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Category: Pe. Gabriel Billecocq, FSSPXConteúdo sindicalizado

O Sinal da Besta

Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX
 
 
Caros amigos e benfeitores,
 
A seguir, um sermão do Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX, no último domingo depois de Pentecostes, 21 de novembro de 2021, na Igreja de São Nicolas-du-Chardonnet em Paris. É um texto bastante equilibrado, um aviso salutar para que evitemos os excessos aos quais podemos nos inclinar eventualmente nestes tempos difíceis, e um aviso ainda mais salutar para que foquemos na única coisa necessária: Deus e Sua vontade.
 
In Christo Sacerdote et Maria,
 
Pe. Yves Le Roux
 
 
 
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
 
Meus queridos fiéis,
 
Hoje, a Igreja nos dá uma visão verdadeiramente apocalíptica no Evangelho, com Nosso Senhor descrevendo o que, aparentemente, é o fim dos tempos -- tempos difíceis, dolorosos, aqueles dias, que serão abreviados em consideração dos eleitos, como Nosso Senhor mesmo nos diz.
 
Todos nós temos uma pequena curiosidade de saber como essas coisas vão acontecer, como o fim dos tempos vai se dar, e talvez alguns de vocês tenham sido curiosos o suficiente para apanhar o Livro do Apocalipse e tentar lê-lo e adivinhar de maneira mais concreta, mais material, como essas coisas acontecerão. Vocês devem ter lido sobre as famosas bestas do Apocalipse e sobre a "marca da Besta", o sinal da Besta.
 
Meus queridos fiéis, nossa curiosidade sobre essas coisas pode ser mórbida às vezes. A curiosidade mórbida existe: uma curiosidade que nos inclina mais ao pecado do que ao que é belo e bom. Nós podemos constatar com nossos próprios olhos, há exemplos em abundância ao nosso redor. É triste ver quantos jovens se inclinam a más imagens, ao invés de ler o Evangelho ou de se interessar pelo que Nosso Senhor fez durante Sua vida. E temos que reconhecer que nós, também, podemos ser afetados por essa curiosidade mórbida quando pensamos no fim dos tempos, imaginando como o Anticristo será, como ele nascerá, quem ele será, como poderemos reconhecê-lo, qual será a marca do Anticristo... E vocês sabem que as pessoas, hoje, estão fazendo todo tipo de especulação sobre essas coisas. E também está dito no Apocalipse que cada um dos eleitos estará marcado com o sinal de Deus -- e nenhum dos fiéis jamais veio me perguntar qual será o sinal de Deus. Todo mundo só pergunta "Qual o sinal do demônio? Qual a marca da Besta?" Ninguém se pergunta "Qual será o sinal de Deus?" Meus queridos irmãos, isso é apenas um exemplo de como nossa curiosidade facilmente se inclina em direção ao mau e feio do que ao bom e belo, e isso é uma coisa triste.
 
Então, para aquietar essa curiosidade toda um pouco, vamos hoje falar sobre esse sinal da Besta, como ele aparece no Apocalipse e como alguns Padres da Igreja o compreendem. Ouvimos falar muito dessas coisas hoje em dia, infelizmente, graças a tudo que está havendo no mundo.
 
É verdade que o Apocalipse inclui aquela famosa passagem segundo a qual aqueles que seguem a Besta terão uma marca na sua testa e no seu braço, e que eles não poderão comprar nada se não tiverem essa marca. Muitas pessoas estão imaginando que a vacina pode ser a marca da Besta -- da mesma maneira que essas mesmas pessoas imaginaram que os cartões de crédito eram a Besta, e, depois, se perguntaram se os códigos de barras eram, talvez, o sinal da Besta.
 
Então, o Apocalipse acrescenta o nome da Besta, dizendo que é um nome de homem, e o número do seu nome é 666 (seiscentos e sessenta e seis). As pessoas também especulam sobre essas expressões encontradas no Apocalipse.
 
Primeiramente, a marca a Besta é um selo na mão e na testa, e Santo Agostinho explica o que isso significa. Santo Agostinho não descreve esse selo como uma marca visível ao olho, como uma tatuagem ou um chip inserido no nosso corpo. Ele diz que a marca na mão e o caráter na testa significam dois modos de pertencer ao demônio.
 
