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Category: Gustavo CorçãoConteúdo sindicalizado

Lei-Ming-Yuan

Gustavo Corção

 

Nesses dias andei pela China. Mais precisamente e graças ao livro de Chanoine Jacques Leclercq (Vie du Père Lebbe — Casterman, 1955), fiz na minha poltrona uma viagem no espaço e no tempo, e andei pela China de quarenta anos atrás, tentando acompanhar, como me permitissem as pernas da imaginação a incrível, a fabulosa trajetória do personagem meteórico que no Ocidente se chamou Vicente Lebbe, e que milhões de chineses, com amor e veneração chamaram Lei-Ming-Yuan, que quer dizer trovão-que-canta-ao-longe.

Vicente Lebbe foi padre lazarista e missionário da China. Sua grande originalidade consistiu em levar a sério, alegremente, o fato de ser lazarista e o fato de ser missionário. Mas a sua suprema originalidade consistiu em levar a sério a China. Foi sempre o que Chesterton chamava “um super-vivo”. Direto como um pássaro, autêntico como uma flor, ágil como um gato, o Pe. Lebbe, em quarenta anos de lutas, de contrariedades, de perseguições, de trabalhos, de perigos nas viagens e nas guerras, guardou intacto o fogo que nos retratos se vê brilhar, com invencível alegria, nos seus olhos de menino.

Foi aos onze anos no colégio da Bélgica que sua alma, num pulo, tomou a resolução definitiva. Tinham-lhe indicado a leitura da vida do bem-aventurado Jean Gabriel Perboyre, lazarista, morto na China em 1840 como testemunha de Cristo. Terminada a leitura, o menino exclamou: “serei lazarista, e missionário na China”. Doze anos mais tarde, vencendo uma série de preconceitos e de hábitos eclesiásticos, e graças ao inesperado apoio de um velho bispo, embarca, ainda seminarista, para o país dos seus sonhos. Durante a viagem vai aprendendo o chinês. Chegará a falar tão bem o idioma, e a conhecer tão intimamente os costumes e os hábitos chineses que mais tarde só saberão pelas feições que ele é um estrangeiro. Coisa que aliás o magoava. “Não olhem para o meu nariz, mas para o coração que é chinês”.

Em outubro de 1901 ordena-se padre e escreve à família anunciando que agora é padre chinês da Igreja na China. E nos cartões de sua ordenação imprime o conselho de Paulo a Timóteo: “Tu vero labora...”

Outra coisa a ser tomada ao pé da letra. E do mesmo apóstolo dos gentios tira o Pe. Lebbe as diretrizes da ação missionária. “Sim, sendo livre fiz-me escravo a fim de ganhar o maior número. Fui judeu como os judeus para ganhar os judeus, com os sujeitos à lei, eu que não estou sujeito à lei, sujeitei-me a fim de ganhar os que estão sujeitos à lei; e com aqueles que estão sem lei, como estivesse eu sem lei, embora esteja submetido à lei de Deus e ao Cristo, tornei-me sem lei para ganhar os que estão sem lei. Fiz-me fraco para com os fracos ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos a fim de salvar a todos...” (1Cor 9, 20-22)

Mas logo ao desembarcar Vicente Lebbe começa a descobrir com assombro que os missionários europeus não parecem muito apegados ao exemplo paulino. Descia a escada do navio, lépido e esperançoso, quando ouviu um padre mais velho dizer-lhe que entregasse a mala a um coolie. Um missionário não devia carregar a própria mala.... Mais tarde, em Na-Kia-Chwang, onde seria ordenado, observa que os padres chineses não comem à mesa dos europeus. E em tudo o mais, o que é chinês é desprezível e subalterno para a superior raça branca que fazia o favor de trazer a civilização e o Evangelho.

Vicente Lebbe, via com seus próprios olhos, que nesse tempo sofriam longa e cruel enfermidade, via, concretizado, brutalmente corporificado, espessamente realizado, o secular equívoco de uma civilização fundada no orgulho e no direito da força. E com maior tristeza esbarrava com o equívoco ainda mais grave: o da vinculação que insidiosamente se estabelecera entre os estatutos dessa civilização e os costumes dos homens da Igreja. Sob o falacioso pretexto de coordenação de esforços para a prática do bem, tantas vezes invocado pelos que aspiram ao conforto de uma religião oficializada, os padres missionários franceses se comportavam como meros funcionários a serviço dos superiores interesses do Protetorado. Provavelmente julgavam que essa subordinação era vantajosa para a pregação do Evangelho, e que outra não era a doutrina relativa às autoridades constituídas e à união da Igreja com o Estado. E assim a Cruz de Cristo chegava aos chineses acompanhada da bandeira francesa, e às vezes protegida pelos canhões. Custa a entender que alguém escolhesse a espinhosa vocação missionária sem nela incluir uma fraterna ternura pelos povos a que se levava o Evangelho. Custa a crer que não lhes ocorresse a ideia da transcendência da Igreja, ou até a ideia mais chã de que, para um chinês, pode haver uma dignidade e um brio de ser chinês. Mas é com essas coisas dificilmente críveis que se desenrolou, através dos séculos, a história trágica da Igreja. A grande, a permanente tentação é a da vinculação da Igreja, aos quadros temporais, é a da recusa da transcendência de sua vocação.

Comentando a recente e vergonhosa história do colonialismo na China, o cônego Leclercq diz sem rebuços:

“Foi a França que interveio a favor das missões e obteve em 1846 um edito de tolerância. Desse dia em diante os missionários tornaram-se clientes da França. Já a guerra do ópio se assinalava por vantagens concedidas às missões. Toda a história das relações entre a China e o Ocidente será doravante marcada pela predominância da força (...). As missões se prendem nessa engrenagem (...). A confusão entre a religião cristã e a política europeia se torna inextrincável. Os missionários aproveitam a força da Europa, e armazenam os ódios...

Mas a maior parte dos missionários não vê nisso algum mal. Bons europeus eles acreditam ingenuamente na superioridade de tudo que é europeu (...). Juntava-se a isto o nacionalismo, produto do século XIX. A França tinha assumido o protetorado das missões, aliás sem ouvir a Santa Sé.

A maior parte dos missionários eram franceses e sentiam-se inclinados a favorecer a política expansionista de seu país, tudo fazendo para que vingasse na China, o amor pela França e o conhecimento da língua francesa, e ao mesmo tempo, o amor pelo Cristo e o conhecimento da religião”.

Mas adiante o cônego Leclercq não hesita em dizer: “Depois de tudo o que dissemos, o que espanta é que ainda existam cristãos na China, e que ainda se observem conversões, e até que muitos cristãos chineses tenham um fervor que raramente se encontra na Europa”.

Ora, é nesse enorme mundo tão maltratado pela chamada civilização cristã, é nesse imenso mundo de expectativas decepcionadas que desembarca em 1901, um pobre magricela, doente, quase cego, com a ideia de ser chinês entre os chineses, para ganhar os chineses. Com paciência fremente, com benignidade candente, com obediência sobrenatural em grau heroico, o Pe. Lebbe começa a mais espantosa vida de que já ouvi falar. Dia a dia realiza uma entrega, uma doação, um desgaste que nos deixa atônitos. “Le Père Lebbe se despense! ” ... diz simplesmente o cônego Leclercq. Seria melhor, talvez, dizer, que o Pe. Lebbe se queima, se incendeia, e corre a China incendiando e queimando.

Seria ainda melhor, talvez, dizer que ele se gasta numa combustão mais profunda, como o urânio nos reatores nucleares, para frisar a colossal desproporção entre a energia que produz e a magra energia que a alimenta. Lendo essa vida espantosa, percorrendo nas páginas do livro a progressão geométrica dos feitos, chegamos a pensar que o conhecido e austero tratadista de Direito Natural perdeu a noção da medida, ou perdeu a razão. Quando, porém, se considera o nome e o veredito que merece o autor, então... então vêm-nos a impressão arrebatadora de uma divina loucura. Dir-se-ia que o Pe. Lebbe foi designado para compensar sozinho, com a única força da Graça entre tantos espinhos na carne, o himalaia de erros, de omissões, de tolices, de burrices, de perversidades semiconscientes e de crueldades voluntárias de quatro séculos de civilização. Dir-se-ia que Deus deixou o Pe. Lebbe aprender depressa o chinês, e providenciou quem lhe desse uma velha bicicleta, para que ele assim armado, com sua magreza e sua pobreza, pagasse a dívida atrasada, a dívida terrível contraída pelas grandes nações do mundo ocidental; para que ele sozinho com a força da Graça, devolvesse às missões a comprometida transcendência, e à civilização colonizadora a perdida dignidade; para que ele, com seu rabinho e seu longo cachimbo, neutralizasse de algum misterioso e insondável modo o horror da guerra do ópio, só comparável em hediondez aos horrores produzidos pelos regimes autoritários.

Toda a obra do Pe. Lebbe na China, de que tentaremos dar um esboço em outro artigo, girou em torno da universalidade da Igreja e do direito dos chineses formarem sua Igreja. Sua ideia fixa, que viu realizada através de um milhão de dificuldades, era a de ver constituído o episcopado chinês. Os prudentes mandavam informações contrárias a Roma. Ameaçavam com o cisma. Gabavam a vantagem do paternalismo, mas o Pe. Lebbe teve a alegria, no fim da vida, de ver sagrados seis bispos chineses, seis bispos escolhidos por ele, nomeados com um pedaço de lápis que ele depois guardou como relíquia.

