeiras ou melhores do que outras? Todos os sentimentos religiosos são respeitáveis, dignos de serem acolhidos e, portanto, todas as religiões são válidas. O ecumenismo é uma consequência do imanentismo. Não há uma verdade, mas tantas quantas pessoas. É a fantasia subjetiva do homem no lugar da realidade objetiva de Deus.

- Para os modernistas, a Igreja, os sacramentos etc., são fruto de uma construção progressiva[7]. A inspiração das Sagradas Escrituras reduz-se a uma experiência pessoal. Os livros santos são compêndios de experiências religiosas. Os Evangelhos não são relatos de acontecimentos históricos por testemunhas oculares: possuem um fundo histórico, mas são em grande parte subjetivos, pois são o eco da “fé” cristã. Eles foram escritos para exprimir o que os cristãos das primeiras gerações criam de Jesus e queriam comunicar aos demais. Os sacramentos resultam de uma necessidade sensível dos crentes e são puros símbolos para alimentar nossa fé.

Cada crente continua, por sua vez, a elaborar a doutrina cristã, cada um acrescentando algo por si mesmo. De todos esses elementos individuais se desprende uma síntese coletiva. Mas esse edifício jamais será arrematado, e sempre deverá ser reconstruído. O magistério da Igreja é apenas o interprete de um movimento cujos resultados ele recolhe.

Fé, dogmas, Igreja, culto... tudo isso provém do sentimento, da experiência “vital”, necessariamente mutável e sujeita à evolução. Compreende-se que São Pio X chame o modernismo de “cloaca de todas as heresias”; ele utilizará muitas vezes essa expressão que revela o seu pensamento profundo[8].

Os modernistas estavam dentro da Igreja e pretendiam nela continuar. Sem dúvida, é essa a principal novidade dessa heresia. Os heresiarcas precedentes terminavam por abandonar a Igreja abertamente; continuavam a ataca-la, mas desde o exterior. O principal equívoco dos modernistas é pretender permanecer em uma Igreja com a qual estão em desacordo, com o intuito de mudá-la aos poucos, de fazer com que ela evolua desde o interior.

Os modernistas não são inimigos declarados, são inimigos de dentro. É essa uma característica essencial do modernismo: um modernista que abandona a Igreja não é mais um modernista. É talvez um racionalista, um protestante liberal... mas um modernista, não.

 

Os remédios

A salvação das almas estava em jogo, por isso, São Pio X não se contenta em demonstrar o erro: na última parte da sua encíclica, lança uma verdadeira campanha para impedir o modernismo de se estender pela Igreja, ele traça o plano de uma reconquista contra os modernistas. Percebe-se o homem de governo, que sabe o que quer e que lança mão de meios eficazes. Manda os bispos adotarem medidas imediatas contra os modernistas e suas doutrinas.

Como o modernismo é, na sua origem, um erro filosófico, o primeiro remédio é de ordem filosófica: São Pio X impõe que a filosofia de Santo Tomás de Aquino seja a base dos estudos.

Para a Santa Igreja não é possível submeter os seus filhos a autoridades manchadas de modernismo: São Pio X ordena que sejam excluídos das cátedras de ensino, nos seminários e universidades católicas, todos aqueles que estão imbuídos de modernismo, ou que favorecem esses erros. Os modernistas também devem ser excluídos do sacerdócio.

Os bispos impedirão a publicação e a leitura de livros ruins e instituirão conselhos de vigilância que terão “a incumbência de ver se, e de que modo, os novos erros se ampliam e se propagam.”

 

A continuação do pontificado

No dia 18 de novembro de 1907, São Pio X publicou um motu próprio que ajunta a pena de excomunhão aos contraditores do Decreto Lamentabili e da Encíclica Pascendi

Depois, em 1 de setembro de 1910, ele endereçou a toda a Igreja um motu próprio[9] “estabelecendo leis para repelir o perigo do modernismo.” Neste documento, o papa não hesita em afirmar que, apesar das condenações precedentes, os modernistas “não cessaram de arregimentar e filiar em uma associação secreta novos adeptos, e inocular neles, nas veias da sociedade cristã, o veneno das suas opiniões.” O perigo é muito atual: no interior mesmo da Igreja, notadamente entre o clero, os modernistas formaram uma sociedade mais ou menos fechada. O papa promulga, portanto, um juramento antimodernista, que deve ser prestado por todo o clero, ao menos antes de receber as ordens maiores, pelos professores e, de modo geral, por todos os padres que acedem a uma função[10].

