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Carta de Dom Carlo Maria Viganò

[Nota da Permanência: Publicamos a seguir a resposta que o Arcebispo Carlo Maria Viganò escreveu ao jornalista Stephen Kokx, do jornal americano Catholic Family News. ]

 

Caro Sr. Kokx,

Li com grande interesse seu artigo “Perguntas a Viganò: Sua Excelência está correto sobre o Vaticano II, mas o que ele pensa que os católicos devem fazer agora”, que foi publicado pelo Catholic Family News no dia 22 de agosto. Estou satisfeito de responder às suas perguntas, que tratam de matérias muito importantes para os fiéis.

Você pergunta: “O que ‘separar-se’ da Igreja conciliar seria na visão do Arcebispo Viganò?” Vou responder-lhe com outra pergunta: O que significa separar-se da Igreja Católica de acordo com os apoiadores do Concílio? Apesar de ser evidente que nenhuma compactuação é possível com aqueles que propõem as doutrinas adulteradas do manifesto ideológico conciliar, devemos notar que o simples fato de ser batizado e ser membros vivos da Igreja não implica aderência ao time conciliar; isso é verdade, acima de tudo, para os fiéis e também para os clérigos seculares e regulares que, por várias razões, consideram-se, sinceramente, católicos e reconhecem a Hierarquia.

Ao invés, o que precisa ser esclarecido é a posição daqueles que, embora se declarando católicos, abraçam as doutrinas heterodoxas que se espalharam ao longo da décadas, com ciência de que elas representam uma ruptura com o Magistério precedente. Nesse caso, é lícito duvidar da sua aderência real à Igreja Católica, na qual eles, porém, detêm posições oficiais que lhes conferem autoridade. É uma autoridade ilicitamente exercida, se o seu propósito é forçar os fiéis a aceitar a revolução imposta desde o Concílio.

Uma vez que esse ponto tenha sido esclarecido, é evidente que não são os fiéis tradicionais – ou seja, os verdadeiros católicos, nas palavras de São Pio X – que devem abandonar a Igreja, na qual eles têm direito de permanecer e da qual seria trágico separarem-se; mas, ao invés, são os modernistas, que usurpam o nome católico, precisamente porque é, apenas, o elemento burocrático que permite que eles não sejam considerados como integrantes de uma seita herética. Essa alegação deles serve, na verdade, para evitar que eles terminem entre as centenas de movimentos heréticos que, ao longo dos séculos, acreditaram ser capazes de reformar a Igreja a seu bel prazer, colocando seu orgulho acima do ensinamento de Nosso Senhor. Mas assim como não é possível reivindicar cidadania de uma terra da qual não se conhece a língua, o Direito, a fé e a tradição; assim também é impossível para aqueles que não têm a fé, a moral, a liturgia e a disciplina da Igreja Católica arrogar-se o direito de permencer dentro dela e, até mesmo, ascender os degraus da Hierarquia.

Portanto, não cedamos à tentação de abandonar – ainda que com uma justa indignação – a Igreja Católica sob o pretexto de que ela foi invadida por hereges e fornicadores; são eles quem devem ser expulsos do Templo Sagrado em uma obra de purificação e penitência que deve começar com cada um de nós.

Também é evidente que há casos generalizados em que os fiéis encontram problemas sérios ao frequentar sua paróquia, assim como há cada vez menos Igrejas onde a Santa Missa seja celebrada no Rito Católico. Os horrores desenfreados por décadas em muitas de nossas paróquias e templos tornam impossível assistir a uma “Eucaristia” sem correr o risco de ser escandalizado e até de colocar a fé em risco, assim como é muito difícil assegurar uma educação católica, a recepção dos sacramentos de forma digna e uma direção espiritual sólida para si e para seus filhos. Nesses casos, os leigos têm o direito e o dever de buscar Padres, comunidades e institutos que sejam fiéis ao Magistério perene. E que eles saibam acompanhar a louvável celebração da liturgia no Rito Antigo com adesão à sólida doutrina e à sólida moral, sem se renderem ao Concílio.

