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Category: Pe. Ambroise Gardeil, O.P.Conteúdo sindicalizado

O Pe. Ambroise Gardeil (1859-1931) foi o co-fundador da renomada Revue Thomiste.

7. O Dom da Sabedoria

 Santo Tomás de Aquino 

 

No quadro Crucifixão, de Fra Angélico, dois personagens chamam em especial a atenção da alma dominicana: dois santos postos à extremidade do grupo à direita da cruz. São Domingos está na primeira fila, de joelhos, com as mão estendidas num gesto de compaixão e amargura. Seus olhos, banhados em lágrimas, mal se podem erguer ao Crucificado, fitos no vulto da Virgem, que São João, Madalena e Maria Salomé sustentavam do outro lado da cruz. Lá atrás, de pé, com as mãos postas no peito e a cabeça inclinada para enxergar melhor, vemos Santo Tomás de Aquino. Seu rosto reflete uma impressão aguda e compenetrada. Ele não chora, mas olha: olha fixamente para Jesus crucificado; a emoção surda que o invade, longe de lhe desviar os olhos, parece ao contrário atravessar as pupilas e arrancar das profundezas do olhar uma chama intensa, como a borbulha de lava ardente que emerge, poderosa e contida, do fundo negro de um vulcão.

São Domingos chorando, com o coração dividido entre as dores de Cristo, que expia pelas almas, e a dor das almas que, aos pés da cruz, iniciam com a Virgem Maria o longo martírio de união com os sofrimentos do Redentor; eis o apóstolo, eis sua dupla vocação: contemplar com amor e transmitir misericordiosamente o contemplado. Eis o homem do Dom de Ciência! — Santo Tomás, ao olhar fixamente o tremendo sacrifício e, apesar do horror do suplício, ao dominar o semblante, como que para penetrar mais a fundo o mistério; eis o Doutor, eis a sua vocação, não mais repartida, e sim unificada numa dupla virtude: absorver-se na luz para tornar-se luminoso; e também iluminar, com plena certeza de sua missão, horizontes longínquos: eis o representante do Dom de Sabedoria.

A sabedoria, ensinou-nos o Santo Doutor, é antes de tudo uma virtude intelectual, pela qual nos habituamos a julgar as coisas de cima, desde o ponto de vista mais alto possível, ou seja, desde o ponto de vista de Deus. Enquanto a ciência se detém nas razões próximas, que só nos dão uma meia-luz, a sabedoria, por sua vez, recorre à explicação suprema. O cientista, para explicar a ordem e a harmonia do universo, discursa sobre a revolução dos planetas, órbitas, rotações etc; o que diz é verdadeiro, mas não é a razão última. O sábio, o teólogo ou o filósofo apela à inteligência ordenadora de Deus e, com uma só palavra explica tudo, mas não revela tudo; pois, onde a razão para, começa o mistério.

Por isso o Espírito Santo, que “tudo penetra, mesmo as profundezas de Deus”, nos associa por um dom a sua própria sabedoria. Quanta diferença entre a virtude e o dom! Em que consistem, com efeito, a nossa teologia e a nossa filosofia senão em “saciar a sede da nossa ignorância de uma fonte mais elevada”? Que fazemos nós teólogos senão delimitar, com mais exatidão que os outros, e mais de perto, as bordas do abismo negro do mistério ou do sol que cega, inacessíveis em seu centro aos olhos humanos, mesmo guiados pela luz obscura que emana da fé? Não sofrem dessa ignorância tanto as almas simples quanto as mais inteligentes? A fé nos transporta para diante de uma muralha coberta de palavras magníficas, que anunciam os mistérios mais sublimes e consoladores, mas não somos capazes de penetrar a muralha que os encerra… precisamos crer, mas não podemos ver, nem mesmo por um só instante, aquilo em que cremos com toda nossa alma: ó dura provação para inteligências vivas e fiéis, para as quais não crer seria ainda mais doloroso que não ver!

De onde tiraste, ó tu, Doutor da Crucifixão, esse olhar que fita o mistério sem ficar vazio, gelado e mortiço como o nosso — que, lá onde me perco no vazio, se vivifica de uma vivacidade espetacular? — se tu não conheceste o olhar de Arquimedes exprimindo a alegria do seu eureka, nem o de um Newton entrevendo pela primeira vez os segredos dos céus? Ou foste tu, pintor Angélico, que num assomo da tua imaginação ardente transfiguraste assim o teu modelo? — Mas não: tu o viste; pois tais criações não se imaginam. O pintor Angélico compreendeu o Doutor Angélico. Eis a chave do enigma.

Ó tu que te revelaste assim à alma de Fra Angélico, revela-te a nós pela virtude dessa santa imagem, a nós que não sabemos olhar como olhaste e que tanta necessidade temos de robustecer nossa fé pela iluminação dos Dons. Ó tu que visivelmente penetraste os mistérios do Filho de Deus encarnado e morrendo sobre a cruz, fala e escutaremos. Teus olhos, ó vidente, serão os nossos. Tu, que experimentaste as coisas divinas, descobre-nos algo dessas realidades pelas quais nossos corações anseiam e diante das quais nossas idéias e raciocínios de teólogos ou de fiéis de nada valem.

E o quadro parece ganhar vida. — Como uma onda que ultrapassasse os limites impostos pelo litoral, começo a ouvir uma voz que me responde, e me repete aquelas dulcíssimas palavras que em outro tempo disse ao Beato Reginaldo, seu irmão querido:

“Meu filho, olha o Crucificado. É Deus. Deus encarnado por nossos pecados. Por nossos pecados, compreende? Durante muito tempo, raciocinei como filósofo. Parecia-me belo ver na Encarnação do Verbo o coroamento do universo, a glória da humanidade. Dividia-me entre os santos livros que me mostravam a Redenção como a causa da Encarnação e essa sublime idéia de um mundo que conduziria a um ser divino, a um homem cujos pés repousaram sobre a nossa terra, e cuja cabeça habitava não no cume das mais altas montanhas, mas na luz inacessível da Divindade1. Mas, naquele momento, à vista desta cruz tudo se esclareceu, e eu vejo… A Redenção, eis o fim, o único fim. Por que a Encarnação? Para a Redenção. Não foi apenas para manifestar a potência divina que Deus se encarnou; não foi sequer para demonstrar a bondade de Deus e sua divina liberalidade; foi para fazer brilhar a sua misericórdia, o mais inenarrável dos seus atributos2. Agora, tudo se conforma à santa palavra: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. — “Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo, para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Portanto, se o homem não tivesse pecado, Ele não teria vindo. “Suprimi o mal, suprimi as feridas, e o médico não é mais necessário”. — “Ó feliz culpa que nos merecestes tão grande redentor!”3foi preciso sacrificar um motivo inferior; uma bela idéia, mas que não passava de uma idéia humana, foi-me preciso dobrar mais uma vez a inteligência aos ditames da fé: e eis que pela fé encontrei a luz, a causa mais alta do mistério se revelou; eu explicava a Encarnação como homem: agora vejo o motivo como Deus mesmo o vê. Esse motivo são os nossos pecados; é a misericórdia divina. Essa cruz me revelou isso, e eis porque a contemplo assim”.

Que lição para nós, filósofos e teólogos demasiado humanos, essa conversão intelectual de Santo Tomás, esse alegre abandono das sínteses mais persuasivas diante da humilde palavra do Evangelho, dos apóstolos, dos santos! E que lição mesmo para os simples fiéis, que tantas vezes medem as coisas de Deus, seus ensinamentos, o governo da sua Igreja, a conduta os seus ministros, de acordo com a visão míope que procede das suas pretensas luzes, das paixões ou impressões do momento, ou de meras imaginações. Ah, não sabemos julgar bem as coisas, sobretudo as coisas de Deus, pela causa mais alta. Estamos cheios de nós mesmos e, se não no fundo, ao menos na prática real da vida, pouco nos preocupa se julgamos as coisas conforme o julgamento de Deus. Ele mesmo  disse: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos”. Abandone-se esse hábito tão funesto — o amor da verdade o exige.

Mas, como poderemos nos elevar o bastante para observarmos tudo com o olhar do próprio Deus? Uma sabedoria desse tipo não pertence apenas a seres de todo alheios às nossas misérias e fraquezas, como os santos?

Santo Tomás em pessoa nos confiou o seu segredo. Apenas o Espírito de Deus conhece com propriedade os mistérios divinos, disse ele. Nossas forças intelectuais nos permitem alcançar alguns aspectos gerais. Mas, de que vale toda a nossa filosofia ao lado do menor raio que aprouver ao Espírito Santo nos enviar do seio da luz plena onde habita? Travar relação com o Espírito Santo, eis o segredo da sabedoria. “Ora, diz o Apóstolo, o que está unido a Deus — ou seja, pela caridade — é um mesmo espírito com ele” 4. Isso não significa certamente que nos transformaremos, pelo amor, em uma mesma substância com Deus, mas que, unidos a Ele por meio de um sentimento profundo do coração — não do nosso coração abandonado às próprias forças, mas do nosso coração fortificado e instruído por Deus — amaremos apenas o que Ele ama, e nos habituaremos a uma dependência santa e habitual com respeito a Ele.

O efeito dessa dependência efetiva se faz sentir antes de tudo na conformidade de nossos julgamentos com os dele. E posto que não podemos por nós mesmos nos elevar até as concepções de Deus, força é portanto que nosso Deus, para efetivar a sua amizade, nos participe dos julgamentos da sua sabedoria. Eis o que é ser um mesmo espírito com Deus. “É ser instruído pela sua unção, como diz São João, e isso em todas as coisas” 5: o que significa que a alma, cheia do amor de Deus, se sente doce e suavemente tocada por luzes superiores que a elevam a uma altura de visão que não conhecia, a uma pureza, a uma penetração, a um domínio do seu olhar intelectual que não parece mais ser deste mundo. É como o viajante que, do alto da montanha, contempla todas as coisas, o mar bravio e as colinas rugosas, as florestas silenciosas e as cidades repletas do rumor humano, e sente o coração invadido pela alegria indizível de estar por um instante apartado dos pormenores da terra e de poder apreendê-la num só olhar.

Nada há tão repousante quanto um espetáculo desses, abundante de reflexões salutares. A pequenez das coisas que costumam irritar nossas paixões nos aparece então em toda a sua realidade. A alma que observa de tão alto é ao mesmo tempo engrandecida e pacificada. É por isso, sem dúvida, que Santo Agostinho relacionou o Dom de Sabedoria à bem-aventurança dos pacíficos: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” 6. A paz não é senão a tranquilidade da ordem. Ora, só é capaz de assegurar a ordem aquele que vê o detalhe no conjunto, que julga, por um olhar superior, o que é grande e o que é pequeno. Para pacificar a própria vida, para pacificar a vida dos demais, é absolutamente necessário erguer-se para além de si, para além de todos, e de julgar-se a si na verdade. Mas, como fazê-lo? Não podemos nos separar de nós mesmos e, ademais, não é preciso viver no mundo? Como então elevar-se acima de nós mesmos? Onde está a montanha de onde poderemos, por um olhar apartado e dominador, juntar-nos à verdade e apreciar a nossa vida e a vida dos demais?

Essa montanha é Deus. Deus domina, por natureza, a sua criação: só podem dominar-se a si mesmo e julgar a tudo aqueles a quem Deus comunicar o seu adorável julgamento. Eis porque a figura do Filho de Deus feito homem nos aparece, no seu Evangelho, com uma expressão única de domínio e paz. Ele é um Sábio: julga-nos com pensamentos distintos dos nossos, pensamentos que exprimiu com simplicidade e que são matéria de reflexão para os sábios de todos os tempos. Mas, não nos destrói com seu cetro dominador: não quebrou a cana rachada, nem apagou a mecha fumegante. Assim como é sábio, assim também é pacificador. Sua divindade se assemelha a um cume de onde vê e aprecia em sua verdade as causas de nossas lutas e contratempos, de onde faz irradiar a ordem, a tranquilidade e a paz nas almas que crêem em sua palavra divina. Esse é o modelo.