O Santo Padre via longe, e sabia que muitos não o seguiam, pois os santos têm um amor pela verdade e uma detestação do erro que lhes são inspirados por Deus, mas que os outros homens compreendem mal. Ao bispo de Bergamo, confidenciava: “Alguns me acusam de ser pessimista e de ver o mal em toda parte. Mas o mal latente é muito mais grave e extenso do que se pode imaginar, e jamais haverá vigilância o bastante para descobri-lo”[11]. No dia 27 de maio de 1914, escreveu aos novos cardeais que acabava de introduzir no Sacro Colégio: “Entre tantos perigos, e em toda ocasião, não deixei de fazer com que minha voz fosse ouvida a fim de admoestar os que estão em erro, assinalar os danos e traçar aos católicos o caminho a seguir. Mas minha palavra não foi sempre, nem por todos, bem escutada ou interpretada, por mais clara e precisa que tenha sido.”

 

O modernismo depois de Pascendi

A publicação da Encíclica Pascendi representou um formidável golpe ao desenvolvimento do modernismo. Os leigos de boa fé que haviam sido atraídos para as idéias modernistas, sem verdadeiramente as compreender, rejeitaram os erros. A imprensa católica, por sua vez, denunciou o modernismo. Uma tal energia e uma tal constância no combate contra o erro enfraqueceram consideravelmente a corrente modernista. No momento da morte de São Pio X, em 1914, essas diversas medidas tinham começado a dar fruto.

Os modernistas, séria e eficazmente combatidos pelas autoridades romanas e por numerosos bispos, deram continuidade, no entanto, à sua ação. Souberam abaixar a cabeça para reergue-la progressivamente quando a repressão mostrou-se menos firme, o que veio a acontecer após a morte de São Pio X: os erros condenados recobraram ímpeto. A rede modernista se comportava como uma corrente subterrânea reaparecendo com força nos anos 1930 e 1940, para triunfar a partir do Concílio Vaticano II.

Hoje, o modernismo segue mais do que nunca vivo na Igreja. Esses erros reinam por toda parte, e os modernistas ou neo-modernistas detém todas as alavancas de comando. A encíclica de São Pio X não perdeu em nada o seu valor: esse texto que foi escrito há cem anos parece ter sido escrito para a Igreja de hoje, tal é a sua atualidade. Poder-se-ia dizer que São Pio X foi um verdadeiro profeta para os nossos tempos.

Esse papa foi o homem chamado por Deus para o papel capital de defender a fé, ameaçada pela mais terrível das heresias. A inteligência esclarecida pela luz da graça, mediu a gravidade do perigo que a Igreja corria, e lutou contra a heresia com uma coragem digna dos maiores pontífices de outrora. Como declarou Pio XII, foi a santidade que lhe deu a força de ser um campeão da fé: “A lucidez e a firmeza com as quais Pio X conduziu a luta vitoriosa contra os erros do modernismo, atestam a que grau heroico a virtude da fé queimava no seu coração de santo (...) Teve a consciência clara de lutar pela mais santa das causas, que é a de Deus e das almas”[12]

É com palavras do mesmo Pio XII que rogaremos a São Pio X guardar-nos firmes na fé:

“Ó Santo Pio X, pontífice de fé íntegra e de intrépida firmeza, volvei vosso olhar para a Santa Igreja, que tanto amastes. Obtende para ela a integridade e a constância no meio das dificuldades e perseguições de nosso tempo.”[13]

 

(Le Rocher, 90. Tradução: Permanência)

 


[1] Associação secreta.

[2] Comment combattre une hérésie, Itinéraires, 1964, pp. 126-127.

[3] Reconhecemos [nessas proposições] grandes clássicos da teologia e da catequese atuais. Damos dois exemplos: “Pode conceder-se que Cristo, tal como história o representa, é muito inferior ao Cristo, objeto da fé.” (proposição 29); “A ressurreição do Salvador não é propriamente um fato de ordem histórica, mas de ordem meramente sobrenatural que não foi demostrado, nem é demonstrável, e que a consciência cristã insensivelmente deduziu de outros fatos.” (proposição 36).

[4] Citações tiradas de Pascendi.

[5] O filósofo, o crente, o teólogo, o historiador, o crítico, o apologista e o reformador.

[6] Lamentabili, proposição no. 58.

[7] Lamentabili, proposição 54: “Os dogmas, os sacramentos e a hierarquia, tanto em sua noção quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão que, por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho”.

[8] “Certo é que se alguém se propusesse fazer, por assim dizer, o destilado de todos os erros que a respeito da fé até hoje se produziram, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que aquele que os modernistas alcançaram” (Pascendi).

[9] Sacrorum antistitum.

[10] A obrigação de prestar esse juramento foi suprimida após o Concílio Vaticano II, em 1967.

[11] Dal-Gal, Pie X, p. 306.

[12] Discurso por ocasião da canonização, 29 de maio de 1954.

[13] Idem.

No coração de um seminário católico

Faz já um tempo - bastante grande, na verdade - que o Diretor desta revista pediu-me um artigo sobre o Seminário onde desempenho o cargo de reitor, deixando-me a maior liberdade na escolha da abordagem do referido artigo.