Vê-se em tudo o que nos conta o cônego Leclercq que a vida do Pe. Lebbe tem o mais autêntico e clássico espírito paulino, e ao mesmo tempo a melhor marca da atualidade.

Como São Paulo, o Pe. Lebbe combate, com as santas armas da paciência e da obediência, os privilegiados que se julgam donos dos evangelhos.

Como São Paulo, choca-se com os corações circuncisos que tem desprezo pelos gentios, ou que, na melhor das hipóteses, vê nos chineses alguma coisa a ser cuidada, do alto, com benevolente paternalismo. E as cenas que o cônego Leclercq descreve no seu livro, a cada instante nos transportam para os séculos da Igreja-Mártir, ou para os claros dias dos Atos dos Apóstolos. Com uma pequena diferença apenas. Aqueles que todos os dias, com um só coração se reuniam no templo, e partindo o pão com júbilo e simplicidade, louvavam a Deus, e cujo número o Senhor cada dia aumentava por onde passava o Pe. Lebbe, eram um pouco diferentes dos que cercavam Pedro e Paulo: tinham os olhos oblíquos e pele dourada...   

 

 

(Diário de Notícias, 06/10/1957)

A hora da China

Gustavo Corção

 

Abra o mapa da China, leitor, e considere a imensidão desse país junto ao qual o nosso fica pequeno. Observe depois sua forma regular, maciça, compacta, e note que todos os grandes rios correm com uniforme direção para o litoral convexo, relativamente exíguo, que parece um ventre aos nove meses de gravidez. A China é grande e redonda. É um mundo.

Nas primeiras páginas de sua História da França, Michelet diz que no princípio a história é geografia. Mais tarde, e com maior cópia de razões científicas, Toynbee explicará a lentidão da marcha asiática pela predominância das terras e dos transportes terrestres sobre os mares e a navegação. Realmente, tudo parece indicar que o surto de progresso do mundo ocidental em boa medida se deve à navegação. Embora seja bípede e terrestre, foi no mar que o homem se espalhou, e foi com as caravelas, ao mar e ao vento, que o homem afirmou o senhorio do mundo. Desde a antiguidade, e durante a Idade Média, a história da civilização ocidental transcorre numa espécie de anfiteatro de povos em torno do Mediterrâneo. Na Renascença a Europa se abre. Há uma extroversão, digamos uma explosão. A forma fechada e nuclear da antiga civilização se mudou em forma estrelada. De côncava e mediterrânea, a civilização se torna, convexa e atlântica. De Florença desloca-se para Antuérpia a primazia comercial.

Examinando o mapa-múndi e pensando nos últimos dois mil anos de história, somos levados a crer numa correlação entre os feitos dos povos e a forma dos territórios. É nos países de desenhos irregulares, de saliências e reentrâncias, de penínsulas e golfos, que surgem as grandes iniciativas. A Grécia é uma palma de mão aberta sobre o Egeu; A Itália é a bota de sete léguas de onde se alastrará o Império. Dir-se-ia que a terra assim configurada possui o poder das pontas. Dir-se-ia que dos cabos e das penínsulas saem jorros de iniciativas que irão fecundar os golfos. Comparemos os desenhos da Europa com os contornos da África e da Ásia. E observemos o que acontece no novo mundo quando a Europa transbordou. É ainda na América do Norte, mais recortada, mais irregular, que o ímpeto europeu encontra o melhor terreno. A América do Sul, com seu único promontório perdido nas brumas do cabo Horn, será um continente de países subdesenvolvidos. É claro que há outros fatores a considerar, mas não deixa de ser estranha a constância da correlação. E quando volvemos a imaginação para os dias longínquos em que o continente americano se povoou com tribos oriundas da Ásia, é lá ao Norte, no rendilhado Estreito de Bering, entre duas penínsulas, que ocorre o transbordamento dos povos asiáticos.  

Ora, a China é maciça, regular, redonda. A china é imensamente terrestre. Daí talvez o seu atraso medido na cronometria europeia. Durante os séculos em que predominou a civilização marítima, que culminou com a apoteose imperial sustentada pela esquadra inglesa, a China esteve à mercê da exploração dos ávidos europeus. E esteve à mercê de sua orgulhosa proteção.

Mas os tempos passam. A grande iniciativa europeia amortece, o inicial “handicap” se faz menos sentir, e as próprias máquinas produzidas pela civilização ocidental, tornando fáceis as comunicações por terra e pelo ar, vêm oferecer oportunidades novas aos países atrasados. E é nesse momento, quando soa a hora da China, que lá desembarca aquele personagem candente e meteórico que foi o Pe. Vicente Lebbe.

Como disse em artigo anterior, o Pe. Lebbe parece ter a missão de corrigir sozinho os erros de séculos de uma civilização que oficializou os egoísmos e os abusos da força. Seu ideal supremo foi o de desvencilhar a pregação evangélica dos vínculos políticos, e o de estabelecer na China um episcopado chinês. Em quarenta e tantos anos de vida prodigiosa o Pe. Lebbe se multiplica. Começa muito modestamente por trabalhos de catequese num lugarejo do Norte. A semente cresce. Os resultados se avolumam. E quando a gente pensa que a atividade do Pe. Lebbe já chegou a um ponto quase inadmissível, ele se duplica, se triplica.

Tudo na sua vida é marcado por uma estranha capacidade de multiplicar. Vejam, por exemplo, aquela história tocante, que repete a do bom samaritano. O Pe. Lebbe encontra um pobre homem caído numa estrada. Salta da bicicleta e cuida dele. O homem vai-se embora. Meses depois o Pe. Lebbe recebe uma carta contando que o homem, chegando em casa, converteu toda a aldeia e pede um padre. Do lugarejo insignificante passa o Pe. Lebbe para Tientsin, e aí se desdobra em um novo tipo de atividade. Funda um centro de cultura, como o nosso Centro Dom Vital. Em poucos meses ocupa nove salas onde todos os dias faz conferências para os letrados. Escreve em jornais. Entra em contato com os poderosos, e atende a todos os humildes. Com seu amor pelos chineses, cria dificuldades com as autoridades francesas, e consequentemente com os seus superiores. Toda a organização burocratizada dos missionários europeus tem medo do Pe. Lebbe. Todos desejam vê-lo afastado. Vê-lo inutilizado. Os medíocres não toleram a presença daquele homem de fogo que pretende levar até as últimas consequências os evangelhos e as epístolas paulinas. Conseguem puni-lo. Pe. Lebbe cometeu imprudências num jornal de Tientsin, e indispôs-se com o cônsul francês. É mandado para longe. Obedece, mas não se corrige da mania de pensar que os chineses são homens como os franceses e muito menos da mania de atender a todo o mundo. Onde ele chega, ainda que nenhum aparelho de propaganda o anuncie, começa logo uma efervescência como se realmente ele carregasse consigo um misterioso trovão de longo alcance: Lei Ming Yuan, trovão que canta ao longe. Recomeçam os casos, os incômodos, e os seus burocratizados superiores o enviam para mais longe ainda, para o Sul, onde a língua é diferente e onde ainda não chegou o ribombo do seu coração. O Pe. Lebbe obedece, mas não se corrige. Em sofrimentos cruciantes adapta-se e reaprende o idioma, e recomeça o incêndio das almas. O único jeito é devolvê-lo à Europa. Devolveram-no e suspiram aliviados, mas na Europa o Pe. Lebbe trabalha duas vezes mais, três vezes mais, pela causa dos estudantes chineses. Ajuda, ensina, faz campanhas para obter fundos, conta histórias do Oriente, faz conferências. Passa dias sem comer e dias sem dormir. Quando o convidam para um jantar come como três, e todos se admiram porque tinham ouvido falar no seu ascetismo. Mas ele comia por três dias. E também dormia por toda a parte justamente porque nunca dormia direito. Uma vez foi convidado para fazer conferência num colégio de religiosas e, tendo chegado com certo adiantamento, foi levado a um parlatório onde pediram que aguardasse a hora da conferência. Sentou-se e dormiu. Meia hora depois foi preciso sacudir-lhe e jogar-lhe água na cabeça para que ele acordasse. Estremunhado olhou em volta, perguntou em que país estava e qual era o tema anunciado para a conferência. Chegou a Roma o canto do trovão. É ouvido por um cardeal que agradece ao Pe. Lebbe sua exemplar obediência e que lhe anuncia a próxima realização do seu ideal. Não só um bispo chinês será sagrado, mas seis.

— Foi a sua obediência que salvou tudo... que Deus abençoou...

E o Pe. Lebbe, sucumbido de emoção, só pôde gemer:

— Oh!

Tratava-se agora de escolher os nomes dos padres chineses mais indicados para a dignidade episcopal. O Cardeal Van Rossum pede ao Pe. Lebbe um toco de lápis e escreve os nomes que ele dita: Chao, Ch’eng, Ch’en, Li... Mas a sua emoção é forte demais. Declara que devem existir outros. E inundado de lágrimas, guarda como relíquia o toco de lápis.