A situação, certamente, é mais complicada para os sacerdotes, que dependem hierarquicamente, do seu Bispo ou superior religioso, mas que, ao mesmo tempo, têm o direito de permanecer católicos e de celebrar no Rito Católico. De um lado, os fiéis têm maior liberdade de movimento para escolher a comunidade na qual eles buscarão a Missa, os Sacramentos e a instrução religiosa, mas têm menor autonomia devido ao fato de que ainda dependem de um Padre; de outro lado, os sacerdotes têm menor liberdade de movimento, pois estão encardeados a uma diocese ou ordem e estão sujeitos à autoridade eclesiástica, mas eles têm maior autonomia devido ao fato de que podem, legitimamente, decidir celebrar a Missa e ministrar os Sacramentos no Rito Tridentino e pregar de acordo com a sólida doutrina. O Motu Proprio Summorum Pontificum reafirmou que os fiéis e Padres têm o direito inalienável – e que não pode ser negado – de desfrutar a liturgia que mais perfeitamente expressa sua Fé Católica. Mas esse direito deve ser usado hoje não apenas para preservar a forma extraordinária do rito, mas para testemunhar a adesão ao depositum fidei que encontra perfeita expressão apenas no Rito Antigo.

Diariamente, recebo cartas agonizantes de Padres e religiosos que são marginalizados, transferidos ou ostracizados por causa de sua fidelidade à Igreja: a tentação de encontrar um ubi consistam (um lugar onde ficar) longe da ira dos inovadores é forte, mas devemos buscar exemplo nas perseguições que muitos Santos enfrentaram, incluindo Santo Atanásio, que nos oferece um modelo de como agir em face à heresia espalhada e à perseguição furiosa. Como meu venerável irmão, o Bispo Athanasius Schneider, muitas vezes lembrou, o arianismo, que afligiu a Igreja no tempo do Santo Doutor de Alexandria no Egito, foi tão espalhado entre os Bispos que, ao olhar para aqueles tempos, podemos quase acreditar que a ortodoxia católica havia desaparecido completamente. Mas foi graças à fidelidade e ao testemunho heróico dos poucos Bispos que permaneceram fiéis que a Igreja soube como se reerguer. Sem esse testemunho, o arianismo não teria sido derrotado; sem nosso testemunho, o modernismo e a apostasia globalista desse pontificado não serão derrotados.

Não é, portanto, uma questão de trabalhar dentro ou fora da Igreja: os trabalhadores são chamados a obrar na Vinha do Senhor, e é lá que eles devem permanecer mesmo que seja ao custo das suas próprias vidas; os pastores são chamados a pastorar o Rebanho do Senhor, a manter os lobos vorazes longe e a expulsar os mercenários que não estão preocupados com a salvação das ovelhas e dos cordeiros.

Esse trabalho oculto e, normalmente, silencioso tem sido feito pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que merece reconhecimento por não ter permitido que a chama da Tradição fosse extinta em um momento em que celebrar a Missa antiga era considerado subversivo e razão para excomunhão. Seus Padres têm sido um salutar espinho no lado da hierarquia que viu neles um paradigma inaceitável para os fiéis, uma lembrança constante da traição cometida contra o povo de Deus, uma alternativa inadmissível ao novo caminho conciliar. E, se a fidelidade deles tornou inevitável a desobediência ao Papa com as sagrações espiscopais, graças a elas a Fraternidade conseguiu proteger-se do ataque furioso dos inovadores e, meramente por sua existência, tornou possível a liberação do Rito Antigo, que, até então, era proibido. Sua presença também permitiu que as contradições e erros da seita conciliar ficassem evidentes, sempre piscando um olho para os hereges e idólatras, mas implacavelmente rígida e intolerante com a Verdade Católica.

Considero o Arcebispo Lefebvre um exemplar confessor da Fé e acho que, a essa altura, é óbvio que a sua denúncia do Concílio e da apostasia modernista é mais relevante que nunca. Não devemos esquecer que a perseguição à qual o Arcebispo Lefebvre foi submetido pela Santa Sé e pelo episcopado mundial serviu, acima de tudo, como meio de intimidação para os católicos que eram refratários em relação à revolução conciliar.

