Category: Garrigou-Lagrange, Réginald , O.P.
Dominicano, autor de livros de teologia, filosofia e espiritualidade, foi um dos grandes espirituais do século XX.
A Igreja aprovou, sob o pontificado de Bento XV, a 21 de janeiro de 1921, o Ofício e a Missa próprios de Maria Medianeira de Todas as Graças , e muitos teólogos consideram essa doutrina como suficientemente contida no depósito da Revelação para ser, um dia, solenemente proposta como objeto de fé pela Igreja infalível; ela é ensinada, de fato, pelo magistério ordinário que se manifesta pela liturgia, encíclicas e cartas pastorais dos bispos, pela pregação universal e pelas obras dos teólogos aprovados pela Igreja.
Veremos o que se deve entender por essa mediação e como ela é confirmada pela Tradição e fundamentada pela razão teológica.
O que se deve entender por essa mediação?
Santo Tomás nos diz ao falar da mediação do Salvador : “É ofício próprio do mediador unir aqueles entre os quais se interpôs”. Quer dizer, como explica mais adiante, o mediador deve oferecer a Deus as orações dos homens e sobretudo o sacrifício, o ato principal da virtude da religião; e deve também distribuir aos homens os dons de Deus que santificam: a luz divina e a graça.
Há, portanto, uma dupla mediação: uma ascendente, em forma de oração e de sacrifício; outra descendente, pela distribuição dos dons divinos aos homens.
Esse ofício de mediador convém com absoluta perfeição somente a Jesus Cristo, o Homem-Deus, o único que pôde nos reconciliar com Deus, oferecendo-lhe, por toda a humanidade, um sacrifício de valor infinito, o da cruz, que é perpetuado substancialmente no sacrifício da Missa; somente Ele, também, como Cabeça da humanidade, pode nos merecer, com justiça, as graças necessárias para a salvação, e as distribui a todos os homens que não se afastam de sua ação santificadora. É, portanto, mediador como homem, enquanto a sua humanidade está pessoalmente unida ao Verbo e recebeu a plenitude da graça, a graça capital, que deve derramar-se sobre nós. Diz também São Paulo: “Porque há um só Deus, e há um só Mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem, o qual se deu a si mesmo para redenção de todos, (tal é o) testemunho (dado por Deus) no tempo devido” .
“Mas nada impede ― diz Santo Tomás ― certos outros serem, de algum modo, considerados mediadores entre Deus e os homens; isto é, se cooperam para a união dos homens com Deus, por via de preparação ou de ministério”, quer dizer, que disponham os homens a receber a influência do mediador principal ou que a transmitam, mas sempre em dependência dos méritos de Cristo.
Assim, no Antigo Testamento, os profetas e os sacerdotes da ordem levítica eram os mediadores para o povo eleito, anunciando o Salvador e oferecendo sacrifícios que eram figura do grande sacrifício da Cruz. Os sacerdotes do Novo Testamento podem também ser chamados de mediadores entre Deus e os homens, tanto que são ministros do Mediador supremo, pois oferecem o santo Sacrifício e administram os sacramentos em nome de Jesus Cristo.
Pergunta-se então se Maria, de forma subordinada e em dependência dos méritos de Cristo, é Medianeira universal para todos os homens desde a vinda de Nosso Senhor e para a obtenção e distribuição de todas as graças em geral, e até mesmo em particular. Não o é precisamente na qualidade de ministro, mas como associada à obra redentora de seu Filho, segundo a expressão de Santo Alberto Magno “non in ministerium, sed in consortium et in adjutorium” .
Os protestantes negam essa mediação. Pelo contrário, à questão assim apresentada, o senso cristão dos fiéis educados desde muitos séculos pela liturgia católica, que é expressão do Magistério ordinário da Igreja, está inclinado a responder de imediato: Maria, em sua qualidade de Mãe de Deus, Redentor de todos os homens, está totalmente designada para ser a Medianeira universal, pois é verdadeiramente intermediária entre Deus e os homens, mais particularmente entre seu Filho e nós.
Com efeito, por ser uma criatura, ela permanece sempre inferior a Deus e a Cristo, mas está elevada muito acima de todos os homens pela graça da Maternidade Divina, que é de ordem hipostática por seu fim, pela plenitude de graça, recebida no instante da sua concepção imaculada e que não cessou de crescer depois e, finalmente, pelo privilégio da preservação de toda falta.
Vê-se então o que se deve entender por essa mediação que a liturgia e o senso cristão dos fiéis atribuem à Maria. Trata-se, propriamente falando, de uma mediação subordinada, e não coordenada, à mediação do Salvador, de modo que ela depende inteiramente dos méritos de Cristo, o Redentor universal; trata-se também de uma mediação não necessária (pois a de Jesus é já superabundante e não precisa de complemento), mas preparada e querida pela Providência como uma irradiação da do Salvador, e de todas as irradiações a mais excelente. A Igreja considera-a como muitíssimo útil e eficaz para obter-nos de Deus tudo o que pode conduzir-nos direta ou indiretamente à perfeição e à salvação. Trata-se, por fim, de uma mediação perpétua, que se estende a todos os homens e a todas as graças, sem exceção alguma, como se verá em seguida.
É nesse sentido preciso que a Mediação universal é atribuída à Santíssima Virgem pela liturgia na Festa de Maria Medianeira e pelos teólogos que têm recentemente publicado numerosos trabalhos sobre esse ponto.
O testemunho da Tradição
Essa doutrina é afirmada de uma maneira geral e implícita desde os primeiros séculos. Tanto que Maria tem sido chamada desde o século II de a nova Eva, a Mãe dos viventes, como dissemos anteriormente, e ainda mais porque esse título sempre foi reconhecido, não só porque ela fisicamente concebeu e deu à luz ao Salvador, mas também porque cooperou moralmente com a sua obra redentora, sobretudo ao unir-se intimissimamente ao sacrifício da Cruz .
A partir do século IV e sobretudo do século V, os Padres afirmam claramente que Maria intercede por nós e que todos os benefícios e auxílios convenientes para a salvação nos vêm por ela, por sua intervenção e proteção especial. Desde a mesma época, ela é chamada de medianeira entre Deus e os homens, ou entre Cristo e nós.
Estudos recentes lançam uma grande luz sobre esse ponto .
A antítese entre Eva, causa da morte, e Maria, causa da salvação para toda a humanidade, é reproduzida por São Cirilo de Jerusalém , Santo Epifânio , São Jerônimo , e São João Crisóstomo . Convém citar esta oração de Santo Efrém: “Ave Dei et hominum Mediatrix optima. Ave totius orbis conciliatrix efficacissima”, e “post mediatorem mediatrix totius mundi”. Ave, Medianeira admirável de Deus e dos homens. Ave, conciliadora eficacíssima da Terra, e Medianeira depois do Medianeiro supremo .
Em Santo Agostinho, Maria é chamada Mãe de todos os membros de nossa Cabeça, Jesus, e diz que ela “cooperou por sua caridade para o nascimento espiritual dos fiéis, que são os membros de Cristo” . São Pedro Crisólogo diz que “Maria é a mãe dos que vivem pela graça, enquanto que Eva é a mãe dos mortais por natureza” e vê-se que, para ele, Maria foi associada ao plano divino de nossa redenção.
No século VIII, São Beda falou no mesmo sentido ; Santo André de Creta chamou Maria de Medianeira da graça, dispensadora e causa da vida , São Germano de Constantinopla disse que ninguém foi resgatado sem a cooperação da Mãe de Deus . São João Damasceno deu também a Maria o título de Medianeira e afirmou que lhe devemos todos os bens que nos são concedidos por Jesus Cristo .
No século XI, São Pedro Damião ensinou que na obra da nossa redenção nada é realizado sem Maria .
No século XII, Santo Anselmo , Eadmero e São Bernardo expressaram-se da mesma maneira. Este chamou Maria de gratiae inventrix, mediatrix salutis, restauratrix saeculorum .
A partir da metade do século XII e sobretudo do século XIV, é freqüente a afirmação muito explícita da cooperação de Maria em nossa redenção, consumada por seu próprio sacrifício oferecido no momento da Anunciação e realizado no Calvário. Encontra-se esse testemunho em Santo Alberto Magno, Arnaldo de Chartres, Ricardo de São Lourenço e Ricardo de São Vítor. Santo Tomás indicou essa cooperação e a afirmam, de modo cada vez mais claro, São Bernardino de Sena, Santo Antonino , Suárez , Bossuet , e Santo Afonso. No século XVIII, São Luís Grignion de Montfort foi um dos que mais propagaram essa doutrina, mostrando todas as conseqüências práticas da mesma . Desde então é um ensinamento comum dos teólogos católicos.
O Papa Pio X disse na encíclica Ad diem illum, de 02 de fevereiro de 1904, que Maria é a poderosíssima Medianeira e reconciliadora de toda a Terra perante seu Filho Unigênito: “Totius orbis terrarum potentissima apud Unigenitum Filium suum mediatrix et conciliatrix”. O título está doravante consagrado pela Festa de Maria Medianeira, instituída em 21 de janeiro de 1921.
Razões teológicas dessa doutrina
As razões muitas vezes invocadas pelos Padres e mais explicitamente pelos teólogos são as seguintes:
Maria merece o nome de Medianeira universal subordinada ao Salvador se é a intermediária entre Deus e os homens, apresentando suas súplicas e obtendo-lhes os benefícios de seu Filho.