A sagração dos bispos chineses estava marcada para 24 de outubro, festa de Cristo Rei. O Papa transferiu-a para o dia 18, por diversos motivos, e sem saber que nesse dia se completavam os vinte e cinco anos de sacerdócio do Pe. Lebbe.

Volta para a China, e é designado para Kao-kya-chwang, e aí recomeça seu trabalho de catequese e de apostolado. Retoma a bicicleta, e estranha um esquisito cansaço nas pernas depois de trinta quilômetros. Não se lembra que tem sessenta anos. Retomando a ideia iniciada em Tientsin, lança a Ação Católica. Funda um sem-número de grupos como os tantos que por iniciativas diversas apareceram no mundo ocidental. A JUC, a AUC, a JFC, a JIC, e tantas outras siglas nossas conhecidas, surgem na China por iniciativa do Pe. Lebbe. Tem voz para letrados, para estudantes, e para camponeses. É tudo para todos. E para equilibrar e completar essa imensa atividade, funda um mosteiro para uma nova ordem de religiosos: os irmãozinhos de João Batista. À semelhança do Père Foucauld na África, o Pe. Lebbe enche de Petits Fréres a China. Funda depois uma casa religiosa para mulheres...

Em 18 de setembro de 1931 as tropas japonesas invadem a Manchúria, e então começa uma nova fase, uma incrível e fantástica maneira de envelhecer, na vida do Pe. Lebbe. Movimenta seus mais próximos fiéis e organiza o serviço de padiolas e de cruz vermelha. Está entre os soldados, animando, confortando, convertendo, batizando, e carregando os feridos. Nesse ponto da leitura, como já disse em outro artigo, a gente tem a impressão de que o austero Cônego Jacques Leclercq, conhecido tratadista de Direito Natural, enlouqueceu. Sim, enlouqueceu e está tentando nos inculcar, como verdadeira, uma história no gênero das do Barão de Münchhausen. É demais! E se o leitor quer ter uma ideia leia o livro impossível de resumir: Vie du Père Lebbe, Chanoine J. Leclercq, Casterman.

Ouvi dizer que havia aqui perto um padre do Verbo Divino que estivera na China. Fui entrevistá-lo. Quando lhe falei no Pe. Lebbe o velhinho animou-se, brilharam-lhe os olhos, e disse: “Era um homem de fogo...”

Mas agora, irresistivelmente, nos vem uma ideia triste. De que valeu tudo isto? Parece que o Pe. Lebbe chegou atrasado e não conseguiu neutralizar quatro séculos de estupidez e de orgulho europeu. Parece que sua obra se perdeu. A China de hoje recebeu da Rússia uma influência aparentemente mais eficaz.... Estava eu nesse desânimo quando li no livro do Cônego Leclercq esta simples frase: “lembremo-nos, entretanto, que o comunismo não recebeu nenhuma promessa de eternidade...”. É verdade. Temos de esperar. Duzentos ou trezentos anos. As sementes do Pe. Lebbe hão de frutificar na hora que Deus marcou para a China, e quem sabe se não é daquele grande ventre amarelo que nascerá uma nova e grande civilização cristã?

 

(Estado de São Paulo, 13/10/1957)

Um critério e uma palavra

Gustavo Corção

Nos textos do Concílio Vaticano I que transcrevemos nos últimos artigos -- e mais especialmente aquele que trata da infalibilidade, e da autoridade ensinante da Igreja e do Sumo Pontífice, vimos bem realçado um bom critério, com que se reconhece entre todas a voz da Igreja de Cristo, e com o qual qualquer fiel, pela infalibilidade natural da razão nos seus primeiros princípios e até o nível do senso comum nos mais próximos e evidentes corolários poderá discernir a santa doutrina da "outra", e obedecer ao enérgico conselho do Apóstolo que manda repelir os pregadores de "outro evangelho", sejam eles apóstolos, papas ou anjos (Gl 1, 8).

Este critério é o seguinte: só se reconhece a voz da Igreja, e só se reconhece a autenticidade de seu ensino e portanto o valor benéfico e salvífico de qualquer ato de sua hierarquia, onde a idéia de continuação de uma identidade tiver claro realce, ou pelo menos não for obscurecida e até contrariada pela idéia de uma inovação. Retomemos por exemplo o texto do cap. IV da Sessão IV do Concílio Vaticano I, onde se concentra o condicionamento e a definição da infalibilidade: "Pois, em verdade, aos sucessores de São Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que propaguem uma nova doutrina segundo suas próprias revelações MAS PARA QUE COM SUA ASSISTÊNCIA GUARDEM santamente e exponham fielmente a revelação transmitida pelos apóstolos, isto é, o depósito da fé" (op. cit., pág. 492).

Ora, se percorrermos os mais significativos textos conciliares e pós-conciliares observaremos sem dificuldade que a idéia de inovação é obsessiva e define bem o espírito que as guiou.

Antes de exemplificarmos e de tirar consequências, insistamos no valor teológico, metafísico, e de senso comum de nosso critério. De início todos nós sabemos que as coisas criadas estão em constante movimento, sobretudo as coisas corpóreas, e por conseguinte, a mobilidade está mais do lado da matéria, enquanto a imutabilidade está no lado de Deus, no lado do espírito, e até no da forma inteligível das coisas deste inquieto mundo, ou deste "restless universe", como disse Max Born, prêmio Nobel de Física. Psicologicamente segue-se que a atitude de uma alma é tanto mais alta e mais sábia quanto mais procurar as coisas, e idéias imutáveis; e será tanto mais pueril, primitiva ou selvagem quanto mais vivamente se interessar pelas coisas móveis, por tudo que passa e que muda.

Ora, a tragédia de nosso tempo, decorrente de quatro ou cinco séculos de empirismo crescente, está no fato de ter atingido as cúpulas da Igreja o primado da novidade sobre o da perenidade. Creio que qualquer leitor já percebeu que dentro desta atmosfera é difícil falar de Deus, e que tudo convida a falar de evoluções e revoluções. Ou de nada: que é o grande assunto. 

Na Sagrada Escritura o termo novo tem um sentido de especial elevação quando se refere ao único necessário, que poderíamos chamar o único novo. Em três livros principais este termo significa a única grande coisa nova na história do mundo, antes da qual o amargo Dom de Ciência dos autores do Eclesiastes diziam: nihil novum sub sole, para marcar a melancólica monotonia de um universo em irresistível processo de envelhecimento.

Em contraste com o desprezo bem assinalado em toda a Sagrada Escritura pelas novidades menores que fazem comichões nos ouvidos e na alma, o termo novo tem uma sonoridade de anúncio do Céu quando o apóstolo grita: -- "Quem está em Cristo é uma nova criatura; o mundo antigo passou, eis que tudo é novo" (2Cor 5, 17). Em Isaías, em previsão do advento do Verbo, lemos: "Eis que eu crio um novo céu e uma nova terra" (Is 65,17); no Apocalipse, sempre com referência à segunda vinda de Cristo: "Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido" (...) E o que estava sentado no trono disse: "Eis que faço tudo novo" (Ap 21, 1-5).

Não é preciso mais para bem assinalar o transcendente sentido do termo novo, e por isso mesmo, a severidade com que todas as grandes vozes católicas vêem o gosto de novidades nas coisas de Deus e de sua Igreja que vem mais do século e da matéria, do que de Cristo e do espírito.

***

Até aqui já estamos armados de um critério muito firme, e de um sinal muito significativo para demarcar a linha divisória que separa os que querem, a todo preço, guardar a Fé católica até o fim, dos que toleram ou até saboreiam as novidades que mais os prendem ao mundo ou à esteira dos acontecimentos do que à Cruz de Nosso Senhor. Em tempos tranquilos, ou relativamente estáveis que eu ainda alcancei nos dias em que a infinita misericórdia de Deus me devolveu a graça e os dons de meu batismo, dispúnhamos de sinais mais claros para discernir a voz da Igreja, sua doutrina, seus mandamentos e, para resistir às seduções do vozerio do mundo, tínhamos o critério tradicional da autoridade suprema da Igreja: "ubi Petri, ibi Ecclesia".

Quando porém o próprio papado se divide, como ocorreu nos tempos do grande cisma do Ocidente, ou quando o vértice da Igreja é atingido pelas tempestades do século, Deus não abandona seu povo aos caprichos de pastores desencaminhados, e com graças especiais guardará as almas que se prendem à santa doutrina tradicional, imutável, que foi assinada com o Sangue de nosso Salvador. Pela prática da oração, da meditação e da boa leitura teremos a alma dotada de fino ouvido para logo nos livrar dos primeiros pruridos do amor próprio, dos sopros do demônio, ou da propaganda do mundo. Esta é a idéia principal de nossa modesta contribuição de hoje. E agora ilustramos a teoria com um exemplo.