Ele também é a recompensa, pois está escrito: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”. Sim, algo desse domínio inteligente e sereno, dessa ordem tranquila que caracteriza a fisionomia do Filho de Deus passará aos sábios deste mundo, e a humanidade, pasma com a semelhança, o reconhecerá e proclamará em alta voz.

Vejamos Santo Tomás de Aquino. Qual teólogo, nos julgamentos que por toda a vida formulou sobre as coisas divinas e humanas, uniu-se mais ao pensamento próprio de Deus? Quem foi mais sábio dessa sabedoria que vem do Alto? No entanto, que figura intelectual mais serena, e que vida mais pacificada, e que obra mais pacificadora!

Não, depois do Evangelho e do Apóstolo, não há leitura que produza no espírito tão viva impressão de tranquilidade na ordem quanto as obras de Santo Tomás. Jesus vê, Santo Tomás raciocina: eis a diferença, e é imensa. Mas entre ambos os espíritos se nota — ousarei dizê-lo? — um parentesco! Simplicidade e profundidade, universalidade e fineza de detalhe, sublimidade e condescendência, são marcas do Evangelho que reencontramos na obra de Santo Tomás, certamente num grau menor, mas num grau eminentíssimo. Não seria essa a prova da lei estabelecida pelo próprio Espírito Santo: “O que está unido a Deus é um mesmo espírito com ele”? E a semelhança da figura inteligente e serena do Doutor Angélico com a fisionomia intelectual de Nosso Senhor não seria a realização da promessa de bem-aventurança feita aos sábios: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”?

  1. 1. S. Tomás, in 3um sent. dist. 1.
  2. 2. S. T., Ia, q. 21, a. 3.
  3. 3. S. T., IIIa, q. 1, a. 3.
  4. 4. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 2.
  5. 5. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 5.
  6. 6. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 6.

6. O Dom da Inteligência

 Santa Catarina de Sena 

No começo das visões de Santa Catarina, narra o Beato Raimundo de Cápua, Nosso Senhor apareceu enquanto ela rezava, e lhe disse: “Minha filha, sabes o que és e o que sou? Bendita serás se conheceres duas coisas: tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”.

Este episódio nos apresenta, segundo pensamos, a característica do dom que o Espírito Santo infundiu em nossa santa religiosa: o Dom da Inteligência.

Existem quatro dons intelectuais: Ciência, Sabedoria, Conselho e Inteligência. Os três primeiros aparecem em nós sob o aspecto de um verdadeiro trabalho do espírito humano, como é o raciocínio; o Dom de Inteligência, por sua vez, apresenta-se como uma simples intuição, como uma visão da alma que penetra as aparências; sob a letra ou sob os símbolos, revela o pensamento latente de todas as coisas 1.

Escreveu Bossuet: “A alma, prescindindo do raciocínio, serve-se de uma doce contemplação que a mantém pacífica, atenta e suscetível às operações e impressões divinas que o Espírito Santo lhe comunica; a alma faz pouco, mas recebe muito. Seu trabalho é suave e, no entanto, muito frutuoso”. Que trabalho é esse? — “Uma mirada simples, um olhar atento e amoroso para algum objeto divino”.

Eis a razão, sem dúvida, pela qual Deus quis escolher em nossa Ordem uma santa e não um santo para personificar de modo especialíssimo — ainda que de forma alguma exclusivo — o Dom de Inteligência. Aos homens, em que o vigor do raciocínio é a nota intelectual predominante, couberam os dons relacionados com a razão: o dom de Ciência em São Domingo, o de Sabedoria em Santo Tomás e o de Conselho em Santo Antonino. Coube a uma mulher, cuja natureza é mais intuitiva, espontânea e instintiva, o Dom em que mais se sobressaem o instinto e o sentimento: porque, se os silogismos se demonstram, “os princípios se sentem…”

É certo que a natureza não poderia por si só conhecer intuitivamente a Verdade de Deus, princípio dos princípios, que definiu a si próprio a Moisés: Eu sou o que sou 2. Porém, já que o Soberano Senhor se gloria em aperfeiçoar a natureza — sem dúvida para que melhor ressalte pelo contraste o brilho de seus dons gratuitos — que inconveniente haveria em que Ele se revelasse a uma santa, acomodando-se às condições de seu sexo, isto é, como um princípio cuja verdade pede para ser mais sentida que conhecida, como “um Deus sensível ao coração”? 3

Minha filha, tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”. Para que longos discursos? A palavra de Cristo traz consigo a demonstração: é concisa e luminosa como um primeiro princípio; dir-se-ia que era uma daquelas sentenças saídas dos lábios do Mestre divino que enchem os Evangelhos.

“Ah! Como essa pequena frase é grande, como é vasta essa doutrina tão simples!” Exclama o Beato Raimundo de Cápua. "Quanta sabedoria está encerrada nessas poucas palavras! Quem me dará a compreensão delas? Quem me revelará seus segredos e me fará compreender sua infinidade?” Como que para marcar com seu próprio exemplo a diferença entre o gênio próprio do teólogo e o dom da santa, ele se estende em longas considerações sobre aquelas palavras de Nosso Senhor. Mas acaba se interrompendo sem jamais esgotar o tema, confessando que tudo quanto pode dizer é conhecido de antemão por quem já tiver penetrado o sentido daquelas palavras: "Tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”.

Não, o raciocínio não é capaz de abarcar o infinito. Quem, então, nos dará a compreensão daquelas palavras? — Escutemos o que diz Bossuet: “Deus é aquele que é: tudo o que é e tudo o que existe, é e existe por Ele. Deus é o ser vivo no qual tudo vive e respira… É preciso consentir e aderir à verdade do ser de Deus: consentir com a verdade é o único ato que basta. Nota que digo consentir com a verdade, pois Deus é o único ser verdadeiro. Aderir à verdade, consentir com a verdade, é aderir à Deus, é consentir que Deus entre na posse do direito que possui sobre nós. Esse ato compreende todos os atos; é o maior de todos, o mais elevado que podemos fazer” 4.

Só a intuição penetra os princípios: quando os divinos mistérios se revelam a nós sob essa forma tão concisa, convém deixar de lado o raciocínio e, como escreveu ainda Bossuet, “concentrar-se por inteiro num simples olhar”. Esse simples olhar é obra do Dom de Inteligência.

Mas, dirá alguém, que sobra da obscuridade da fé entre os resplendores da intuição? Santo Tomás também se fez essa pergunta. Há dois tipos de objetos propostos à nossa fé: primeiro, a Essência divina e seus inefáveis mistérios; segundo, um grande número de verdades ordenadas à manifestação do primeiro. As Sagradas Escrituras estão repletas desse tipo de verdade que constituem o objeto secundário da nossa fé 5.

O Dom de Inteligência pode nos dar um conhecimento perfeito desses últimos. Na história de Santa Catarina, muitos episódios o testemunham, notadamente a admirável compreensão das Escrituras que seus escritos demonstram. O versículo mais trivial, por exemplo, Deus in adjutorium meum intende, torna-se tema de repetidas meditações. O salmo Jubilate Deo omnis terra lança-a em transportes indizíveis. Nunca chegaríamos ao fim se quiséssemos explorar todo esse lado intelectual de Santa Catarina, mas citemos um episódio. Poucos dias antes da morte, ela revelou que “com a luz de uma fé viva, vira e compreendera perfeitamente em sua alma, que tudo o que acontecia a ela e aos demais vinha de Deus, originava-se no grande amor de Deus por suas criaturas”. Era assim que Santa Catarina chamava o dom que lhe dava as intuições da sua contemplação: luz de uma fé viva. Essas mesmas palavras testemunham que essa luz se harmoniza muito bem com a obscuridade inerente à fé.

Quanto à Essência divina e seus mistérios adoráveis, o exercício da fé é total. Não obstante, o Dom de Inteligência nos permite penetrar um pouco mais no conhecimento de Deus, como ensina Santo Tomás. Como isso é possível? Nosso santo doutor ensina que também avançamos no conhecimento de Deus ao saber o que Ele não é 6. O autor da Imitação se expressa como Santo Tomás: “Por isso importa elevares-te acima de todas as criaturas, e renunciares totalmente a ti mesmo, e naquele arroubo da alma perseverares e compreenderes que o Autor de todas as coisas não tem semelhança com as criaturas"7.

Portanto, a fé não deixa de ser obscura. Mas, do seio dessa obscuridade, brota um raio de luz que, exibindo aos nossos olhos o contraste entre a perfeição divina e a imperfeição das criaturas, produz uma como intuição negativa e analógica da verdade inacessível.

Mas, por que tanto esforço para definir a contemplação divina quando podemos vê-la admiravelmente delineada nas palavras de Santa Catarina de Sena? 

"Ó Trindade eterna, ó deidade! Tua natureza divina valorizou o preço do sangue de Jesus. És um mar profundo. Quanto mais nele penetro, mais encontro; quanto mais encontro, mais te procuro. E quando o homem se sacia no teu abismo, mais deseja; está sempre com fome, com sede de ti… És uma luz superior a toda luz. Dás uma iluminação abundante e perfeita à inteligência, aclarando-a na fé. Por meio dela, eu vejo que minha alma possui a vida. Nessa luz eu vejo a tua luz… Por isso eu disse, Pai eterno, que me ilumines com a luz da fé. Realmente, a fé é um mar que alimenta o homem em ti… Quando a fé é grande, o homem tem certeza daquilo em que acredita. Ela é um espelho, Trindade eterna, no qual me conheço. Segurando com amor tal espelho, olho para ele, reflito-me em ti e tu em mim, pela união de tua divindade com a nossa natureza humana. Na luz da fé, conheço-te, bem sumo e infinito, bem superior a todo bem, incompreensível, inestimável. Beleza superior a toda beleza! Sabedoria superior a toda sabedoria. Única sabedoria!… Quem pode acrescentar algo à tua perfeição, agradecer-te pelos imensos favores, pelos ensinamentos dados? Foi uma graça especial, acrescentada àquela comum que dás a todos. Desceste até minhas necessidades e nisto outros espelhar-se-ão” 8

Que diferença entre a fé comum, sempre débil e inquiridora 9, e esta fé segura, firme e, digamo-lo logo, intelectualmente intuitiva.

Mas, intuitiva como? — Sem dúvida, aquela luz não poderia nos revelar o mistério tal como é, pois se transformasse nosso exame intelectual numa visão clara, excluiria a fé. Donde vem, pois, essa luz especial que ilumina os mistérios divinos sem desvendá-los?

Pelo coração, como dissemos anteriormente, é que Deus realiza, nesta vida, a divinização de toda nossa atividade, inclusive a intelectual. O Espírito Santo, pela caridade, habita em nossos corações, e é de lá que irradia seus dons 10. Não é já um efeito do amor meramente humano intensificar o ato de inteligência aplicado ao conhecimento do objeto amado, fazer-nos descobrir nas palavras, nos gestos e nos detalhes mais insignificantes, um sentido oculto e, contudo, verdadeiro? Se o amor abandonado aos seus próprios recursos possui ainda instintos e pressentimentos tão seguros, que equivalem a luzes na precisão dos seus diagnósticos, o que sucederá com um coração que se põe sob a influência especialíssima de Deus, que tem o Espírito Santo por diretor, guia e regulador em todos os instantes? Quão infalíveis serão esses divinos impulsos! Quão seguros os  instintos! Quão profundos os pressentimentos! A luz infundida pelo Espírito Santo será tão eficaz e suave! Veni, lumen cordium!

“Esse ato, diz Bossuet, deve ser feito sem esforço, por uma entrega total do coração a Deus. Deve ser… busco um termo para explicar-me, deve ser afetuoso, terno, sensível. Compreendes-me bem? E eu, compreendo-me a mim mesmo? Porque é um movimento do coração que não é sensível pela sensibilidade humana, mas que nasce de uma alegria pura do espírito. Assim, alegra-te e afirma a cada instante: Eu consinto, meu Deus, em toda a verdade do vosso ser, nela encontro minhas delícias e minha felicidade antecipada. Esse é meu paraíso na terra, e também será meu paraíso no céu. Amém” 11.