Durante certo tempo busquei qual seria o ponto de vista mais interessante para os leitores da Permanência e terminei concluindo que, talvez, a maneira mais original e viva para conhecer um seminário por dentro fosse através dos olhos, das ilusões, das aspirações e dos sentimentos dos próprios seminaristas. Pedi então a três diáconos que escrevessem o que os senhores lerão na continuação.

Quando eu mesmo li estas reflexões dos referidos diáconos concluí que não me havia enganado ao deixar-lhes a redação do artigo: este permite não somente entrar no coração de um seminário católico, como diz o título, mas também no coração mesmo de um rapaz que quer doar-se totalmente a Nosso Senhor e que se deixa amoldar, pouco a pouco, pela graça de Deus, passando, no entanto, por algumas provas.

Enfim, atrevo-me a dar a sugestão aos que vão ler estas páginas, de não limitarem-se somente a lê-las, mas de também meditá-las. Lembrem-se, também, destes rapazes nas suas orações, para que sejam sacerdotes segundo o coração de Jesus.

 

Padre Davide Pagliarani, Reitor

 

 

 

Introdução

A enorme e espantosa crise da Igreja dos últimos cinquenta anos afunda cada vez mais no esquecimento a noção profunda e verdadeira do que é um seminário católico.

À falta de vocações se agrega a perda do sentido do sacerdócio, o que necessariamente leva à corrupção aqueles institutos cujo fim é justamente a formação sacerdotal.

Que jovem, ou que família pode, hoje em dia, formar-se uma idéia reta e suficiente sobre um seminário carecendo de exemplos concretos e próximos? Pior ainda, os exemplos que eventualmente possa conhecer lhe dão uma imagem totalmente distorcida ou desfigurada!

Frente a esta dolorosa falta de referências sólidas, vem este artigo, sem maiores pretensões, dar alguma noção sobre a vida do seminário Nª Srª Corredentora, de la Reja, no sentido, não tanto de uma descrição material e cronológica, mas de uma narração mais profunda das realidades que fundam e vivificam nosso seminário no mais íntimo do seu “coração”.

 

As Primeiras impressões

As primeiras impressões de um jovem recém chegado ao seminário são daquelas que não se apagam nunca mais da memória. A alegria das “boas vindas” dadas como a um bom amigo por longo tempo esperado o surpreende!

Por quê tanta alegria? Em certo sentido, pode ser comparado ao gozo de uma família ao receber um novo membro.

Mas o jovem candidato ainda não está em condições de entender que um seminário é uma família, e que, cada jovem que nele ingressa, aumenta o número de seus membros. Esta é uma realidade que só compreenderá dentro de algum tempo.

Passam os primeiros dias, e ainda não sabe explicar o que há de especial em sua nova vida. A simplicidade de vida é tal, e a rotina tão repetitiva, que se assombra da felicidade que reina neste lugar, não encontrando sua causa.

Levantam-se praticamente todos os dias à mesma hora, rezam os mesmos ofícios, fazem os mesmos trabalhos, assistem suas aulas todas as manhas e pela tarde estudam. Comem sempre à mesma hora, e às dez da noite, rezada a oração de Completas, todas as luzes se apagam.

No entanto, a monotonia é apenas aparente. O entusiasmo de todos é contagiante, e aquele que se entrega com generosidade à vida comum não vê o tempo passar.

A rotina semanal é radicalmente quebrada pelo esplendor da missa dominical! A liturgia católica cativa pelo seu brilho a todo o que por primeira vez dela participa. Ao som dos sinos, todos, sem exceção, se dirigem com respeitoso silêncio à Igreja, onde, dado o sinal, todos em uníssono contam as glórias de Deus. Enquanto ao longe se ouvem os ecos do barulhento mundo pagão, no íntimo do seminário, não com menos vigor, fazem-se ouvir as vozes dos filhos de Deus que intercedem pelos seus irmãos extraviados.

Mas a profunda meditação do nosso jovem deve ser interrompida para dar lugar às exigências da humana condição corporal. Os trabalhos da comunidade o chamam. Todos colaboram, cada um segundo a função que lhe é designada, o que ensina ao recém-chegado o valor da generosidade, que garante, pelo esforço em comum, o bem estar necessário a cada um dos membros.

Esta compreensão mais profunda do trabalho lança uma primeira luz às dúvidas sobre o modo alegre e generoso de viver uma rotina quotidiana, que vai se transformando, aos poucos de monotonia repetitiva em alegria sempre renovada.

Mas o trabalho não constitui a característica principal de um seminário. Os estudos, exigentes, ocupam uma boa parcela do dia. As matérias estudadas requerem dedicação, esforço e atenção: filosofia, teologia, latim, espiritualidade, catecismo e Sagrada Escritura são alguns exemplos do alto nível cientifico que se oferece a um seminarista.