O primeiro modo de pertencer é a marca na testa, que representa pertencer através da confissão aberta. O primeiro modo de pertencer à Besta é a marca na testa, ou seja, ao proclamar, abertamente, que a Besta é toda-poderosa e, ao mesmo tempo, negar que Deus é todo-poderoso. Outro Padre da Igreja dá a mesma interpretação, a de que uma das marcas da Besta é a negação: a negação de Deus, a negação de Sua onipotência, a negação de que Deus criou o mundo, a negação de Sua Encarnação, negação da Redenção... Em uma palavra, essa marca na testa significa a apostasia, a apostasia do coração. A testa é aquilo que aparece abertamente, e Santo Agostinho explica que o que aparece em nossa testa é o que mostramos no exterior daquilo que está no nosso interior, da mesma maneira que o sinal do cristão é o sinal da cruz, que começamos na nossa testa com nossa mão. Então, assim como o sinal do cristão é o sinal da cruz, através do qual o cristão mostra exteriormente que ele pertence a Jesus Cristo, que ele quer seguir Jesus Cristo, Seu Mestre, e carregar sua cruz; da mesma maneira, o primeiro sinal do demônio, aquela marca na testa, significa que um homem nega Deus abertamente e afirma que o demônio é todo-poderoso.
 
A segunda marca é aquela na mão. Novamente, aqui Santo Agostinho explica que essa marca não é algum tipo de tatuagem ou um chip inserido na mão da pessoa. Explica que, na Escritura, as mãos representam as obras. A segunda marca de pertencimento à Besta são as ações más, as obras do pecado. Aquele que pertence à Besta é aquele que segue o demônio fazendo o mal, praticando o mal, a obra do pecado.
 
Meus queridos fiéis, aí está para vocês o significado dessas marcas, dos sinais da Besta.
 
A nossa salvação não é mais material do que nosso combate, mas sim espiritual. Então, nosso pertencimento a Deus ou ao demônio não é, em essência, algo material. Essencialmente, não é ao inscrever algo em nosso corpo que pertencemos ao demônio, da mesma maneira que não é essencialmente ao inscrever algo em nosso corpo que nos faz pertencer a deus. A primeira marca do nosso pertencimento a Deus é um caráter, um caráter indelével, impresso em nossa alma pelo batismo. Essa é a primeira marca do pertencimento do cristão a Deus. E é esse caráter que lhe dá acesso aos demais sacramentos. A marca do pertencimento à Besta também é um caráter da alma, não um caráter indelével, graças a Deus, mas o caráter de uma vontade que se inclina ao mal e comete o pecado.
 
Nosso combate é espiritual, assim como nosso pertencimento a Deus é espiritual. E pertencer ao demônio também é um fato espiritual. Pertencemos a Deus através da graça, e esse é o sinal pelo qual reconhecemos os eleitos de Deus. Os eleitos são aqueles marcados pelo sinal da graça, em outras palavras, o sinal da caridade, do amor de Deus e da vida de Deus. Pertencer ao demônio significa o pecado. Pertence ao demônio aquele homem que não tem o amor de Deus nele, mas apenas o amor das coisas terrenas, materiais, sensíveis, ou mesmo simplesmente humanas, sem nada além disso.
 
Quanto a esse número, 666 (seiscentos e sessenta e seis), do qual o Apocalipse fala, o Apocalipse também diz que esse número da Besta é "o número de um homem". Santo Irineu talvez seja quem dá a melhor explicação para esse número. Muitas pessoas tentaram encontrar esse número literalmente, ou encontrar o nome que ele contém, da mesma maneira que os rabinos faziam, pois os números na Escritura sempre têm algum tipo de simbolismo. Há até mesmo uma ciência que dá a interpretação dos números. Santo Irineu vai além disso.
 
Os Padres da Igreja estão em consenso quanto ao fato de que esse nome nos permanecerá desconhecido até que o Anticristo apareça. Essa profecia do Apocalipse é como qualquer outra profecia: ela só se tornará clara quando cumprida. Mas Santo Irineu ainda explica que o número 666 está cheio de simbolismos, assim como o número de 144 mil eleitos contados no Apocalipse, 12 mil de cada tribo, como ouvimos na Festa de Todos os Santos. Os números na Escritura, realmente, são simbólicos. O número 7 representa uma perfeição, 8 representa uma plenitude, e 6 representa uma imperfeição. Não apenas qualquer imperfeição, mas os Padres dizem que parar a contagem em seis representa impedir o número de atingir a Deus [que seria a perfeição, representada pelo número 7]. Então o número seis indica não algum tipo de imperfeição natural inerente à criatura, mas um direcionamento do homem a ele mesmo. E Santo Irineu vai além, explicando que o 6 triplo representa um triplo direcionamento do homem a si mesmo: não apenas um pecado da alma, isto é, do intelecto e da alma, mas também um terceiro pecado, que ele chama de pecado do espírito.
 