***

Temos aqui neste livro, Nuevas Normas de la Missa, editado pela B.A.C. em texto bilingue, Madrid, 1970, uma Constituição Apostólica assinada pelo Sumo Pontífice, que começa a apresentação do Novo Missal por esta referência àquele promulgado por São Pio V, que até poucos anos atrás era para nós a joia, o livro principal de nossa missa quotidiana. Começa assim a Constituição Apostólica: "O Missal Romano promulgado em 1570 por Nosso Predecessor São Pio V em continuidade com os decretos do Concílio de Trento, sempre foi considerado como um dos numerosos e admiráveis frutos que aquele Sacrossanto Concílio disseminou por toda a Igreja de Cristo. E durante 4 séculos (1570/1970) constituiu a norma da Celebração do Sacrifício Eucarístico para os sacerdotes de rito latino, e foi levado a quase todas as nações do mundo pelos arautos do Evangelho. Nem se deve esquecer que inumeráveis santos alimentaram a piedade e o amor de Deus com as leituras bíblicas e as orações do Missal cuja disposição geral remontava, no essencial, a São Gregório Magno...”

Neste ponto da leitura, minha filha parou, e com ar de admiração, perguntou-me:

-- Mas então por que é que substituíram essa joia por outro missal? Qual foi a razão principal alegada?

Na continuação da leitura veremos que foi alegada a conveniência de acomodar o novo missal à “mentalidade contemporânea”.

-- Hein? E o que é que se entende por “mentalidade contemporânea”?

-- Páginas adiante, 17 e seguintes, a mesma Constituição Apostólica nos dá amostra desse modelo a que se deveriam acomodar as normas do Sacrifício Eucarístico: “... vivamente confiamos que a NOVA ordenação do Missal permitirá a todos, sacerdotes e fiéis, preparar seus corações à Celebração da Ceia do Senhor com RENOVADO (?) espírito religioso e ao mesmo tempo sustentados por uma meditação mais profunda das Sagradas Escrituras (...). E nesta REVISÃO do Missal Romano, além das MUDANÇAS trazidas às três partes, à Oração Eucarística, ao Ordinário da Missa e ao Lecionário, outras seções foram também REVISADAS. Uma atenção particular se dedicou às orações (...) de modo que às NOVAS necessidades correspondam FÓRMULAS NOVAS...”

Com a palavra e o critério escolhidos por nós para esta análise, já sentimos o timbre de uma língua diferente daquela empregada por Pio IX, nos textos do Concílio Vaticano I. Cada vez mais brutalmente se configura diante de nossa consciência boquiaberta, o que já chamamos de tenebrosa evidência.

 

(19/8/76)

Mequinho

Gustavo Corção

Um velho enxadrista, que nos seus vinte anos frequentou o Clube de Engenharia e chegou a jogar na primeira turma formada em torno de Caldas Viana, não pode perder a oportunidade de externar seu júbilo e de explicar aos leigos o significativo valor da vitória alcançada por nosso Mequinho num torneio internacional.

 Antes disso, devo duas palavras ao leitor que habitualmente me vê debruçado nas questões que dizem respeito à sorte da civilização e principalmente à sorte eterna das almas. O xadrez é um jogo, um forte exercício mental mas exercício lúdico; seria melhor dizer que o xadrez é uma luta, um combate lúdico, e não um jogo, porque a ideia de jogo sugere sempre um caráter aleatório. No jogo do xadrez a “sorte” só entra como fator acidental concernente ao estado em que se acha o combatente: uma noite bem dormida ou um incidente doméstico podem predispor positiva ou negativamente, e são só essas coisas que constituem a parte aleatória da partida. Na essência mesma do jogo não há nenhum fator alheio ao exercício puramente racional. Não sei se alguém já escreveu dois ou doze volumes sobre a filosofia do xadrez. Escrevo eu esta meia dúzia de linhas para fazer o leitor sentir que se trata de um jogo que bem merece o tratamento que sempre lhe dava mestre Philidor: “le noble jeu d´échecs”; e para salientar a importância do feito de nosso Mequinho: pela primeira vez na história do xadrez do Brasil um brasileiro ingressa no Olimpo dos mestres internacionais do xadrez. E isto acontece na mesma quadra da história em que o Brasil lavrou diversos tentos de desigual valor mas de paralela significação; em 1964 nós vencemos uma densa infiltração comunista já chegada ao poder, com uma elegância dionisíaca só comparável aos passes de Tostão e aos “goals” de Pelé; tornamo-nos depois tricampeões do mundo; vencemos em seguida as insídias do terrorismo e as dificuldades para a arrancada do desenvolvimento econômico. Agora temos mais este sinal de um avanço ou da travessia de uma linha que nos confinava num provincianismo cultural.

Nosso xadrez era até aqui um xadrez de segunda classe. Na belle époque tínhamos um Caldas Viana, que conheci com a majestade de um papa do tabuleiro, autor de uma variante do Ruy Lopes, chamada “variante Rio de Janeiro”. Depois, já no meu tempo de moço, tivemos o Raul de Castro, o Barbosinha, de quem dizíamos pelas caretas que fazia quando planejava suas mirabolantes combinações, que “rocava os olhos”. Tivemos o fulgurante Walter Cruz e o perseverante Mendes Júnior, o último dos velhos que, numa comovente e memorável partida, entregou seu título de campeão do Brasil, que mantinha aos 70 e tantos anos, a um menino de 14 ou 15, que hoje tem o título de Mestre no grande xadrez internacional. E é curioso notar que nossa marginalização vinha do provincianismo em que nos fechávamos. Quando a Segunda Guerra obrigou ao exílio vários mestres enxadristas, o Brasil não soube guardar e aproveitar nenhum deles. Foram para a Argentina e lá formaram um grupo de discípulos que , em pouco tempo, colocou o xadrez argentino muito acima do nosso. Lembro-me bem de um encontro em que o jovem Panno, de 19 ou 20 anos, com terrível facilidade derrubou Walter Cruz, que era então o Campeão do Brasil.

O feito de Mequinho é sinal inequívoco que, ligado aos outros, forma uma constelação de esperanças: o Brasil está saindo do buraco.

Se me perguntarem se vale a pena incluir nas escolas, e até se vale a pena ser campeão de xadrez, ficarei perplexo e indeciso. Evidentemente não é para isto que este planeta privilegiado cobriu-se com essa inquieta e turbulenta camada de lichen racional. Não será esse, evidentemente, o sentido da vida. Estamos aqui de passagem para conquistarmos a palma de uma vitória de outra ordem; estamos no mundo, a correr, a falar, a viver, para o principal objetivo de servir a Deus e aos homens por amor de Deus. Mas o próprio livro da santa e inspirada sabedoria nos diz que há na vida “um tempo para nascer e um tempo para morrer; um tempo para plantar e um tempo para colher; um tempo para chorar e um tempo para rir; um tempo para o gemido e um tempo para a dança; um tempo para se beijarem e um tempo para se afastarem; um tempo para clamar e um tempo para calar; um tempo para rasgar e um tempo para coser; um tempo para amar e um tempo para detestar; um tempo para a guerra e um tempo para a paz”. (Ec 3, 1-8)

Não haverá também um tempo para jogar xadrez? Parece-me que sim. A grande voz dos milênios nos diz que, entre as muitas coisas que os homens devem fazer neste mundo para manifestar, para exigir e provar sua alta estirpe, podemos em hesitação incluir “le noble jeu d´échecs”, que é muitíssimo mais antigo do que o velho Philidor. A fantasia que gosta de ataviar e de zombar da erudição já propôs as mais antigas e variadas origens do jogo de xadrez. Sua origem passeou pelo remoto Oriente e pelo Oriente Próximo, e já foi atribuída, como invenção pessoal, a Sem, Jafé, Salomão, Aristóteles e outros.

As mais sérias pesquisas parecem provar que o xadrez nasceu na Índia. As regras e as peças mudaram ao longo dos séculos, e até hoje, xadrez universal, guarda a marca de variações culturais. Assim é que a peça que em inglês e português se chama Bishop e bispo em espanhol se chama alfil e em francês é fou (no sentido de bobo do rei). Essa peça, que no xadrez moderno tem o mesmo valor do cavalo (em português) e do Knight (em inglês), tem a peculiaridade de se mover permanentemente, fielmente, nas casas de mesma cor. Daí poderá alguém tirar considerações e reflexões irreverentes, quando ponderar a facilidade com que hoje os bispos mudam de cor no xadrez do mundo.

E por falar nisto devo observar que entre nossos jovens jogadores de bom quilate existe um chamado Hélder Câmara, que, certamente é filho ou parente de Gilberto Câmara (irmão ou primo do arcebispo), que foi campeão do Ceará, e com quem, em tempos fabulosamente antigos, tive o prazer de jogar, e de quem mereci, no livro que deixou, Peão na sétima, a publicação de uma partida jogada e empatada com o campeão da Argentina pelo autor destas mal traçadas linhas, que também teve um tempo para jogar com os bispos e tempo para lutar com outros bispos... mas isto é outra história.

Hoje é tempo de aplaudir Mequinho e de esperar o dia em que ele trará para o Brasil o título de Campeão do Mundo.

(O Globo, 20/1/1972)

A tragédia da autoridade

Gustavo Corção

Todos nós sabemos que o mundo moderno está envolvido numa guerra mais mundial, porque mais geral e mais penetrante, do que as duas anteriores. Uma torrente histórica vem de longe, recebendo afluentes, engrossando, para desaguar num estuário de anarquia e desordens com que os visionários pretendem contestar a obra de Deus e dos homens, pretende repelir a ideia de continuação e tradição, e até ousa pretender uma revolução mundial a fim de voltar à estaca zero para a recriação do mundo do homem a partir desse zero, ex nihilo.