Ora, tal é precisamente, em relação a nós, o papel da Mãe de Deus, que, permanecendo uma criatura, alcançou por sua divina maternidade as fronteiras da Divindade e recebeu a plenitude de graça que deve derramar sobre nós. Ela de fato cooperou para a nossa salvação ao consentir livremente em ser a Mãe do Salvador e em unir-se o mais intimamente possível ao sacrifício de seu Filho. Veremos mais tarde que ela mereceu e satisfez com Ele por nós.
Finalmente, segundo a doutrina da Igreja, ela continua intercedendo para obter-nos todas as graças necessárias à salvação; com isso exerce sua maternidade espiritual, da qual falamos antes.
Cristo permanece, dessa forma, o mediador principal e perfeito, pois é somente em dependência de seus méritos que a Virgem Maria exerce sua mediação subordinada, que não é absolutamente necessária, uma vez que os méritos do Salvador são superabundantes, mas que foi desejada pela Providência por causa da nossa debilidade e para comunicar a Maria a dignidade da causalidade na ordem da santificação e da salvação.
Assim, a obra redentora é totalmente de Deus como causa primeira da graça; é totalmente de Cristo como mediador principal e perfeito, e é totalmente de Maria, como medianeira subordinada. São três causas, não parciais e coordenadas, como três homens puxando um barco, mas totais e subordinadas, de modo que a segunda não age senão pelo influxo da primeira e a terceira pelo influxo das outras duas. Assim, o fruto de uma árvore é, por distintos motivos, inteiramente de Deus, autor da natureza, e inteiramente da árvore e do ramo que o sustenta. Não há parte do fruto que seja parte da árvore e parte do ramo, e também no caso de que falamos .
Acrescentemos que era conveniente que Maria ― por ter sido resgatada pelo Salvador por uma redenção soberana e preservadora de toda falta original e atual ― cooperasse dessa forma em nossa salvação, quer dizer, em nosso resgate das cadeias do pecado, em nossa justificação e em nossa perseverança até o fim.
Sua mediação supera assim em muito a mediação dos santos, pois somente ela nos deu o Salvador, somente ela esteve intimamente unida com um coração de Mãe ao sacrifício da Cruz, somente ela é a medianeira universal para todos os homens e, como veremos adiante, para todas as graças, não só em geral, mas em particular, até na mais particular de todas, que é para cada um de nós a graça do momento presente, que assegura nossa fidelidade de minuto a minuto.
Compreendemos melhor essa universalidade depois de ter demonstrado que Maria nos mereceu por um mérito de conveniência tudo o que Jesus Cristo nos mereceu por estrita justiça, que satisfez com Ele por nós com uma satisfação de conveniência, e que depois, pela aplicação dos frutos da redenção, continua intercedendo em favor de cada um de nós, mais especialmente por aqueles que a invocam, e que todas as graças particulares dadas a cada um de nós, de fato, somente o são por sua intervenção mediadora.
Veremos primeiro em que consiste essa mediação em geral, quais são suas principais características e, depois, como foi exercida durante a vida terrena de Maria sob dois aspectos: pelo mérito e pela satisfação.
Esses dois títulos são evidentemente intimamente conexos, e o segundo deriva do primeiro. Será, pois, muito importante considerar um após o outro.
Maria recebeu, segundo a Tradição, não somente o título de nova Eva, senão o de Mãe da Divina Graça, Mãe Amável, Mãe Admirável, como a chamam as ladainhas, e ainda Mãe de Misericórdia. Os Padres chamam-na muitas vezes de Mãe de todos os cristãos e mesmo de todos os homens. Em que sentido deve-se entender essa maternidade? Quando Maria tornou-se a nossa Mãe? Como sua maternidade se estende a todos os fiéis, mesmo que não estejam em estado de graça, e como a todos os homens, mesmo aqueles que não possuem a fé? Essas são as questões que convém examinar aqui.
Em que sentido Maria é nossa Mãe?
Ela não é, evidentemente, nossa mãe do ponto de vista natural, pois não nos deu a vida corporal. Sob esse aspecto, Eva é que merece ser chamada de mãe de todos os homens, pois todos descendemos dela mediante gerações sucessivas.
No entanto, Maria é nossa mãe espiritual e adotiva, no sentido em que, por sua união ao Cristo Redentor, comunicou-nos a vida sobrenatural da graça. A partir desse ponto de vista, ela é muito mais que nossa irmã, e pode ser chamada, por analogia com a vida natural, nossa Mãe, pois nos gerou para a vida da graça.
Se São Paulo pode dizer aos Coríntios, falando de sua paternidade espiritual: “Eu os gerei em Jesus Cristo por meio do Evangelho”, e a Filêmon: “Rogo-te por meu filho, Onésimo, que eu gerei nas prisões (convertendo-o a Cristo)”, com muito mais razão podemos falar da maternidade espiritual de Maria, maternidade que transmite uma vida que deve durar não sessenta ou oitenta anos, mas para sempre, eternamente.
Essa é uma maternidade adotiva, como a paternidade espiritual de Deus com respeito aos justos, mas essa adoção é muito mais íntima e fecunda que a adoção humana, pela qual um rico sem descendência declara considerar um pobre órfão como seu filho e herdeiro. Essa declaração é sempre de ordem jurídica e, ainda que seja o sinal da afeição daquele que adota, não produz o menor efeito na alma da criança adotada. Ao contrário, a paternidade adotiva de Deus com relação ao justo produz na alma do adotado a graça santificante, a participação da natureza divina ou da vida íntima de Deus e germe da vida eterna, germe pela qual o justo é agradável aos olhos de Deus como um filho chamado a vê-lo imediatamente e a amá-lo por toda a eternidade. Nesse sentido, diz-se no Prólogo de São João que aqueles que crêem no Filho de Deus feito homem são “nascidos não da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. Isso nos mostra a fecundidade da paternidade espiritual; dessa fecundidade participa a maternidade espiritual e adotiva de Maria, porque, em união com o Cristo Redentor, ela nos tem comunicado verdadeira e realmente a vida da graça, germe da vida eterna. Ela pode, portanto, e deve ser chamada de Mater gratiae, Mater Misericordiae. É isso que querem dizer os Padres ao chamá-la de nova Eva, dizendo que tem voluntariamente cooperado para a nossa salvação, como Eva o fez para a nossa ruína.
Esse ensinamento é parte da pregação universal a partir do século II e se encontra em São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, São João Crisóstomo, São Proclo, São Jerônimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, onde eles falam da nova Eva nas passagens citadas no artigo precedente. Essa doutrina foi particularmente desenvolvida no século IV por Santo Efrém, que chama Maria de “a Mãe da vida e da salvação, a Mãe dos viventes e de todos os homens”, porque nos deu o Salvador e uniu-se a Ele no Calvário . Falam no mesmo sentido São Germano de Constantinopla , São Pedro Crisólogo , Eadmero , São Bernardo , Ricardo de São Lorenzo e Santo Alberto Magno, que chamam Maria de: Mater misericordiae, Mater regenerationis, totius humani generis mater spiritualis , e igualmente São Boaventura .
A liturgia diz todos os dias: “Salve, Regina, Mater misericordiae...; Monstra te esse Matrem...; Salve, Mater misericordiae, Mater Dei et Mater veniae, Mater spei et Mater gratiae”.
Quando Maria tornou-se nossa Mãe?
Segundo os testemunhos que acabamos de citar, Maria tornou-se nossa Mãe ao consentir livremente em ser a Mãe do Salvador, o autor da graça, que nos regenerou espiritualmente. Nesse instante, ela concebeu-nos espiritualmente, de tal maneira que teria sido nossa mãe adotiva por esse fato, ainda que tivesse morrido antes de seu Filho.
Quando depois Jesus consumou a sua obra redentora pelo sacrifício da Cruz, Maria, ao unir-se a esse sacrifício pelo imenso ato de fé, confiança e amor a Deus e às almas, tornou-se, de um modo mais perfeito, nossa Mãe, por uma cooperação mais direta, mais íntima e mais profunda em nossa salvação.
Ademais, nesse momento foi proclamada nossa Mãe por Nosso Senhor, quando Ele lhe disse, ao falar de São João, que personificava a todos os que deveriam ser resgatados pelo seu sangue: “Mulher, eis aqui seu filho”, e a João: “Eis aqui a Sua Mãe” . É assim que a Tradição tem entendido essas palavras, porque nesse momento e diante de tantas testemunhas o Salvador de todos os homens não concedia somente uma graça particular a São João, mas considerava nele todos aqueles que deveriam ser regenerados pelo sacrifício da Cruz .
Essas palavras de Jesus em seus derradeiros instantes, como as palavras sacramentais, produziram o que significavam: na alma de Maria um grande aumento de caridade ou de amor maternal por nós; na alma de João um afeto filial profundo e cheio de respeito pela Mãe de Deus. Essa é a origem da grande devoção a Maria.
Finalmente, a Santíssima Virgem continua exercendo sua função de Mãe com relação a nós, velando sobre nós para que cresçamos na caridade e perseveremos nela, intercedendo por nós e distribuindo-nos todas as graças que recebemos.
Qual é a extensão de sua maternidade?
Maria é, em primeiro lugar, a Mãe dos fiéis, de todos os que crêem em Seu Filho e recebem por Ele a vida da graça. Mas é também a Mãe de todos os homens, uma vez que nos deu o Salvador de todos e uniu-se à oblação de seu Filho, que derramou seu sangue por todos. Isso é o que afirmam os Papas Leão XIII, Bento XV e Pio XI .