O pecado do corpo, como sabemos, são todos aqueles pecados que se encontram espalhados hoje em dia -- não há necessidade de nos alongarmos nesse ponto -- [como] os pecados contra a natureza, aqueles pecados que pedem vingança aos Céus. O pecado da alma, isto é, o do intelecto e da vontade, corresponde ao pecado do homem de hoje, que evita que o intelecto atinja a verdade. -- E aqui, meus caros fiéis, precisamos agradecer àqueles que se devotam aos nossos filhos e a dar-lhes uma educação genuína nas verdades que os levam a Jesus Cristo. Mas esse pecado da alma, o de fazer tudo para evitar que a criança atinja a verdade, também afeta a vontade. É outro aspecto daqueles programas de educação modernos, evitar que a criança conheça a verdade, conheça o bem e como ela pode praticar o bem.
 
O último dos três "seis" representa o pecado do espírito, o pecado de nos fecharmos a Deus; é o pecado através do qual o homem recusa a Deus. Esse pecado corresponde à abominação da desolação no Templo Sagrado, talvez como vemos hoje nessa Missa nova, na qual a adoração está completamente direcionada ao homem.
 
Meus queridos fiéis, vocês podem ver como os Padres da Igreja explicam essas palavras misteriosas do Apocalipse, que permanecem misteriosas nos dias de hoje. Precisamos parar de correr atrás de interpretações, uma mais assustadora que a outra. Não importam as dificuldades que estamos enfrentando hoje, não importa as mentiras e erros que nos são apresentados -- e muitos erros e mentiras nos são apresentados! -- não importa quão perigosos sejam alguns produtos que os homens querem injetar em nós, não esqueçamos que a marca da Besta é algo espiritual: ela é o pecado. Pertencemos ao demônio pelo pecado; pertencemos a Deus pela graça e pela caridade.
 
Aí está, meus queridos fiéis. Nosso Senhor é muito claro nesse ponto e nos diz: "Não temais aqueles que podem matar o corpo" -- e disso nós temos, hoje, uma aplicação direta -- "não temais aqueles que podem matar o corpo; ao invés, temei Aquele que tem o poder de atirar ao fogo eterno". E, novamente, Nosso Senhor diz isso a Seus Apóstolos antes de os deixar "Tende coragem; eu venci o mundo". Não temos nada a temer das coisas materiais deste mundo. Devemos temer o pecado. Não devemos temer a morte do corpo; devemos temer a morte eterna.
 
É verdade, meus queridos fiéis, que o futuro nos é desconhecido, e ele pode parecer bastante sombrio. Ainda assim, há coisas que sabemos com certeza absoluta: Deus é nosso Pai, Deus não esquece Seus filhos, Deus protege Seus filhos, Deus alimenta Seus filhos.
 
Não importa as provações que tenhamos de enfrentar, tenhamos uma confiança perfeita: não sabemos os sofrimentos que estão vindo, mas sabemos com certeza absoluta que a graça jamais nos abandonará. Essa é a nossa esperança e a nossa alegria nesse mundo de tristezas.
 
Amém.
 
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

A caridade, amor sobrenatural

Hoje em dia, os católicos são solicitados em toda parte. É impossível percorrer uma rua em Paris sem encontrar um pedinte, impossível encontrar um lugar na França onde não haja um estrangeiro pedindo abrigo. Qual é nosso dever de caridade? Perguntam-se os fiéis.

 

Voltemos às definições

Atualmente, todo mundo fala de tudo, mas não é capaz de dar as definições verdadeiras das palavras ou dos conceitos utilizados. Isso é assim de modo eminente para a caridade. Essa bela virtude foi aviltada pelo naturalismo devastador que há três séculos assola o mundo.

Então, o que realmente é a caridade? O catecismo responde assim: “A caridade é uma virtude sobrenatural, infusa por Deus na nossa alma, pela qual amamos a Deus por Ele mesmo acima de tudo, e amamos ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.”