Eu também concordo com a observação de Sua Excelência, o Bispo Bernard Tissier de Mallerais, sobre a coexistência de duas entidades em Roma: a Igreja de Cristo foi ocupada e ocultada pela estrutura conciliar modernista, que se estabeleceu na mesma hierarquia e usa a autoridade de seus ministros para prevalecer sobre a Esposa de Cristo e nossa Mãe.

A Igreja de Cristo – que não apenas subsiste na Igreja Católica, mas é exclusivamente a Igreja Católica – apenas está obscurecida e eclipsada por uma estranha e extravagante Igreja estabelecida em Roma, de acordo com a visão da Beata Anna Catarina Emmerich. Ela coexiste, como o joio com o trigo, na Cúria Romana, nas dioceses, nas paróquias. Não podemos julgar nossos pastores em suas intenções, nem supor que todos eles estão corrompidos em fé e moral; ao contrário, esperamos que muitos deles, até agora intimidados e em silêncio, compreenderão, à medida que a confusão e a apostasia continuem a se espalhar, a enganação a que foram submetidos e, finalmente,  sacudirão o seu torpor. Há muitos leigos que estão erguendo suas vozes; outros, necessariamente, seguirão, em conjunto com bons Padres, certamente presentes em cada diocese. Esse despertar da Igreja militante – eu ousaria chamá-lo quase de ressurreição – é necessário, urgente, e inevitável: nenhum filho tolera que sua mãe seja ultrajada pelos servos, ou que seu pai seja tiranizado pelos administradores de seus bens. O Senhor nos oferece, nessas dolorosas situações, a possibilidade de ser Seus aliados nessa batalha sagrada sob o Seu estandarte: o Rei que é vitorioso sobre o erro e a morte nos permite compartilhar da honra da vitória triunfal e da recompensa eterna que deriva dela, após ter suportado e sofrido com Ele.

Mas, para merecer a glória imortal dos Céus, somos chamados a redescobrir – em um tempo emasculado, esvaziado de valores como honra, fidelidade à própria palavra e heroísmo – um aspecto fundamental da fé de cada pessoa batizada: a vida cristã é uma milícia, e, com o Sacramento da Confirmação, somos chamados a ser soldados de Cristo, debaixo de cuja insígnia devemos combater. É claro que, na maior parte dos casos, é um combate, essencialmente, espiritual, mas, ao longo do curso da história, temos visto com que frequência, diante da violação dos direitos soberanos de Deus e da liberdade da Igreja, também foi necessário tomar armas: recebemos esse ensinamento pela resistência extenuante para repelir as invasões islâmicas em Lepanto e nos arredores de Viena, pela perseguição dos Cristeros no México, dos Católicos da Espanha, e, mesmo hoje em dia, pela cruel guerra contra os cristãos ao redor de todo o mundo. Jamais pudemos entender tão bem como hoje o ódio teológico vindo dos inimigos de Deus, inspirado por Satã. O ataque a tudo que lembra a Cruz de Cristo – à Virtude, ao Bem e ao Belo, à pureza – deve nos inspirar a nos levantar, em um salto de altivez, para reivindicar nosso direito não apenas de não ser perseguido por nossos inimigos externos, mas também, e acima de tudo, de ter fortes e corajosos pastores, Santos e tementes a Deus, que farão exatamente o que seus predecessores fizeram por séculos: pregar o Evangelho de Cristo, converter indivíduos e nações e expandir o Reino do verdadeiro Deus pelo mundo.

Somos chamados a fazer um ato de Fortaleza – uma virtude cardeal esquecida, que, não por acaso, é chamada pelos gregos de força viril,  ἀνδρεία – ao sabermos como resistir aos modernistas: uma resistência que é fundada na Caridade e na Verdade, que são atributos de Deus.

Se você apenas celebrar a Missa Tridentina e pregar a sólida doutrina sem jamais citar o Concílio, o que eles poderão fazer a você? Jogá-lo para fora das Igrejas talvez, e o que mais? Ninguém jamais poderá preveni-lo de renovar o Santo Sacrifício, mesmo que seja em um altar improvisado em um porão ou sótão, como os Padres refratários fizeram durante a Revolução Francesa, ou como acontece, ainda hoje, na China. E, se eles tentarem afastá-lo, resista: o Direito Canônico serve para manter o governo da Igreja direcionado aos seus fins principais, não para os demolir. Deixemos de achar que a culpa do cisma está naqueles que o denunciam e não, ao invés, naqueles que o causam: aqueles que são cismáticos e hereges são os que flagelam e crucificam o Corpo Místico de Cristo, não aqueles que O defendem ao denunciar os carrascos!