Ademais, não é somente Mãe dos homens em geral, como se pode dizer de Eva do ponto de vista natural, mas é Mãe de cada um em particular, porque intercede em favor de cada um e obtém as graças que cada um de nós recebe no transcurso das gerações humanas. Jesus diz de si mesmo que é o Bom Pastor “que chama as suas ovelhas, cada uma pelo seu nome, nominatim” ; algo semelhante acontece com Maria, a Mãe espiritual de cada homem em particular.
No entanto, Maria não é da mesma maneira Mãe dos fiéis e dos infiéis, dos justos e dos pecadores. Deve-se fazer aqui a distinção admitida a respeito de Jesus Cristo em comparação aos diversos membros de Seu Corpo Místico . Em relação aos infiéis, ela é sua Mãe enquanto está destinada a gerá-los para a vida da graça, e enquanto lhes obtém graças atuais que os dispõem à fé e à justificação. Em relação aos fiéis que estão em estado de pecado mortal, ela é sua Mãe enquanto vela atualmente por eles obtendo-lhes graças necessárias para fazer atos de fé, de esperança e dispô-los à conversão; no que diz respeito aos que morrem na impenitência final, Maria não é mais sua Mãe, mas o foi. Em relação aos justos, é perfeitamente sua Mãe, uma vez que eles têm recebido, por sua cooperação voluntária e meritória, a graça santificante e a caridade; vela por eles com terna solicitude para que permaneçam em estado de graça e que cresçam na caridade. É finalmente a Mãe por excelência dos bem-aventurados que não podem perder a vida da graça.
Vê-se agora todo o sentido das palavras que a Igreja canta todas as noites na oração de Completas: “Salve, Rainha, Mãe de misericórdia; vida, doçura e esperança nossa, salve. A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas...”.
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São Luís Grignion de Montfort expôs admiravelmente as conseqüências dessa doutrina em seu belíssimo livro Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem : Deus quer se servir de Maria na santificação das almas. Isso se resume assim em O segredo de Maria : “Ela deu a vida ao Autor de toda graça, e por isso é chamada de Mãe da graça. Deus Pai, de quem procedem, como de sua fonte essencial, todo dom perfeito e toda graça, deu-lhe seu Filho, deu-lhe todas as graças; de modo que, como diz São Bernardo, a vontade de Deus lhe é dada n'Ele e com Ele.
“Deus a escolheu para tesoureira, ecônoma e dispensadora de todas as suas graças, de maneira que todas as suas graças e todos os seus dons passam por suas mãos... Uma vez que Maria formou Jesus Cristo, a Cabeça dos predestinados, a Ela também compete formar os membros dessa Cabeça, que são os verdadeiros cristãos... Maria recebeu de Deus um domínio particular sobre as almas para alimentá-las e fazê-las crescer em Deus. Santo Agostinho chega mesmo a dizer que, neste mundo, os predestinados estão todos guardados no seio de Maria, e que não nascem senão quando essa boa Mãe os gera para a vida eterna... Foi a ela que o Espírito Santo disse: In electis meis mitte radices (Ecl 24,13): Lançai raízes em meus eleitos... as raízes de uma profunda humildade, de uma ardente caridade e de todas as virtudes.
“Maria é chamada por Santo Agostinho, e é, com efeito, o molde vivo de Deus, forma Dei, o que quer dizer que foi nela somente que Deus feito homem foi formado... e é assim nela somente que o homem pode ser formado em Deus... Todo aquele que é lançado nesse molde e se deixa modelar, recebe todos os traços de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, de uma maneira proporcionada à fraqueza humana, sem muitas penalidades e trabalhos; de uma maneira segura, sem temor de ilusões, pois o demônio nunca teve e jamais terá acesso a Maria, santa e imaculada, sem sombra da menor mancha de pecado.
“Quanta diferença existe entre uma alma formada em Jesus Cristo pelas vias ordinárias dos que, como escultores, confiam na própria habilidade e apóiam-se em sua indústria, e outra alma bem manejável, bem desligada, bem fundida, e que, sem nenhum apoio em si mesma, lança-se em Maria e nela se deixa conduzir pela operação do Espírito Santo! Quantas faltas e defeitos, quantas trevas e ilusões, quanto de natural e de humano há na primeira alma, enquanto que a segunda é pura, divina e semelhante a Jesus Cristo!...
“Feliz, mil vezes feliz, é a alma, aqui na Terra, a quem o Espírito Santo revela o segredo de Maria, para conhecê-la, e à qual abre esse jardim fechado, para aí penetrar; essa fonte selada, para dela extrair e saborear a grandes sorvos as águas vivas da graça! Essa alma achará somente a Deus, sem criatura alguma, nessa amável criatura; Deus, que é ao mesmo tempo infinitamente santo e infinitamente condescendente e proporcionado à sua fraqueza... É Deus somente que vive nela [em Maria] e, longe de deter uma alma para si, lança-a, pelo contrário, em Deus e a une a Ele”.
Assim, a doutrina cristã sobre Maria torna-se, com o Santo de Montfort, o objeto de uma fé penetrante e deleitável, de uma contemplação que leva por si mesma a uma verdadeira e vigorosa caridade.
Maria, causa exemplar dos eleitos
Cristo é o nosso modelo e sua predestinação à filiação divina natural é a causa exemplar de nossa predestinação à filiação adotiva, pois “Deus nos predestinou para sermos feitos em conformidade à imagem de seu Filho, para que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos” . Assim também Maria, nossa Mãe, associada a seu Filho, é a causa exemplar da vida dos eleitos, e é nesse sentido que Santo Agostinho e depois dele São Luís de Montfort dizem que ela é o molde ou o modelo à imagem do qual Deus forma os eleitos. É necessário estar marcado com seu sinal e reproduzir seus traços para ter lugar entre os prediletos do Senhor; e por isso os teólogos ensinam comumente que uma verdadeira devoção a Maria é um dos sinais de predestinação. O bem-aventurado Hugo de São Caro chega a dizer que Maria é como o livro da vida , ou um reflexo desse livro eterno, porque Deus escreveu nela o nome dos eleitos, como quis formar nela e por ela a Cristo, seu primeiro eleito.
São Luís Grignion de Montfort escreveu que Deus Filho diz à sua Mãe: “‘In Israel hereditare ― Possui tua herança em Israel’ (Eclo 24, 13), como se dissesse: Deus, meu Pai, deu-me por herança todas as nações da Terra, todos os homens bons e maus, predestinados e réprobos. Eu os conduzirei, uns pela vara de ouro, outros pela vara de ferro; serei o pai e advogado de uns, o justo vingador para outros, e o juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe, só tereis por herança e possessão os predestinados, figurados por Israel. Como sua boa mãe vós lhes dareis a vida, os nutrireis, educareis; e, como sua soberana, os conduzireis, governareis e defendereis”.
É nesse mesmo sentido que se deve entender o que diz o próprio autor, um pouco adiante , ao mostrar que Maria, assim como Jesus, escolhe sempre em conformidade ao beneplácito divino que inspira sempre a sua eleição: “O Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para enobrecer, elevar e enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem ela quiser no caminho estreito do Céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser pela porta estreita da vida eterna. E para dar o trono, o cetro, e a coroa de rei a quem ela quiser... A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros (Ct 1, 3) do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição, e de nesses caminhos fazer entrar os outros”.
Vemos nisso toda a extensão da maternidade espiritual, pela qual Maria modela os eleitos e os conduz ao término do seu destino.
A Igreja chama Maria não só de Mãe de Deus, mas também de Mãe do Salvador. Nas ladainhas lauretanas, por exemplo, após as invocações de Sancta Dei Genitrix e Mater Creatoris, lê-se Mater Salvatoris, ora pro nobis.
Não há aqui, como alguns poderiam pensar e o veremos melhor depois, uma dualidade que diminuiria a unidade da Mariologia como que dominada por dois princípios distintos: “Mãe de Deus” e “Mãe do Salvador, associada à sua obra redentora”. A unidade da Mariologia é mantida porque Maria é “Mãe de Deus Redentor ou Salvador”. Da mesma forma, os dois mistérios da Encarnação e da Redenção não constituem uma dualidade que diminuiria a unidade do tratado de Cristo ou Cristologia, porque se trata da “Encarnação Redentora”; o motivo da Encarnação está suficientemente indicado no Credo, onde se diz do Filho de Deus que desceu do Céu para a nossa salvação: “E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu do Céu” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Vejamos como Maria tornou-se a Mãe do Salvador por seu consentimento e, em seguida, como, em virtude de ser Mãe do Salvador, foi associada à sua obra redentora.
Maria tornou-se a Mãe do Redentor pelo seu consentimento
No dia da Anunciação, a Santíssima Virgem deu o seu consentimento à Encarnação redentora quando o arcanjo Gabriel lhe disse: “eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”, que quer dizer salvador.
Maria não ignorava as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que anunciavam claramente os sofrimentos redentores do Salvador prometido. Ao dizer seu fiat, no dia da Anunciação, ela generosamente aceitou de antemão todos os sofrimentos que a obra da redenção acarretaria para seu Filho e para si mesma.
Ela conheceu esses sofrimentos mais explicitamente alguns dias depois, quando o santo Simeão disse-lhe: “Agora, Senhor, podes deixar partir o teu servo em paz, segundo a tua palavra. Porque os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparastes ante a face de todos os povos”. Ela compreendeu mais profundamente ainda a parte que devia tomar nos sofrimentos redentores, quando o santo ancião acrescentou, referindo-se a ela: “Eis que este (menino) está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição ― e uma espada de dor transpassará a tua alma”. Lê-se um pouco adiante que “Maria guardava todas essas coisas em seu coração”; o plano divino esclarecia-se cada vez mais para sua fé contemplativa, que se tornava mais penetrante e aguda pela iluminação e pelas luzes do dom da inteligência.