Quatro pontos vão reter a nossa atenção. A caridade é 1) uma virtude sobrenatural; 2) amor; 3) amor a Deus; e 4) amor ao próximo.

 

Virtude sobrenatural

Sabemos pela fé que recebemos duas vidas distintas e concomitantes. A vida natural é a da nossa natureza humana, recebida de nossos pais. O corpo e a alma, a inteligência e a vontade pertencem a essa vida.

Na sua bondade, Deus quis acrescentar à vida da natureza humana uma outra vida: a sua. O que nós chamamos de vida sobrenatural – por exceder as capacidades da natureza – é uma participação na vida divina. Nós chamamos também de vida da graça, porque ela é um dom puro e gratuito que Deus faz ao homem. É uma elevação a uma ordem muito superior à da natureza do homem. Elevação que não destrói em nada a vida natural, mas antes a aperfeiçoa.

Com efeito, ao nos fazer participar da sua vida divina pela graça, nosso Criador nos atribui um fim ou uma felicidade bem maior que aquela que a natureza abandonada a si mesma poderia nos fazer entrever. A realidade dessa vida sobrenatural, à exemplo da vida natural, tem seus componentes. A graça é a essência dela, as virtudes infusas são os seus princípios de ação. Assim como, com nossa natureza humana, possuímos faculdades que nos fazem agir como homens, do mesmo modo, na vida sobrenatural da graça, possuímos princípios de ação que nos fazem agir não mais apenas como homens, mas como filhos de Deus. Eis o que precisamente são as virtudes sobrenaturais.

A caridade é uma virtude sobrenatural. Dito de outra maneira, só pode existir na alma de quem possui a graça, e sua ação é essencialmente sobrenatural. Possuir a caridade, viver da caridade, realizar atos de caridade não são o apanágio do homem na plena posse da sua natureza, e sim algo próprio dos filhos de Deus, dos que vivem em estado de graça.

 

Um certo amor

Mas, o que é essa virtude? Uma virtude é um princípio de ação. Qual é a ação ou o ato da caridade? Trata-se de um amor, mas não de um amor qualquer. Santo Tomás possui longos e belos textos sobre o tema[1]. A caridade é uma amizade.

A amizade é uma forma particular de amor. O amor é uma atração, um apetite por um bem, um movimento que move o amante em direção ao ser amado.

Esse movimento pode se revestir de uma dupla intenção da parte de quem ama. No primeiro caso, o amante quer se apoderar da coisa amada para si mesmo, para o seu próprio bem ou satisfação. Falamos, nesse caso, em amor de concupiscência, termo que não possui aqui nenhuma conotação moral. Quando o leão é atraído pela gazela, trata-se de amor de concupiscência: ele quer a gazela para si. Também é assim com o homem que cobiça uma Ferrari ou a mulher que deseja uma bolsa de pele de crocodilo. 

No segundo caso, o amor se volta para uma pessoa a quem o amante quer o bem. O ser amado não é mais desejado para si, como no amor de concupiscência, mas é amado em si mesmo, para o seu bem. Fala-se então de amor de benevolência, o que significa etimologicamente, de modo perfeito, a realidade desse amor: querer o bem. Assim, os pais têm pelos seus filhos um amor de benevolência, amor pelo qual desejam o bem aos seus filhos.

A amizade é um amor de benevolência, mas um amor de benevolência particular. A amizade acrescenta, com efeito, à benevolência uma reciprocidade: o amante quer o bem do amado e o amado quer o bem do amante.

Todo amor de benevolência não é necessariamente recíproco. O mestre ou o professor tem pelos seus discípulos um verdadeiro amor de benevolência que, infelizmente, nem sempre é retribuído... A amizade, ao contrário, pressupõe a reciprocidade, porque o amigo é amigo do seu amigo!

Essa reciprocidade merece ser explicitada. Com efeito, para que exista uma benevolência recíproca, é preciso que haja uma troca, algo de comum sobre o qual essa reciprocidade vai ser exercida. Dito de outro modo, existe um bem comum, uma comunhão de bens que permite, aos dois amigos, essa troca de amor.

Assim, toda amizade é um amor de benevolência recíproca, fundada em alguma comunhão ou comunicação de um bem.

 

O amor de Deus

Qual é, portanto, a comunicação do bem na caridade?