Esse ato luminoso e cheio de amor não é a essência mesma dos discursos e das obras de Santa Catarina de Siena? Ela vê porque ama. Não se trata mais do simples conhecimento que a fé proporciona: ela amou a verdade mesma que lhe confiava o conhecimento da fé; provou-a, e depois voltou a olhá-la com olhos ardentes, abrasados, com aquele olhar do qual falou o Profeta, quando disse: Provai primeiro, depois olhai: Gustate et videte 12.

Porém, o Dom de Inteligência não para por aí. Santo Tomás nos adverte que ele é um dom a um tempo especulativo e prático, cuja ação necessariamente se faz sentir em nossa vida. A esse respeito, diz Bossuet: “Se é verdade, como é, que somos tanto mais ativos quanto mais somos impelidos, animados e movidos pelo Espírito Santo, o ato pelo qual nos entregamos a Ele, e a ação que realiza em nós, nos coloca, por assim dizer, completamente nas mãos de Deus” 13. Santo Tomás, numa síntese precisa e admirável, viu nas bem-aventuranças do Evangelho narradas por São Mateus a ação dos dons, e se dedicou a sublinhar a correspondência de cada uma dessas bem-aventuranças a um dom do Espírito Santo. Ao Dom de Inteligência corresponde esta: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. A purificação do coração é a obra própria do Dom de Inteligência nesta vida: a luz da visão é a recompensa da purificação meritória, recompensa que, mesmo fazendo-se sentir nesta vida, só alcançará a perfeição na eternidade.

Essa correspondência entre inteligência e pureza é um aspecto fundamental da vida de Santa Catarina. A vidente de êxtases contínuos é também modelo dos penitentes. E se atentarmos a essa outra espécie de pureza de coração, que é a profissão da fé católica sem mistura de erros, quem mais a cultivou que essa ardente apóstola? Assim, para melhor ver, ela purificou o coração com uma penitência contínua e com a fuga das preocupações mundanas; cada grau de contemplação adquirido inspirava-lhe a idéia de um desapego mais profundo. Uma dupla atividade se vislumbra em seu espírito: a luz provoca a pureza do coração e essa, por sua vez, é causa de luzes maiores. Ao proclamar a harmonia entre o Dom de Inteligência e a Bem-aventurança dos puros, o Angélico Doutor nos revelou a vida da nossa santa 14

Como essa doutrina é consoladora! Os dons do Espírito Santo foram depositados, com a graça e a caridade, na alma de todos os justos 15. Cabe a nós, pois, sob a operação da graça, usá-los. Talvez pergunte o leitor: Quem me ajudará a usá-los? Ora, nós já os possuímos, se os desejarmos com sinceridade, pois nesse desejo nosso está contida a oração de Santo Agostinho: “Se ainda não foste atraído, roga para que sejas”. Mãos à obra, portanto, e digamos: "Desejo gozar desse Dom de Inteligência que espero esteja na minha alma pela graça de Deus. Santa Catarina de Sena, ajudai-me".

Consultemos então as Sagradas Escrituras, de preferência uma dessas passagens que a Igreja canta na liturgia e que nos faz vibrar a alma com as melodias do cantochão; ou ainda, leiamos os salmos; ou, no Evangelho, “as palavras do Senhor”, verba Domini, como dizia Santo Agostinho. Por exemplo: “Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber”, ou ainda: “Convém que ele cresça e eu diminua”. Voltemo-nos em seguida ao nosso hóspede interior, que é a Santíssima Trindade presente em nós pela graça; ou voltemo-nos, se estivermos numa igreja, a Nosso Senhor presente no tabernáculo, e meditemos as palavras escolhidas como se o próprio Deus que tanto amamos as pronunciasse nesse instante mesmo para nós. Saboreemos essas palavras na presença de Deus. E quando o movimento de nosso coração se pôr em contemplação, descobriremos horizontes mais vastos, uma altura, uma largura e uma profundidade que jamais suspeitávamos, que a fé só não nos revela e que só conheceremos pelos olhos do coração, que esperamos seja habitado pelo Espírito Santo 16

Então observaremos o quanto o nosso olhar está obscurecido por imperfeições às quais não atentamos normalmente: aquele amor próprio tão sutil, aquelas preocupações tão funestas, o amor a nossas comodidades ou a idéias falsas e contrárias ao catolicismo. Como é fácil que no ouro mesmo da vida piedosa venha misturado alguma porção de ouropel! O Dom de Inteligência nos inspirará o santo ódio de nós mesmos, como inspirava a Santa Catarina de Sena. Então, recobrando o ânimo, e com o olhar fixo no Crucificado, julgaremos doravante “as coisas doces como amargas e as coisas amargas como doces”, e cresceremos cada vez mais na inteligência dos reconfortantes mistérios de nossa fé, sob a conduta do Espírito Santo.

  1. 1. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 1.
  2. 2. Ex 3, 14. [N. do T.]
  3. 3. Pascal.
  4. 4. Discurso às Visitandinas, no dia da morte do Sr. Mutelle, o seu confessor.
  5. 5. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 2.
  6. 6. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 7.
  7. 7. L. III, C. XXXI, 1.
  8. 8. O Diálogo, Santa Catarina de Sena. Trad. Frei João Alvez Basilio O.P., 15a. reimpressão. Ed. Paulus, São Paulo, 1984. pp. 394-396.
  9. 9. Credere est cum assensione cogitare, IIa IIae, q. 2, a. 1.
  10. 10. S. T., Ia IIae, q. 68, a. 5, c.
  11. 11. Discurso… no dia da morte do Sr. Mutelle.
  12. 12. Cf. João de São Tomás, Ia. IIae, q. 70, disp. 18, a. 3, n. 38.
  13. 13. Discurso sobre o Ato de Abandono.
  14. 14. S. T., IIa IIae, q. 8, a. 7.
  15. 15. S. T., Ia IIae, q. 68, a. 2;  IIa IIae, q. 8, a. 4.
  16. 16. Nunca sabemos com certeza se estamos em estado de graça. Mas devemo-lo esperar, se não tivermos consciência de um pecado mortal e se servirmos a Deus com boa vontade. O Espírito Santo costuma acrescentar, nas almas resolutamente católicas, seu próprio testemunho ao testemunho da consciência. Daí provém um estado de certeza prática que, mesmo deixando lugar para o temor, dá à atividade do fiel um ponto de apoio reconfortante.

5. O Dom da Ciência

 São Domingos 

 

O dom de apóstolo não se confunde com o dom de doutor.

O doutor ensina e estuda uma ciência impessoal. Seu fim é a verdade pela verdade. Ele busca na fonte mais alta a razão de ser das coisas; e se, nesses cumes, reencontra Deus, deve-se ao fato de que Deus é a causa das causas, a razão última da graça e da natureza. O Espírito Santo, ao se transformar pelos dons na regra imediata da inteligência do doutor, não modifica o que pertence à natureza das coisas. Pelo Dom de Sabedoria, aumenta o alcance da razão, ilumina a fé e ajuda os doutores a cumprirem sua tarefa sublime, com uma segurança e uma elevação participadas diretamente da inteligência divina. A esse dom Santo Tomás de Aquino deve o entendimento íntegro e atilado, graças ao influxo divino, que o acompanha de uma ponta a outra de sua obra, e irradia no conjunto e no pormenor de todas as verdades, naturais ou sobrenaturais, a Verdade primeira, Deus, a Santíssima Trindade.

A ciência do apóstolo, ao contrário, não seria capaz de fazer abstração das almas que busca converter. Nem sempre são as verdades mais elevadas que melhor alcançam o objetivo proposto. E que me importa a tua metafísica ou as razões últimas das coisas se não te compreendo? Que proveito tiveste, se a expressão provocadora e inoportuna de uma verdade, pregada talvez com muita aspereza, sublevou minha fraqueza e debilidade? As almas a que o apóstolo se dirige estão mergulhadas na vida prática, em seus erros intelectuais e morais. Não estão habituadas a julgar as coisas pelas razões superiores. É preciso convertê-las onde estão. Se quisermos que se elevem até Deus, comecemos por ter um conhecimento exato do que lhes preocupa, dos males e erros em que se debatem. Quando se recebe o chamado para o ministério do apostolado, já não é preciso considerar as verdades divinas em si mesmas, mas antes conhecer como elas repercutem nas criaturas e afeiçoar-se às razões que, de ordinário, convencem as almas a que nos dirigimos, ainda que não sejam as mais profundas. Diz Santo Ambrósio: “Considera com atenção como Cristo sobe com os apóstolos e desce em direção à multidão. Como a multidão poderia vê-lo se não descesse? Ela não pode segui-lo nos cumes, nem subir até os topos”. Ora, segundo a doutrina de Santo Tomás, cabe ao Dom de Ciência comunicar às almas justas esse conhecimento divino das coisas humanas, e das razões e motivos hauridos das criaturas, que servem de esteio necessário ao apóstolo. Ele difere do Dom da Sabedoria pois, em vez de nos fazer julgar as coisas a partir do ponto de vista de Deus, em toda a sua inacessível profundidade, apresenta-nos a luz desse ponto de vista refletida nas criaturas, obscurecida, por assim dizer, e acomodada à nossa debilidade, para proveito de todas as almas de boa vontade1.  

O apostólico São Domingos de Gusmão estava destinado a representar de modo particular esse dom característico dos apóstolos. Quer consideremos sua vocação, quer os livros onde bebeu sua ciência, quer ainda o instrumento do seu apostolado, sempre veremos com clareza que o seu ministério e sua vida inteira estão marcados com o timbre do Dom de Ciência. 

A vocação deixa-se já pressentir neste longínquo episódio de sua vida de estudante. Uma fome cruel assolava Palência. Domingos vendeu seus livros, que eram seu tesouro, exclamando: “Como hei de estudar em peles mortas quando há homens que morrem de fome?”. Um dia, um flagelo mais temível, o flagelo do erro que envenena as almas, revelou-se a seu coração de tal sorte disposto pelo Altíssimo, que toda a ciência adquirida nos vinte anos de silenciosa preparação adaptou-se como que por encanto para a cura daquela enfermidade. Imagina-o naquela noite, em que, discutindo com seu anfitrião de Toulouse, a quem procurava converter, interveio o apelo divino. O mesmo Espírito que lhe arrancara do coração penalizado o grito de misericórdia pelos famintos, anima-o agora a “dar ao seu povo a ciência da salvação”. Embriagado com esse pensamento, busca com afã as razões que aquele homem poderia compreender; informa-se do seu estado intelectual e moral; quer avistar a idéia comum, a verdade que ambos admitiriam, o vestígio da luz divina conservado entre as sombras daquele espírito desviado, e que lhe serviria de auxílio para reconduzi-lo à luz. Naquela instante, com certeza venderia toda a ciência acumulada ao longo de vinte anos de trabalho e meditação como se não passasse de “peles mortas”, em troca da palavra justa, da palavra decisiva que libertaria e saciaria a alma daquele homem.

Contudo, a ciência não prescinde de livros, que servem para mostrar que o estudo não é estéril e oferecem matéria abundante para as inspirações do Dom de Ciência. Quais eram, portanto, os livros de São Domingos? Seus historiadores nomeiam três.

O primeiro são as Epístolas de São Paulo, o apóstolo por antonomásia. Ora, não é esse um dos livros em que mais brilha o Dom de Ciência? Onde encontrar um conhecimento mais profundo, um sentimento mais vivo das misérias do homem afastado de Deus e das causas que o impedem de chegar até Ele? Se o Apóstolo por vezes “fala sabedoria para os perfeitos”, não é verdade que, com freqüência maior, muda o tom e “diminui sua voz”, para não assustar os humildes? E que arroubos admiráveis quando, de costas encurvadas sob o peso das almas cujas misérias e penas carregou sobre si, ergue-se com elas rumo a Deus, pretendendo retirar da miséria mesma de que gemem o motivo da  libertação. Quantas vezes São Domingos deve ter relido estas palavras: “Renunciei a todas as coisas e as considero como esterco, para ganhar a Cristo”. Com que ênfase não deveria repetir o brado do seu mestre preferido: “Porque eu estou certo que nem a morte, nem a vida… nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”. Que luz para suas vidas! Que luz para as almas que escutavam palavras tão penetrantes sobre o conhecimento da vaidade das coisas que aprisionam os homens nos vícios da carne ou nos erros do espírito!