No entanto, a fadiga intelectual é compensada pelas duas tardes semanais de esporte, nas quais o futebol, o vôlei, o tênis ou o cooper se encarregam do equilíbrio entre corpo e alma. Além dos desejados passeios mensais, que variam entre visitas à igrejas, museus ou uma tarde de jogos e caminhadas em algum parque ou fazenda próximas.

Todas estas impressões iniciais são de grande importância, ainda que não suficientes para uma verdadeira compreensão de um seminário. É necessário uma distinção purificadora entre o que é puramente humano e o que é divino. Distinção que costuma ocorrer na metade dos seis anos de formação de um seminarista.

 

O “meio-dia”

Assim como o sol do meio-dia faz sentir seus ardores sobre os já fatigados corpos dos que voltam do trabalho matinal, aumentando as suas penas, assim também os três primeiros anos de estudos, trabalhos e orações continuas pesam sobre o já não tão novato seminarista.

O entusiasmo inicial, mais humano que divino, perde seu impulso e vigor, deixando a inteligência e vontade, já sem a ajuda dos sentimentos, sozinhas no campo de batalha. É chegado o momento de viver o seminário não somente levado pelo exemplo dos companheiros, mas principalmente por uma convicção interior profunda, enraizada não na inconsistente areia dos sentimentos, mas na terra firme da graça de Deus.

Processo tanto mais doloroso quanto maior a alegria de seu desenlace final. Doloroso porque a rotina continua a mesma, não assim seu encanto. Os trabalhos supõem abnegação e sacrifício. O silencio, próprio de religiosos, exige um continuo esforço. A vida comum, ainda que proporcione muitas alegrias, igualmente traz suas dificuldades, desentendimentos, incompreensões.

O seminarista se pergunta: “vale a pena tudo isto?” Aparentemente não se produz nada útil. Os estudos não parecem estar direcionados a uma brilhante carreira no futuro, mas somente à contemplação e transmissão das verdades de fé. Há uma desconexão quase total das noticias do mundo exterior...

Mas justamente aqui está o ponto central que caracteriza uma vida de seminário: uma vez passado o que era mais humano que divino, começa o incrível drama do que é mais divino que humano.

À angustiante pergunta “para que tudo isto?” daquele que busca a solução, responde a nossa solícita Mãe, a Santa Igreja, com suas ternas e profundas palavras: “isto não é uma obra humana. Teu criador criou-te para si, e não para ti; e quer de ti um servidor fiel que dê a conhecer ao mundo a sua verdade e a sua bondade infinitas.”

O jovem coração não sabe o que responder. É algo tão acima do que imaginava nos seus primeiros anos... Confuso, vai em busca do conselho daqueles experimentados sacerdotes que estão a cargo de formá-lo até o ultimo passo, e se assombra ao descobrir que todos os antigos passaram pelo mesmo drama. E vendo neles a imagem de seu futuro, animado, prepara-se para os últimos anos de sua formação.

 

Os últimos anos

Esta nova e consoladora etapa, tão diversa dos anteriores, possui uma luz que transforma em sobrenatural tudo aquilo que lhe parecia tão natural. Todas as atividades quotidianas, desde o lavar pratos até os louvores divinos, tudo se faz para glória do único Deus vivo, por amor, obediência e fidelidade àquele que o criou e lhe pede seu coração.

A liturgia, a mesma de sempre, mas sempre nova, se transforma em uma conservação com Deus. Essa nova alegria, até então desconhecida, vai tomando conta do coração do futuro sacerdote, e vai deixando no esquecimento todas as mundanas alegrias, que se tornam efêmeras ao lado do serviço de Deus e sua glória. Já não pensa em “subir na vida” senão no sentido de crescer em perfeição interior e conhecimento da verdade.

Agora sim, dirá o seminarista, agora sim compreende-se que tantos jovens, tendo à “vida pela frente” venham a confinar-se entre as paredes de um edifício, deixando-se atar sua liberdade ao cumprimento de uma regra. Oh, sim, vale muito mais do que a pena!

 

As despedidas

Porém, aproximando-se o término dos estudos, deve o já experimentado seminarista preparar-se a receber aquilo que justificou seus seis anos de suores, sacrifícios, alegrias e consolações. Aproxima-se sua ordenação sacerdotal. A expectativa do grande dia contagia novos e antigos. Todo o seminário entra numa atmosfera de alegria tanto natural quanto sobrenatural.

O dia anterior à cerimônia é preenchido pelos intensos trabalhos preparativos, é necessário acomodar o refeitório para os numerosos convidados, limpar e preparar a Igreja, sem esquecer o cuidado do parque exterior.

Enquanto a comunidade se agita em ardoroso trabalho, nosso futuro sacerdote faz, silencioso, seu retiro de preparação. São-lhe dadas várias conferências sobre a responsabilidade que pesará sobre seus ombros, e sobre a sublimidade de sua vocação. No entanto também lhe é chamada a atenção sobre a enorme obrigação de fidelidade e gratidão a Deus, que gratuitamente, sem mérito algum de sua parte, confia-lhe o cuidado das almas.