Santo Tomás responde de modo tão lapidar, que é quase desconcertante! “Portanto, quando há uma comunhão de bens entre o homem e Deus, posto que Deus nos faz partilhar a sua beatitude, resulta que essa partilha implica em uma amizade.”[2]

O bem comunicado é a beatitude de Deus. Dito de outro modo: o bem comunicado é a própria vida de Deus. Eis o que é a caridade. Um amor recíproco entre Deus e o homem fundado na vida divina, que nos é comunicada pela graça!

Quanta riqueza numa simples definição! Antes de mais nada, a caridade é um amor de Deus, amor pelo qual amamos a Deus tal como Ele se ama, posto que Deus é caridade. Que grande mistério, uma reciprocidade entre Deus e sua criatura!

Deus criou em nós a capacidade de amar (eis o porquê desse amor ser sobrenatural, essa capacidade excede nosso simples poder) e de amá-lo tal como Deus é na intimidade da sua vida trinitária (eis outra razão da caridade ser sobrenatural: o seu objeto está fora do nosso alcance, sendo inacessível e incognoscível a nossa vontade e conhecimento). Compreende-se também que, para viver de caridade, é preciso viver da graça, posto que essa última é uma participação na vida divina. Sem a graça, não há caridade, simplesmente porque não há mais nada de comum entre o homem e Deus. O simples fato de amar a Deus como nosso criador não basta tampouco para definir a caridade, posto que ela excede as capacidades da natureza humana, que não alcança a intimidade divina.

Se compreendemos bem em que consiste a caridade, podemos então nos perguntar em que consiste a caridade pelo próximo. Será ela possível, uma vez que a caridade é o amor recíproco entre o homem e Deus?

 

O amor ao próximo

Nosso Senhor, que nada diz em vão, acrescentou este pequeno inciso a propósito do mandamento de amar a Deus: “O segundo é semelhante a este: amarás o teu próximo...”[3]

Tudo está dito com a palavra semelhante! Não há duas virtudes de caridade. Há uma só que consiste em amar a Deus como Ele se ama, e amar a Deus no próximo por Deus e em Deus.

Tudo permanece sobrenatural no amor ao próximo. O que visa a caridade pelo próximo, não é o seu bem estar material, a quantidade de arroz na mesa ou a qualidade das cobertas com que passará a noite. Isso pode até fazer parte, mas não é o principal. O que define a caridade fraterna é a mesma comunicação que existe na caridade com Deus: a beatitude ou a vida de Deus.

Amar ao próximo é desejar-lhe a graça e a vida divina, é entretê-la nele. Amar ao próximo é ver nele a obra de Deus, por vezes ainda não iniciada, mas a ser começada. Amar ao próximo de modo material é predispor-lhe a receber o amor de Deus, pois aí está a felicidade de Deus a que o homem é chamado.

 

Desvio diabólico

Compreende-se bem, por esses desenvolvimentos, como a caridade foi aviltada. O naturalismo é a chave disso. Pois, após passar pelo filtro desse naturalismo, não restou grande coisa da caridade. Fez-se dela uma aptidão puramente humana, um amor humano. Atribuiu-se a ela um objeto humano: o emigrante; ao qual se acrescentou meios humanos: a acolhida. Para cúmulo, deu-se ao homem um fim humano: o globalismo, sob os aspectos do ecologismo e do respeito pela “mãe terra”.

O diabo é o símio de Deus. Nesse caso, sua força consiste em guardar a palavra caridade esvaziando-a de toda substância sobrenatural a fim de fazer dela um humanitarismo. O pior talvez não seja isso. A força do demônio é de fazer com que aquele que deveria agir como Vigário de Cristo esteja hoje a serviço do globalismo.

 

(Le Chardonnet no. 362 – Tradução: Permanência)

 

[1] S.T., IIa IIae, q. 23.

[2] S.T., IIa IIae, q. 23., a. 1.

[3] Mt 22, 34.

Deus castiga?

Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX

Com essas palavras — “Deus não castiga” — a mídia difunde os dizeres de muitos eclesiásticos, como Dom Éric de Moulins-Beaufort que, por exemplo, afirmou recentemente numa entrevista: “A coerência bíblica leva à convicção de que Deus, o Deus vivo, não age na história para punir.”1

No entanto, a questão está em todos os corações. Nos deparamos nas ruas com dois tipos de homens: de um lado, os que nos insultam e negam Deus, mas que terminam por acusa-lo dos castigos presentes; de outro, os que, considerando esse vírus como uma punição, pedem nossa intercessão a Deus. Deus castiga? Não procuramos aqui saber se o coronavírus é um castigo de Deus, e sim examinar se Deus pode ou não punir.

 

O Antigo Testamento

O primeiro reflexo que nos vêm, quando essa questão vêm a tona, é o de abrir o Antigo Testamento. Deparamo-nos então com a revolta de Coré, Datan e Abiron. Os dois últimos, da tribo de Rubem, apoiavam o levita Corá contra os privilégios de Moisés e Aarão (na verdade, sentiam ciúmes da posição hierárquica dos dois irmãos e fomentavam uma revolta). Apesar de Moisés exortar à humilhação diante de Deus, o orgulho desses homens foi punido ostensivamente. A terra se entreabriu e engoliu as famílias de Datan e Abiron. Quanto à Coré e aos duzentos e cinquenta homens que o apoiavam oferecendo incenso, foram devorados por um fogo que desceu do Céu. No dia seguinte, toda a multidão dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Aarão de serem responsáveis pelas mortes dos das tribos de Rubem e de Levi. Um novo fogo celeste devastou o povo e foi preciso a intercessão do grande sacerdote para pôr fim a esse fogo2.

Encontramos também o episódio da translação solene da arca da aliança para Sião nos tempos de Davi. A arca estava sobre um carro novo puxada por bois quando, de repente, ao chegar em uma eira, os bois escorregaram. Oza estendeu a mão para a arca de Deus e susteve-a. O Senhor indignou-se e Oza caiu morto ali mesmo. A razão? Somente os levitas estavam autorizados a tocar neste objeto sagrado e Oza não era da tribo de Levi. Trata-se claramente de um castigo3

Há muitos exemplos como esse no Antigo Testamento e não podemos citá-los todos. Mas a conclusão de impõe: Deus castiga! De resto, nosso contemporâneos fariam bem em se lembrar do episódio de Sodoma e Gomorra…

 

O Novo Testamento

Dir-se-á, talvez, que era assim na antiga aliança, quando Deus educava o seu povo; doravante, o castigo deu lugar à misericórdia. Com acerto, citarão o episódio da mulher adúltera: “vai, e não peques mais”, diz Jesus. O que apenas corrobora o que já dizia o Profeta Ezequiel: “Não quero a morte do ímpio, mas sim que se converta do seu mau proceder e viva” (Ez 33, 11). 

Os numerosos milagres, as múltiplas remissões dos pecados (Maria Madalena, o bom ladrão etc) não devem ocultar outras páginas do Evangelho. Pense na figueira maldita por não carregar frutos. Releia parábolas como as do rico mau que está no inferno, ou a do homem que comparece às bodas sem a veste nupcial e é lançado no fogo eterno. Medite o capítulo 23 de São Mateus que relata as maldições de Jesus aos Fariseus. Que não se esqueça tampouco com que misericórdia Nosso Senhor expulsou do templo os vendilhões. O episódio de Ananias e Safira, nos Atos dos Apóstolos, também é eloquente! 

Em resumo, é preciso dizer que a nova aliança é uma lei de amor, uma lei de misericórdia. Mas, seria compreender mal a misericórdia divina separá-la da justiça. Ocultar todos os atributos divinos para ficar apenas com a sua misericórdia seria, além de um erro teológico, tomar a Deus por um bonachão.

 

Justiça e misericórdia

Ser misericordioso significa inclinar-se sobre a miséria de outrem para aliviá-la. Ora, a verdadeira miséria do homem é o pecado. Deus, portanto, demonstra uma misericórdia eminente quando, inclinando-se sobre nossos pecados, nos desoprime e nos liberta deles. Mas, aí está: o pecado não é uma miséria como as demais. Não é  apenas uma simples miséria do homem. É também uma ofensa feita a Deus. Há, portanto, esse duplo aspecto a ser considerado ao se falar da miséria moral do homem: o homem é miserável porque ofendeu a Deus.

Sendo assim, Deus não pode agir com misericórdia para com o homem sem que ele possua uma genuína vontade de pedir perdão e reparar a ofensa cometida. Ora, pedir perdão e reparar pelas ofensas são atos de justiça.

