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Um critério e uma palavra

Gustavo Corção

Nos textos do Concílio Vaticano I que transcrevemos nos últimos artigos -- e mais especialmente aquele que trata da infalibilidade, e da autoridade ensinante da Igreja e do Sumo Pontífice, vimos bem realçado um bom critério, com que se reconhece entre todas a voz da Igreja de Cristo, e com o qual qualquer fiel, pela infalibilidade natural da razão nos seus primeiros princípios e até o nível do senso comum nos mais próximos e evidentes corolários poderá discernir a santa doutrina da "outra", e obedecer ao enérgico conselho do Apóstolo que manda repelir os pregadores de "outro evangelho", sejam eles apóstolos, papas ou anjos (Gl 1, 8).

Este critério é o seguinte: só se reconhece a voz da Igreja, e só se reconhece a autenticidade de seu ensino e portanto o valor benéfico e salvífico de qualquer ato de sua hierarquia, onde a idéia de continuação de uma identidade tiver claro realce, ou pelo menos não for obscurecida e até contrariada pela idéia de uma inovação. Retomemos por exemplo o texto do cap. IV da Sessão IV do Concílio Vaticano I, onde se concentra o condicionamento e a definição da infalibilidade: "Pois, em verdade, aos sucessores de São Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que propaguem uma nova doutrina segundo suas próprias revelações MAS PARA QUE COM SUA ASSISTÊNCIA GUARDEM santamente e exponham fielmente a revelação transmitida pelos apóstolos, isto é, o depósito da fé" (op. cit., pág. 492).

Ora, se percorrermos os mais significativos textos conciliares e pós-conciliares observaremos sem dificuldade que a idéia de inovação é obsessiva e define bem o espírito que as guiou.

Antes de exemplificarmos e de tirar consequências, insistamos no valor teológico, metafísico, e de senso comum de nosso critério. De início todos nós sabemos que as coisas criadas estão em constante movimento, sobretudo as coisas corpóreas, e por conseguinte, a mobilidade está mais do lado da matéria, enquanto a imutabilidade está no lado de Deus, no lado do espírito, e até no da forma inteligível das coisas deste inquieto mundo, ou deste "restless universe", como disse Max Born, prêmio Nobel de Física. Psicologicamente segue-se que a atitude de uma alma é tanto mais alta e mais sábia quanto mais procurar as coisas, e idéias imutáveis; e será tanto mais pueril, primitiva ou selvagem quanto mais vivamente se interessar pelas coisas móveis, por tudo que passa e que muda.

Ora, a tragédia de nosso tempo, decorrente de quatro ou cinco séculos de empirismo crescente, está no fato de ter atingido as cúpulas da Igreja o primado da novidade sobre o da perenidade. Creio que qualquer leitor já percebeu que dentro desta atmosfera é difícil falar de Deus, e que tudo convida a falar de evoluções e revoluções. Ou de nada: que é o grande assunto. 

Na Sagrada Escritura o termo novo tem um sentido de especial elevação quando se refere ao único necessário, que poderíamos chamar o único novo. Em três livros principais este termo significa a única grande coisa nova na história do mundo, antes da qual o amargo Dom de Ciência dos autores do Eclesiastes diziam: nihil novum sub sole, para marcar a melancólica monotonia de um universo em irresistível processo de envelhecimento.

Em contraste com o desprezo bem assinalado em toda a Sagrada Escritura pelas novidades menores que fazem comichões nos ouvidos e na alma, o termo novo tem uma sonoridade de anúncio do Céu quando o apóstolo grita: -- "Quem está em Cristo é uma nova criatura; o mundo antigo passou, eis que tudo é novo" (2Cor 5, 17). Em Isaías, em previsão do advento do Verbo, lemos: "Eis que eu crio um novo céu e uma nova terra" (Is 65,17); no Apocalipse, sempre com referência à segunda vinda de Cristo: "Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido" (...) E o que estava sentado no trono disse: "Eis que faço tudo novo" (Ap 21, 1-5).

Não é preciso mais para bem assinalar o transcendente sentido do termo novo, e por isso mesmo, a severidade com que todas as grandes vozes católicas vêem o gosto de novidades nas coisas de Deus e de sua Igreja que vem mais do século e da matéria, do que de Cristo e do espírito.