Maria tornou-se, portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal; e compreendia mais e mais que o Filho de Deus se tinha feito homem para nossa salvação, como diria posteriormente o Credo. Desde então, uniu-se a Jesus como só uma Mãe, e uma Mãe tão santa como ela, poderia fazer, numa perfeita conformidade de vontade e de amor a Deus e às almas. Essa é a forma especial que toma nela o supremo mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Nada mais simples, mais profundo, nem maior.
A Tradição compreendeu isso muito bem, uma vez que não cessou de dizer: como Eva esteve unida ao primeiro homem na obra da perdição, Maria devia estar unida ao Redentor na obra da reparação.
Mãe do Salvador, ela percebeu, de forma cada vez mais completa, como Ele devia cumprir Sua obra redentora. Bastava-lhe apenas recordar as profecias messiânicas bem conhecidas de todos. Isaías anunciou as humilhações e os sofrimentos do Messias, que as suportaria para expiar as nossas faltas, que seria a própria inocência, e que conquistaria, por sua morte generosamente oferecida, grandes multidões .
Davi, no Salmo 21: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, descreveu a súplica suprema do Justo por excelência, o seu grito de angústia na mais profunda prostração, e ao mesmo tempo a sua confiança em Yahweh, seu apelo supremo, seu apostolado e seus efeitos em Israel e entre as nações. Maria conhecia evidentemente esse salmo e o meditava em seu coração.
O profeta Daniel descreveu também o reino do Filho do Homem e o poder que lhe será conferido: “E ele lhe deu o poder, a honra e o reino; e todos os povos, tribos e línguas o serviram; o seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado; e o seu reino não será jamais destruído”.
Toda a Tradição tem visto nesse Filho do Homem, como no homem das dores de Isaías, o Messias prometido como Redentor.
Maria, que não ignorava essas promessas, tornou-se, por seu consentimento no dia da Anunciação, a Mãe do Redentor como tal. Deste consentimento: “fiat mihi secundum verbum tuum”, depende tudo o que se segue na vida da Santíssima Virgem, como toda a vida de Jesus depende do consentimento que Ele deu “ao entrar neste mundo”, quando afirmou: “não quiseste hóstia, nem oblação, mas me formaste um corpo; os holocaustos pelo pecado não te agradaram. Então eu disse: Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade”.
Também os Padres disseram que a nossa salvação dependia do consentimento de Maria, que concebeu seu Filho em espírito antes de concebê-Lo corporalmente .
Pode-se objetar que um decreto divino, como aquele da Encarnação, não pode depender do livre consentimento de uma criatura, que poderia recusá-lo.
A teologia responde: segundo o Dogma da Providência, Deus quis eficazmente e previu infalivelmente todo o bem que acontecerá de fato no decorrer dos tempos. Quis, pois, eficazmente e previu infalivelmente o consentimento de Maria, condição prévia da realização do mistério da Encarnação. Desde toda a eternidade, Deus, que opera tudo “com força e suavidade”, decidiu outorgar a Maria uma graça eficaz que lhe fará dar esse consentimento livre, salutar e meritório. Da mesma forma que faz florescer as árvores, Deus faz florescer também nossa livre vontade fazendo-a produzir seus atos bons; longe de violentá-la nisso, Ele a atualiza e produz nela, e com ela, o modo livre de nossos atos, que é ainda ser. Esse é o segredo do Deus Onipotente. Da mesma maneira que, por obra do Espírito Santo, a Virgem Maria concebeu o Salvador sem perder a virgindade, assim também, pela moção da graça eficaz, disse infalivelmente o seu fiat sem que sua liberdade fosse em nada lesada ou diminuída; ao contrário, por esse contato virginal da moção divina e da liberdade de Maria, esta floresceu muitíssimo espontaneamente nesse livre consentimento dado em nome da humanidade.
Esse fiat era totalmente de Deus, como causa primeira, e totalmente de Maria, como causa segunda. Da mesma maneira, uma flor ou um fruto são totalmente de Deus, como autor da natureza, e totalmente da árvore que os carrega, como causa segunda.
Nesse consentimento de Maria, vemos um perfeito exemplo do que diz Santo Tomás: “Ora, a vontade divina, sendo eficacíssima, não somente produz as coisas que quer que se façam, mas, também do modo pelo qual assim as quer. Ora, Deus quer que algumas se façam necessariamente, outras, contingentemente”. “Como nada resiste à vontade divina, resulta que, não somente se farão as coisas que Deus quer que se façam, mas se farão contingente ou necessariamente, conforme ele o quiser” .
Maria, por seu fiat no dia da Anunciação, tornou-se, portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal.
Toda a Tradição o reconhece ao chamá-la de a Nova Eva. Ela só o pode ser efetivamente porque, por seu consentimento, tornou-se Mãe do Salvador para a obra redentora; do mesmo modo que Eva, ao consentir na tentação, induziu o primeiro homem ao pecado que o fez perder para si e para nós a justiça original.
Os protestantes têm objetado: os antepassados da Santíssima Virgem podem, desse modo, ser chamados pai ou mãe do Redentor, e dizer-se deles que estiveram “associados à sua obra redentora”. É fácil responder que somente Maria foi iluminada para consentir em se tornar a Mãe do Salvador e estar associada à sua obra de salvação, porque seus antepassados sequer sabiam que o Messias nasceria de sua própria família.
Santa Ana não podia prever que a sua filha tornar-se-ia um dia a mãe do Salvador prometido.
Como a Mãe de Redentor esteve associada à Sua obra?
Conforme isso que os Padres da Igreja nos transmitiram sobre Maria, a Nova Eva, que muitos dentre eles vêem anunciado nas palavras divinas do Gênesis: “A posteridade da mulher esmagará a cabeça da serpente”, é uma doutrina comum e certa na Igreja, e mesmo próxima da fé, a que afirma que a Santíssima Virgem, Mãe do Redentor, foi associada a Ele na obra da redenção como causa segunda e subordinada, da mesma maneira que Eva esteve associada a Adão na obra da perdição .
De fato, já no século II, essa doutrina de Maria, a nova Eva, está universalmente admitida, e os Padres que a expõem não o fazem como se fosse uma especulação pessoal, mas como doutrina tradicional da Igreja que se apóia nas palavras de São Paulo, onde o Cristo é chamado de novo Adão e é contraposto ao primeiro, como a causa da salvação opõe-se à da queda . Os Padres aproximam dessas palavras de São Paulo o relato da queda, a promessa da redenção, da vitória sobre o demônio e o relato da Anunciação, onde se fala do consentimento de Maria para a realização do mistério da Encarnação redentora. Pode-se, portanto, e mesmo deve-se ver nessa doutrina de Maria ― a nova Eva associada à obra redentora de seu Filho ― uma tradição divino-apostólica .
Os Padres que a expõem mais explicitamente são: São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, São Cipriano, Orígenes , São Cirilo de Jerusalém, Santo Efrém , Santo Epifânio, São João Crisóstomo, São Proclo, São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Basílio de Selêucia, São Germano de Constantinopla, São João Damasceno, Santo Anselmo e São Bernardo . Posteriormente, todos os doutores da Idade Média e os teólogos modernos falam no mesmo sentido .
Em que sentido, segundo a tradição, Maria, a nova Eva, esteve associada, aqui na Terra, à obra redentora de seu Filho?
Não só esteve associada por tê-lo fisicamente concebido, dado à luz e o alimentado, mas moralmente por seus atos livres, salutares e meritórios.
Assim como Eva cooperou moralmente com a queda, cedendo à tentação do demônio, por um ato de desobediência e induzindo Adão ao pecado, Maria, a nova Eva, pelo contrário, segundo o plano divino, cooperou moralmente em nossa redenção, acreditando nas palavras do arcanjo Gabriel, consentindo livremente no mistério da Encarnação redentora e em todos os sofrimentos que esse mistério acaretaria para seu Filho e para si mesma.
Maria certamente não é a causa principal e efetiva da redenção; não podia nos resgatar de condigno, por justiça, porque faltava a ela um ato teândrico de valor intrinsecamente infinito, que só podia pertencer a uma pessoa divina encarnada. Mas Maria é realmente causa secundária, subordinada a Cristo e dispositiva de nossa redenção. Ela é mesmo dita “subordinada a Cristo,” não só no sentido de que lhe é inferior, mas também porque contribui com a nossa salvação por uma graça proveniente dos méritos de Cristo, e então age n'Ele, com Ele e por Ele, in ipso, cum ipso et per ipsum. Não se deve nunca perder de vista que Cristo é o mediador universal supremo e que Maria foi resgatada pelos méritos do Salvador, por uma redenção não libertadora, mas preservadora, uma vez que foi preservada do pecado original e também de toda falta pelos méritos futuros do Salvador de todos os homens. Ela também não contribui para a nossa redenção mais que por Ele, no sentido em que é causa secundária, subordinada, e não perfectiva, mas dispositiva, pois nos dispõe a receber a influência de seu Filho que, por ser o autor de nossa salvação, deve completar em nós a redenção.