Os leigos podem esperar que seus ministros se comportem como tais, preferindo aqueles que provem que não estão contaminados pelos erros presentes. Se uma Missa se torna ocasião de tortura para os fiéis, se eles são forçados a assistir a sacrilégios ou a apoiar heresias e divagações indignas da Casa do Senhor, é mil vezes preferível ir a uma Igreja onde o Padre celebra o Santo Sacrifício dignamente, no rito que nos foi dado pela Tradição, pregando em conformidade com a sólida doutrina. Quando os Padres e Bispos diocesanos perceberem que o povo cristão pede o Pão da Fé, e não as pedras e escorpiões da neo-Igreja, eles deixarão de lado seus temores e atenderão aos legítimos pedidos dos fiéis. Os outros, verdadeiros mercenários, vão mostrar-se pelo que realmente são e só juntarão ao redor deles aqueles que compactuam com seus erros e perversões. Eles serão exterminados por eles mesmos: o Senhor seca o pântano e torna árida a terra na qual crescem amoreiras; ele extingue vocações em seminários corruptos e em conventos rebeldes à Regra.

Os fiéis de hoje têm um dever sagrado: consolar os bons Padres e os bons Bispos, reunindo-se ao redor deles como ovelhas ao redor de seus pastores. Dar-lhes hospitalidade, ajudá-los, consolá-los em suas dificuldades. Criar comunidades na qual não predominem a fofoca e a divisão, mas a caridade fraterna no laço da fé. E, como na ordem estabelecida por Deus – κόσμος – os sujeitos devem obediência à autoridade e não podem fazer nada além de resistir quando ela abusa do seu poder, nenhuma culpa lhes será atribuída pela infidelidade de seus líderes, nos quais está a seríssima responsabilidade pela maneira como eles exercem o poder vicariante que lhes foi dado. Não devemos nos rebelar, mas opor-nos; não devemos nos contentar com os erros de nossos pastores, mas rezar por eles e admoestá-los respeitosamente; não devemos questionar sua autoridade, mas a maneira como eles a usam.

Estou certo, com uma certeza que me vem da fé, de que o Senhor não deixará de recompensar nossa fidelidade, após nos ter punido pelos erros dos homens da Igreja, dando-nos Santos Padres, Santos Bispos, Santos Cardeais e, acima de tudo, um Santo Papa. Mas esses Santos virão de nossas famílias, de nossas comunidades, de nossas Igrejas: famílias, comunidades e Igrejas nas quais a graça de Deus deve ser cultivada com oração constante, com frequência constante da Missa e dos Sacramentos, com o oferecimento de sacrifícios e penitências que a Comunhão dos Santos nos permita oferecer à Divina Majestade para expiar nossos pecados e aqueles de nossos irmãos, incluídos aqueles que exercem autoridade. Os fiéis têm um papel fundamental nisso ao guardarem a Fé nas suas famílias, de tal modo que nossos jovens, educados no amor e no temor de Deus, possam um dia ser pais e mães responsáveis, mas também dignos ministros do Senhor, Seus arautos nas ordens religiosas masculinas e femininas, e Seus apóstolos na sociedade civil.

A cura da rebelião é a obediência. A cura da heresia é a fidelidade ao ensinamento da Tradição. A cura do cisma é a devoção filial aos Pastores Sagrados. A cura da apostasia é o amor de Deus e de Sua Santa Mãe. A cura do vício é a prática humilde da virtude. A cura da corrupção da moral é viver na constante presença de Deus. Mas a obediência não pode se corromper em servilismo; o respeito devido à autoridade não pode ser degenerado em reverência da corte. E não esqueçamos que, se é dever dos fiéis obedecer a seus Pastores, é um dever ainda mais grave dos Pastores obedecer a Deus, usque ad effusionem sanguinis.

 

+ Carlo Maria Viganò, Arcebispo

1º de Setembro de 2020

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