Uma das peças essenciais do jogo é o princípio da autoridade que nunca esteve tão molestado e nunca foi tão contestado. E uma das consequências desse estado de coisas é o mau exercício da dita autoridade por todos que dela se acham investidos. Há uma razão profunda na raiz de tamanho mal: a autoridade, em seus variados níveis, é uma exigência da lei natural. Sem essa ideia é impossível a família, é impraticável a Cidade, é impensável uma Civilização.

Por outro lado, há na ideia de autoridade algo que parece soar falso, ou que parece antinatural: como poderemos admitir que um homem se torne rei ou chefe da multidão de homens feito do mesmo barro? A ideia de autoridade aparece logo como antagônica do ideal de igualdade que parece ser uma das metas do dinamismo da história: os séculos trabalham para produzir um nivelamento humano, dizem os vários seguidores do anarquismo revolucionário. A autoridade será então, no dizer deles, uma categoria anti-histórica. O senso comum, ao contrário, nos diz que o sucesso de qualquer obra humana exige unidade de ação, e essa unidade exige que uns mandem e outros obedeçam. Mas o senso comum é a primeira vítima das correntes revolucionárias. E o mundo moderno, desaguador de uma civilização que durante quatro séculos apostou tudo nas revoluções, está aí para nos oferecer uma amostra do que será o próximo mundo cada vez mais moderno, condenado a ser continuamente moderno.

Já se disse mil vezes que a crise de civilização em que estamos imersos é uma crise de autoridade; mas é preciso acrescentar que a crise da autoridade tem dois lados: o primeiro consiste na agressão exterior e na contestação do princípio pelos anarquistas; o segundo consiste no mau exercício da autoridade.

As pessoas investidas de algum superiorato sentem-se vagamente envergonhadas porque uma das coisas mais difíceis para o indivíduo é resistir de algum modo ao empuxo irracional que vem da massa em movimento histórico. E todos pensam que a autoridade será tanto melhor quanto mais benigna e suave, como todos também pensam que, democracia será tanto melhor quanto mais puramente democrática, isto é, quanto menos acentuado é o valor e o prestígio das elites, e quanto mais decapitado o corpo político.

A dificuldade do exercício das mais legítimas autoridades, a do Papa, a de um bispo, a de um abade, a de um pai de família e a de um chefe de Estado, começa na cercadura dos seus mais próximos auxiliares. E o que mais frequentemente se vê, nessa matéria, produz tais deformações, tamanhos disparates, que, em vez de falar na tragédia da autoridade, seria melhor dizer comédia da autoridade. A crise da hierarquia eclesiástica é hoje um dos mais graves e pungentes dramas de nossa história. Desde o papado, onde a suprema autoridade da Igreja é o sucessor de Pedro e, portanto, o “doce Cristo na Terra” como dizia Catarina de Sena, tem-se a penosa impressão de um cerco. Com o pretexto de melhor servir a Igreja, segundo critérios que vê mais dos trovões sísmicos da história do que dos trovões do Sinai, muitos bispos se levantaram para diminuir a autoridade do Papa, para contestar o primado de Pedro, ou para colocá-lo numa espécie de presidência, no mesmo nível do colegiado de Bispos.

Além disso há a cercadura, os assessores, os secretários, os peritos, que se movem em torno do Cristo-na-Terra pomposamente crucificado, como em torno da Cruz primeira se moviam os soldados romanos, os curiosos, enquanto junto à cruz se imobilizada Stabat, a Mãe de Deus, Mãe da Igreja, Mãe dos homens.

***

E de onde vem o fermento de des-Ordem que corrói no mundo todas as formas de autoridade? Respondo a essa interrogação com as palavras de São Pio X, que deveria ser considerado o patrono de todas as legítimas autoridades, porque soube levar a sua a um grau heroico.

“Poderá alguém ignorar a doença grave e profunda que neste momento, mais do que nunca, mina as entranhas da sociedade, e dia a dia se agrava corroendo-a até a medula e arrastando-a à ruína total? Essa doença, que bem conheceis, é a atitude do homem diante de Deus: é o abandono, a apostasia (dos mais próximos e é a soberba e insensata indiferença de muitos), mas nós não duvidamos da palavra do profeta (Sl 72, 27): ‘Eis que perecerão todos os que se afastarem de Vós...’”

É o afastamento de Deus, que a parte do mundo mais cristianizada vem operando há quatro séculos, que torna absurda e inaceitável a ideia da autoridade, porque todas as situações humanas de superiorato só têm sentido, e só encontram verdadeiro apoio, não na confusa e irracional “vontade geral”, mas no temor de Deus que é o modelo perfeito de todas as autoridades. Na verdade – agora compreendemos melhor – toda a corrente revolucionária, que quer destruir o passado de pedra em favor de um futuro de névoa, é uma corrente parricida.

Dentro dela, as instituições de direito divino, como o Episcopado, oscilam, vacilam e dão espetáculos derrisórios de desmoralização da autoridade, de dentro para fora, deixando abandonado à perplexidade e às lágrimas o povo humilde dos fiéis que, em lugar da figura de um Pai, veem frequentemente um burocrata, quando não veem um acrobata ou uma vedeta.

(O Globo, 10/2/72)

A falsa bondade

Gustavo Corção

Quando hoje percorremos, já com fastio, as páginas dos novos catecismos, ou dos novos livros escritos e ilustrados à sombra da frondosa pastoral catequética, a impressão dominante que logo nos assalta é a de uma açucarada e viscosa falsificação da bondade produzida pela tenebrosa estupidez, ou pela mais tenebrosa perversidade dos "novos" que aos borbotões se desprendem todos os dias da verdadeira Igreja, una, santa, católica etc, em demanda de outra mais tolerante, e por isso apontada como mais bondosa do que a Igreja de Jesus Cristo e dos Santos que imitaram seu áspero e difícil exemplo.

Seria mais exato dizer que essa edulcoração e esse amolecimento dos valores formam uma espécie de peste rósea que atingiu o mundo, a começar pela civilização ocidental em processo de crepuscular decadência e de desintegração. À Igreja caberiam o alarma e a lição do revigoramento, mas para nosso maior sofrimento, e para imprevisíveis e inimagináveis sofrimentos de nossos filhos e netos, processou-se neste mesmo glorioso século a maior e mais grave trahison des clercs e é na Igreja-egrediente (por derrisão chamada de "progressista") que se notam as mais espantosas e repugnantes falsificações de tudo, a começar pela falsificação do amor, feita num tom infinitamente repugnante que lembra as vozes das prostitutas do princípio do século, que atrás das rótulas chamavam os pedestres: "entra simpático!"

Nos tempos de Pio X, quando foi preciso opor uma severa condenação aos abusos do Sillon, pôde o grande e santo pontífice dizer aos desgarrados que se perdiam "levados por um mal norteado amor pelos fracos", porque nesse tempo o mundo católico ainda guardava a ressonância da doutrina dos dois amores que desde a Didaqué ilumina a cristandade. Nos tempos que correm espalhou-se pelo mundo a pestilencial doutrina de que qualquer sentimento meloso merece o mesmo nome de amor.

No mesmo limiar deste dolente e amolecido século, ainda podia um Marcel Proust fazer a belíssima evocação de figuras humanas marcadas pelo "visage antipathique et sublime de la vraie bonté". Anos antes, a pequenina Bernardette, que trouxe toda a vida estampada em sua figura o reflexo da Virgem Santíssima, e que sempre se destacou das irmãs por ser la plus petite, teve um temporário cargo de vigilância e superiorato na enfermaria. Sua função, que cumpriu irrepreensívelmente, era a de observar que fossem bem cumpridas as recomendações do médico e da superiora. Um dia, entrando na enfermaria, viu uma das irmãs sentada numa cadeira a ler um livro de piedade. Surpreendida em falta, desculpou-se dizendo que se sentia muito bem e que se levantara para ler melhor o livro piedoso. E Bernardette, instantaneamente: "Onde é que se viu piedade cosida com linha de desobediência?"

Hoje vão-se tornando inacreditáveis ou incompreensíveis todas as frases de gênios e de santos porque o mundo inteiro parece acometido de uma hepatite espiritual, e os homens se tornam cada dia mais fracos, ou "flacos" como diria Oswald de Andrade.

Em famosa alocução, já no seu tempo, Pio XII queixava-se dos afrouxamentos e temia sobretudo "o cansaço dos bons". Hoje seria o caso de temer não apenas o cansaço, mas o amolecimento e a transfiguração da fraqueza, da omissão, de todas as tolerâncias em nova virtude que vem substituir a "antipática e sublime" virtude da força moral que hoje só se vê nos fioretti dos santos e nos retratos antigos.

Além disso convém notar que a pomada de nova bondade que envaselina o planeta tem uma característica muito especial: cada um fabrica a sua, graduando-lhe a viscosidade e especificando-lhe o cheiro. O que importa, nessas campanhas de mãos, pés e demais partes do corpo estendidas, sim, o que importa soberanamente nesse afã de ver em toda a parte fragmentos do Evangelho, boa-vontade, humanismo e interesse pela pessoa humana, é o completo e límpido desprezo pela vontade de Deus.