Maria está, então, associada à obra de seu Filho, não como o foram os Apóstolos, mas em sua qualidade de Mãe do Redentor como tal, depois de ter dado seu consentimento ao mistério da Encarnação redentora e a todas as conseqüências que esse mistério comportaria; esteve, portanto, associada a Ele da maneira mais íntima, como só uma Mãe santa pode estar, com todo o seu coração e toda a sua alma sobrenaturalizada pela plenitude da graça. Isso é o que afirma em termos muito exatos Santo Alberto Magno, numa fórmula que já citamos: “Beata Virgo Maria non est assumpta in ministerium a Domino, sed in consortium et in adjutorium, secundum illud: Faciamus ei adjutorium simile sibi”.
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Vê-se, portanto, que a unidade da Mariologia não é diminuída como se estivesse dominada por dois princípios (Mãe de Deus e Corredentora) e não por um somente. O princípio que a domina é o seguinte: Maria é a Mãe do Deus Redentor, e por esse mesmo título está associada à sua obra. Da mesma forma, os dois mistérios da Encarnação e da Redenção não constituem uma dualidade que diminuiria a unidade da Cristologia, porque os dois unem-se na Encarnação redentora; essa união está expressa no próprio Credo nestes termos: “Filius Dei qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Ademais, como em Jesus Cristo a Filiação divina natural ou a graça da união hipostática é superior à plenitude de graça habitual e à nossa redenção, assim também em Maria a Maternidade Divina é superior à plenitude de graça que se derrama sobre nós, como demonstramos no primeiro capítulo deste livro. A unidade da ciência teológica contribui para essa certeza; essa ciência não pode ser dominada por primeiros princípios coordenados, mas por princípios subordinados. E o mesmo acontece com cada um de seus tratados, uma vez que todos eles em conjunto estão subordinados a uma verdade suprema.
Depois de termos considerado a Santíssima Virgem em seu maior título de glória, o de Mãe de Deus, na plenitude de graça que lhe foi concedida e em todos os seus privilégios para que fosse a digna Mãe de Deus, é necessário considerá-la em suas relações conosco.
A partir desse ponto de vista, a Tradição atribui a Maria os títulos de Mãe do Redentor, Mãe de todos os homens e Mediadora, com respeito a todos aqueles que estão em viagem para a eternidade, e de Rainha universal com relação sobretudo aos bem-aventurados.
A teologia tem demonstrado que esses títulos correspondem aos do Cristo Redentor. Este cumpriu, com efeito, Sua obra redentora como Cabeça da humanidade irredenta, como primeiro Mediador que tem o poder de sacrificar e santificar por Seu sacerdócio, de ensinar por Seu magistério, e como Rei universal, com poder de fazer leis para todos os homens, de julgar os vivos e os mortos e de governar todas as criaturas, incluindo também os anjos.
Maria, como Mãe do Redentor, está associada a Ele nesse tríplice aspecto. Está associada a Cristo, Cabeça da Igreja, como Mãe espiritual de todos os homens; a Cristo, primeiro Mediador, como Mediadora secundária e subordinada; a Cristo Rei, como Rainha do universo. Essa é a tríplice missão da Mãe de Deus com relação a nós, e que consideraremos a partir de agora.
Trataremos primeiro de seus títulos de Mãe do Redentor como tal, e de Mãe de todos os homens; em seguida, de sua mediação universal, primeiro aqui na Terra e depois no Céu; e finalmente de sua realeza universal. Todos esses títulos, mas sobretudo o de Mãe de Deus, formam a base do culto de hiperdulia de que falaremos em último lugar.
Nessas questões, como nas precedentes, não buscaremos as opiniões originais, particulares e interessantes deste ou daquele autor, mas a doutrina comum da Igreja, transmitida pelos Padres e explicada pelos teólogos. Somente sobre esse fundamento certo é que se pode edificar; não se começa uma catedral por suas torres ou por suas agulhas, mas por suas fundações.
Lida superficialmente, essa exposição pareceria, à primeira vista, banal ou muito elementar, mas convém recordar que as verdades filosóficas mais elementares, como os princípios de causalidade e de finalidade, e também as verdades religiosas mais básicas, como as contidas no Pai Nosso, revelam-se, quando examinadas e postas em prática, as mais profundas e vitais. Aqui, como em todas as coisas, devemos ir do certo e mais conhecido ao menos conhecido, do fácil ao difícil; caso contrário, se quisermos abordar logo as coisas difíceis sob uma forma dramática e atraente por suas antinomias, terminaremos talvez, como tem acontecido muitas vezes aos protestantes, por negar as mais fáceis e certas. A história da teologia, como a da filosofia, ensina-nos que assim sucedeu muitas vezes. Deve-se notar também que, se nos assuntos humanos, em que o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, estão amalgamados, a simplicidade permanece superficial e exposta ao erro, nas coisas divinas, ao contrário, onde não há nada além da verdade e do bem, a simplicidade se une perfeitamente à profundidade e à grande elevação, e mais ainda, somente ela pode conduzir a essa elevação .
Para se ter uma idéia completa dessa plenitude em seu desenvolvimento final, deve-se considerar o que é a beatitude eterna em Maria: a visão beatífica, o amor de Deus e a felicidade que dali resultam; em seguida, a sua elevação acima de todos os coros dos anjos, a sua participação na realeza de Cristo e as conseqüências que dali derivam.
A beatitude essencial de Maria
A beatitude essencial da Mãe de Deus supera por sua intensidade e extensão aquela concedida a todos os outros bem-aventurados. É uma doutrina certa. A razão é que a beatitude celeste, ou a glória essencial, é proporcionada ao grau de graça e de caridade que precede a entrada no Céu. Ora, a plenitude inicial de graça em Maria superava certamente a graça final dos maiores santos e dos anjos mais elevados, e é mesmo muito provável, senão certo, já o vimos, que ela também superava a graça final de todos os santos e anjos reunidos. Essa plenitude inicial foi-lhe outorgada para que fosse a digna Mãe de Deus, e a Maternidade Divina é, por seu fim, não o repetirei suficientemente, de ordem hipostática. Segue-se então que a beatitude essencial de Maria ultrapassa a de todos os santos tomados em conjunto.
Em outras palavras, assim como a visão da águia supera a de todos os homens colocados no mesmo lugar que ela, como o valor intelectual de um Santo Tomás o coloca acima de todos os seus comentadores reunidos, ou a autoridade de um rei sobre a de todos os seus ministros juntos, a visão beatífica em Maria penetra mais profundamente a essência de Deus contemplado face a face que a visão de todos os outros bem-aventurados, excetuando-se a santa alma de Jesus.
Ainda que as inteligências angélicas sejam naturalmente mais poderosas que a inteligência humana de Maria, e mesmo a de Jesus Cristo, a inteligência humana da Santíssima Virgem penetra mais profundamente a essência divina intuitivamente conhecida, pois está elevada e fortalecida por uma luz de glória intensíssima. De nada serve ter uma faculdade intelectual naturalmente mais poderosa para alcançar e penetrar melhor o objeto, sendo esse essencialmente sobrenatural; da mesma forma que uma humilde cristã iletrada, como Santa Genoveva ou Santa Joana d’Arc, pode ter uma fé infusa e uma caridade muito maiores que a de um teólogo dotado de uma inteligência natural superior e que seja muito instruído.
Daí, segue que Maria, no Céu, penetrando mais a essência de Deus, Sua sabedoria, Seu amor e Seu poder, vê melhor a irradiação dessa essência divina, do ponto de vista da extensão, na ordem das realidades possíveis e na ordem das realidades existentes.
Ademais, como os bem-aventurados vêem em Deus tanto mais coisas quanto mais extensa é a sua missão ― se, por exemplo, Santo Tomás compreende melhor que todos os seus comentadores e intérpretes o que concerne à influência e ao futuro de sua doutrina na Igreja ― Maria, em sua qualidade de Mãe de Deus, de Mediadora universal, de Corredentora, de Rainha dos anjos, de todos os santos e de todo o universo, compreende em Deus, in Verbo, muitíssimo mais coisas que os outros bem-aventurados.
Maria só não é superior, na glória, a Nosso Senhor, que, por sua inteligência humana, iluminada por uma luz de glória mais elevada, penetra a essência divina com uma profundidade maior ainda, e conhece assim alguns mistérios que Maria não alcança, porque só pertencem a Ele, como Salvador, Soberano Pontífice e Rei universal. Maria vem imediatamente depois d’Ele. Por isso a liturgia afirma, na festa de 15 de agosto, que ela foi elevada sobre todos os coros dos anjos: “Elevata est super choros angelorum, ad caelestia regna”; que ela está à direita de seu Filho: “Adstitit regina a dextris suis ― Apresentou-se a rainha à sua destra” . Maria constitui, na própria hierarquia dos bem-aventurados, uma ordem à parte, mais elevada que a dos serafins, diz Santo Alberto Magno , e mais que a dos querubins, porque a Rainha está muito mais acima dos primeiros servidores, que estes com relação aos que lhes seguem.
Ela participa mais que qualquer outra pessoa, como Mãe de Deus, da glória do seu Filho. E como no Céu a divindade de Jesus é absolutamente evidente, é também sumamente claro que Maria pertence, como Mãe do Verbo feito carne, à ordem hipostática, que ela tem uma afinidade especial com as Pessoas Divinas, e que participa também, mais que qualquer outro, do reinado universal de seu Filho sobre todas as criaturas.
É o que expressam maravilhosamente as orações litúrgicas: Ave Regina coelorum... Regina Coeli... Salve Regina... e nas ladainhas: Regina angelorum... Regina omnium sanctorum... Mater misericordiae, e assim por diante. Isso é o que afirma também o Papa Pio IX na bula Ineffabilis Deus, numa passagem já citada .