O segundo livro era o Evangelho segundo São Mateus, ou seja, o Evangelho da humanidade de Nosso Senhor, em que o divino Mestre mais desceu ao nosso alcance. Aí encontramos a pregação das comiserações divinas, das curas inumeráveis e da sua imensa misericórdia. “Lerás os ensinamentos da lei como uma bandeirola nas vossas mãos: eles se agitarão sem cessar diante dos teus olhos”. Santo Tomás relaciona esse preceito, que se lê no Deuterônimo, ao Dom de Ciência2. São Domingos o cumpria à risca nas estradas, caminhando sozinho com seu São Mateus às mãos; os companheiros o viam fazer gestos frequentes, como se quisesse afastar obstáculos que o distraiam das  meditações: “Eles atribuíam a essa meditação contínua dos textos santos a inteligência maravilhosa que deles adquirira”. 

O terceiro livro de São Domingos era muito diferente dos outros dois. Certo dia, um irmão lhe perguntou onde aprendera tudo o que sabia: “Meu filho", respondeu, "meu único livro é a caridade divina”. Com efeito, precisamos voltar-nos a ela se quisermos descobrir o segredo de uma ciência divinamente cordial, como a que palpitava em todos instantes de sua vida. Para adquiri-la, é preciso que nossa ciência se alimente de uma vivíssima aspiração a Deus e viva do zelo, que o Espírito Santo infunde em nós, pela salvação das almas; é necessário que nossas palavras e idéias se impregnem de ânsia pelo Bem divino, e que a sintamos e vivamos não apenas por nós, mas por todos os que nos escutam. Então, é o próprio Espírito Santo, escondido nessa aspiração, que fala pelo apóstolo. Eis o segredo da ciência de nosso santo pai. 

A marca do Dom de Ciência encontra-se também no grande instrumento de apostolado de São Domingos: o Rosário. O que faz do Rosário uma alavanca tão poderosa é o ponto de apoio, escolhido em razão de um maravilhoso conhecimento da organização de nossa natureza humana. O Rosário se acomoda a todas as circunstâncias da vida, pega-nos como que pela mão para nos tirar de qualquer abismo onde nos encontremos, seja nas alegrias mundanas, por vezes perigosas; seja nas tristezas, muitas vezes irrazoáveis, exaustivas até, e quase sempre mal suportadas; seja nas esperanças terrestres de toda natureza. Alegria, tristeza e esperança, aí estão os três mares por onde navega nossa alma, sofrendo as investidas de suas ondas. São Domingos compreendeu que toda a vida humana está encerrada nesses três sentimentos e, assim, com doçura, elevou nossas pobres vidas a um mundo de alegrias, tristezas e esperanças melhores, iluminado pelos esplendores do Sinai ou do Tabor. Ele nos atrai apresentando alegrias santas, tristezas divinamente suportadas e esperanças verdadeiras. Sem negar as inquietações da alma, ele as apazigua, transforma e, pouco a pouco, as eleva. As suaves orações do Pai Nosso e da Ave Maria sobem ao céu como um hino de amor que, a cada repetição, torna-se mais insistente. Quanta ciência das coisas divinas, do coração humano e das harmonias secretas que guardam entre si, foi preciso para compor o Rosário! Quem, pois, soube proporcionar às necessidades mais humanas remédios tão divinos, e reunir a ambos pelo elo eficaz e consolador de uma oração tão elevada? Quem, senão o discípulo inspirado daquele que, sendo Deus e tendo criado o homem, conhece tudo o que Deus pode ser para o homem e tudo o que o homem necessita de Deus? Por isso, na vida de nosso santo Pai encontramos o caráter distinto do Dom de Ciência, a saber: “Essa espécie de gosto e experiência que se têm das criaturas, que obriga a julgá-las com retidão; para desprezá-las se querem nos seduzir, ou para amá-las com moderação e encaminhá-las a Deus”3. Mas, para verificarmos o quanto convém propriamente ao nosso amantíssimo Pai o Dom de Ciência, há um sinal ainda mais marcante e, se ousamos dizer, definitivo: refiro-me ao dom das lágrimas.

Santo Tomás associa ao Dom de Ciência a bem-aventurança das lágrimas: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. A razão que ele apresenta é admirável. A diferença entre a ciência e a sabedoria consiste em que, para julgar as coisas, aquela se funda em razões que estão ao alcance de todos, enquanto a sabedoria remonta sempre até as razões últimas das coisas. Ora, quando compreende a razão última das coisas, que é na realidade a vontade, a providência, a sabedoria e a bondade de Deus, a alma se apazigua, e se torna serena e pacífica. É por isso que a bem-aventurança dos pacíficos está relacionada ao Dom de Sabedoria. Mas, quando tomamos por ponto de partida a ciência das coisas criadas, ainda que o seu conhecimento revele um longínquo resplendor do rosto de Deus, são tão numerosas as suas imperfeições, e com tamanha freqüência o mal predomina sobre o bem, que não podemos contemplar sem lágrimas nos olhos a triste situação em que estamos nós e em que estão nossos companheiros de desterro. A ciência das coisas humanas é mãe de todas as tristezas: quanto mais profunda for essa ciência, mais abundantes serão as lágrimas que derramaremos, pois essa é a ciência de nossas misérias4. São tantos os males que afligem nossa vida que o Eclesiastes, compreendendo-as com clareza, chorava amargamente. O Apóstolo, inspirado pelo Dom de Deus, chorava por sua vez vendo a miséria em que estavam as almas que buscava salvar.

Ora, São Domingos vivia chorando. Uma das testemunhas citadas no seu processo de canonização declarou: “Ele possuía uma caridade tão grande pelas almas, que ela se estendia não apenas a todos os fiéis, mas aos infiéis e mesmo aos que estão nas masmorras do inferno, e derramava muitas lágrimas por eles”. No púlpito, não raro chorava, “e normalmente estava cheio desta melancolia sobrenatural que o sentimento profundo das coisas invisíveis produz”. Quando percebia ao longe os telhados de uma cidade ou aldeia, bastava o pensamento das misérias e pecados dos habitantes para que mergulhasse em melancólicas reflexões que logo lhe transpareciam no semblante. "Oferecia o Santo Sacrifício do altar com grande abundância de lágrimas… Quando a cerimônia lhe anunciava que se aproximava Aquele que desde os primeiros anos mais amara, notava-se uma emoção profunda dominando o seu ser; já não continha as lágrimas sobre o rosto reluzente”5.

Poderíamos multiplicar os episódios, uma vez que a fisionomia de São Domingos deve a esse dom especial das lágrimas, que é o resultado do Dom de Ciência, o seu caráter particularmente comovente. Este santo é um sábio que chora. Conhecemos as lágrimas do arrependimento e as lágrimas do amor; aqui temos as lágrimas de um homem que, graças a um eminente dom intelectual, penetrou com profundidade a ciência verdadeira do mundo, dos homens e de Deus e, em vista desta miséria e daquela bondade, perpassa pelo mundo um olhar em que a compaixão disputa com a serenidade, e a tristeza da terra com as consolações do céu. Assim o representam os mármores do seu túmulo, as imagens tradicionais e o pincel do Beato Angélico. Mas coube a seus filhos serem cópias vivas da intraduzível expressão do santo patriarca.

Foi o caso de seu discípulo predileto: São Jacinto, o grande apóstolo da Polônia. Ele recebera o hábito da Ordem dos Pregadores das mãos do fundador. Em São Jacinto encontramos o mesmo amor à ciência sagrada, o mesmo culto à Santíssima Virgem, o mesmo zelo pela salvação das almas, o mesmo olhar aos homens, triste e consolado: triste pela compaixão que experimenta pelas abundantes misérias, consolado pelo conhecimento das misericórdias divinas. Parece que nosso Pai amantíssimo, ao lhe dar o hábito sagrado, deu-lhe também algo de seu espírito e de seu ser. E a Mãe do Salvador, a Virgem amada de São Domingos, parece que quis consagrar essa filiação ao receber São Jacinto no céu no dia mesmo em que a Igreja celebra a sua entrada gloriosa no céu, o dia da Assunção. 

Porém, São Domingos quer que as características de sua heróica santidade sejam imitadas não apenas pelos santos canonizados, mas pelos simples fiéis. Seja qual for a necessidade que tenhamos da ciência no curso de nossas vidas, e mesmo quando a única ciência que nos caiba seja a do catecismo, e só tenhamos a experiência  proporcionada pelo trato com as pessoas em coisas ordinárias – lembremo-nos que uma ciência dessas pode transformar-se em instrumento do Espírito Santo. Há em nós uma corrente íntima, uma tendência profunda que, proveniente de Deus, reconduz-nos a Ele. Tomemos consciência desse movimento, que é a alma de nossa vida, e peçamos a Deus, que reside em nós, para transformá-lo numa consciência cada dia maior do que somos e do que é Deus. Façamos nossa aquela súplica ardente de Santo Agostinho: “Ó Senhor, que eu conheça a mim e conheça a vós; a mim para odiar-me, a vós para bendizer-vos e amar-vos…”

Eis a ciência verdadeira e completa, a ciência dos santos. Em nossa miserável natureza, ela não está isenta de tristezas. Mas a santa figura de nosso bendito Pai nos ensina que também ela traz suas consolações, e nos surge como o cumprimento vivo da palavra do Salvador: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.

  1. 1. S. T. IIa. IIae, q. 9, a. 2.
  2. 2. S. T. IIa. IIae, q. 16, a. 2.
  3. 3. João de São Tomás; q. 70 disp. 18, art. 4, nº 57.
  4. 4. S. T. IIa. IIae, q. 9, a. 4.
  5. 5. Vie de saint Dominique, pelo Pe. Lacordaire.

4. O Dom do Conselho

  Santo Antonino 

 

A vida é luta para a prudência humana. Opõem-se os interesses dos homens: o bem deste é muitas vezes o mal daquele; e isto com mais clareza se percebe nos assuntos humanos, em que se descortinam mil obstáculos, emboscadas ou artimanhas quer mais quer menos confessáveis que, no lugar dos nossos melhores projetos, escondem os contra-projetos inspirados pelos interesses alheios.

O diplomata, o administrador ou o homem que é tão-somente sensato e prudente na conduta dos assuntos pessoais, parece ter de consentir por vezes com o mal alheio, resignar-se com o pessimismo no que se refere aos homens e seus sofrimentos.

Bem diferente é a Prudência inspirada por Deus. O Espírito Santo assiste ao Conselho inefável da Santíssima Trindade onde, desde a eternidade, se deslindam os interesses da humanidade e do mundo — e o nome desse espírito é Amor. Aquele que Isaías chamou de Conselheiro por excelência, Consiliarius, iniciou a vida pública aplicando sobre si as palavras do mesmo profeta inspirado: “O Espírito do Senhor repousou sobre mim; pelo que me ungiu para evangelizar os pobres, me enviou a sarar os contritos de coração, a anunciar aos cativos a redenção“1

Santo Tomás também, a exemplo de Santo Agostinho, teve a ousadia de relacionar a bem-aventurança dos misericordiosos com o Dom de Conselho, e de assinalar como marca distintiva desses prudentes, cuja diplomacia o Espírito Santo regra em pessoa, a piedade pelos desafortunados2.

Santo Antonino nos aparece como a encarnação dessa prudência segundo o Espírito Santo. Afirma-o a Igreja, ao reconhecê-lo nestas palavras de Jó, que compõem a primeira lição do ofício de Matinas a ele dedicado: 

“Quando eu saía até à porta da cidade, e me sentava numa cadeira na praça pública! Viam-me os jovens e retiravam-se; os velhos, levantando-se, punham-se de pé. Os príncipes cessavam de falar, e punham a mão sobre a sua boca. Os grandes continham a sua voz, e a sua língua ficava pegada ao céu da boca. O ouvido que me escutava, chamava-me bem-aventurado, e os olhos que me viam, davam (bom) testemunho de mim, porque eu livrara o aflito suplicante, e o órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que estava a perecer vinha sobre mim, e eu consolava o coração da viúva. Revesti-me da justiça, e a equidade serviu-me como de vestido e de diadema. Fui o olho do cego, e o pé do coxo. Eu era o pai dos pobres”3.