* * *

Já observei que em todos os chamados "catecismos" munidos de todas as aprovações eclesiásticas comparecem arquétipos da nova idade do mundo, e nunca faltam Luther King e o astronauta. A presença constante do astronauta se explica pela infinita estupidez de alguns homens de Igreja que acham muito mais maravilhosa a ida do homem à Lua do que a vinda do Filho de Deus à Terra. Quanto à obsessão em torno de Luther King confesso que não atinei com nenhuma explicação plausível, nem cheguei a encontrar uma pista. Qual será o denominador comum, a afinidade? Não sei.

Sei que nós outros, católicos, temos uma maravilhosa coleção de heróis da santidade. Falei atrás em Bernardette, a menina que viu a Virgem Santíssima. Essa menina é sem dúvida possível um dos mais belos exemplos da humanidade. Sua força, disfarçada pela pequenez e pela asma, chega aos mais altos níveis do heroísmo. sua personalidade tem a riqueza e a dureza de um diamante. Suas respostas admiráveis são cintilações de um coração que já é fácil e diretamente movido pelos Dons. Pois bem, no último catecismo caído da frondosa pastoral catequética, a propósito de variedades temperamentais, Bernardette é dita "caráter amorfo".

Na verdade, o que esses autores não conseguem esconder é a sua profunda aversão pela santidade. Certamente lhes parece, a todos esses fabricantes de pomadas, duras demais, não-somente a palavra referente ao pão da vida, mas todas as palavras de Deus.

(O Globo, 4/3/72)

A independência do Brasil

Gustavo Corção

A independência das nações não pode ser definida nem medida em termos de autossuficiência econômica. Sendo uma categoria antes de tudo política, e portanto moral, a independência de uma nação consiste na sua autonomia política como nação, na consciência nacional dessa autonomia, e, para ser efetiva, no reconhecimento pacífico dessa autonomia pelas outras nações, e principalmente por aquelas a que anteriormente estava vinculada essa nação.

No vocabulário da moderna civilização, marcada pelo funesto princípio da vital inimizade entre os homens, de Hobbes a Marx, essa autonomia das nações é enfaticamente chamada de soberania. Este termo vem carregado de uma espécie de macroegoísmo, que é a característica principal da civilização nascida do humanismo renascentista e protestante, que já anunciava, há quatro séculos, a revolta idolátrica da anti-Igreja que hoje adora um bizarro bonzo chamado Homem Moderno.

Por paradoxo, essa mesma filosofia política que exalta as “soberanias” nacionais, a partir de uma “descoberta do Homem”, obscurece a lei natural que pede o concurso e a convergência de todas as nações no bem comum mundial.

E a partir dessas considerações cabe a pergunta: será sempre um bem, para a própria nação e para o mundo, a sua independência? A essa pergunta responderemos tranquilamente contra toda a onda desencadeada pelas esquerdas e concentradas no vácuo chamado ONU. A independência, como processo de consciência e afirmação de maioridade, pede toda uma constelação de condições, e só se reduz a um lema de brutal simplificação nos momentos históricos marcados pela estupidificação.

Parece-me claro que, para a mais bela manifestação da grande aventura humana neste mundo, Deus quer a diferenciação de nações, como quer a variedade de rosas e de pássaros. Nessa variedade, cada grupo nacional terá uma missão, uma vocação, um papel especial, um especial timbre da mesma grande voz. Mas eu creio que há nações que indubitavelmente se constituem para esse testemunho do homem, e para esse louvor de Deus, enquanto outras há que nasceram ao acaso, e ao acaso dos ventos se desfizeram. O frenesi anticolonialista é indubitavelmente uma das muitas asneiras de nosso bravo século; mas o reconhecimento do valor e do papel transcendente das nações autônomas é lema da mais sábia filosofia.

No caso do Brasil parece-me transluminosamente clara a glória de sua independência, e a mim me parece mais clara essa evidência por duas razões principais, uma que está na origem histórica, cujos 150 anos agora festejamos, e outra que está no desenrolar da nossa história, e principalmente na atualíssima proclamação que vale por uma confirmação profunda de nossa verdadeira independência.

A primeira razão reside na feição singularmente pacífica e continuadora, que deu à nossa maioridade um caráter único no continente. Devo declarar, para desfazer qualquer equívoco, que não pertenço à família espiritual dos que se molestam por esse caráter de continuidade luso-brasileira de nossa independência, e muito menos dos que se entusiasmam com as influência do iluminismo e do revolucionarismo produzidos pelo século XVIII, que, para meus parentes espirituais, foi o menor dos séculos, a despeito dos seus “filósofos”, enciclopedistas e revolucionários; ou foi o mais chato dos séculos precisamente por causa desses “filósofos” e de todos os pedantíssimos iluminados. Não me aquece o sangue a ideia de ter sido Pedro I pressionado pelos que daqueles iluminismos se inspiravam; antes o aquece a ideia de descendermos de Nuno Álvares Pereira.

É digno de nota o fato de terem sido nobremente ponderadas e pacíficas as independências dos dois grandes países americanos. Se é verdade que os norte-americanos tinham queixas sérias da metrópole, não é menos verdade que souberam exprimir sua Declaração de Independência nos mais sóbrios e serenos termos: “Quando, no curso dos acontecimentos humanos, sente-se um povo compelido a dissolver os laços políticos  que o ligavam a outro povo, e a assumir, entre as várias nações do mundo, uma independente e igualada situação, à qual tem direito pelas leis da natureza e pela lei de Deus, um decente respeito pela opinião de toda a humanidade exige que esse povo declare as causas que o compelem à independência.”

A independência do Brasil, por suas razões profundas e a despeito de todas as intrigas com que se tecem as histórias superficiais dos povos, foi a transmissão de um legado, e só merece ser hoje comemorada festivamente se esse legado foi dignamente cumprido. Ora, é aqui que cabe inserir a segunda razão que concorre para nos rejubilarmos especialmente nesta Semana da Pátria de 1972

***

Hoje o Brasil, graças ao movimento de 64, emancipou-se do mais cruel e estúpido imperialismo: o da ideologia revolucionária que, no mundo inteiro, inebria os “intelectuais” e envenena as fontes de informação. Sim, o que está poluído – como gritou o doutor Thomas Stockmann, no “Inimigo do Povo” de Ibsen – não é o ar que respiramos, nem são as fontes d´água que bebemos, é antes a trama de informações e o sistema de comunicações da civilização em agonia. E dentro deste envoltório o Brasil deu ao mundo inteiro uma lição de real independência. Resistindo à mais volumosa e eficiente cadeia de calúnias e pressões, o Brasil de hoje repeliu os adversários de sua vocação e proclamou, ou melhor, confirmou gloriosamente seus cento e cinquenta anos de independência. O Brasil será um baluarte dos valores cristãos, ou não será o Brasil. Rezemos a Deus pedindo que nossos governantes, a tempo e contratempo, e a despeito das dificuldades criadas por alguns bispos e arcebispos, persevere na defesa dos valores humanos e divinos, e corajosamente mantenha e amplie sua independência.

(O Globo, 7/9/72)

"Acaso eram eles mais pecadores do que vós?"

-- E logo nas vésperas de Natal! Murmurou a meu lado alguém. O jornal escancarava a notícia: TERREMOTO EM MANÁGUA. E os mortos e feridos já empilhados em cifras, amortalhados para as estatísticas. Na família reunida para a noite feliz houve um silêncio e passou um frêmito, como na história da Morte da Máscara Vermelha, de Edgard Poe. Cada um de nós sentia a presença da Intrusa, que não fora convidada, e que não era da família porque família se define por casamentos e nascimentos, e não por falecimentos. A Intrusa, que rejeitamos com o instinto e com a Fé, estava ali a nos espionar. Ou a trazer algum recado?

Em menos de um mês tivemos cortada, esmagada contra um poste, uma vida maravilhosamente bela e generosa que saíra de casa para fazer compras, isto é, para amamentar a família enorme. No dia seguinte, na mesma rua, quase na mesma hora, outra vida em flor era pisada pelo mesmo e mais mortífero dos inventos de que se gabam os homens, e com que sonham os moços. Há estatísticas que provam e dão ao fato brutal a auréola dos algarismos: acima das guerras, das calamidades, e de qualquer doença, o mais mortífero engenho é esse lustroso brinquedo de quatro rodas com que os homens de nosso tempo graduam as importâncias sociais.

Nesta mesma quinzena ou vintena desaba o supermercado que ainda fizera o favor de avisar a catástrofe com uma miniatura de terremoto. Em vão. Os homens deste século de ida à Lua estão seguros de si a multiplicar as torres de Babel. Nesse entretempo, aqui e ali, pingam da estratosfera aviões maravilhosamente modernos, com suas máquinas perfeitas, seus passageiros muito cônscios do século XX e suas aeromoças sequestradas pela necessidade para o serviço do otimismo universal.