Essa doutrina é encontrada de maneira explícita em São Germano de Constantinopla, São Modesto, São João Damasceno , Santo Anselmo, São Bernardo, Santo Alberto Magno, São Boaventura, Santo Tomás e em todos os doutores da Igreja.
A beatitude acidental de Maria
Para a sua beatitude acidental contribuem, finalmente, um conhecimento mais íntimo da humanidade gloriosa de Cristo, o exercício de sua mediação universal, de sua maternal misericórdia e o culto de hiperdulia que recebe como Mãe de Deus. Também se lhe atribui, de maneira eminente, a tríplice coroa dos mártires, dos confessores da fé e das virgens, pois sofreu mais que todos os mártires durante a Paixão de seu Filho, instruiu aos próprios Apóstolos de maneira íntima e privada, e conservou em toda sua perfeição a virgindade do espírito e do corpo.
Nela, a glória do corpo, que é irradiação da glória da alma, lhe é atribuída em grau, como clareza, agilidade, sutileza e impassibilidade.
Por todos esses títulos, Maria está elevada acima de todos os santos e de todos os anjos, e se torna cada vez mais claro que a razão e a raiz de todos esses privilégios é sua eminente dignidade de Mãe de Deus.
O que se entende por Assunção da Virgem Maria? Em toda a Igreja Católica se quer indicar, com essa expressão, que a Santíssima Virgem, depois de sua morte e ressurreição gloriosa, foi elevada em corpo e alma ao Céu, para sempre, e colocada muito acima dos santos e anjos. Diz-se Assunção e não Ascensão, como ao falar de Nosso Senhor, porque Jesus, por seu divino poder, pode elevar-se por si mesmo ao Céu, enquanto que Maria ressuscitada foi elevada pelo poder divino até o grau de glória ao qual estava predestinada.
Esse fato da Assunção foi perceptível aos sentidos? E se houve testemunhas, os Apóstolos em particular, ou São João pelo menos, puderam comprovar com seus olhos esse acontecimento?
Há certamente nesse fato algo sensível, e é a elevação do corpo de Maria ao Céu. Mas o termo dessa elevação, ou seja, a entrada no Céu e a exaltação de Maria sobre todos os santos e anjos, foi invisível e inacessível aos sentidos.
Sem dúvida, se as testemunhas encontraram o túmulo vazio da Mãe de Deus e atestaram depois sua ressurreição e elevação ao Céu, puderam presumir que entrou no Céu, e que Nosso Senhor a associou à glória de sua Ascensão.
Mas um pressuposto não é uma certeza. Absolutamente falando, o corpo glorioso de Maria poderia ser transportado a outro lugar invisível, como, por exemplo, ao local em que esteve temporariamente o Corpo de Jesus ressuscitado entre as aparições que ocorreram após sua Ressurreição.
Se um pressuposto não é uma certeza, como a entrada no Céu da Santíssima Virgem foi conhecida de uma maneira certa?
Para isso, é necessário que esse fato tenha sido revelado pelo próprio Deus. A Ascensão foi explicitamente revelada ― diz Santo Tomás ― por meio dos anjos que disseram: “Homens da Galiléia, por que estais (aí parados) olhando para o Céu? Esse Jesus que, separando-se de vós, foi arrebatado ao Céu, virá do mesmo modo que o viste ir para o Céu”.
Ademais, como a razão da nossa fé é a autoridade de Deus revelador, a Assunção não é definível como dogma de fé se não for revelada por Deus ao menos implicitamente.
Mas não é suficiente que tenha havido uma revelação privada, feita a uma pessoa em particular, como a revelação feita a Joana d'Arc, a Bernadete de Lourdes ou aos pastorzinhos de La Salette. Essas revelações privadas podem tornar-se públicas em certo sentido, por seus resultados e conseqüências, mas não fazem parte do depósito da Revelação comum, infalivelmente proposta pela Igreja a todos os fiéis; elas formam somente uma piedosa crença, distinta da fé católica.
Não basta uma revelação particular, como a feita a Santa Margarida Maria sobre o culto que devia tributar-se ao Sagrado Coração, pois uma revelação desse gênero permanece particular e privada, e só chama a atenção para as conseqüências práticas derivadas de uma verdade de fé já certa; nesse caso, sobre esta verdade já conhecida: que o Sagrado Coração de Jesus merece a adoração ou culto de latria.
Para que a Assunção de Maria seja certa e possa ser proposta à Igreja universal, é necessária uma revelação pública feita aos Apóstolos, ou ao menos a um deles ― por exemplo, a São João ― uma vez que depois da morte do último dos Apóstolos o depósito da Revelação comum foi encerrado. Finalmente, a ressurreição antecipada de Maria e sua entrada no Céu, em corpo e alma, é um fato contingente que depende do livre arbítrio de Deus; não pode, portanto, deduzir-se com certeza de outras verdades de fé que não tenham conexão necessária com esta.
É necessário, pois, para que a Assunção de Maria seja certa e possa ser proposta universalmente à fé dos fiéis, que tenha sido revelada aos Apóstolos, ao menos a um deles, seja de forma explícita, implícita ou confusa, e que mais tarde se tornará explícita. Vejamos o que os documentos da Tradição nos dizem sobre esse ponto e, em seguida, as razões teológicas que têm sido comumente aduzidas, ao menos desde o século VII.
1º Esse privilégio aparece revelado ao menos implicitamente pelos documentos da Tradição
Sem dúvida, não é possível provar diretamente pela Escritura, nem pelos documentos primitivos da Tradição, que esse privilégio tenha sido revelado explicitamente a algum dos Apóstolos, uma vez que nenhum texto da Escritura contém essa afirmação explícita, e nos faltam, com relação a esse ponto, os documentos primitivos da Tradição.
Mas prova-se indiretamente, pelos documentos posteriores da Tradição, que houve uma revelação ao menos implícita, porque existem certamente, a partir do século VII, fatos certos que não se explicariam sem ela.
Desde o século VII, em quase toda a Igreja, no Oriente e no Ocidente, celebra-se a festa da Assunção. Em Roma, o Papa Sérgio (687-707) ordenou uma procissão solene para esse dia. Muitos teólogos e liturgistas afirmam que essa festa existiu antes mesmo de São Gregório Magno († 604) e citam, em apoio a sua opinião, a coleta da Missa da Assunção contida no sacramentário chamado gregoriano, apesar de ser provavelmente posterior, onde se encontram estas palavras: “Nec tamen mortis nexibus deprimi potuit”.
Segundo o testemunho de São Gregório de Tours, parece que a festa da Assunção era celebrada na Gália no século VI. Celebrava-se certamente no século VII, como o provam o Missale gothicum e o Missale gallicanum vetus, que remontam ao final desse século e que contêm belas orações para a Missa da Assunção.
No Oriente, o historiador Nicéforo Calixto diz-nos que o imperador Maurício (582-602), contemporâneo e amigo de São Gregório Magno, ordenou que essa festa fosse celebrada solenemente em 15 de agosto.
O mais antigo testemunho da crença tradicional no Oriente parece ser o de São Modesto, Patriarca de Jerusalém († 634), em seu Encomium in dormitionem Deiparae. Segundo ele, os Apóstolos, vindos de longe, reuniram-se por inspiração divina junto à Santíssima Virgem e assistiram à Assunção. Em seguida, temos várias homilias: In dormitionem Deiparae de Santo André de Creta († 720), monge em Jerusalém e arcebispo de Creta, In sanctam Dei Genitricis dormitionem de São Germano († 733), Patriarca de Constantinopla e, finalmente, In dormitionem beatae Mariae Virginis de São João Damasceno († 760).
Os testemunhos posteriores ao século VIII são abundantes: citam-se comumente os de Notker de São Gall, de Fulbert de Chartres, de São Pedro Damião, de Santo Anselmo, de Hildeberto, de Abelardo, de São Bernardo, São Boaventura e Santo Tomás, reproduzidos mais tarde por muitos autores desde o século XIII .
Entre os séculos VII e IX desenvolveu-se a liturgia, a teologia e a pregação sobre a Assunção. O Papa Leão IV instituiu a oitava dessa festa em 847.
Os autores da época e os posteriores consideram o fato comemorado por essa festa universal não apenas como objeto de uma piedosa crença, próprio de um determinado país, mas como parte integrante da tradição geral, que remonta aos tempos mais antigos da Igreja.
Além disso, não são apenas os autores dos séculos VII ao IX que falam assim, é também a própria Igreja: ao celebrar universalmente essa festa em todo o Oriente e Ocidente, geralmente em 15 de agosto, a Igreja ensina que considera o privilégio da Assunção uma verdade certa ensinada pelo Magistério ordinário, quer dizer, por todos os bispos em união com o Pastor Supremo. A oração universal da Igreja manifesta efetivamente a sua fé: lex orandi, lex credendi. Não é ainda uma verdade solenemente definida, mas seria, como se diz comumente, ao menos temerário ou errôneo negá-la.
Essa crença geral é ao mesmo tempo a dos pastores que representam a Igreja docente e a dos fiéis que constituem a Igreja discente; a segunda é infalível em dependência da primeira, e manifesta-se a si própria pelo sentimento cristão dos fiéis e pela repugnância que experimentariam se vissem negado ou posto em dúvida o privilégio da Assunção.
Foi o que aconteceu quando alguns autores propuseram mudar a festa do dia 15 de agosto para outra data. Bento XIV respondeu: “Ecclesiam hanc amplexam esse sententiam”.