Enfim, soa o sino do tão esperado dia! Com o coração levemente acelerado mas com espírito recolhido, integra a procissão solene de entrada à igreja e, a passos lentos, vai se aproximando do altar daquele que a seis anos atrás, de modo tão escondido havia lhe conduzido ao seminário. O sorriso exterior revela aquele outro interior, tão próprio de um homem, que ao compreender a sua condição de criatura, põe sua alegria em cumprir a vontade de Deus.

 

Conclusão

Quem diria, pois, que um tão sóbrio edifício em suas cores e formas, abrigasse em seus silenciosos claustros tão intensos movimentos de um coração humano, que em seu natural inquieto, busca o conhecimento do amor e da vontade de Deus, seu criador e redentor!

Isto é o coração de um seminário! Coração que recebe o seu impulso vital do coração de Cristo, aberto na cruz, e por outro lado, coração que reparte esta vida divina a todos os homens pela formação de sacerdotes missionários.

Obra essencial da Santa Igreja, um seminário é como uma fortaleza que garante a todo jovem que nela ingressa, não somente proteção e amparo, mas, principalmente, uma formação sólida que lhe abrirá os horizontes do discernimento da verdade e dos desígnios da Providência sobre os homens.

Que Deus se digne, por fim, inspirar em todo cristão ardentes desejos, orações e súplicas pelo florescimento cada vez maior desta tão bela obra, tanto mais necessária quanto maior é a sede de doutrina e vida cristã deste árido mundo moderno.

Não devemos nos render ao mundo, mas render todas as coisas a Cristo

Uma entrevista com o Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre o pontificado do Papa Francisco

 

DICI: Reverendíssimo Padre, passaram-se oito anos desde que o Papa Francisco ascendeu ao trono de São Pedro, e, por ocasião desse aniversário, o sr., bondosamente, concedeu-nos essa entrevista, pela qual estamos verdadeiramente gratos.

Para alguns observadores do pontificado do Papa Francisco, particularmente para aqueles apegados à Tradição, parece que a batalha de ideias acabou. De acordo com eles, agora, há uma praxis que domina, a saber, a ação concreta, inspirada em um pragmatismo amplo. Qual sua opinião acerca disso?

Padre Pagliarani: Eu não tenho tanta certeza de que as ações e as ideias devam ser opostas dessa maneira. O Papa Francisco, definitivamente, é muito pragmático. Mas, sendo um homem de governo, ele sabe perfeitamente bem onde quer chegar. Uma ação de larga escala é sempre inspirada em princípios teóricos, em um conjunto de ideias, normalmente dominadas por uma ideia central, com a qual toda a praxis pode e deve estar relacionada.

Deve-se perceber que todas as tentativas de entender os princípios [por detrás] do pragmatismo do Papa Francisco ainda estão no âmbito da tentativa e erro. Por exemplo, algumas pessoas achavam que tinham encontrado os princípios norteadores de sua ação na teologia del pueblo, uma variação argentina da teologia da libertação – porém muito mais moderada. Parece-me, no entanto, que o Papa Francisco está além desse sistema, e mesmo além de qualquer sistema conhecido. Eu acredito que as ideias que direcionam suas ações não podem ser analisadas e interpretadas de maneira satisfatórias se nos limitarmos aos critérios teológicos tradicionais. Ele não apenas está além de qualquer sistema conhecido, está acima deles!

 

O que o Sr. quer dizer com isso?

Com o Papa João Paulo II, por exemplo -- apesar de tudo que pode ser deplorado em seu pontificado -- certos pontos da doutrina católica permaneciam incólumes. Com o Papa Bento XVI, lidávamos com um espírito apegado às raízes da Igreja. Seu esforço considerável de realizar a quadratura do círculo, ao tentar reconciliar a Tradição com os ensinamentos conciliares ou pós-conciliares, embora condenado ao fracasso, revelavam contudo uma preocupação com a fidelidade à Tradição. Mas, com o Papa Francisco, essa preocupação não existe mais. O pontificado sob o qual vivemos é um ponto de virada histórico para a Igreja Católica: bastiões que ainda existiam, foram agora demolidos para sempre – humanamente falando; e, ao mesmo tempo, a Igreja redefiniu, ao revolucioná-la, sua missão em relação às almas e ao mundo.

Ainda é muito cedo para analisar o escopo integral dessa sublevação, mas já podemos tentar analisá-la.

 

O Sr. disse que os bastiões que ainda existiam foram demolidos. Que bastiões são esses?