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Até aqui já estamos armados de um critério muito firme, e de um sinal muito significativo para demarcar a linha divisória que separa os que querem, a todo preço, guardar a Fé católica até o fim, dos que toleram ou até saboreiam as novidades que mais os prendem ao mundo ou à esteira dos acontecimentos do que à Cruz de Nosso Senhor. Em tempos tranquilos, ou relativamente estáveis que eu ainda alcancei nos dias em que a infinita misericórdia de Deus me devolveu a graça e os dons de meu batismo, dispúnhamos de sinais mais claros para discernir a voz da Igreja, sua doutrina, seus mandamentos e, para resistir às seduções do vozerio do mundo, tínhamos o critério tradicional da autoridade suprema da Igreja: "ubi Petri, ibi Ecclesia".

Quando porém o próprio papado se divide, como ocorreu nos tempos do grande cisma do Ocidente, ou quando o vértice da Igreja é atingido pelas tempestades do século, Deus não abandona seu povo aos caprichos de pastores desencaminhados, e com graças especiais guardará as almas que se prendem à santa doutrina tradicional, imutável, que foi assinada com o Sangue de nosso Salvador. Pela prática da oração, da meditação e da boa leitura teremos a alma dotada de fino ouvido para logo nos livrar dos primeiros pruridos do amor próprio, dos sopros do demônio, ou da propaganda do mundo. Esta é a idéia principal de nossa modesta contribuição de hoje. E agora ilustramos a teoria com um exemplo.

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Temos aqui neste livro, Nuevas Normas de la Missa, editado pela B.A.C. em texto bilingue, Madrid, 1970, uma Constituição Apostólica assinada pelo Sumo Pontífice, que começa a apresentação do Novo Missal por esta referência àquele promulgado por São Pio V, que até poucos anos atrás era para nós a joia, o livro principal de nossa missa quotidiana. Começa assim a Constituição Apostólica: "O Missal Romano promulgado em 1570 por Nosso Predecessor São Pio V em continuidade com os decretos do Concílio de Trento, sempre foi considerado como um dos numerosos e admiráveis frutos que aquele Sacrossanto Concílio disseminou por toda a Igreja de Cristo. E durante 4 séculos (1570/1970) constituiu a norma da Celebração do Sacrifício Eucarístico para os sacerdotes de rito latino, e foi levado a quase todas as nações do mundo pelos arautos do Evangelho. Nem se deve esquecer que inumeráveis santos alimentaram a piedade e o amor de Deus com as leituras bíblicas e as orações do Missal cuja disposição geral remontava, no essencial, a São Gregório Magno...”

Neste ponto da leitura, minha filha parou, e com ar de admiração, perguntou-me:

-- Mas então por que é que substituíram essa joia por outro missal? Qual foi a razão principal alegada?

Na continuação da leitura veremos que foi alegada a conveniência de acomodar o novo missal à “mentalidade contemporânea”.

-- Hein? E o que é que se entende por “mentalidade contemporânea”?

-- Páginas adiante, 17 e seguintes, a mesma Constituição Apostólica nos dá amostra desse modelo a que se deveriam acomodar as normas do Sacrifício Eucarístico: “... vivamente confiamos que a NOVA ordenação do Missal permitirá a todos, sacerdotes e fiéis, preparar seus corações à Celebração da Ceia do Senhor com RENOVADO (?) espírito religioso e ao mesmo tempo sustentados por uma meditação mais profunda das Sagradas Escrituras (...). E nesta REVISÃO do Missal Romano, além das MUDANÇAS trazidas às três partes, à Oração Eucarística, ao Ordinário da Missa e ao Lecionário, outras seções foram também REVISADAS. Uma atenção particular se dedicou às orações (...) de modo que às NOVAS necessidades correspondam FÓRMULAS NOVAS...”

Com a palavra e o critério escolhidos por nós para esta análise, já sentimos o timbre de uma língua diferente daquela empregada por Pio IX, nos textos do Concílio Vaticano I. Cada vez mais brutalmente se configura diante de nossa consciência boquiaberta, o que já chamamos de tenebrosa evidência.

 

(19/8/76)

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