Skip to content

O Mandato de Écône

3.8 - O Mandato de Écône

Consideremos então este documento com a maior atenção. A sagração de Écône ocorreu sem o mandatum (autorização) do Papa, previsto pelo ClC. E, apesar disso, se leu um mandato durante a cerimônia. Com que direito? Com o direito decorrente do estado de necessidade, corretamente entendido:

"Tendes um mandato apostólico? — Temos.

Que seja lido. — Nós o temos pela Igreja Romana que, na sua fidelidade as santas tradições recebidas dos Apóstolos, nos manda transmitir fielmente estas santas tradições, ou seja, o depósito da fé, a todos os homens em razão do seu dever de salvar a sua alma".

Se as autoridades oficiais da Igreja recusam a sua autorização a uma sagração episcopal requerida pelo estado de necessidade no qual se encontram as almas às quais o clero afetado pelos erros neomodernistas não transmite mais o depósito da fé, é totalmente legitimo estimar que a "Igreja Romana" tal como se constituiu e manteve durante dezenove séculos até o Vaticano II, exclusive, "ordene" aos que permaneceram fiéis ao dogma "transmitirem fielmente o depósito da fé". Quem, portanto, autorizou D. Lefebvre a sagrar os Bispos? A Igreja Católica de sempre, com o seu Chefe de sempre, que é Cristo e não o Papa. Seu Vigário temporário. Se este, gerente terrestre, se recusa a autorizar um ato requerido pela necessidade pública e geral, totalmente conforme às intenções da Igreja de sempre, como foi o da sagração de quatro bispos fiéis ao dogma, plenamente submetidos à instituição pontifícia, é permitido considerar que a Igreja supre a jurisdição.

Um mandato assim concebido parece totalmente legitimo, não somente do ponto de vista teológico, mas também canônico, justificado pelo estado de necessidade causado para as almas pela falta do ensinamento do "depósito da Fe”, substituído pelos "aggiornamenti" bem conhecidos e os "sincretismos" decorrentes do Vaticano II.

Após ter declarado a Autoridade que confere o mandato, o texto de Écône continua da seguinte maneira: "Dado que desde o Concílio Vaticano II até hoje, as autoridades da Igreja Romana estejam animadas por um espírito de modernismo, agindo contra a Santa Tradição — "não suportam mais a sã doutrine, fecham os seus ouvidos a Verdade, para abri-Ios às fabulas"

29

como diz São Paulo a Timóteo na sua segunda epístola (4, 3-5) — julgamos que todas as penas e censuras infligidas por estas autoridades não têm nenhum valor"1.

O que se afirma aqui não é a recusa de submissão ao Papa nem rejeição de comunhão com os membros da Igreja. Nem mesmo a negação da autoridade da hierarquia atual, enquanto hierarquia católica legítima. Mas simplesmente, nega-se a validade das "penas e censuras" infligidas ou declaradas por uma autoridade que então estava afetada pelo espírito modernista e, portanto, professava erros e ambigüidades graves, capazes de induzir as almas ao erro.

Com efeito, a autoridade de quem é investido do poder de governo na Santa Igreja, não deve ser entendido num sentido puramente formal, como autoridade que aja validamente em tudo o que faça ou diga pelo simples fato de sua investidura formalmente legítima. Não é este o conceito católico de autoridade pelo qual, ao contrário, é válido o seguinte principio: corruptio legis non est lex [= a corrupção da lei não é a lei]. Portanto, não basta que a autoridade seja legitima, é também necessário que as suas ordens o sejam e não contradigam a própria razão de ser da autoridade: a manutenção e a defesa do dogma da fé.

