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Mequinho

Gustavo Corção

Um velho enxadrista, que nos seus vinte anos frequentou o Clube de Engenharia e chegou a jogar na primeira turma formada em torno de Caldas Viana, não pode perder a oportunidade de externar seu júbilo e de explicar aos leigos o significativo valor da vitória alcançada por nosso Mequinho num torneio internacional.

 Antes disso, devo duas palavras ao leitor que habitualmente me vê debruçado nas questões que dizem respeito à sorte da civilização e principalmente à sorte eterna das almas. O xadrez é um jogo, um forte exercício mental mas exercício lúdico; seria melhor dizer que o xadrez é uma luta, um combate lúdico, e não um jogo, porque a ideia de jogo sugere sempre um caráter aleatório. No jogo do xadrez a “sorte” só entra como fator acidental concernente ao estado em que se acha o combatente: uma noite bem dormida ou um incidente doméstico podem predispor positiva ou negativamente, e são só essas coisas que constituem a parte aleatória da partida. Na essência mesma do jogo não há nenhum fator alheio ao exercício puramente racional. Não sei se alguém já escreveu dois ou doze volumes sobre a filosofia do xadrez. Escrevo eu esta meia dúzia de linhas para fazer o leitor sentir que se trata de um jogo que bem merece o tratamento que sempre lhe dava mestre Philidor: “le noble jeu d´échecs”; e para salientar a importância do feito de nosso Mequinho: pela primeira vez na história do xadrez do Brasil um brasileiro ingressa no Olimpo dos mestres internacionais do xadrez. E isto acontece na mesma quadra da história em que o Brasil lavrou diversos tentos de desigual valor mas de paralela significação; em 1964 nós vencemos uma densa infiltração comunista já chegada ao poder, com uma elegância dionisíaca só comparável aos passes de Tostão e aos “goals” de Pelé; tornamo-nos depois tricampeões do mundo; vencemos em seguida as insídias do terrorismo e as dificuldades para a arrancada do desenvolvimento econômico. Agora temos mais este sinal de um avanço ou da travessia de uma linha que nos confinava num provincianismo cultural.

Nosso xadrez era até aqui um xadrez de segunda classe. Na belle époque tínhamos um Caldas Viana, que conheci com a majestade de um papa do tabuleiro, autor de uma variante do Ruy Lopes, chamada “variante Rio de Janeiro”. Depois, já no meu tempo de moço, tivemos o Raul de Castro, o Barbosinha, de quem dizíamos pelas caretas que fazia quando planejava suas mirabolantes combinações, que “rocava os olhos”. Tivemos o fulgurante Walter Cruz e o perseverante Mendes Júnior, o último dos velhos que, numa comovente e memorável partida, entregou seu título de campeão do Brasil, que mantinha aos 70 e tantos anos, a um menino de 14 ou 15, que hoje tem o título de Mestre no grande xadrez internacional. E é curioso notar que nossa marginalização vinha do provincianismo em que nos fechávamos. Quando a Segunda Guerra obrigou ao exílio vários mestres enxadristas, o Brasil não soube guardar e aproveitar nenhum deles. Foram para a Argentina e lá formaram um grupo de discípulos que , em pouco tempo, colocou o xadrez argentino muito acima do nosso. Lembro-me bem de um encontro em que o jovem Panno, de 19 ou 20 anos, com terrível facilidade derrubou Walter Cruz, que era então o Campeão do Brasil.

O feito de Mequinho é sinal inequívoco que, ligado aos outros, forma uma constelação de esperanças: o Brasil está saindo do buraco.

Se me perguntarem se vale a pena incluir nas escolas, e até se vale a pena ser campeão de xadrez, ficarei perplexo e indeciso. Evidentemente não é para isto que este planeta privilegiado cobriu-se com essa inquieta e turbulenta camada de lichen racional. Não será esse, evidentemente, o sentido da vida. Estamos aqui de passagem para conquistarmos a palma de uma vitória de outra ordem; estamos no mundo, a correr, a falar, a viver, para o principal objetivo de servir a Deus e aos homens por amor de Deus. Mas o próprio livro da santa e inspirada sabedoria nos diz que há na vida “um tempo para nascer e um tempo para morrer; um tempo para plantar e um tempo para colher; um tempo para chorar e um tempo para rir; um tempo para o gemido e um tempo para a dança; um tempo para se beijarem e um tempo para se afastarem; um tempo para clamar e um tempo para calar; um tempo para rasgar e um tempo para coser; um tempo para amar e um tempo para detestar; um tempo para a guerra e um tempo para a paz”. (Ec 3, 1-8)

Não haverá também um tempo para jogar xadrez? Parece-me que sim. A grande voz dos milênios nos diz que, entre as muitas coisas que os homens devem fazer neste mundo para manifestar, para exigir e provar sua alta estirpe, podemos em hesitação incluir “le noble jeu d´échecs”, que é muitíssimo mais antigo do que o velho Philidor. A fantasia que gosta de ataviar e de zombar da erudição já propôs as mais antigas e variadas origens do jogo de xadrez. Sua origem passeou pelo remoto Oriente e pelo Oriente Próximo, e já foi atribuída, como invenção pessoal, a Sem, Jafé, Salomão, Aristóteles e outros.

As mais sérias pesquisas parecem provar que o xadrez nasceu na Índia. As regras e as peças mudaram ao longo dos séculos, e até hoje, xadrez universal, guarda a marca de variações culturais. Assim é que a peça que em inglês e português se chama Bishop e bispo em espanhol se chama alfil e em francês é fou (no sentido de bobo do rei). Essa peça, que no xadrez moderno tem o mesmo valor do cavalo (em português) e do Knight (em inglês), tem a peculiaridade de se mover permanentemente, fielmente, nas casas de mesma cor. Daí poderá alguém tirar considerações e reflexões irreverentes, quando ponderar a facilidade com que hoje os bispos mudam de cor no xadrez do mundo.

E por falar nisto devo observar que entre nossos jovens jogadores de bom quilate existe um chamado Hélder Câmara, que, certamente é filho ou parente de Gilberto Câmara (irmão ou primo do arcebispo), que foi campeão do Ceará, e com quem, em tempos fabulosamente antigos, tive o prazer de jogar, e de quem mereci, no livro que deixou, Peão na sétima, a publicação de uma partida jogada e empatada com o campeão da Argentina pelo autor destas mal traçadas linhas, que também teve um tempo para jogar com os bispos e tempo para lutar com outros bispos... mas isto é outra história.

Hoje é tempo de aplaudir Mequinho e de esperar o dia em que ele trará para o Brasil o título de Campeão do Mundo.

(O Globo, 20/1/1972)

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