A intrusa está ali a querer também seu presente de Natal, e nós a sentimos dentro de nós, mal escondida. De vez em quando, como feto de cinco meses, ela se mexe dentro de nós, e nossa atenção, fugazmente desviada do circo e da máquina do mundo, enverga-se sobre si mesma e ausculta-se. Passou? Passou. Ela se encolhe e a atenção abre as janelas para o variado e divertido espetáculo do fim do ano. Os orgulhosos vivos, sem se sentirem grávidos da própria mortal fragilidade, passam a pé, ou nos automóveis, todos com a mesma fundamental convicção: o chão é o chão, sólido, constante, antigo, eterno. A terra é a terra, regaço de rochas com que se pode contar, e em que nem precisamos pensar. Ela está ali “Elle est lá”, dizia Claudel pensando naquela que estava “stabat” ao pé da cruz. Mas nós somos filhos de duas mães, uma que nos quer inteiros, e outra que nos quer dilacerados...

Passou? Passou. E a atenção abre as janelas. Mas desta vez é da própria janela, como um mau hálito, que entra o bafo da morte de um supermercado inteiro. Ele estava pousado sobre o chão, firmado na terra, e de repente a terra mesma o rejeita, o enjeita. E agora, Santo Deus! é uma cidade que se agita numa dança macabra em cima de um chão enlouquecido. Trinta mil mortos. Duzentos mil feridos. E logo os elementos que o homem julgara domesticados entram na conjuração: a água inunda, o fogo cresta, o ar sufoca, e a terra mastiga os seus filhos. Como retornar agora o ritmo do “otimismo” que hoje no mundo católico é uma virtude teologal? É só fechar a janela, dobrar o jornal, e recomeçar a festa do príncipe Próspero. Vem-me à lembrança o que escrevi em Dois Amores, Duas Cidades (vol. II, pág. 297): “Foi nos princípios do século XVIII que surgiu a filosofia e o vocábulo “otimismo”. Todo o ocidente, inebriado de iluminismo, e da convicção de viver no Grand Siècle, num curioso e sinistro paradoxo, diminuía o homem e aumentava a confiança no homem, acinzentava os horizontes e sorria para nesgas de um azul imaginário. Foi o terremoto de Lisboa em 1755 que soou na Europa como um despertador. Voltaire esfrega os olhos e começa a desconfiar que sonhou.

Em Candide, Cacambo pergunta o que é otimismo. – Helás! Diz Candide, c´est la rage de soutenir que tout est bien quand tout est mal.1

Aquele terremoto foi efetivamente mais do que uma catástrofe física, foi um escândalo cultural que vinha mostrar “em pleno século XVIII” que o homem é apenas homem, e apenas um pouco mais forte do que as moscas. Aliás, em caso de terremoto, torna-se até mais fraco, porque as moscas dependem menos da firmeza do chão.

Mais perto de nós, em 1936, outra crise de otimismo correu o mundo e a França, em noitadas de prazer com o Front Populaire, descarregava no humor trágico toda sua insouciance e cantava, à beira dos abismos: “Tout va três bien Madame la Marquise”.

Agora, nesta cômica “era pós-conciliar”, ou “era espacial”, ou “era da imagem” ou “era do já era”, novo ataque de estupidez entra na história com as cores rosadas do otimismo. Vemos com pavor acumularem-se as provas de soberba do homem que pomposamente e pedantemente recusa o senhorio de Deus.

Será tudo isto um castigo de Deus? – perguntou-me uma filha.

Não pertenço ao grupo espiritual dos que imediatamente, horrorizados, repeliriam a idéia de um castigo divino; mas no caso prefiro pensar no terrível mistério da permissão divina, e decididamente prefiro ouvir a lição que Jesus nos deixou para tais casos. Quando chegaram diversos com a horrorosa notícia das violências praticadas por soldados romanos contra os galileus, cujo sangue Pilatos assim misturava ao do sacrifício que faziam (Lc 13, 1). Jesus – para desespero dos atuais teólogos da Revolução – sem dar nenhuma resposta ao aspecto do odioso abuso imperialista, sem parecer sequer ter ouvido este aspecto do acontecimento, dá aos recém-vindos uma resposta desconcertante que vai diretamente ao centro da questão, isto é, daquilo em razão de que se encarnou por obra do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem e padecerá sob Pôncio Pilatos, por nós homens, e para nossa salvação.

Nesta vigília de Natal pareceu-me ouvir o Menino Jesus repetir: -- Acaso eram as vítimas de Manágua mais pecadores do que vós? Digo-vos eu que não. Acaso eram mais pecadores do que vós os dezoito esmagados na queda da torre de Siloé? (...) Digo-vos que não e que, se não fizerdes penitência, todos perecereis...” E em outros textos: “Vigiai e orai porque não sabeis a hora.”

(O Globo, 28/12/1972)

  1. 1. Ai de mim! É a raiva de sustentar que tudo vai bem quando tudo vai mal. (N. da P.)

Para que existem as nações

Gustavo Corção

Andei estes dias pensando no problema do um e do múltiplo que divide as filosofias e as mentalidades. Nas filosofias de inspiração nominalista, infensas às idéias universais, predomina a tendência de valorizar a diversidade; nas filosofias de inspiração aristotélico-tomista, ao contrário, ensina-se que a perfeição de uma coisa deve ser procurada na sua maior unidade, desde que saibamos distinguir entre unidade vista do lado da forma e uniformidade tomada do lado da matéria.

É errado, e meio tolo, atribuir à diversidade, ao pluralismo, um título de nobreza, e dizer, como diz o professor Anísio Teixeira, que uma sociedade se torna mais evoluída na medida em que se torna mais complexa e mais diferenciada. Chega a dizer que haveria vantagem, para o Brasil, se em lugar da predominância católica nós tivéssemos uma solução maior, um estoque mais variado de credos. Ora, parece-nos fácil provar a falta de consistência de tal opinião. Afirmando o que afirma, o conhecido autor de livros sobre pedagogia professa, simplesmente, um total ceticismo religioso, e deseja a diversidade dos credos como se nenhum deles pretendesse conter verdades, e de fato as contivesse. Duvidamos que o professor Anísio Teixeira desejasse para o Brasil, para o desenvolvimento, para a emancipação econômica e cultural do Brasil, um pluralismo científico, uma diversidade de opiniões a respeito do funcionamento do fígado, das causas do câncer, e das propriedades do triângulo retângulo. É claro, amigo leitor, que também nós desejamos o pluralismo no campo do direito de pesquisar, mas é claríssimo que só diremos que há progresso científico na proporção em que se unificam os conhecimentos e as opiniões.

Há entretanto certas diversidades que têm uma significação de riqueza e de perfeição, além daquela que tem o título precário de direito de pesquisa. A variedade de indivíduos concretos dentro de uma espécie, a variedade das rosas, por exemplo, é uma riqueza, é, digamos assim, um belo esforço que as existências concretas realizam para exprimir o conteúdo total de uma essência. Para conhecer um pouco o que é uma rosa, qual é o pensamento de Deus que ganha corpo na rainha das flores, é preciso ter visto muitas pétalas, muitos matizes, muitas raças diferentes do mesmo sonho divino. A diversidade aí é um discurso, é um poema que se estende para com muitas palavras dizer uma coisa. No fundo da questão como se vê, há sempre o primado da unidade, mas no caso que tomamos como exemplo a diversidade não tem o sentido melancólico, amargo, que tem o da diversidade de opiniões toleradas enquanto não se acha a verdade única de uma coisa. E o que disse da rosa vale também para o homem. A perfeição da humanidade-essência se realiza na humanidade-existência. A riqueza da idéia “homem”, que Deus concebeu e criou, não cabe num só individuo, não se esgota no mais belo, no mais talentoso dos homens. Foi preciso deixar a história correr. Foi preciso deixar nascer um Mozart, um Gauss, uma Catarina de Sena, um Paulo de Tarso, um Einstein, e muitos outros exemplares mais obscuros, foi preciso deixar nascer o rapaz que dias atrás me contava que não aceitara um trabalho com o triplo de sua remuneração atual, porque precisava fazer certas coisas que sua consciência desaconselhava, foi preciso multiplicarem-se os talentos, as inclinações, as vocações, as nomeações de Deus, para que a vasta multidão, numa espécie de longo e ardoroso discurso, explicasse aos astros, aos anjos, a toda a criação, o que é este ser espantoso, absurdo, incongruente, maravilhoso, que um deles definiu como “animal racional”. A definição essencial é breve, mas a explanação, para corresponder à profundidade de tão singela definição, teve de ser extensa como a história da humanidade.

Essa diversidade, que é uma explicação, uma demonstração prática e existencial de uma natureza definida por uma fórmula universal – essa diversidade que pertence à didática de Deus, é boa, é excelente, e nem sequer representa uma tolerância, uma expectativa, um alargamento à espera de uma unidade maior. Não. A diversidade da multiplicação de indivíduos da mesma espécie, ao mesmo tempo que dilata os limites da definição, fortifica os vínculos da unidade interna da coisa. Ao contrário do que pensa o nominalista, nós sentimos ainda mais forte a unidade de natureza humana quando passeamos pelo imenso jardim onde nasceram e desabrocharam as flores da humanidade. Cada vez mais entendemos, sentimos, penetramos a idéia de um ser que pelo gênero pertence à animalidade e pela espécie pertence à racionalidade.