Essa cena, narrada ao estilo próprio do Oriente, não exprime a aliança característica do Dom de Conselho, entre a Prudência que se impõe por si mesma aos ouvintes e a Misericórdia que arrebata bênçãos espontâneas?

Mas, acompanhemos de perto duas manifestações do mesmo Espírito na vida do nosso santo.

Ele nunca foi tão prudente, sensato e diplomático quanto no dia em que, ainda adolescente, bateu à porta do convento de Fiesole. Com uma dessas visões límpidas e serenas que a idade madura deixou de conhecer, aquele menino julgou o mundo e reconheceu a vaidade das seduções que o rodeavam na Cidade das Flores. Ele quer a Deus, e só a Deus. Como o mercador que, tendo encontrado uma pérola de grande preço, vai, vende tudo o que tem, e a compra 4, nosso precoce negociante está decidido a dar tudo para ser frade. O prior do convento, julgando despedir o jovem frágil e raquítico que tão inapropriado lhe parecera para o peso das observâncias da Ordem, disse-lhe: “Quando souberes de cor este grosso volume, nós te receberemos”. O volume a que aludia era o Decreto de Graciano, Código fundamental do Direito eclesiástico. Nada de mais desencorajador para a jovem inteligência do postulante. Contudo, a oferta entrou de imediato nos seus santos cálculos e, um ano mais tarde, retornou com o Decreto pedindo para ser sabatinado. Sua memória revelou-se infalível e foi admitido. 

Seu talento de doutor remonta, talvez, a esse primeiro esforço intelectual. “Antes de tudo é um moralista”, diz seu biógrafo 5. “Se, na Suma Teológica, ocupa-se de dogma, é para tirar daí os princípios da moral. Em quatro quadros sucessivos, que formam as quatro partes essenciais da sua obra, mostra em primeiro lugar a alma humana em sua nobreza primitiva, em seu destino imortal, com seus dons e potências. Na segunda parte, pinta em pinceladas cintilantes a sombra do pecado: suas causas, desordens e vergonha. Continuando o plano, apresenta o pecado em todas as suas ramificações, exibindo a feiura do vício em todas as circunstâncias possíveis ao homem, demarcando com mão segura a linha do dever para cada um, em relação a Deus, a si mesmo e aos demais; e termina indicando o único caminho capaz de reconduzir a alma extraviada e decaída à primitiva nobreza: a graça de Deus, os dons do Espírito Santo e a devoção à Santíssima Virgem”.

“Mesmo nas Crônicas, que são um dos primeiros ensaios de história universal, Santo Antonino ainda é um moralista; a idéia que lhe interessa na história dos povos, o que vê e assinala, é a ação soberana, diretora e benfazeja da Providência divina”.

Essa orientação prática do seu espírito o destinava naturalmente aos cargos administrativos. Como prior do convento de São Marcos, apôs em seu governo o selo da prudência superior. Provido de um conhecimento cabal da realidade, sempre considerava o fim sobrenatural como a realidade suprema. Eis um exemplo entre mil. Seu primeiro ato administrativo foi a reconstrução do convento. “Cosme de Médici foi o tesoureiro, Santo Antonino foi o arquiteto. Acostumado ao esplendor dos seus palácios, rico e dadivoso, Cosme queria construir um mosteiro amplo e confortável para o amigo santo. O Prior foi intransigente. Ele desenhou o projeto, deu as medidas e supervisionou a construção para evitar qualquer surpresa do seu tesoureiro” 6. O resultado foi esse claustro tão religioso de São Marcos, onde a elegância e simplicidade da fachada rivalizam com a doce harmonia dos espaços conventuais — jamais se insistirá o bastante na importância destes aspectos. Se as celas são demasiado estreitas, como dizem com justiça, não esqueçamos que, por ordem do santo, cada uma delas foi enriquecida com um fresco do Beato Angélico, que é como uma abertura luminosa para os horizontes infinitos do céu. 

Apressemo-nos. Santo Antonino tornou-se arcebispo de Florença. E agora, o que deveríamos louvar mais: a moderação habitual do seu governo ou a valentia dos seus verdadeiros golpes de Estado? Amigo dos Médici, soube proteger deles, republicano retíssimo que era, não apenas os direitos da Constituição e do povo, mas os da Igreja. Já antes, à sua célula do convento de São Marcos, Cosme vinha à noite tratar dos assuntos da República. Desde então, nomearam-no para missões oficiais, que cumpre com destreza. “A santidade não lhe tolhia a habilidade nesses assuntos, de modo que seus companheiros escreviam à Signoria que seu embaixador operava maravilhas, e conquistava a estima e a simpatia de todos” 7. Por essa razão a posteridade o reconheceu pelo nome de Antonino o Conselheiro, Antoninus Consiliorum. 

Nas diversas fases da vida, como postulante, professor, prior de São Marcos, arcebispo de Florença, conselheiro dos Médici ou embaixador da República, Santo Antonino nunca decepcionou: sua índole prática se desenvolvia e crescia com coerência e unidade impecáveis. Não é esse o estilo da atividade de uma alma aconselhada pelos Conselhos inefáveis do Altíssimo? Motio mentis consiliatae ab alio consiliante, ensina Santo Tomás 8. Deus move cada ser conforme a sua natureza própria: move o corpo no espaço e o anjo no tempo; por que não agiria também de acordo com o temperamento dos prudentes deste mundo que se confiam à sua direção? 9 É de admirar-se que a atividade dos santos, mesmo tomando de empréstimo as formas da prudência humana, mostre-se superior à diplomacia incerta dos homens, com toda a superioridade própria dos conselhos de Deus? Eis o segredo de Santo Antonino: em seu coração residia o Espírito Santo, era a Ele que consultava, de forma que poderia responder aos prudentes deste mundo como respondeu outra heroína, também inspirada do mesmo modo, ainda que tivesse uma vocação bem diferente: “Vós estivestes com vosso conselho, eu estive com o meu” 10.

Porém, o que Santo Antonino adquiriu do conselho de Deus foi sobretudo a misericórdia pelos desafortunados. De onde vem isso?

Dai-me um homem de prudência verdadeira, e não dessa prudência mesquinha que tropeça nos nadas da vida. Vá esse prudente de grande envergadura até ao fundo de si mesmo, e não tardará a perceber que há uma multidão de coisas que o ultrapassam. Cogitationes hominum timidae et incertae providentiae nostrae. Quando a prudência é sobrenatural e tem a pretensão de desarmar, por uma santa política, os ardis, as emboscadas e a incessante diplomacia do mal, que busca nos deter no caminho da eterna Beatitude, isso é ainda mais verdadeiro.

Em face de adversário tão poderoso, tão persistente e sutil, não serve de nada possuir um talento extraordinário ou mesmo genial. Para esquivar-se de tantos males, para assegurarmos a nós mesmos e àqueles que estão sob nossa responsabilidade o benefício de um caminho seguro rumo ao fim supremo, o homem não se basta: decididamente precisa de Deus 11.

Mas, como associar Deus a nossos planos? A mesma alta prudência que nos convence da necessidade de sujeitar-nos aos conselhos de Deus para que nos governemos de modo sobrenatural indica-nos o caminho. Se quiserdes ser perdoados, ensinou Jesus, perdoai; se quiserdes ser ajudados por Deus, ajudai vossos irmãos miseráveis. 

Essa bela doutrina, exposta por Santo Agostinho, opera a transição do dom do Conselho à bem-aventurança da misericórdia. Sem dúvida, a obrigação de ser misericordioso é, no fundo, um dever de caridade. Mas, de outro ponto de vista, que é o da prudência consumada, porque divina, aparece como que ditada pela preocupação elevada, pura, esclarecida, do nosso próprio interesses. Et ideo specialiter dono Consilii respondet beatitudo Misericordiae non sicut elicienti, sed sicut dirigenti 12

Em Deus não há oposição entre a inteligência e o coração. Amar os miseráveis é a inspiração de um coração movido pela caridade, mas também é a política mais acertada, pois a bem-aventurança dos misericordiosos consiste, como ensina Nosso Senhor, em alcançar a misericórdia. “Grande é a sabedoria", exclama Santo Agostinho, "daquele que, desejando ser ajudado por Deus, começa por ajudar os mais necessitados” 13

Que diferença entre o pessimismo insensível da política e essa prudência que se traduz, sem perder o seu caráter, no sentimento mais generoso, mais cordial! Que distância entre a benevolência indulgente e mole de um velho diplomata e essa compaixão ativa, inspirada pelo Conselho do Altíssimo! Eis a distância que vai do homem a Deus. Eis a diferença entre os Médici e Antonino!

Perto da Signoria de fortalezas intimidantes, onde apenas os grandes deste mundo penetravam, o Senado, o Salão dos quinhentos – ergue-se o Palácio do Arcebispo, desprovido de luxo por ordem sua, e de portas abertas para todos os desafortunados. Um bispo, vestido de roupas grosseiras como as dos pobres, acolhia-os. Havia sobre seu leito “uma colcha tão estreita, tão miserável, que um cavaleiro sentiu pena e comprou-lhe outra mais grossa e bonita” 14. Ele a vendeu em proveito dos seus pobres. Tornaram a comprá-la e a oferecê-la ao santo, mas ele a vendeu, e assim até a terceira vez. “Por vezes, mais de um personagem poderoso teve de aguardar até que o santo homem terminasse de consolar simples mendigos” 15. Graças a essa facilidade de acesso, um homem, cujos excesso ele repreendera, tentou assassiná-lo em sua habitação. O punhal felizmente ficou cravado no respaldo do assento 16. Tudo o que tem dá aos pobres, e sua caridade, a frente do seu tempo, inspira a fundação de uma obra para o socorro dos indigentes 17. In miseros misericors, plus quam mitis in humiles: compaixão e mansidão são os dois aspectos que resumem o santo arcebispo nas relações com os miseráveis, e resultam de sua inteligência prática, espiritual e diplomática. 

Ele nos é um exemplo precioso. Todos temos um governo exterior em miniatura a administrar, que são no mínimo as nossas relações com as pessoas que nos rodeiam, o cuidado de certos interesses, a direção de certas pessoas: o entendimento prático desempenha necessariamente um papel em nossas vidas. Se quisermos ser práticos até o fim, é preciso sê-lo de modo sobrenatural. Por isso, à imitação de Santo Antonino, devemos nos esforçar para conseguir a ajuda de Deus, perdoando os nossos irmãos que gemem como nós num infortúnio comum, e lhes oferecendo a mão quando possível18.  

Se fizermos isso, Deus nos inspirará o seu conselho, pois se obriga a ajudar quem socorre os desamparados. Nossa vida se desenrolará acima das preocupações mesquinhas, acima dos sentimentos pouco cristãos que o curso da vida quotidiana, ou o choque fatal das personalidades, ou a oposição de interesses e juízos (por vezes refletidos e sobrenaturais) engendram em nós. Pairaremos sobre isso. Os anjos, diz Santo Tomás, consultam a Deus incessantemente. Sua vida se resume nesse simples olhar para a vontade divina sempre que vão agir, e mesmo durante a ação19. Nossa vida também pode ser assim. Santo Antonino nos ensina com seu exemplo que também podemos dar à nossa vida a unidade, a prudência, a sabedoria das avaliações sobrenaturais, desde que não separemos os dois atos do Dom de Conselho, e que, aceitando para nossa utilidade a condução de Deus, cumpramos a condição que ela nos sugere: uma compaixão sincera, sobrenatural e efetiva para com nossos companheiros de desterro, condenados aos mesmos trabalhos e misérias que nós durante esta grande viagem rumo à eternidade.

