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6. O Dom da Inteligência

 Santa Catarina de Sena 

No começo das visões de Santa Catarina, narra o Beato Raimundo de Cápua, Nosso Senhor apareceu enquanto ela rezava, e lhe disse: “Minha filha, sabes o que és e o que sou? Bendita serás se conheceres duas coisas: tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”.

Este episódio nos apresenta, segundo pensamos, a característica do dom que o Espírito Santo infundiu em nossa santa religiosa: o Dom da Inteligência.

Existem quatro dons intelectuais: Ciência, Sabedoria, Conselho e Inteligência. Os três primeiros aparecem em nós sob o aspecto de um verdadeiro trabalho do espírito humano, como é o raciocínio; o Dom de Inteligência, por sua vez, apresenta-se como uma simples intuição, como uma visão da alma que penetra as aparências; sob a letra ou sob os símbolos, revela o pensamento latente de todas as coisas 1.

Escreveu Bossuet: “A alma, prescindindo do raciocínio, serve-se de uma doce contemplação que a mantém pacífica, atenta e suscetível às operações e impressões divinas que o Espírito Santo lhe comunica; a alma faz pouco, mas recebe muito. Seu trabalho é suave e, no entanto, muito frutuoso”. Que trabalho é esse? — “Uma mirada simples, um olhar atento e amoroso para algum objeto divino”.

Eis a razão, sem dúvida, pela qual Deus quis escolher em nossa Ordem uma santa e não um santo para personificar de modo especialíssimo — ainda que de forma alguma exclusivo — o Dom de Inteligência. Aos homens, em que o vigor do raciocínio é a nota intelectual predominante, couberam os dons relacionados com a razão: o dom de Ciência em São Domingo, o de Sabedoria em Santo Tomás e o de Conselho em Santo Antonino. Coube a uma mulher, cuja natureza é mais intuitiva, espontânea e instintiva, o Dom em que mais se sobressaem o instinto e o sentimento: porque, se os silogismos se demonstram, “os princípios se sentem…”

É certo que a natureza não poderia por si só conhecer intuitivamente a Verdade de Deus, princípio dos princípios, que definiu a si próprio a Moisés: Eu sou o que sou 2. Porém, já que o Soberano Senhor se gloria em aperfeiçoar a natureza — sem dúvida para que melhor ressalte pelo contraste o brilho de seus dons gratuitos — que inconveniente haveria em que Ele se revelasse a uma santa, acomodando-se às condições de seu sexo, isto é, como um princípio cuja verdade pede para ser mais sentida que conhecida, como “um Deus sensível ao coração”? 3

Minha filha, tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”. Para que longos discursos? A palavra de Cristo traz consigo a demonstração: é concisa e luminosa como um primeiro princípio; dir-se-ia que era uma daquelas sentenças saídas dos lábios do Mestre divino que enchem os Evangelhos.

“Ah! Como essa pequena frase é grande, como é vasta essa doutrina tão simples!” Exclama o Beato Raimundo de Cápua. "Quanta sabedoria está encerrada nessas poucas palavras! Quem me dará a compreensão delas? Quem me revelará seus segredos e me fará compreender sua infinidade?” Como que para marcar com seu próprio exemplo a diferença entre o gênio próprio do teólogo e o dom da santa, ele se estende em longas considerações sobre aquelas palavras de Nosso Senhor. Mas acaba se interrompendo sem jamais esgotar o tema, confessando que tudo quanto pode dizer é conhecido de antemão por quem já tiver penetrado o sentido daquelas palavras: "Tu és aquela que não é, e Eu sou aquele que sou”.