Se a autoridade se mostra claramente invadida por um "espírito modernista", que é um espírito de heresia infiltrado na Igreja, p. ex. através do § 8 da Constituição Conciliar Lumen Gentium que dá uma definição de Igreja contraditória com o que Ela mesma ensinou a seu respeito durante dezenove séculos, pondo assim a Igreja em contradição consigo mesma; se a autoridade legitima demonstra, de fato, em seus diversos atos e declarações, ter perdido o sensus fidei, pode-se perguntar que valor se deve atribuir aos seus decretos e se eles devem ser reconhecidos como legítimos, impondo obediência por representarem a vontade da Igreja Católica,

A resposta a esta questão difícil nos parece, contudo, fácil: deverão ser consideradas como "sem peso" e, portanto, inválidas todas estas medidas tomadas num espírito modernista, em contradição manifesta com as intenções da Igreja. Por isto se entendem as intenções consagradas pelo dogma e pela tradição quase bimilenar. Quando o Papa reinante repete, conforme a Tradição, a interdição da ordenação das mulheres (Osservatore Romano, 30-31 de maio de 1994), nós devemos dizer que esta medida é inteiramente válida, porque corresponde à doutrina e às intenções da Santa Igreja de sempre: validade no sentido substancial e não simplesmente formal.

Quando, pelo contrário, o mesmo Papa declara que incorreu na excomunhão ipso iure um bispo, muito fiel ao primado romano, cujo desejo, por causa da idade que o acabrunhava, foi sagrar Bispos para assegurar a sobrevivência duma Fraternidade Sacerdotal, irrepreensível quanto ao dogma e à disciplina eclesiástica, consagrada à formação de sacerdotes com o objetivo de socorrer as almas em estado de grave necessidade geral, falamos então de medida inválida no plano substancial, para distinguir do sentido formal examinado até agora, constituído pela conformidade ao que foi expressamente estabelecido pelos cânones do ClC que excluíam de qualquer maneira a possibilidade duma excomunhão ipso iure. Inválida e, portanto, sem valor, por ter sido tomada segundo um espírito modernista, dado que o Papa quer excluir da Igreja Católica os defensores da Tradição por acusações totalmente infundadas, não só teologicamente, mas também do ponto de vista estrito do direito, E quer excluí-los como culpados de não aceitar o conceito de Tradição "viva" (isto é, entendido à maneira modernista), professado por João Paulo II e por outros membros da hierarquia atual.

Negar a validade das "penas e censuras" infligidas com "espírito modernista" pela autoridade vaticana não significa, portanto, negar a legitimidade desta autoridade enquanto tal e, portanto, com esta negação não se comete nenhum cisma. Isto significa somente declarar inaceitável e inválido todo o ato da autoridade manifestamente contrário à conservação do dogma da fé (o que, infelizmente acontece hoje). E entre estes atos certamente se devem incluir as “penas e censuras" impostas a D, Lefebvre a partir da supressão do seminário de Écône, ilegal sob o aspecto formal, a ponto de dever ser considerada nula, visto que tais "penas e censuras" foram causadas somente por aversão à Tradição e à sã doutrina. Sem falar da "suspensão a divinis”, inválida por não se querer ter em conta o estado de necessidade no qual D. Lefebvre se encontrou, em conseqüência da supressão ilegítima de Ecône

A história, então se teria repetido e, no mandato de Écône, não se podia deixar de repetir a verdade, sob a forma dum principio geral (as penas e censuras impostas ou declaradas pela autoridade são inválidas quando aplicadas segundo a intenção dos hereges, isto é, dos neomodernistas, paladinos dum falso conceito da Tradição), principio que implica, no caso concreto, a invalidade a priori das "penas e censuras" já infligidas ou por infligir ou declarar, segundo esta mesma intenção para com D. Lefebvre e os bispos consagrados por ele.