Estou me referindo, de maneira particular, aos fundamentos morais últimos sobre os quais não apenas a sociedade cristã, mas qualquer sociedade natural se estabelece. Estava fadado a acontecer mais cedo ou mais tarde, era uma questão de tempo. Até agora, embora sendo vaga às vezes, a Igreja ainda mantinha suas demandas morais de modo um tanto firme, por exemplo acerca do casamento católico. Ela ainda condenava todas as perversões sexuais… Mas essas demandas, infelizmente, eram baseadas em uma teologia dogmática que estava desviada de seu propósito e, portanto, tornada instável. Era inevitável que, um dia, tudo isso iria vacilar. Princípios sólidos de ação não podem se sustentar firmemente por muito tempo quando a ideia de seu Autor Divino é enfraquecida ou distorcida. Esses princípios morais poderiam sobreviver por algum tempo, até mesmo por algumas décadas, porém, privados de sua espinha dorsal, eles estavam condenados a, um dia, ser tachados de “ultrapassados” e negados na prática. É isso que estamos vendo com o pontificado do Papa Francisco, em particular com a exortação apostólica Amoris Laetitia, de 19 de março de 2016. Esse documento não apenas contém erros sérios: ele manifesta um approach novo, completamente historicista.

 

O que é esse novo approach? O que poderia ter determinado sua escolha?

O Papa Francisco tem uma visão geral muito precisa da sociedade contemporânea e da Igreja contemporânea – e mesmo da história como um todo. Ele me parece muito afetado por um tipo de hiperrealismo, uma espécie de hiperrealismo “pastoral”. De acordo com ele, a Igreja deve encarar a realidade: é impossível a ela continuar a pregar a doutrina moral como tem feito até hoje. Ela deve, portanto, render-se às demandas do homem moderno e, consequentemente, repensar seu papel como mãe.

É claro, a Igreja deve sempre ser mãe. Mas, ao invés de ser mãe ao transmitir a vida e ao educar os filhos, será mãe na medida em que saiba ouvir, compreender e acompanhar seus filhos… Essas preocupações, que não são más em si mesmas, devem ser compreendidas, aqui, em um novo e muito particular sentido: a Igreja Católica não pode mais – e, portanto, não deve mais – impor-se. Ela deve ser passiva e adaptar-se. É a vida eclesial, tal como é vivida atualmente, que condiciona e determina a missão da Igreja, e, até mesmo, sua raison d’être [propósito]. Por exemplo, como não pode impor as mesmas condições que impunha no passado para a recepção da Sagrada Comunhão, uma vez que o homem moderno as percebe como uma intolerância inaceitável, a única reação verdadeiramente cristã e realista, ao seguir essa lógica, consistiria em adaptar-se a essa situação e redefinir essas condições. Portanto, por força dos acontecimentos, a moral muda; as leis eternas, agora, estão sujeitas a uma evolução, que se torna necessária em razão de circunstâncias históricas e dos imperativos de uma falsa e mal-compreendida caridade.

 

Na sua opinião, o Papa se sente desconfortável com esse desenvolvimento? Sente necessidade de justificá-lo?

Sem a menor dúvida, o Papa devia estar ciente, desde o princípio, da reação que tal processo provocaria dentro da Igreja. Ele, provavelmente, também estava ciente do fato de que estava abrindo portas que, por mais de dois mil anos, haviam permanecido muito bem fechadas. Mas, para ele, as demandas dos tempos superam quaisquer outras considerações.

É nessa perspectiva que a ideia de “misericórdia” adquire seu valor e escopo completos. Essa ideia de “misericórdia” é onipresente em seus discursos. Ela não é mais a resposta de um Deus de amor, que acolhe o pecador arrependido com braços abertos, para o regenerar e dar-lhe a vida da graça de volta. Ela, agora, é uma misericórdia fatal, que se tornou necessária para satisfazer as necessidades urgentes da humanidade. Daqui em diante, considerados incapazes de respeitar até mesmo a lei natural, os homens têm o direito estrito de receber essa misericórdia, uma espécie de anistia condescendente de um Deus que também se adapta à história, sem dominá-la como antes.

Desse modo, não apenas a fé e a ordem sobrenaturais são abandonados, mas também os princípios morais indispensáveis a uma vida honesta e reta. Isso é assustador, porque significa a renúncia definitiva da cristianização da moral: ao contrário, os católicos, agora, devem adotar a moral do mundo, ou ao menos adaptar – de acordo com o caso concreto – a lei moral à moda atual, incluindo aquela dos casais divorciados “recasados” e mesmo dos casais de mesmo sexo.

Essa misericórdia, portanto, tornou-se uma espécie de panaceia, o fundamento de uma nova evangelização a ser proposta para um século que não pode mais ser convertido e a cristãos aos quais o jugo dos mandamentos não pode mais ser imposto. Dessa maneira, as almas em perigo, ao invés de serem encorajadas e fortalecidas em sua fé, são consoladas e confirmadas em sua situação pecaminosa. Ao agir assim, o guardião da fé revoga até mesmo a ordem natural, o que significa que mais nada sobrou.

