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A tragédia da autoridade

Gustavo Corção

Todos nós sabemos que o mundo moderno está envolvido numa guerra mais mundial, porque mais geral e mais penetrante, do que as duas anteriores. Uma torrente histórica vem de longe, recebendo afluentes, engrossando, para desaguar num estuário de anarquia e desordens com que os visionários pretendem contestar a obra de Deus e dos homens, pretende repelir a ideia de continuação e tradição, e até ousa pretender uma revolução mundial a fim de voltar à estaca zero para a recriação do mundo do homem a partir desse zero, ex nihilo.

Uma das peças essenciais do jogo é o princípio da autoridade que nunca esteve tão molestado e nunca foi tão contestado. E uma das consequências desse estado de coisas é o mau exercício da dita autoridade por todos que dela se acham investidos. Há uma razão profunda na raiz de tamanho mal: a autoridade, em seus variados níveis, é uma exigência da lei natural. Sem essa ideia é impossível a família, é impraticável a Cidade, é impensável uma Civilização.

Por outro lado, há na ideia de autoridade algo que parece soar falso, ou que parece antinatural: como poderemos admitir que um homem se torne rei ou chefe da multidão de homens feito do mesmo barro? A ideia de autoridade aparece logo como antagônica do ideal de igualdade que parece ser uma das metas do dinamismo da história: os séculos trabalham para produzir um nivelamento humano, dizem os vários seguidores do anarquismo revolucionário. A autoridade será então, no dizer deles, uma categoria anti-histórica. O senso comum, ao contrário, nos diz que o sucesso de qualquer obra humana exige unidade de ação, e essa unidade exige que uns mandem e outros obedeçam. Mas o senso comum é a primeira vítima das correntes revolucionárias. E o mundo moderno, desaguador de uma civilização que durante quatro séculos apostou tudo nas revoluções, está aí para nos oferecer uma amostra do que será o próximo mundo cada vez mais moderno, condenado a ser continuamente moderno.

Já se disse mil vezes que a crise de civilização em que estamos imersos é uma crise de autoridade; mas é preciso acrescentar que a crise da autoridade tem dois lados: o primeiro consiste na agressão exterior e na contestação do princípio pelos anarquistas; o segundo consiste no mau exercício da autoridade.

As pessoas investidas de algum superiorato sentem-se vagamente envergonhadas porque uma das coisas mais difíceis para o indivíduo é resistir de algum modo ao empuxo irracional que vem da massa em movimento histórico. E todos pensam que a autoridade será tanto melhor quanto mais benigna e suave, como todos também pensam que, democracia será tanto melhor quanto mais puramente democrática, isto é, quanto menos acentuado é o valor e o prestígio das elites, e quanto mais decapitado o corpo político.

A dificuldade do exercício das mais legítimas autoridades, a do Papa, a de um bispo, a de um abade, a de um pai de família e a de um chefe de Estado, começa na cercadura dos seus mais próximos auxiliares. E o que mais frequentemente se vê, nessa matéria, produz tais deformações, tamanhos disparates, que, em vez de falar na tragédia da autoridade, seria melhor dizer comédia da autoridade. A crise da hierarquia eclesiástica é hoje um dos mais graves e pungentes dramas de nossa história. Desde o papado, onde a suprema autoridade da Igreja é o sucessor de Pedro e, portanto, o “doce Cristo na Terra” como dizia Catarina de Sena, tem-se a penosa impressão de um cerco. Com o pretexto de melhor servir a Igreja, segundo critérios que vê mais dos trovões sísmicos da história do que dos trovões do Sinai, muitos bispos se levantaram para diminuir a autoridade do Papa, para contestar o primado de Pedro, ou para colocá-lo numa espécie de presidência, no mesmo nível do colegiado de Bispos.

Além disso há a cercadura, os assessores, os secretários, os peritos, que se movem em torno do Cristo-na-Terra pomposamente crucificado, como em torno da Cruz primeira se moviam os soldados romanos, os curiosos, enquanto junto à cruz se imobilizada Stabat, a Mãe de Deus, Mãe da Igreja, Mãe dos homens.

***

E de onde vem o fermento de des-Ordem que corrói no mundo todas as formas de autoridade? Respondo a essa interrogação com as palavras de São Pio X, que deveria ser considerado o patrono de todas as legítimas autoridades, porque soube levar a sua a um grau heroico.

“Poderá alguém ignorar a doença grave e profunda que neste momento, mais do que nunca, mina as entranhas da sociedade, e dia a dia se agrava corroendo-a até a medula e arrastando-a à ruína total? Essa doença, que bem conheceis, é a atitude do homem diante de Deus: é o abandono, a apostasia (dos mais próximos e é a soberba e insensata indiferença de muitos), mas nós não duvidamos da palavra do profeta (Sl 72, 27): ‘Eis que perecerão todos os que se afastarem de Vós...’”

É o afastamento de Deus, que a parte do mundo mais cristianizada vem operando há quatro séculos, que torna absurda e inaceitável a ideia da autoridade, porque todas as situações humanas de superiorato só têm sentido, e só encontram verdadeiro apoio, não na confusa e irracional “vontade geral”, mas no temor de Deus que é o modelo perfeito de todas as autoridades. Na verdade – agora compreendemos melhor – toda a corrente revolucionária, que quer destruir o passado de pedra em favor de um futuro de névoa, é uma corrente parricida.

Dentro dela, as instituições de direito divino, como o Episcopado, oscilam, vacilam e dão espetáculos derrisórios de desmoralização da autoridade, de dentro para fora, deixando abandonado à perplexidade e às lágrimas o povo humilde dos fiéis que, em lugar da figura de um Pai, veem frequentemente um burocrata, quando não veem um acrobata ou uma vedeta.

(O Globo, 10/2/72)

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