Este desígnio contaminado de modernismo aparece muito explicitamente no "Motu Proprio", Ecclesia Dei Adflicta, de 2 de julho, no qual se acusa D. Lefebvre de ter levado a cabo um ato considerado cismático, por não ter compreendido suficientemente "o caráter vivo da Tradição", "quandoquidem non satis respicit indolem vivam eiusdem traditionis"2. Como sabemos, na linguagem do neo-modernismo, a tradição "viva" é a tradição tal qual a entende a "Nova Teologia", ou o neo-modernismo, e não a tradição construída e entendida pelo Magistério da Igreja há dezenove séculos. A "tradição viva" parte dum conceito de verdade dinâmico, evolutivo (tirado do pensamento moderno e não do da Igreja), aplicado também ao dogma, cujo conteúdo não é imutável, mas deve ser esclarecido conforme as épocas. Assim em Lúmen Gentium, no parágrafo 8 já citado, o conceito da Igreja se adaptou às exigências do ecumenismo, negando o que a Igreja sempre afirmou sobre ela própria durante dezenove séculos, a saber, que a Igreja Católica, tendo à sua frente o vigário de Cristo, é a Igreja de Cristo e só ela, ao passo que as outras denominações cristãs que, por causa dos cismas ou heresias, dela se desligaram pouco a pouco, não o são. Querem fazer-nos crer que uma tal reviravolta está em harmonia com a tradição, fazendo passar como verdadeira tradição católica uma nova idéia de tradição "viva", ou seja, que leva em conta as adaptações do dogma às pretensas verdades dos hereges e cismáticos. O mandato de Ecône se conclui pela menção explícita e oficial da sagração:

"Porque, quanto a mim, estou para ser oferecido em libação e o tempo de minha morte está próximo" (2 Tim, 4,6). Sinto as almas me suplicarem que lhes seja dado o Pão da Vida, que é Cristo. Por este motivo, levado à compaixão por esta multidão, tenho o dever muito grave de transmitir minha graça episcopal a estes caríssimos sacerdotes segundo as santas tradições da Igreja Católica. Segundo este mandato da Santa Igreja Romana sempre fiel, nós escolhemos os quatros sacerdotes aqui presentes como bispos da Santa Igreja para serem auxiliares da Fraternidade Sacerdotal São Pio X" [seguem os nomes dos escolhidos] 3.

Trata-se de um texto muito claro. Por causa do estado de necessidade no qual objetivamente se encontrou, D. Lefebvre deve "transmitir a graça episcopal" sem mais delongas a outros sacerdotes, satisfazendo assim às esperanças legitimas dos seminaristas e dos fiéis para a salvação das suas almas. Aos bispos instituídos por ele foi dada somente a ordem como os poderes, a fim de que possam ser "auxiliares" da Fraternidade.

D. Lefebvre se mostrou assim coerente com a posição que tomou e a manteve há muito tempo. Na carta dirigida aos futuros bispos, preparada já em 28.09.87, na qual ele os convidava a assumir essa grave responsabilidade, tinha sido dito — de maneira explícita — que ele lhes conferia somente o poder de ordem: "o fim principal desta transmissão [de minha graça episcopal, ndr] é conferir a graça da ordem sacerdotal para a continuação do verdadeiro Sacrifício da Santa Missa e administração do Sacramento da Confirmação às crianças e fiéis que vo-la pedirem"4

Portanto, nenhuma hierarquia paralela e nenhum poder de jurisdição territorial, mas, uma jurisdição unicamente ''suppleta ad actum”; a pedido das almas em estado de necessidade.

Ainda mais importante, para demonstrar a coerência e a boa fé de D. Lefebvre, é o fato de ter ele escrito ao Papa na sua carta de 20 de fevereiro de 1988, durante as negociações para um acordo jamais realizado:

"2. A sagração de Bispos para me suceder no meu apostolado parece indispensável.

Este ponto no. 2 é o mais importante [do esboço do acordo – ndr] tendo em conta a minha idade e fadiga. Há já dois anos que eu não pude ir fazer as ordenações do Seminário dos Estados Unidos. Os seminaristas aspiram ardentemente à ordenação, mas minha saúde não mais me permite atravessar os oceanos.

Por isso, eu confio a Vossa Santidade resolver esta questão antes de 30 de junho deste ano.