Só há misericórdia, portanto, se há justiça. E a justiça exige uma reparação à altura da falta. Esta reparação é, propriamente falando, um castigo, uma pena, ou ainda, uma penitência. Deus tem de castigar para fazer misericórdia.

Pode-se objetar que são muitas as almas que se beneficiaram da misericórdia divina sem que tivessem de sofrer um castigo. Mas isso seria esquecer que a obra de justiça por excelência é a Paixão de Jesus e a sua morte na Cruz. Trata-se de um castigo verdadeiro, de uma punição pelos nossos pecados. “Ele se fez pecado” diz São Paulo, e aplacou a ira divina com a sua morte.

A misericórdia de Deus com respeito ao homem decorre da Paixão e da Cruz de Nosso Senhor. Dito de outra maneira, decorre daquele ato de justiça pelo qual Deus tornou-se propício a nós. É a partir daí que Deus nos é misericordioso e alivia a nossa miséria, nos convida a segui-lo no caminho da Cruz.

São Paulo dizia ainda: “[Eu] completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Cl 1, 24) dando a compreender que a todo homem há um dever de viver na penitência em espírito de reparação. “Ou sofrer, ou morrer”, dizia ao seu modo a grande Santa Teresa.

Infeliz do homem que não quer se arrepender dos seus pecados. A esses corações endurecidos na sua miséria, é preciso temer a cólera divina. “Se isto se faz no lenho verde”, disse Jesus as mulheres de Jerusalém, “que se fará no seco?”

 

As vias insondáveis da Providência

Deus não quer a morte do pecador. Ele quer a sua conversão. Mas há pecadores que não querem se converter, que desejam a sua morte espiritual. A conversão de tais pecadores só se obtém — quando se obtém — pelo sofrimento do Justo e dos justos. É amiúde pelo castigo dos que lhe são agradáveis que Deus, vendo nos corações de tais santos uma generosidade de amor, inclina-se para a misericórdia para com as almas endurecidas.

O castigo dos justos aqui em baixo é muitas vezes o prelúdio de conversões extraordinárias. “O sangue dos mártires é sementeira de católicos”, já dizia em seu tempo Tertuliano. As almas religiosas e enclausuradas são muitas vezes almas reparadoras que atraem numerosas graças de conversão. Por onde se pode mensurar a loucura dos padres conciliares que abriram de par em par as clausuras monásticas.

Quanto aos que recusam a conversão, São Bernardo deplora muitas vezes a sua prosperidade material como sendo a justa recompensa da sua miséria moral: usufruem desde já da recompensa de que serão privados na eternidade. Sim, um dia serão castigados por seu pecado, mas nada impede que também o sejam aqui embaixo. Há, pois, um mistério, e é o mistério da unidade divina, na qual se encontram intimamente unidas a justiça e a misericórdia divina. Deus continua a castigar pois o pecado é para Ele uma ofensa incomensurável. Mas, esse castigo aceito pelos justos converte-se em misericórdia e perdão das ofensas.

 

Deus não castiga

Dizer que Deus não castiga é uma loucura de consequências portentosas. Equivale a tomar o nosso Bom Deus por um ser bonachão e fraco, voltado para o homem como para o seu fim; ao invés de tomá-lo como um Pai ávido pela nossa perfeição. 

Dizer que Deus não castiga equivale a dizer o pecado não o atinge. É tornar supérflua a paixão e morte de Nosso Senhor sobre a Cruz, inútil o Santo Sacrifício da Missa, ociosa a vida religiosa, infecunda e fútil a penitência. Quem não reconhecerá nisso os frutos amargos da nova religião do homem? Como, então, se assombrar ao ver os próprios bispos ousando afirmar que Deus não castiga?

Sempre podemos responder-lhes que Deus não pune diretamente, mas se serve da estupidez e da perversidade dos ímpios para que se punam uns aos outros pelas descobertas científicas do seu incomensurável orgulho. A auto-destruição da Igreja engendrou a auto-destruição da humanidade…

 

 

  1. 1. Entrevista no jornal Figaro, 10 de abril de 2020
  2. 2. O relato se encontra no capítulo 16 o livro dos Números
  3. 3. Esse castigo não nos permite prejulgar da danação de Oza. o castigo tem, sobretudo, valor de exemplo, para ensinar o respeito pela lei divina
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