A Igreja, de fato, não se contenta apenas em tolerar essa doutrina, mas a propõe positivamente e a inculca por sua liturgia e pregação tanto no Oriente quanto no Ocidente. O consentimento universal de toda a Igreja, ao celebrar essa festa solene, mostra-nos que é um ensinamento de seu Magistério ordinário.
Mas para que isso tenha fundamento, requer-se que essa verdade seja ao menos implicitamente revelada. Caso contrário, como vimos acima, não teríamos certeza do fato da entrada de Maria no Céu em corpo e alma.
É provável igualmente que tenha havido uma revelação explícita feita aos Apóstolos ou a um dentre eles, pois é muito difícil explicar de outra maneira a tradição universal que existe manifestamente no Oriente e no Ocidente, pelo menos desde o século VII, e que se expressa nessa festividade .
Se, de fato, não tivesse havido na origem da Igreja nada mais que uma revelação implícita ou confusa, como é que os diferentes bispos e teólogos das diversas partes da Igreja teriam entrado em acordo, tanto no Oriente como no Ocidente, para reconhecer que esse privilégio estava implicitamente revelado? Esse acordo teria de ser preparado por trabalhos e concílios de que ninguém ouviu falar. Tampouco existem vestígios de revelações privadas que pudessem ter provocado investigações no depósito da Revelação e em toda a Igreja.
Até o século VI, guardava-se silêncio sobre esse privilégio de Maria, temendo-se que, como conseqüência da recordação das deusas do paganismo, fosse mal compreendido. No período precedente, o que ficou estabelecido foi o principal título de Maria, “Mãe de Deus”, definido no Concílio de Éfeso e fundamento de todos os seus privilégios.
Tudo leva a pensar, portanto, que o privilégio da Assunção foi revelado explicitamente aos Apóstolos ou ao menos a um deles e transmitido posteriormente pela Tradição oral da liturgia, porque de outra forma não se explicaria a festa universal da Assunção, que prova claramente que desde o século VII essa verdade foi ensinada pelo Magistério ordinário da Igreja .
2º Pelas razões teológicas tradicionalmente alegadas, esse privilégio aparece implicitamente revelado
Essas razões teológicas, assim como os textos bíblicos nos quais se baseiam, podem ser consideradas de duas maneiras: abstratamente, e sob esse ponto de vista muitas não são mais que razões de conveniência, isto é, não demonstrativas; ou concretamente, compreendendo fatos concretos, cuja complexidade e riqueza estão conservadas pela Tradição; deve-se notar também que uma razão de conveniência pode ser tomada de forma puramente teórica ou, ao contrário, como sendo ela própria ao menos implicitamente revelada e como tendo motivado de fato a escolha divina.
Sublinharemos aqui, sobretudo, duas razões teológicas que, tomadas como expressão da Tradição, demonstram que o privilégio da Assunção está implicitamente revelado
A eminente dignidade de Mãe de Deus é a razão fundamental de todos os privilégios de Maria, mas não é a razão próxima do privilégio da Assunção; nesse caso, não é mais que um argumento de conveniência não demonstrativo.
Não sucede o mesmo com as duas razões seguintes:
1º ― Maria recebeu a plenitude de graça e foi excepcionalmente bendita por Deus entre todas as mulheres. Ora, essa excepcional bênção exclui a maldição divina contida nestas palavras: Darás a luz com dor e “voltarás ao pó”. Maria, portanto, pela bênção excepcional que recebeu, foi preservada da corrupção do sepulcro; seu corpo não voltou ao pó, mas ressuscitou por uma ressurreição antecipada.
As premissas maior e menor desse argumento são reveladas e, portanto, segundo a maioria dos teólogos, a conclusão seria definível, pois o argumento não é mais que a relação das duas premissas de fé que são a causa da conclusão.
Ademais, o raciocínio aqui não é precisamente ilativo, mas apenas explicativo, porque a maldição divina oposta à bênção de Deus contém, segundo Gênesis: “voltarás ao pó”, como o todo contém as partes, quer dizer, atualmente, e não apenas como a causa contém o efeito, quer dizer, virtualmente; uma vez que a causa pode existir sem seu efeito, antes de produzi-lo, enquanto que o todo não pode existir sem suas partes. A maldição divina expressa no Gênesis compreende como sua parte: “Voltarás ao pó”. Maria, bendita entre todas as mulheres, devia ser isenta dessa maldição, não devia conhecer a corrupção do sepulcro; quer dizer que a hora da ressurreição devia ser antecipada para ela, e à ressurreição gloriosa seguiu-se a Assunção ou elevação ao Céu do corpo glorioso, que não foi feito para a Terra onde tudo passa, se deteriora e se corrompe.
Vê-se, pois, que o privilégio da Assunção está implicitamente revelado na plenitude de graça unida à excepcional bênção recebida por Maria.
2º ― Uma segunda razão teológica não menos convincente leva-nos à mesma conclusão. Foi proposta por numerosos Padres do Concílio Vaticano que pediram a definição solene do dogma da Assunção , e também indicada pelo Papa Pio IX em sua bula Ineffabilis Deus .
Ela pode ser assim formulada: A completa vitória de Cristo sobre o demônio compreende o triunfo sobre o pecado e sobre a morte. Ora, Maria, Mãe de Deus, estava intimissimamente associada, no Calvário, à completa vitória de Cristo sobre o demônio. Logo, Maria estava associada à completa vitória sobre a morte, pela ressurreição antecipada e pela Assunção.
Aqui também a premissa maior e a menor do argumento são reveladas, e o próprio argumento é mais explicativo que ilativo: a vitória completa de Cristo sobre o demônio é um todo que compreende, como suas partes, a vitória sobre o pecado e a morte.
Como indica o Postulatum dos Padres do Concílio Vaticano, a premissa maior é revelada em muitas passagens das Epístolas de São Paulo . Cristo é o “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo” . Ele disse: “Eu venci o mundo” . Pouco antes da Paixão, disse ainda: “Agora é o juízo desse mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo. E eu, quando for elevado da terra, atrairei tudo a mim” . O sacrifício da Cruz por amor, a aceitação das humilhações passadas e da morte dolorosíssima constituem a vitória sobre o demônio e o pecado, e como a morte é conseqüência do pecado, aquele que foi o vencedor do demônio e do pecado na Cruz, teve de ser também vencedor da morte por sua ressurreição gloriosa.
A premissa menor também é revelada: Maria, Mãe de Deus, foi associada no Calvário o mais intimamente possível à completa vitória de Cristo sobre o demônio. Isso é misteriosamente anunciado no Gênesis : “Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te esmagará a cabeça”. Esse texto não é suficiente por si só, mas Maria, no momento da Anunciação, disse: “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum” ao consentir ser a Mãe do Redentor, pois não podia ser sua digna Mãe sem uma perfeita conformidade de vontade àquela de seu Filho, que devia oferecer-se por nós. Ademais, o velho Simeão anunciou-lhe todos esses sofrimentos: “Uma espada de dor transpassará a tua alma” . E, finalmente, diz São João: “Junto à cruz de Jesus estavam sua Mãe e a irmã de sua mãe...”. Ela participou de seus sofrimentos, na medida de seu amor por Ele, tão perfeitamente, que é chamada Corredentora .
Existe uma relação muito íntima e profunda entre a compaixão e a maternidade, pois a compaixão mais profunda é a de um coração de mãe, e Maria não seria a digna Mãe do Redentor sem uma perfeita conformidade de vontade à sua oblação redentora.
Se, pois, Maria estava associada intimissimamente à completa vitória de Cristo sobre o demônio, também estava associada às partes desse triunfo, quer dizer, à sua vitória sobre o pecado e sobre a morte, conseqüência do pecado.
Pode-se objetar: bastaria que ela fosse associada pela ressurreição final, como os demais eleitos.
A isso se deve responder que Maria estava associada mais que ninguém à completa vitória de Cristo sobre o demônio, e que essa vitória não é completa sem a isenção da corrupção do sepulcro, que exige a ressurreição antecipada e a elevação ao Céu. Não era suficiente a ressurreição final porque Maria, bem como seu Filho, foi isenta da corrupção cadavérica, e por isso se diz sobre a Virgem na oração da festa da Assunção: “Mortem subiit temporalem, nec tamen mortis nexibus deprimi potuit, quae Filium tuum Dominum nostrum de se genuit incarnatum”. Ela não pôde ser retida pelos laços da morte, o que não pode se dizer de nenhum outro santo, mesmo aqueles cujos corpos estão milagrosamente preservados da corrupção, pois estão sempre retidos pelos laços da morte.
Essas duas grandes razões teológicas, tomadas uma da plenitude da graça unida à bênção divina extraordinária, e a outra da associação de Maria à completa vitória de Cristo, demonstram que a Assunção está implicitamente revelada e definível como dogma de fé.
As outras razões teológicas invocadas confirmam as precedentes, ao menos como razões de conveniência. O amor especial de Jesus por sua Santa Mãe o levou a querer esse privilégio para ela. A excelsa virgindade de Maria parecia exigir que seu corpo, isento de todo pecado, não ficasse retido pelos laços da morte, conseqüência do pecado. Também o exige a Imaculada Conceição, pois a morte é uma conseqüência do pecado original, do qual ela foi preservada. Deve-se acrescentar que não se conserva qualquer relíquia da Santíssima Virgem, o que é um sinal provável de sua elevação ao Céu em corpo e alma.
Estando, pois, a Assunção implicitamente revelada, é definível como dogma de fé.