O que subjaz esses erros é a ausência total de transcendência ou verticalidade. Não há mais nenhuma referência, mesmo implícita, ao sobrenatural, à nossa vida após esse mundo e, acima de tudo, à obra de Redenção de Nosso Senhor, que, de modo definitivo, deu a todos os homens os meios necessários para sua salvação. A eficácia perene desses meios não é mais pregada, nem mais reconhecida. Eles não acreditam mais neles! Consequentemente, tudo é reduzido a uma visão puramente horizontal e historicista, na qual as contingências prevalecem sobre os princípios, e na qual apenas o bem-estar terreno importa.

 

Esse "ponto de virada", que o Sr. mencionou, continua consistente com o Concílio Vaticano II, ou já pertence a um Concílio Vaticano III, que não aconteceu?

Há, ao mesmo tempo, continuidade com as premissas estabelecidas no Concílio e superação delas. Isso por uma razão muito simples: com o Concílio Vaticano II, a Igreja quis adaptar-se ao mundo, quis “atualizar-se” com o aggiornamento promovido pelos Papas João XXIII e Paulo VI. Agora, o Papa Francisco continua essa adaptação ao mundo, mas em um sentido novo e extremo: a Igreja, agora, deve adaptar-se aos pecados do mundo – ao menos quando o pecado for “politicamente correto”. O pecado, no entanto, é apresentado como uma expressão autêntica de amor, em todas as formas permitidas na sociedade contemporânea e, portanto, permitidas por um Deus misericordioso. São sempre analisados caso a caso, mas esses casos excepcionais estão destinados a se tornar a norma, como já podemos ver na Alemanha.

 

Paralelamente a essa aniquilação progressiva da moral tradicional, o Papa Francisco propõe valores a serem promovidos? Ou, para colocar de outra maneira, na sua opinião, sobre que fundamento ele quer construir?

Essa é uma pergunta muito pertinente, à qual o próprio Papa deu a resposta no dia 03 de outubro de 2020, na sua última encíclica Fratelli tutti, onde afirmou que “trata-se, sem dúvida, doutra lógica”; e ele continua, propondo que aceitemos “o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente […] Esse é o verdadeiro caminho da paz”. Isso é o que se chama de uma utopia, e é isso que acontece a todos que se separam de suas raízes. O Santo Padre, rompendo com a Tradição Divina, aspira a uma perfeição ideal e abstrata, totalmente desconectada da realidade.

Reconhecidamente, na mesma passagem, defende sua posição, admitindo que o que diz “parecerá um devaneio”. Ele também especifica a base na qual ele quer justificar sua posição:  “o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana”. Mas, de modo preciso, a Revelação Divina e a Tradição Católica nos ensinam que a natureza humana e a dignidade humana não são autossuficientes. Como Chesterton diz, “retire o sobrenatural, e o que resta é antinatural”. Sem Deus, a natureza tende a se tornar, na prática, antinatural. Ao chamar e elevar o homem à ordem sobrenatural, Deus ordenou a natureza humana à graça. Portanto, a natureza não pode remover a ordem sobrenatural sem introduzir uma desordem profunda nela mesma. O sonho do Papa Francisco – sua “outra lógica” é profundamente naturalista.

Outro sinal desse caráter utópico, seu sonho toma um escopo universalista: é uma questão de o impor a todos, de maneira autoritária e absoluta. Sendo concebidos de maneira artificial, os sonhos só podem ser impostos de uma maneira artificial...

 

Mas em que consiste a utopia do Papa Francisco?

Em osmose perfeita com as aspirações do homem moderno, imbuído dos direitos que ele reivindica e separado de suas raízes, ela pode ser resumida em duas ideias: a da ecologia integral e a da fraternidade universal. Não é coincidência que o Papa tenha dedicado suas duas encíclicas chave a esses temas, que, como ele mesmo defende, caracterizam as duas principais partes do seu pontificado.

A ecologia integral de Laudato si (24 de maio de 2015) não é nada mais que uma nova moral proposta para toda a humanidade, deixando de lado a Revelação Divina e, portanto, o Evangelho. Seus princípios são puramente arbitrários e naturalistas. Eles se harmonizam, sem a menor dificuldade, com as aspirações ateístas de uma humanidade que está apaixonada pelo mundo na qual vive, e atolada em preocupações puramente materiais.

E a fraternidade universal de Fratelli tutti, defendida pelo Papa de modo muito solente na Declaração de Abu Dhabi, coassinada pelo Grande Imam de Al-Azhar (04 de fevereiro de 2019), não é nada mais que uma caricatura naturalista da fraternidade cristã, fundada na paternidade divina comum a todos os homens, salvo por Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa fraternidade é, materialmente, idêntica à da Maçonaria, que, ao longo dos últimos dois séculos, não fez nada além de semear ódio, particularmente contra a Igreja Católica, em um desejo feroz de suplantar a única verdadeira fraternidade entre os homens possível.