(Tradução: Permanência)

  1. 1. Lc 4, 18.
  2. 2. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4.
  3. 3. Jo 29, 7-16.
  4. 4. Mt 13, 45.
  5. 5. Saint Antonin, pelo R. P. Mortier, p. 27.
  6. 6. Ibid, p. 8.
  7. 7. Ibid, p. 21.
  8. 8. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 1.
  9. 9. Ibid.
  10. 10. Essa é a resposta de Santa Joana D’Arc aos chefes militares do reino que, por prudência demasiado humana, apresentavam argumentos para protelar a invasão de Turelles. [N. do T.]
  11. 11. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 1.
  12. 12. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4
  13. 13. De Sermon. Dom., livro 1.
  14. 14. Saint Antonin, p. 16.
  15. 15. Ibid, p. 18.
  16. 16. Ibid., p. 19.
  17. 17. Ibid., p. 27.
  18. 18. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4, ad 1.
  19. 19. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 3.

3. O Dom da Piedade

Santa Inês de Montepulciano São Pio V São Raimundo de Penaforte

 

Um dos traços mais característicos do catolicismo é a piedade filial por Deus. Sem adentrar na questão – mais de sutileza que de relevância – de saber se ela é a essência do catolicismo, devemos reconhecer que o culto da Paternidade divina se sobressai em nossa religião de modo incomparável. O paganismo e a filosofia honraram o Criador, o Juiz, a Providência; nós, porém, adoramos o Pai consubstancial de Nosso Senhor Jesus Cristo, que também é nosso Pai por adoção, e lhe dizemos em toda verdade: Pai Nosso que estais no céu.

Se é verdade que não se fala o nome de Jesus senão pela virtude do Espírito Santo, como disse o Apóstolo, por uma razão ainda mais forte o nome de nosso Pai celestial também só se fala por essa virtude. O Espírito Santo conduz toda nossa atividade sobrenatural, e não poderia ser diferente: Como produziríamos atos reservados a Deus, como o amor eficaz a Deus, por exemplo, se Deus não fosse, por suas inspirações e  moções, o princípio interno de nossas vidas?

"Ora, entre estas moções", ensina Santo Tomás, “há uma que desperta em nós um afeto filial para com Deus, conforme as palavras do Apóstolo: 'Recebestes o espírito de adoção de filhos segundo o qual dizemos: Abba, isto é, Pai'. À piedade pertencem propriamente a reverência e o culto aos pais. Assim, quando, por inspiração do Espírito Santo, prestamos culto e reverência a Deus como a nosso Pai, agimos sob a influência do Dom de Piedade ”1.

Todos os santos da Ordem dos Pregadores possuíram o espírito de filhos adotivos, todos agiram sob o influxo dulcíssimo do Dom de Piedade. Quando destacamos dos dípticos da nossa Ordem os nomes de Santa Inês de Montepulciano, São Pio V e São Raimundo, não tivemos intenção de excluir ninguém, mas os escolhemos porque esses santos nos parecem manifestar alguns aspectos originais do espírito de piedade filial. 

Santo Tomás, com efeito, nos ensina que a operação do Dom de Piedade não é uniforme. Em uma família, o amor dos filhos deve dirigir-se por primeiro ao pai, unidade e fundamento da sociedade doméstica; mas, por um movimento natural e como que contínuo, esse amor transborda sobre a mãe e dela, em seguida, irradia sobre todos os que têm alguma relação, próxima ou longínqua, com a família. O amor do pai, o amor da mãe e o amor da família são as manifestações típicas do amor filial. 

Ora, se Deus é o Pai da família cristã, se Maria é a Mãe, e a Igreja católica a eclosão total dessa família, parece-nos que os nomes de Inês, Pio e Raimundo simbolizam respectivamente esses três aspectos da piedade filial católica.

*

Quando se é pequenino, o papel de filho calha muitíssimo bem. Ora, a bem-aventurada Inês foi, antes de tudo, uma terna e pequenina filha do Pai celestial. Entrou em religião com nove anos de idade! Mas não o fez movida por capricho, sensibilidade ou imaginação, e sim obedecendo a uma inclinação profunda e sobrenatural que nunca desfaleceria e haveria de crescer sempre no mesmo sentido, o que é sinal evidente da intervenção do Espírito de Deus. Não foi esse mesmo Espírito que, aos treze anos de idade, inspirou a padroeira da nossa santa Inês, a homônima virgem e mártir romana, de quem dizia enternecido o grave Santo Ambrósio: “Ela é miúda demais para receber o golpe da espada, mas já consegue vencer a morte”? Vida religiosa ou martírio, não é a mesma coisa para o Espírito que sopra onde quer? De fato, desde o momento em que pisou o claustro, sua morte para o mundo é absoluta, sua oração contínua, sua piedade pelo Pai que está no céu é toda feita de confiança e ternura. 

Coisa admirável: essa criança é madura e piedosa. As faculdades práticas, mesmo as de governo, não lhe faltam. Assim como algumas crianças, criadas de perto na escola dos  pais, manifestam desde cedo a seriedade que antes convém à idade madura, assim essa pequena serva do Rei Eterno já era prudente. Aos quatorze anos, as religiosas já a consideram sua pequena madre. Confiam-lhe a administração do monastério, e sua gestão se assinala pelo sábio entendimento de todas as coisas. Com quinze anos, ei-la abadessa de um convento vizinho! Até o final da vida será sempre superiora, como se o Senhor e Mestre de todas as coisas quisesse revestir com a semelhança da sua Paternidade essa piedosa criança cuja ambição única era viver sob sua dependência filial.

Nosso Senhor Jesus Cristo é o modelo absoluto de piedade filial para com o Pai. Como a união produz a semelhança, a união íntima com Jesus Cristo sempre redundará num sentimento mais profundo de respeito e de amor ao Pai Eterno. Quem mais do que Santa Inês, contudo, viveu em união profunda e quase familiar com Jesus? Para uma língua humana é difícil expressar-se sem trair a delicadeza e a elevação de suas visões sobrenaturais. A Santa Igreja, que para isso tem graça e missão especial, não hesitou em transformar num epitalâmio o ofício consagrado à memória de Santa Inês: 

Magnae dies laetitiae,

Venerunt Agni nuptiae

Et Agnes Agnum sequitur

Sponsoque sponsa jungitur.

Alvoreceu o dia do gozo

Chegaram as bodas do esposo

E Inês ao Cordeiro seguiu

E a esposa ao Esposo se uniu

Evoquem os sentimentos de piedade filial do Filho de Deus, recordem a incomparável oração ao Pai conservada por São João (c.17), mas não receiem pôr no lábios da esposa de Cristo aqueles sentimentos piedosos e expressivos, sempre guardadas as devidas proporções.

Santo Tomás que, conforme o hábito seu, vê cada um dos Dons do Espírito Santo se desabrochar numa das Bem-aventuranças evangélicas, hesita, para o dom de piedade, entre a Bem-aventurança dos que tem fome de justiça e a dos mansos 2, e termina deixando aos diferentes tipos de santos a decisão da escolha. Não há dúvida no que toca a Santa Inês de Montepulciano. A mansidão lhe preside os atos de piedade para com o Pai celestial, para com as irmãs que governa, os pobres que serve, os viajantes que hospeda, os pecadores que converte. Deus reconheceu a mansidão da serva cercando-lhe a morte com fenômenos significativos. “Um perfume dulcíssimo” se espalhou ao redor. “Mesmo os panos embebidos dos suores da agonia exalavam um odor de incenso que enchia por completo a cela”. Odor de incenso, perfume dulcíssimo — piedade, doçura — Santa Inês está inteira aí. 

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Já o dom de piedade em São Pio V se fundamenta, bem em contrário, na fome e na sede de justiça. Guerra e culto são os aspectos marcantes da sua atividade. O espírito guerreiro que o inflama advém da piedade, pois a guerra que declara é a guerra santa, guerra contra o infiel de fora que ameaça a tudo invadir, e guerra contra o infiel de dentro que ameaça a tudo corromper. O zelo do culto é fruto de uma piedade profunda, que se manifesta ao empreender a reforma da grande liturgia da Igreja, e acima de tudo a reforma na devoção piedosa por excelência, cujos Ave multiplicados entrelaçam o nome da Mãe da grande família católica, a Virgem Maria, ao nome do Pai que está no céu:  essa devoção é o Santo Rosário.

O ofício que a Igreja lhe consagra está repleto dessa aliança entre a justiça que sabe recorrer a guerra e a piedade que vive da oração. O capítulo das Vésperas é como que o seu programa: “Deus cobre-te do manto da justiça de Deus e põe sobre a tua cabeça o diadema da glória do Eterno. Deus mostrará o teu resplendor a todos os que estão debaixo do céu. O nome, que Deus te imporá para sempre, será: Paz da justiça e glória da piedade” 3

Em Matinas, apresentam-se figuras religiosas e guerreiras do Antigo Testamento: Moisés sobre a montanha, estendendo os braços acima dos amalequitas subjugados, é uma forte imagem do Santo Pontífice rezando, durante a batalha de Lepanto, com as confrarias do Rosário; São Miguel derrubando o dragão é uma imagem do angélico pontífice que se impõe o nome de Pio para combater os ímpios. Ouve-se como que o entrechoque e o estrépito da batalha em meio a esses louvores varonis: o ardor da sua fé é o ardor do guerreiro, sua esperança é forte como armadura, sua caridade não teme a multidão dos seus adversários.

Em Laudes a piedade do nome que escolheu se relaciona com o seu governo prudente e reparador, sua justiça em reprimir os vícios, a constância, a continência, a abstinência, a temperança, todas as virtudes, enfim, pelas quais ele conquistava sobre si mesmo as mais belas vitórias. Ele é o Príncipe dos seus irmãos, o sustentáculo do rebanho, a força do povo, diz o capítulo de Sexta; o capítulo de Noa, respondendo a essa voz como um eco, confia o segredo do seu poder: "ele louvou o Senhor de todo o coração e amou a Deus, seu Criador".

E a oração da festa, resumindo e entrelaçando na súplica os dois aspectos deste santo incomparável, exprime-se assim: "Ó Deus que, para destruir os inimigos da vossa Igreja e restaurar o culto divino, dignastes escolher o bem-aventurado Pio como pontífice soberano, fazei que sejamos defendidos pela sua proteção e associados ao vosso serviço, de sorte que, após termos vencido os nossos inimigos, gozemos da paz perpétua. Amém". 

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O dom de Piedade não poderia se manifestar do mesmo modo na menina santa de Montepulciano e no papa guerreiro do Rosário: “Uma estrela difere de outra pelo seu fulgor”. Por sua vez, o ancião centenário que viu a mocidade religiosa começar na altura dos cinquenta anos de idade, o sábio consagrado aos estudos solitários que, ao assumir o governo de sua Ordem em certo momento, renunciou o quanto antes o comando, não seria capaz da piedade de um rude soldado de Cristo ou de uma pequena religiosa. O que caracteriza São Raimundo é o culto da família católica, considerada já não a partir do  divino Chefe ou da bendita Mãe, mas em si mesma, em suas gloriosas lembranças e tradições. 

Quem já não se deparou com um desses sábios encanecidos pela idade que empregam todas as forças a procurar, a descobrir, a classificar, a publicar os documentos que narram a vida e as glórias da pátria, da cidade, da terra, da família religiosa ou terrestre? Esse culto dedicado aos documentos da família não pertence, à sua maneira, à piedade?

“Quem venera as Sagradas Escrituras, diz Santo Agostinho, pesquisa com piedade e não rejeita o que ainda não compreende” 4. São Raimundo foi piedoso assim. Inspirado por Deus, sob a direção do Papa Gregório IX, empreendeu durante a metade da vida a coleção das Decretais, ou seja, de todos os textos, todos os atos, todas as lembranças, todas as datas memoráveis desta grande família que é a Igreja católica. Os cinco livros das Decretais são ainda hoje, junto ao Decreto de Graciano que elas completam, a base da legislação da Igreja. Desses livros é que vive, em grande parte, a ordem eclesiástica, a harmonia social da qual nós, católicos do tempo presente, nos beneficiamos sem imaginar quanto trabalho foi preciso para nos assegurarmos dela. 

Nosso velho irmão São Raimundo ergue-se por entre os séculos, conservando o passado e assegurando o futuro, inspirado que foi por um profundo espírito de piedade pela família cujo Pai é Deus e cuja Mãe é Maria.