A oportunidade dessa definição, como diz Dom Paulo Renaudin é clara e manifesta. Do ponto de vista doutrinal, a Assunção de Maria, juntamente com a Ascensão do Senhor, é o coroamento da fé na obra da Redenção objetivamente consumada, e uma nova prova da esperança cristã. Quanto aos fiéis, uma definição solene permitiria-lhes aderir não só à infalibilidade do Magistério ordinário da Igreja que instituiu essa festa universal, mas de aderir imediatamente a essa verdade, propter auctoritatem Dei revelantis ― pela autoridade de Deus que revela ― contra todos os erros relativos à vida futura e aos originados pelo materialismo, racionalismo ou protestantismo liberal, que minimizam em tudo a nossa fé, em vez de reconhecer que os dons sobrenaturais de Deus superam todas as nossas concepções. Essa definição, em suma, feita solenemente, seria para os hereges e cismáticos mais um auxílio que um obstáculo, uma vez que permitiria melhor conhecer o poder e a bondade de Maria, que nos ajuda no caminho da salvação; e os desviados não podem conhecer esse poder e essa bondade de outra forma que pela definição da Igreja, pois a fé vem da pregação ouvida, fides ex auditu. O justo, finalmente, deve viver cada vez mais de sua fé; a definição solene e infalível de um ponto da doutrina é um alimento espiritual dado à sua alma na forma mais perfeita, que o aproxima de Deus, fazendo crescer sua esperança, sua caridade e, por conseguinte, todas as outras virtudes.
Não se pode então duvidar da oportunidade dessa definição.
Maria permaneceu no mundo, depois da morte de Jesus Cristo, para consolar a Igreja, diz Bossuet. Ela o fez com suas orações e com seus méritos, que não deixaram de aumentar; sustentou os Apóstolos em seus trabalhos e em seus sofrimentos e exerceu um profundo apostolado oculto, que fecundava o apostolado dos discípulos de Cristo.
Já vimos anteriormente, ao falar das conseqüências do privilégio da Imaculada Conceição, que em Maria, assim como em Nosso Senhor, a morte não foi uma seqüela do pecado original, do qual foram preservados, mas a conseqüência da natureza humana, pois o homem, por sua natureza, é mortal, como os animais; só era imortal na origem, por um privilégio preternatural concedido no estado de inocência; com a perda do privilégio como conseqüência do pecado original e da falta do primeiro homem, a natureza permaneceu tal qual era: sujeita à dor e à morte.
Cristo, vindo a este mundo como Redentor, foi concebido in carne passibili, em carne passível e mortal. O mesmo deve-se dizer da Santíssima Virgem. A morte foi então neles uma conseqüência não do pecado original, do qual foram preservados, mas da natureza humana abandonada às leis naturais, depois de ter perdido o privilégio da imortalidade.
Mas Jesus aceitou e ofereceu sua dolorosa paixão e morte para nossa salvação, e Maria, sobretudo no Calvário, ofereceu seu Filho por nós, oferecendo-se a si mesma com Ele. Fez por nós, assim como o Cristo, no martírio do seu coração, o sacrifício de vida mais generoso possível depois daquele de Nosso Senhor.
Quando, mais tarde, chegou a hora de sua morte, o sacrifício de sua vida já estava feito, e renovou-se tomando a forma perfeita disso que a Tradição chamou de ‘a morte de amor’, que não é somente a morte em estado de graça ou por amor, mas é conseqüência da intensidade de um amor tranqüilo mas intenso, pelo qual a alma preparada e aperfeiçoada para o Céu abandona seu corpo e vai unir-se a Deus na visão imediata e eterna da pátria celestial, como um grande rio se lança no oceano.
Sobre os últimos momentos da Virgem Maria, deve-se repetir o que escreveu São João Damasceno: “que morreu de uma morte sumamente serena”. Isso o explica admiravelmente São Francisco de Sales em seu Tratado do amor de Deus: Como a Santíssima Virgem, Mãe de Deus, morreu de amor por seu Filho. “É impossível imaginar que ela tenha morrido de outra categoria de morte que a de amor: a mais nobre de todas as mortes deve-se, por conseqüência, à mais nobre de todas as vidas... Se dos primeiros cristãos se diz que não tinham mais que um só coração e uma só alma (At 4, 32) por seu perfeito e mútuo amor; se São Paulo já não vivia mais ele mesmo, mas Jesus Cristo vivia nele (Gl 2, 29) pela união íntima de seu coração com o de seu Mestre... quanto mais certo é que a Santíssima Virgem e seu Filho não tinham senão uma só alma, um só coração e uma mesma vida... de modo que seu Filho vivia nela! A Mãe mais amorosa e mais amada que já existiu... de amor incomparavelmente mais eminente que o de todas as ordens de anjos e de homens, na medida em que os nomes de Mãe única e de Filho único são também os nomes acima de todos os outros nomes em matéria de amor...
“Se essa Mãe viveu da vida de seu Filho, também morreu da sua morte, pois, tal vida, tal e qual é a morte... Tendo reunido em seu espírito com viva e contínua memória todos os amabilíssimos mistérios da vida e da morte de seu Filho, e recebendo sempre diretamente as mais abrasadas inspirações que Ele, o sol da justiça, lançou sobre os mortais no auge da sua caridade... finalmente, o fogo sagrado desse divino amor consumiu-a totalmente, como um holocausto de suavidade; de maneira que morreu, e sua alma completamente arrebatada e extasiada foi transportada para os braços amorosos de seu Filho...
“Morreu por causa de um amor extremamente doce e tranquilo”. “O amor divino crescia a cada momento no coração virginal de nossa gloriosa Senhora, mas com um desenvolvimento doce, agradável e contínuo, sem agitações, sobressaltos ou violências... como cresce um rio caudaloso que, não encontrando obstáculos na planície, desliza suavemente, sem o menor esforço...
“Como o ferro, se está livre de todo impedimento, será atraído forte mas docemente pelo ímã, de modo que a atração será cada vez mais ativa e mais forte na medida em que um esteja mais próximo do outro e que o movimento esteja mais próximo de seu fim, assim também a Mãe Santíssima, não tendo nada em si que impedisse a operação do divino amor de seu Filho, unia-se a Ele num vínculo incomparável, por meio de êxtases doces, agradáveis e sem esforço... A morte da Virgem foi, portanto, mais doce do que se pode imaginar; seu Filho a atraía amorosamente, ‘com o suave aroma de seus perfumes’... O amor havia dado ao pé da Cruz a essa divina Esposa as supremas dores da morte; era, portanto, muito razoável que no final de sua vida a morte concedesse-lhe as soberanas delícias do amor”.
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Bossuet expressa-se da mesma maneira em seu primeiro sermão para a festa da Assunção, no primeiro ponto: “Se amar Jesus e ser amado por Ele são as duas coisas que atraem as bênçãos divinas sobre as almas, que abismo de graças não inundaria, por assim dizer, o coração de Maria! Quem poderá descrever a impetuosidade desse amor mútuo, no qual concorria tudo o que a natureza tem de terno e amável e tudo o que a graça tem de eficaz? Jesus nunca se cansou de ser amado por sua Mãe e essa Santa Mãe nunca acreditou ter amor suficiente para esse unigênito muito amado; ela não pedia outra graça a seu Filho além da fortuna de amá-lo, e isso mesmo atraía sobre ela novas graças.
“Medi, se puderdes, a santa impaciência que abrasava seu peito para se juntar a seu Filho... Se o grande apóstolo São Paulo quis romper incontinente os laços do corpo para ir buscar seu Mestre à direita do Pai, qual não deve ter sido a emoção do sangue maternal! O jovem Tobias, pela ausência de um ano, encheu o coração de sua mãe de dores indizíveis. Que diferença entre Jesus e Tobias! Que padecimento e solidão não sentiu a Virgem ao ver-se separada por tanto tempo do Filho a quem amava unicamente! Por quê? ― dizia ela, quando via um fiel partir deste mundo, por exemplo, Santo Estêvão e ainda outros ― por que, Filho meu, me reservais para o futuro? Por que me deixais aqui por última?... Depois de me terdes levado ao pé de vossa cruz para vê-lo morrer, por que me negais por tanto tempo vê-lo reinar? Deixai, deixai somente agir o meu amor; já teria desatado minha alma deste corpo mortal para transportar-me a vós, em quem unicamente vivo.
“Esse amor tão ardente, tão forte, tão inflamado, não enviava ao Céu um só desejo que não arrastasse consigo a alma de Maria.
“Então a Virgem divina entregou sua santa alma, sem dores nem violências, nas mãos de seu Filho. Assim como a menor sacudidela faz desprender da árvore o fruto já maduro... assim foi tomada essa alma santa e bendita para ser transportada instantaneamente ao Céu; assim morreu a Santíssima Virgem, por um impulso arrebatado do amor divino”.
Vemos nessa morte santíssima a plenitude final de graça no mais alto grau que pode ser na Terra; ela corresponde admiravelmente à plenitude inicial, que não deixou de crescer desde o instante da Imaculada Conceição, e dispõe Maria à plenitude consumada do Céu, que é sempre proporcionada, nos eleitos, ao grau de seus méritos no momento mesmo da morte.
Para considerar essa plenitude final em todos os seus diversos aspectos, é preciso dizer primeiro qual foi essa plenitude no momento da morte da Santíssima Virgem, recordar o que nos ensina o magistério ordinário da Igreja sobre a Assunção e finalmente falar da plenitude final de graça tal qual aparece completamente desenvolvida no Céu.