E o que dizemos para os homens diremos também para as nações. A variedade delas é uma riqueza, desde que seja vista naquela perspectiva que enriquece e fortifica a unidade. Para que existem as nações? Para si mesmas? Para serem poderosas potências armadas e engenhos mortíferos e enfeitadas com bandeiras e hinos? Para serem temas de discursos? Para trazerem cores diversas à cartografia, e tornarem as etapas mais agradáveis? Para que existirá o Brasil? Para o sr. Negrão de Lima ser embaixador dele em outra nação que por sua vez manda embaixadores para o Brasil? Existirá o Brasil, como nação, como pátria, para as crianças de colégio fazerem composições patrióticas, e para os construtores de Brasília se encherem de lucro à custa da mesma idéia ensinada nos colégios? Existirá para o hino, para a bandeira?

Parece-nos claro que, se fosse para tais serventias, melhor seria que houvesse um só país, falando uma só língua. A transcendental utilidade, a finalidade das nações tem de ser procurada mais alto e na mesma direção em que se explica a diversidade dos homens. Além da variedade de pessoa para pessoa, a idéia de homem, pensada e criada por Deus, precisa da variedade de grupos. Existem nações com timbres culturais diferentes, como existem instrumentos diversos da mesma sinfonia. E cada nação trás ao mundo a contribuição preciosa de um timbre, de um matiz, de um odor que compõe a grande apoteose do plano de Deus, no centro da qual está a Cruz do Salvador como grande síntese do pensamento de Deus sobre o Homem, ou melhor, do pensamento de Deus tornado Homem.

Em palavras mais frias diremos que as nações têm vocações diversas na partitura, e idênticas no objetivo final que é a glória de Deus e a exposição universal das obras e feitos do homem, que se completará no dia do juízo final. Por aí se vê que as nações, não só para as trocas imediatas de utilidades, existem, umas para outras numa grande e essencial solidariedade. E é nessa perspectiva que deveriam ser armados todos os problemas nacionais, e não na mesquinha e tola perspectiva do egoísmo coletivo que faz da nação um fim em si mesma.

E qual será, nessa ordem de idéias, a razão de ser do Brasil? Qual será a vocação coletiva, a vocação nacional deste povo que anda perplexo, tonto, sem saber o que fazer de seu imenso território, e sem o tipo de almas que aqui vive, trabalha, canta, chora e ri. E ri, e chora, com um sotaque espiritual diferente dos outros povos. E dança como o francês ou o russo não sabem dançar. Dizem que o Garrincha, assistindo um jogo dos russos, sorria com ar de certa superioridade, e quando lhe perguntaram se não estava com medo do treinadíssimo time soviético, respondeu: -- “Não. Eles são duros de cadeiras.” E era verdade. Eles não tinham os requebros de nossa astúcia física, a flexibilidade de nossa graça felina, certamente serão duros de cadeiras em muitas outras coisas em que somos graciosos e ágeis.

A verdade manda confessar que, fora do futebol, pouca coisa trouxemos para a tal apoteose da essência humana. Qual será a riqueza de que estamos incumbidos? Qual será a partitura que devemos executar no maravilhoso concerto que tem por ouvintes as hierarquias dos anjos?

Por mais insensato que possa parecer tal idéia aos que vivem estudando os chamados problemas brasileiros, é nesta perspectiva profética, teológica, metafísica, que deveriam estar situados todas as pesquisas. Há problemas imediatos, como o socorro devido às vítimas do nordeste, mas há o grau de problema da vocação, da direção geral, que anda esquecido, ou que está sob a ameaça de uma trágica apostasia. E aqui – deixando para outro dia a continuação desta louca conversa – ouso dizer o que penso de um Brasil que trai a sua vocação e que se desvia dos caminhos de Deus. Rasguem as vestes os fariseus do nacionalismo materialista (aliás outro não há), dêem-me os títulos que quiserem: ouso dizer que prefiro vê-lo apagado do mapa, afundado na terra, tragado pelo mar, do que vê-lo instalado num desenvolvimento que nem sequer trás a felicidade material, animal, das multidões, e que volta as costas ao chamamento de Deus e à esperança dos homens.

O cristianismo que não morrerá

Gustavo Corção

As reflexões que no artigo de quinta-feira andamos fazendo, despertadas pela releitura de uma página de Chesterton, levam-nos à conclusão de que haverá arrefecimento do cristianismo todas as vezes que os homens se afligirem, se envergonharem ou se cansarem de o sentir tão incôngruo em relação ao curso da história, e daí tirarem a intenção de afeiçoá-lo àquele andamento.

A crise de nossos dias, a mais ampla e profunda de toda a história da Igreja, começou por um propósito de aggiornamento. O cristianismo estava envelhecido, a Igreja esclerosada, e o bravo mundo moderno passou a interessar-se prodigiosamente por sua renovação. Reformas... reformas... reformas... O pastor anglicano John Robinson, que andou por aqui a fazer conferências, escreveu um volume inteiro para explicar que hoje, na era espacial, não é possível ter a mesma idéia de Deus “fora de nós” tida e mantida pelos antigos. Eis o que diz na tradução portuguesa esse tipo bem representativo de nossa época: “Enquanto não tinham sido explorados, ou era possível explorar (por meio de radiotelescópios, se não com foguetões) os últimos recantos do Cosmos, ainda se podia localizar Deus mentalmente nalguma terra incógnita. Mas agora parece não haver lugar para Ele, não apenas na estalagem, mas em parte alguma do universo: é que já não há lugares vazios.”

É difícil, em tão poucas linhas, dizer mais densa coleção de asneiras sobre a presença de Deus que, para esse notável anglicano, ao que se vê, sempre esteve no limbo das primeiras imagens infantis. O reverendo (que o Prof. Cândido Mendes Almeida importou quando por aqui é abundantíssimo o similar nacional), fascinado por leituras de vulgarizações, e esquecido da presença de Deus em todas as coisas como causa primeira, e como sustentador de todas as existências, pensa que o homem já explorou todos os recantos do universo!

O leitor encontrará no livro Progresso e Progressismo, AGIR, p. 130, e seguintes, considerações mais desenvolvidas sobre o autor anglicano e sua obra Honest to God que foi best-seller em vários idiomas.

No momento quero deter a atenção do leitor diante deste bonzo “a atualidade” que tem mais adoradores do que todos os Budas do oriente. Passou pelos seminários, pelas salas de capítulo, pelos claustros mais serenos e austeros um frenesi de atualização, um furor indecente de se prosternarem todos diante de um Hoje tornado suprema divindade. Ninguém percebe, nem tenta demonstrar as vantagens da substituição de tais fórmulas por tais outras. Não são mais claras, não são mais belas, mas são reformadas e nisto consiste sua suprema nobreza.

***

Há mil maneiras de tentar banalizar o cristianismo. A mais ampla mas também mais humilde e mais triste é aquela produzida pelo fato de não sermos santos, ou de serem tão poucos os que realizam desde já, aqui e agora, ao menos em algumas cintilações, a maravilhosa e permanente novidade que é Cristo Jesus; mas a mais espessamente estúpida é aquela que, não vendo a supernal, a transcendental Novidade, quer submeter o cristianismo à tirânica frivolidade das pequeninas coisas novas com que o homem tece e borda sua frágil atualidade que já nasce em processo de envelhecimento.

Nunca se falou com tanto garbo no “mundo moderno” e em suas terríveis exigências, mas ninguém se dá ao cuidado de especificar essa modernidade, nem ao cuidado de esconder suas espetaculares misérias. Ninguém, evidentemente, contestará que os veículos hoje são muito mais rápidos do que o cavalo de Carlos Magno, ou o burrico que São Bernardo montou para ir aonde o chamavam, e onde confundiria o bom mas trêfego Abelardo. Eu não preciso fazer malabarismos de imaginação para rever a figura do Santo abade de Claraval, e para imaginar as santas cogitações com que se preparava para defender a Sagrada Doutrina enquanto o bom burrico o ia levando no mesmo doce ritmo com que um outro irmão burro mil anos atrás levara ao Egito, Nossa Senhora e o Menino Jesus. O que preciso fazer esforço para imaginar é o quadro atualizado de um São Bernardo a sair de seu mosteiro, num Fusca a 120 quilômetros por hora. Não digo que seja impossível. Metafisicamente é possível que um grande santo de hoje dirija um carro; mas tudo parece contraindicar que esse veículo possa proporcionar ao hipotético santo o mesmo lazer para a meditação, como também tudo leva a crer que a velocidade do veículo não possa modificar o bom fundamento da argumentação que venceria Abelardo.

Curioso progresso! O que hoje se vê todos os dias são revoadas de Abelardos, e de sub-Abelardos, que a mil quilômetros por hora atravessam os oceanos para se reunirem em congressos, sínodos, conferências, onde serão propostas mil pequenas e efêmeras renovações por dia. E é com esse frenético ativismo que querem atualizar o Cristianismo; e é com essa submissão ao século que querem vitalizá-lo. Depressa se desencantam de correr e voar, e então, para reduzir o Cristianismo a um puro humanismo, resolvem anunciar a morte de Deus.

Mas o menino Jesus, no mesmo ritmo lento de outrora, continua a nascer virginalmente todas as manhãs nas almas submissas, e continua a ressuscitar triunfalmente todas as manhãs para deixar em nós o anúncio de nossa própria ressurreição. E nisto pomos todo o fervor de nossa Fé: passarão os impérios, as máquinas do mundo, mas esse cristianismo sempre pequenino, manso, único e eterno não passará.

(O Globo, 14/8/71)

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