Quidquid est alta pietate mirum

Exhibet purus, niveumque morem,

……………………………………

Sparsa summorum monimenta Patrum

Colligit mira studiosus arte

Quaeque sunt prisci sacra digna cedro

Dogmata juris

Alta e admirável piedade 

Exibe o justo, e a castidade

………………………………………..

Os monumentos dos Santos Padres

As tradições da fé cristã

As regras do Direito antigo e santo

Com arte recolheu

 

Santo Tomás, fecundíssimo nos desdobramentos do Dom de Piedade, descobre uma terceira analogia com as bem-aventuranças evangélicas. Depois de já ter associado a ele a bem-aventurança dos mansos e a dos que tem fome e sede de justiça, atribui-lhe agora a dos misericordiosos 5. Eis o aspecto sob o qual nos aparece São Raimundo. Por que teria ele passado a maior parte da vida no estudo árido do Direito senão para que merecesse tornar-se, no encargo de Penitenciário-Mor, o órgão supremo das misericórdias divinas na Igreja? A sincera piedade que o inspira não o tornou menos sequioso da salvação do último dos filhos da grande família católica do que dos interesses do seu governo. Sob esse aspecto, como não reconhecer mais uma vez um dom excelente do Espírito de Deus?

(Tradução: Permanência - Revista Permanência 291)

  1. 1. S.T. IIa IIae, q. 121, a. 1.
  2. 2. S. T., IIa. IIae. q. 121, a. 2.
  3. 3. Br 5, 2-3.
  4. 4. Sermo in monte, 1. Essas palavras pertencem ao capítulo em que Santo Agostinho relaciona as Bem-aventuranças aos Dons.
  5. 5. S. T. IIa. IIae, q. 121, a. 2.

2. O Dom da Força

Santa Catarina de Ricci São João de Colônia São Pedro mártir

 

“Quem achará uma mulher forte?” Em vão procuro a resposta no livro dos Provérbios, onde se lê essa interrogação. Vejo, é verdade, uma descrição ideal desse tipo de virtude, mas, feita a descrição, o santo livro se abrevia e termina como que de repente. Seria então uma ironia, ou uma dessas questões que nunca se resolvem, que os antigos designavam com o nome de problemas, e em nossa linguagem chamamos de enigmas?

Não se trata de enigma. Ou, por outra, se o for, o Espírito de Deus o resolve dia após dia. À fraqueza de Eva opõe a força da Mãe das Dores; em face da história lamentável das inconstâncias das mulheres que não se apoiam em Deus, exibe a epopéia das santas que encontraram, na inspiração do Espírito de força, a coragem indomável dos heróis. É o caso de Santa Catarina de Ricci. 

As principais manifestações da força são duas: resistir e atacar. É raro que essas características se encontrem completamente isoladas. Contudo, em geral, uma delas predomina. E como temos de optar entre ambas, diremos que o temperamento da nossa santa é sobretudo de ataque. O Espírito de Deus lhe inspira a ciência, a arte e a coragem de agir impetuosamente a seu serviço.

Ainda criança, ela quer ser dominicana. É preciso, o quanto antes, fazer com que toda a gente vá falar com seu pai, personagem ilustre de Florença, para obter o consentimento: irmãs dominicanas de passagem pela cidade, o seu tio, o Padre Ricci e a superiora do convento do Prato, muito próxima das principais famílias e influente em Florença. Essa última consegue que a menina vá passar dez dias em seu mosteiro. Naturalmente, ao cabo de dez dias, Catarina recusa partir com o irmão, que veio buscá-la. O pai vem em seguida, mas ela não quer acompanhá-lo. É necessário que a abadessa intervenha com  autoridade: a menina enfim parte, mas à condição de poder retornar. O pai não se apressa em cumprir a palavra. Daí então lhe veio em auxílio um recurso supremo e sobrenatural: ela cai doente, ficando entre a vida e a morte. O pai se aflige. Certo dia, ele chorava ao pé dela, segurando-lhe as mãos caídas: “Meu pai", diz a menina, "Nosso Senhor me quer por esposa: Ele me disse. Deixe-me partir e me curarei, o senhor verá”. O pai prometeu e, subitamente, Catarina recobrou as forças. Desta vez ela alcançou seus objetivos, o pai a deixou partir. Ela quis ser dominicana, e foi.

Uma vez dominicana, queria ser perfeita “até o pescoço”. “As religiosas estavam orgulhosas de ter uma pequena santa na sua companhia; apenas queriam que essa santinha de onze anos fosse como elas, prudente, amável, obediente, regular, acompanhando-as passo a passo na rotina comum” 1. Não era essa a vontade do Espírito nem o desejo da sua fiel servidora. A íntima comunicação com as coisas do céu a apartava, subtraía-a do cumprimento dos tranquilos deveres. Fenômenos extraordinários se multiplicavam. A comunidade, confusa, encheu-se de desconfianças contra essas coisas extraordinárias. Seu confessor chegou até a lhe ordenar que cuspisse nas visões. Ela o fez heroicamente mas as visões, em vez de desaparecerem, aprovaram o  procedimento. — A troca de coração com Nosso Senhor, os santos estigmas e outras manifestações sobrenaturais foram a recompensa da obediência e o sinal inequívoco da inspiração divina. Como era escrava da regra, e possuía uma nobre e franca familiaridade com todas as irmãs, acabou por obter a ratificação do seu gênero de vida: sua perseverança, coragem e energia sobrenatural, que nunca desfaleciam, lograram uma vitória completa. Ela quis ser uma dominicana perfeita, e conseguiu.

Isso não era o bastante. Uma vez perfeita, quis que suas irmãs também o fossem. “Agora o seu valor era conhecido e celebrado. Nomeada subprioresa, superou todas as expectativas, a tal ponto que, na primeira vacância, foi por unanimidade eleita prioresa. Ela então mostrou toda sua capacidade… Mulher de inteligência e coração, governou num espírito de justiça incorruptível. Exemplo vivo de austeridade e observância vigilante da regra, não deixava nenhuma falta passar impune… Não tolerava que as religiosas ocupassem o espírito com frivolidades ou afeições mundanas” 2. Contudo, a firmeza era temperada pela mansidão, como convém a um dom recebido do céu. A natureza é violenta; porém, a verdadeira força é dona de si mesma e sabe se conter. “Seu modo de mandar era tão maternal que todas tinham grande gosto de obedecê-la”. Compreende-se que, sob direção tão sublime, o Convento do Prato tenha se tornado um modelo de vida religiosa. Catarina quisera que suas irmãs fossem perfeitas, e elas o foram.

Mas isso não era o bastante para o seu coração ardente. Queria agora que a perfeição e a santidade do Convento do Prato irradiasse pela sua Ordem, e por esta Florença tão amada, da qual era o anjo protetor. Como Santa Catarina de Sena, teve discípulos. “Sua Ordem lhe forneceu os primeiros. Provinciais e priores chamavam-na de Mãe; religiosos de grande valor estimavam muito corresponder-se com ela e lhe seguir os conselhos. A sua família inteira estava nas suas mãos… Na aristocracia florentina, contava com grande número de discípulos, almas elevadas, capazes das mais heróicas virtudes cívicas e católicas… A maior parte levava no mundo uma vida que, no mosteiro, não seria deslustre”. — “Outras almas, ainda mais perfeitas, buscavam sua amizade. Basta citar Santa Maria Madalena de Pazzi, São Filipe Néri, São Carlos Borromeu, São Pio V e Savonarola. Ela se manteve fiel a esse último, e o convento do Prato se tornou o guardião da memória desse homem extraordinário. Com sua correspondência vastíssima, com as visitas numerosas que recebia, com a edificação que todos relatavam em suas relações com Prato, apôs o selo final à obra da sua vida. Ela quis que o Convento do Prato fosse um foco de vida perfeita, e foi.  

Assim se desenrolou, em meio a grandes obstáculos, a forte unidade desta vida. O Espírito de Deus lhe ensinou a querer fortemente o que Ele mesmo queria, e ela quis sem fraquejar. Dominicana, perfeita, imã de virtude e centro de apostolado, eis as etapas do seu ataque. Ela permanece como um exemplo deste primeiro aspecto do Dom da Força. 

*

Da Itália, país dos condottieri heróicos, passamos a Holanda, país da coragem sofrida. Terra de gente acostumada a refrear vagarosamente, por meio de diques, as invasões do mar; pais desses heróis que, ainda há pouco, esperavam com calma o inimigo nas trincheiras e, sem tremer, alcançavam vitórias incomparáveis apenas por não recuar. A Holanda é o país da força, mas não da força de ataque, mas da força que sofre sem fraquejar. O Espírito divino, habitando nas almas pela caridade, tempera muitas vezes sua ação segundo nossas disposições naturais. E como a caridade sabe sofrer, charitas patiens est, encontramo-nos na Holanda junto a uma raça de santos de caridade forte e paciente.

Fazia vinte anos que São João de Gorcum era pároco de Hoornaar. Toda a Holanda fora devastada pela seita dos Mendigos do mar, e a religião católica, proscrita em boa parte do território. Na paróquia de Gorcum, os calvinistas aprisionaram um grande número de padres e religiosos, que, encarcerados na cidadela, foram submetidos às mais ignóbeis vexações. João de Gorcum continuava no meio dos seus paroquianos, vestido como leigo para poder continuar o ministério. Chega a penetrar a prisão para levar aos irmãos prisioneiros a Sagrada Eucaristia. Assume os cuidados da extensa paróquia devastada, porém é traído por suas idas e vindas. Feito prisioneiro, é trancado com os futuros companheiros de martírio.

As torturas inventadas pelos verdugos são inimagináveis. Despojados dos hábitos religiosos, semi-nus, transportaram-nos a Brielle, uma travessia mortal de vinte horas. São recebidos em Dordrecht pela populaça que os cobre de imundices e xingamentos. E como se fossem animais ferozes, o povo paga a fim de vê-los no barco. Em Brielle, obrigam-nos a rodear a mesa de um festim onde os verdugos celebram com uma orgia a triste vitória. No dia seguinte, ordenam que se arrastem de joelhos até o lugar do suplício e que dêem três voltas no patíbulo. Julgando que é chegada a hora derradeira, rezam o Salve Regina, mas tudo aquilo não passa de farsa. São conduzidos, em meio a uma turba histérica, à praça do mercado onde ergue-se um outro patíbulo. Cantam o Te Deum. Nova paródia: terminarão esse dia na prisão. 

No dia 7 de julho os levaram ao tribunal do governador. São intimados a abjurar da presença real de Jesus na Eucaristia e do primado da Santa Sé. Três sucumbem, os demais resistem. No dia seguinte, um dos apóstatas, que era noviço franciscano, veio retomar o seu lugar no sagrado cortejo. 

Era o dia 9 de julho de 1572. Entre as ruínas e escombros de um convento agostiniano saqueado, descobria-se um velho celeiro cujo teto, em parte desmoronado, era suportado por umas vigas. Os confessores da fé foram alinhados desnudos à frente dessas vigas. Os esbirros levaram primeiro o franciscano, Nicolás Pieck, passaram-lhe uma corda no pescoço e o içaram alto na viga. Enquanto o mártir sofria e se debatia, os hereges fizeram um último esforço sobre os demais, para que apostatassem. João toma a palavra e, em nome de todos os companheiros, proclama a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia e o Primado do papa. Dois deles, contudo, fraquejam e terminam por sucumbir. Os demais cerram fileira e aguardam no posto de combate. Com a corda no pescoço, um a um são içados nas vigas do teto, como bandeiras de extermínio. São João de Gorcum é um dos últimos, mas sua coragem não desfalece, e é finalmente executado. Dezenove cadáveres pendiam enforcados. A multidão se lança sobre eles e os mutila e os despedaça. Depois de colocarem os pedaços cruentos nas pontas de uns piques, partem num horrível cortejo e percorrem Brielle em todos os sentidos. Finalmente, na praça do mercado, empilham os pedaços e vendem-nos aos que pagam maior preço3.