Não é apenas a negação da ordem sobrenatural, reduzindo a Igreja Católica às dimensões de uma ONG filantrópica, mas também é uma falta de compreensão das feridas do pecado original e o esquecimento da necessidade da graça para restaurar a natureza decaída e para promover a paz entre os homens.

 

Nesse contexto, como pode o papel da Igreja ser distinguido do papel da sociedade civil?

Hoje, a Igreja Católica oferece a imagem de um poder sacerdotal a serviço do mundo contemporâneo e de suas necessidades sociopolíticas… Porém, esse sacerdócio não é mais dedicado à cristianização das instituições ou à reforma da moral, que se tornaram pagãos novamente. É um sacerdócio tragicamente humano, sem qualquer dimensão sobrenatural. Paradoxalmente, a sociedade civil e a Igreja, portanto, encontram-se, como no apogeu do Cristianismo, unidos, lutando lado a lado por objetivos comuns… Mas, dessa vez, é a sociedade secularizada que sugere e impõe suas visões e ideais à Igreja. Isso é verdadeiramente assustador: o humanitarismo secular tornou-se a luz da Igreja e o sal que lhe dá seu sabor. A debandada doutrinal e moral dos últimos anos é um bom exemplo do complexo de inferioridade que os homens da Igreja mantêm em relação ao mundo moderno.

E, ainda assim – esse é o mistério de nossa fé e, também, nossa esperança – a Igreja é Santa! Ela é Divina! Ela é Eterna! Apesar dos sofrimentos da hora presente, sua vida interior, em todas as suas dimensões mais elevadas, é, certamente, de uma beleza que delicia a Deus e aos anjos. Hoje, como em todos os tempos, a Igreja Católica dispõe completamente de todos os meios necessários para guiar e santificar as almas!

 

Na sua opinião, como a Igreja pode livrar-se desses erros e regenerar-se?

Primeiramente, devemos rejeitar todas as utopias e voltar à realidade, um retorno aos fundamentos da Igreja Católica. Podemos identificar três pontos chave que a Igreja deve recuperar e começar a pregar novamente, de maneira direta, sem qualquer concessão ou transigência: a existência do pecado original e de seus efeitos (que são a concupiscência tripla de que São João fala em sua primeira Epístola) – e isso é contrário a toda forma de ingenuidade naturalista; a necessidade da graça, fruto da Redenção, que é o único remédio – porém um remédio todo-poderoso – para triunfar sobre aqueles efeitos devastadores; e a transcendência dum fim último que não está nessa terra, mas no Céu.

Pregar isso novamente seria o princípio de “confirmar vossos irmãos”. A verdadeira fé católica seria, novamente, proclamada. É a condição necessária para qualquer vida sobrenatural. É, também, o guardião indispensável da lei natural, que também é divina, eterna e imutável em sua origem, o fundamento necessário para levar o homem à sua perfeição.

Esses três conceitos podem ser resumidos em um único ideal: o de Cristo Rei. Ele é a essência de nossa fé. Ele é o autor de toda a graça. Ele é o autor dessa lei natural que Ele insculpiu nos corações de todos os homens quando Ele os criou. O legislador divino não muda. Ele não renuncia a Sua autoridade. Assim como essa lei não pode ser alterada sem se alterar a própria fé, ela também não pode ser restaurada, sem restaurar ao divino legislador a honra que Lhe é devida.

Para colocar de maneira mais simples, não devemos nos render ao mundo, mas “render todas as coisas a Cristo”. É em Cristo Rei e através de Cristo Rei que a Igreja Católica tem todos os meios para vencer o mundo, cujo príncipe é o pai das mentiras. Através da Cruz, Ele já o venceu de uma vez por todas: “Eu venci o mundo”.

 

O Sr. acha que a Bem-Aventurada Virgem Maria terá um papel especial nessa vitória?

Como essa vitória é uma vitória de Cristo Rei, ela, necessariamente, também será de Sua Santa Mãe. Nossa Senhora é sistematicamente ligada a todas as batalhas e a todas as vitórias de seu Filho. Ela, certamente, estará ligada a essa de um modo muito especial, porque jamais antes houve um triunfo de erros tão sutis e perniciosos, que causaram uma devastação tão generalizada e profunda na vida concreta dos católicos. A prova disso é que, entre os títulos mais belos que a Igreja dá a Nossa Senhora, estão aqueles de “Destruidora de todas as heresias” - ela esmaga a cabeça daqueles que as concebem – e de “Auxílio dos cristãos”. Quanto mais a vitória de um erro parecer definitiva, mais gloriosa será a vitória da Bem-Aventurada Virgem Maria.

 

Essa entrevista ocorreu em Menzingen, no dia 12 de março de 2021,

Festa de São Gregório Magno, Papa

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