Em relação a Roma e à sua associação [a Fraternidade s. Pio X - ndr] estes bispos se encontrariam na mesma situação daquela em que se achavam os bispos missionários respectivamente em relação à Propagação da Fé e de sua associação [congregação - ndr]. Em lugar duma jurisdição territorial, eles teriam uma jurisdição sobre as pessoas"

Este texto ilustra claramente o estado de necessidade (mesmo só a titulo pessoal), ao qual o Bispo tradicional chegara: tal "estado" resulta de fatos precisos, os impedimentos representados desde então pela idade e saúde para o cumprimento dos seus deveres de apostolado. Mas o que mais nos interessa no caso é a definição dada por ele da jurisdição dos futuros bispos. Trata-se dum conceito claro que não mostra nenhuma vontade de cisma, nem mesmo dissimulada. Ele se inspira no modelo, admitido pelo costume da Igreja, do "bispo missionário": um prelado sem jurisdição, com jurisdição somente sobre pessoas sem terem sido predeterminadas a pertencer ao território duma diocese, mas apenas aquelas que, de vez em quando seriam qualificadas, a juízo do Bispo, como pessoas necessitadas dum ato dependente de seu poder de ordem.

Ao propor este modelo de Bispo ao Santo Padre, D. Lefebvre se mostrava totalmente respeitoso das competências e exigências, desde que ele não pedia para os seus bispos uma competência acima das exigências às quais deviam corresponder. No mandato de Écône, D. Lefebvre ficou fiel a este compromisso? Ficou fiel 100%, pois conferiu aos bispos por ele sagrados apenas o poder de ordem. É certo que eles não podem ser considerados como idênticos a bispos "missionários". E isto por dois motivos: porque estes últimos recebem sua jurisdição do Papa e também esta jurisdição não se exerce em estado de necessidade. Mas, em substância, pode-se dizer que os bispos "auxiliares" da Fraternidade são efetivamente "missionários", porque receberam (somente) um poder de ordem a exercer com uma jurisdição dada in actu, para cada caso, sobre as pessoas 5.

  1. 1. Fideliter cit; e Boletim cit: "aestimamus omnes poenas, censuras ab his auctoritatibus porlatas nihil momenti esse.
  2. 2. L’Osservatore Romano de 3-7 -1988. 78)
  3. 3. Fideliter cit.: Boletim cit.
  4. 4. Fideliter ed. especial de 29-30 de junho de 1988 cit. O texto desta carta continua como segue: "Eu vos conjuro a vos manterdes unidos à Sé de Pedro, à Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as igrejas na fé católica integral, expressa nas símbolos da fé, no Catecismo do Concílio de Trento, conforme ao que vos foi ensinado no vosso seminário. Permanecei fiéis na transmissão desta fé para que venha o Reino de Nosso Senhor" (os negritos são nossos).
  5. 5. Os bispos sagrados como "auxiliares da Fraternidade" não entram na categoria de bispos "auxiliares" sem direito de sucessão, segundo o código 403 § 1 do CIC em vigor. Estes últimos gozam do poder de jurisdição no território de sua diocese, colocados "a latere" do bispo diocesano, quando este "não pode pessoalmente cumprir todos os deveres episcopais como o exigiria o bem das almas" (Commento cit.. p. 241) Deve-se em seguida lembrar que a jurisdição in actu suprida não é idêntica à expedita in actu, mencionada no no. 2 da nota praevia, anexada à Lumen Gentium. Visto que esta ultima resulta sempre duma missão canônica. O que justifica a jurisdição suprida in actu é especialmente o estado de necessidade, em particular no caso de erros graves e de heresias, publicamente difundidas, mesmo e sobretudo por causa da omissão da Igreja oficial. Numa tal situação, a necessidade grave de muitos (porque eles correm um grave perigo - e isto é suficiente - de serem seduzidos pelo erro) se assemelha, pela doutrina unânime, à necessidade extrema dum indivíduo (como pode haver em caso de perigo de morte).
AdaptiveThemes