Neste drama sinistro, tudo é resistência, tudo é imolação suportada, tudo é paciência indomável. Não há o ímpeto do ataque. A força se concentra num único ato: não ceder. À medida que a agressão cresce, o espírito de resistência cresce igualmente. Que espírito inspira a nossos mártires essa recusa enérgica, essa sublime denegação, essa passividade heróica, senão o Espírito de Força, mais admirável talvez na tolerância paciente, alheia a toda consolação humana, do que nos entusiasmos da atividade!… Que luz para essas almas privilegiadas que Deus chama ao sofrimento!

*

Pedro de Verona prostrava-se no chão do capítulo do convento de Bolonha. Deram ouvidos a uma voz acusadora e lhe atribuíram um fato desonroso. O prior o intima a justificar-se. De joelhos, ele se recusa, protestando simplesmente a sua inocência. Os testemunhos parecem convincentes, contudo, e o Irmão Pedro, expulso do convento de Bolonha, é relegado a Jesi, na região das Marcas. Ele parte desonrado. Por muito tempo seguirá assim, em penitência, suportando sem murmuração a provação divina. Finalmente, chega a hora da verdade: sua inocência é reconhecida e proclamada, e ele retorna ao convento com a cabeça cingida da aureola dos fortes que sabem sofrer com paciência e magnanimidade de coração. 

Agora, é hora do ataque. Irmão Pedro é inquisidor, ou seja, incumbido de desmascarar e perseguir a heresia. Ele age em meio aos maiores perigos, pois é um erro pensar que o perigo estava apenas do lado dos hereges. De resto, ele busca convencê-los sobretudo pela pregação. Sua bravura é tão grande, seus sucessos tão brilhantes, que se torna o alvo de todas as emboscadas. “Hei de morrer na mão dos heréticos”, dizia com freqüência, mas seguia a missão sem empalidecer. — Em 1252, conspiraram para assassiná-lo. Irmão Pedro é prevenido. Ele anuncia a seus irmãos de Como que seu fim está próximo e que seu martírio ocorrerá entre Como e Milão. 

Em seguida, após o último discurso de despedida, parte para Milão onde o dever o chama. No caminho, a emboscada está preparada. O santo canta com os companheiros as estrofes do Victimae paschali laudes. Ele caminha adiante, acompanhado apenas do Irmão Domingos. Numa mata espessa os assassinos se lançaram sobre ele. Um golpe de foice lhe rompe a cabeça. Ele diz: “Eu confio minha alma nas vossas mãos, Senhor”. Em seguida, recobrando um pouco as forças, escreveu com seu sangue estas palavras no chão: Credo in Deum. 

*

"Bem-aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça porque serão saciados". Esse é o cerne da alma dos nossos três santos: Santa Catarina tem fome e sede da justiça devida a Deus, ou seja, da santidade que faz os verdadeiros justos; São João tem fome e sede da justiça do cumprimento do dever, sendo fiel até a morte; São Pedro mártir, que sabe adorar a justiça de Deus quando ela fere um inocente, também sabe aceitar sem fraquejar os desígnios dessa mesma justiça quando fere o erro para salvar a inocência. 

Bravura no ataque e paciência no serviço de Deus, eis a marca dos nossos três santos. No presente momento — consumada a bem-aventurança — já estão saciados. Lá do céu, donde se exclui toda a injustiça, contemplam na fonte a Vontade divina condenando as injustiças da terra e aprovando toda reta intenção. 

Nós, que padecemos perseguições pela justiça e aborrecemos a iniquidade, ergamos os olhos e recobremos a coragem. A luta presente dura só um distante, há um dia seguinte para a perseguição e o martírio. O reino de Deus, reino de justiça onde nossos santos nos precederam, não está longe de nós. Bem-aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados.

(Tradução Permanência)

  1. 1. Sainte Catherine de Ricci, pelo R. P. Boitel. Desclée, 1897, p. 7.
  2. 2. Ibid, p. 17-18.
  3. 3. Todos estes detalhes foram tirados da Notícia sobre São João de Colônia e seus companheiros, pelo R. P. Mortier , Desclée, 1899.

1. O Dom do Temor de Deus

São Luis Bertrán São Vicente Ferrer Santa Rosa de Lima

 

A transfiguração das paixões humanas é uma honra do catolicismo.

Mas há alguma paixão mais difícil de reabilitar que o Medo? O amor e o ódio, a esperança e o desespero, o desejo e a detestação, a cólera, a audácia… todas essas paixões têm lá a sua grandeza. Mas o medo!… Quem ousaria tomar a palavra para defendê-lo? Quem, sobretudo, tentaria atribuir um papel a esse sentimento infame em todo código moral que se preze e diga respeito ao homem?

Eis aí, segundo parece, uma iniciativa vedada à filosofia humana, cujo receio único é não engrandecer-se o bastante. A esses puros moralistas, só lhes interessa uma doutrina completamente desinteressada. Ora essa! Confessar que o homem por vezes tem medo? Isso é vergonhoso! Escondamos rápido essa miséria e, a fim de não macularmos o belo quadro de nossos puros preceitos, risquemos até mesmo o seu nome da moral.  

Coube ao Espírito divino reabilitar o medo. É verdade que o temor adotado pelo Espírito nada tem em comum com o temor mundano, pois não se trata de medo de homens, mas do temor de Deus. "O princípio da sabedoria é o temor do Senhor", dizem as Escrituras. E o Santo Concílio de Trento, confirmando a longa tradição dos séculos católicos, declarou como bom e santo até mesmo o temor dos castigos divinos.

Santo Tomás não se contentou de introduzir o temor na moral natural, tornando-o matéria da virtude dos pacientes; tampouco julgou suficiente que o temor fosse considerado motivo legítimo da virtude da penitência; intérprete ousado das ousadias divinas, quis dar-lhe um lugar na Teologia, um lugar que lhe fosse adequado. Não podendo transformar o medo em virtude — porque, apesar de tudo, o medo guarda algo de irracional e como que impróprio à natureza humana — transformou-o num dom do Espírito Santo, ou seja, em algo de superior à razão, emanação direta da influência reguladora de Deus sobre o agir humano. Assim, é como dom do Espírito Santo que o temor ingressará triunfante na moral católica sobrenatural.

Como que para fazer eco a essa doutrina, alguns homens se levantaram e se atreveram a dizer que tem medo, que consideram o medo um instrumento de progresso moral e de santificação, que fazem do medo o pensamento inspirador de suas vidas; em suma, que possuem a religião do temor. Esses homens, contudo, são incapazes de tremer diante dos homens; o justo que a poesia antiga cantou, justum et tenacem propositi virum, não passa de uma criança ao lado desses varões, independentes até o heroísmo; de fato, com seu comportamento extraordinário, representam os tipos mais sublimes da moral humana, divinizada pela revelação de Deus. São os santos mais puros, poderosos e doces.

Eis aqui três deles, pertencentes à mesma família religiosa daquele Doutor Santo, doutor do Dom do Temor: São Luís Bertrán, São Vicente Ferrer e Santa Rosa de Lima.

*

Terá lido o décimo artigo da décima nona questão da Prima Secundae o artista tão piedoso que meditou as comoventes Matinas da festa de São Luis Bertrán? O hino se inicia com a ressonância intraduzível dos suspiros e sofrimentos que preenchiam as noites do santo:

Nocturna coeli lumina

Suspiriorum conscia

Quae Ludovicus aetheri 

Mittebat inter verbera…

Estrelas claras da noite escura 

que sabeis os lamentos 

Que entre golpes cruentos 

Emitia Luis na amargura

As antífonas, responsórios e lições começam a entoar uma estranha melodia em que se mesclam palavras como tribulação, disciplina, cilícios, jejuns, penitência, morte… Aqui e ali gritos desfiguram a salmodia, vibrantes, agudos: “Queimai agora, ó senhor, feri! Nada poupai agora para perdoardes tudo na eternidade!”. 

Já alcançara o temor expressão mais viva? Contudo, junto ao gemido de temor se desenrolava o canto do desafio e da intrepidez. “Ele não temia as tribos selvagens que o rodeavam; as pedras, lanças e flechas não o amedrontavam”. Nos lábios do Santo se puseram estas palavras do Apóstolo: “Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo”. Finalmente, os dois cantos, o temor de Deus e o desprezo do mundo, acabam por se unir numa única harmonia, o canto da Caridade: com ele, a mortificação se transfigura: “Dai-me, Senhor, a felicidade de morrer por vós, assim como vós morrestes por mim”. 

E as Matinas concluem num grito de triunfo, em que toda a rudeza das vagas impetuosas da penitência expiram nas margens encantadoras da glória: “Rompestes o meu cilício, ó Senhor, e me circundastes de alegria para que nos séculos dos séculos vos cante a minha ventura”.

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São Luís Bertrán representa o dom do temor à serviço da santificação pessoal. São Vicente Ferrer, por sua vez, figura o dom do temor atuante e, por assim dizer, apostólico. A esse pregador incomparável não lhe bastava possuir o temor de Deus: queria que toda a terra tremesse com ele.

Como é terrível! Sua palavra de fogo se consagra à produção do espanto; o rosto do Cristo vingador surgindo por entre as nuvens do céu é sua devoção preferida. Seu Evangelho é o do fim do mundo. Sua meditação percorreu por antecipação todos os castigos, e empalideceu diante de todas as justiças. Ele engendra o horror por força do seu próprio horror. Assim como o viajante que, navegando à noite pelas costas da Sicília, vê o cume dos montes avermelharem-se com o fogo sombrio que as entranhas ardentes do Etna expelem; do mesmo modo, o semblante desse homem, elevado por Deus à uma altura donde se descobrem os horizontes invisíveis da justiça divina, reflete antes do tempo as chamas vingadoras do inferno. Ele plana tão alto na cátedra onde prega, sua voz tem um acento tão penetrante e terrível, que hesitamos em acreditar que se trate de um homem. Sua voz é a trombeta que acorda os vivos e os mortos, é o próprio Anjo do juízo final.

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Porém, com São Luís Bertrán e São Vicente Ferrer, o dom do temor ainda não se revelou por inteiro. O temor mortificado do primeiro é a raiz da árvore, que abre a terra mediante um trabalho obscuro e fecundo; o temor ativo do segundo é o tronco de casca áspera por onde sobe a seiva vivificante; em Santa Rosa de Lima, o temor é a flor que espalha ao redor o perfume, e parece prestar uma homenagem discreta e suprema à beleza invisível do Criador.

Não pense, leitor, que encontrará em Santa Rosa de Lima algo que de longe se pareça com moleza ou preciosismo. Trata-se de uma santa rude, a nossa pequena religiosa. Sua mortificação mal se difere da dos seus terríveis irmãos.

Mas ela, sobre o caule robusto do temor expiatório, eleva em todo o resplendor a flor delicada e trêmula do temor filial, do temor que, segundo Santo Tomás, não receia nada mais do que não se submeter a Deus o bastante. Como a rosa desabrochada que uma aragem invisível agita sob a luz do sol, assim é Santa Rosa de Lima no jardim dos santos, diante do seu Senhor. 

E como a rosa parece resumir no seu perfume e nas suas cores vivas e inigualáveis os mais quentes e luminosos raios do sol, assim também essa Rosa mística vê nascer e desenvolver-se em seu coração, como que resumidos, toda a luz e o calor que o Espírito Santo infunde na alma dos justos: a pureza insaciável, a humildade em seu contínuo fluxo e refluxo de heroísmo e sofrimento, a oração sempre fervorosa, uma sede de perfeição ou do infinito — como queiram, pois aqui é o mesmo; as perpétuas elevações em busca da semelhança do Pai Celeste, o zelo de não perder de vista nenhum dos traços dessa imagem e a deliciosa inquietude de reproduzi-los, a busca delicada por todas as nuances do ideal sobrenatural; em suma, o temor filial de Deus, temor sem terror, temor tranquilo desde a raiz, porque se sabe obra do amor de Deus, porque a única coisa que a tormenta é não fazer o bastante por Deus, e permanecer para sempre, malgrado seus esforços, separada por uma distância imensurável da beleza do rosto de Deus, que vive e reina nos céus pelos séculos dos séculos.