Não, o raciocínio não é capaz de abarcar o infinito. Quem, então, nos dará a compreensão daquelas palavras? — Escutemos o que diz Bossuet: “Deus é aquele que é: tudo o que é e tudo o que existe, é e existe por Ele. Deus é o ser vivo no qual tudo vive e respira… É preciso consentir e aderir à verdade do ser de Deus: consentir com a verdade é o único ato que basta. Nota que digo consentir com a verdade, pois Deus é o único ser verdadeiro. Aderir à verdade, consentir com a verdade, é aderir à Deus, é consentir que Deus entre na posse do direito que possui sobre nós. Esse ato compreende todos os atos; é o maior de todos, o mais elevado que podemos fazer” 4.

Só a intuição penetra os princípios: quando os divinos mistérios se revelam a nós sob essa forma tão concisa, convém deixar de lado o raciocínio e, como escreveu ainda Bossuet, “concentrar-se por inteiro num simples olhar”. Esse simples olhar é obra do Dom de Inteligência.

Mas, dirá alguém, que sobra da obscuridade da fé entre os resplendores da intuição? Santo Tomás também se fez essa pergunta. Há dois tipos de objetos propostos à nossa fé: primeiro, a Essência divina e seus inefáveis mistérios; segundo, um grande número de verdades ordenadas à manifestação do primeiro. As Sagradas Escrituras estão repletas desse tipo de verdade que constituem o objeto secundário da nossa fé 5.

O Dom de Inteligência pode nos dar um conhecimento perfeito desses últimos. Na história de Santa Catarina, muitos episódios o testemunham, notadamente a admirável compreensão das Escrituras que seus escritos demonstram. O versículo mais trivial, por exemplo, Deus in adjutorium meum intende, torna-se tema de repetidas meditações. O salmo Jubilate Deo omnis terra lança-a em transportes indizíveis. Nunca chegaríamos ao fim se quiséssemos explorar todo esse lado intelectual de Santa Catarina, mas citemos um episódio. Poucos dias antes da morte, ela revelou que “com a luz de uma fé viva, vira e compreendera perfeitamente em sua alma, que tudo o que acontecia a ela e aos demais vinha de Deus, originava-se no grande amor de Deus por suas criaturas”. Era assim que Santa Catarina chamava o dom que lhe dava as intuições da sua contemplação: luz de uma fé viva. Essas mesmas palavras testemunham que essa luz se harmoniza muito bem com a obscuridade inerente à fé.

Quanto à Essência divina e seus mistérios adoráveis, o exercício da fé é total. Não obstante, o Dom de Inteligência nos permite penetrar um pouco mais no conhecimento de Deus, como ensina Santo Tomás. Como isso é possível? Nosso santo doutor ensina que também avançamos no conhecimento de Deus ao saber o que Ele não é 6. O autor da Imitação se expressa como Santo Tomás: “Por isso importa elevares-te acima de todas as criaturas, e renunciares totalmente a ti mesmo, e naquele arroubo da alma perseverares e compreenderes que o Autor de todas as coisas não tem semelhança com as criaturas"7.

Portanto, a fé não deixa de ser obscura. Mas, do seio dessa obscuridade, brota um raio de luz que, exibindo aos nossos olhos o contraste entre a perfeição divina e a imperfeição das criaturas, produz uma como intuição negativa e analógica da verdade inacessível.

Mas, por que tanto esforço para definir a contemplação divina quando podemos vê-la admiravelmente delineada nas palavras de Santa Catarina de Sena? 

"Ó Trindade eterna, ó deidade! Tua natureza divina valorizou o preço do sangue de Jesus. És um mar profundo. Quanto mais nele penetro, mais encontro; quanto mais encontro, mais te procuro. E quando o homem se sacia no teu abismo, mais deseja; está sempre com fome, com sede de ti… És uma luz superior a toda luz. Dás uma iluminação abundante e perfeita à inteligência, aclarando-a na fé. Por meio dela, eu vejo que minha alma possui a vida. Nessa luz eu vejo a tua luz… Por isso eu disse, Pai eterno, que me ilumines com a luz da fé. Realmente, a fé é um mar que alimenta o homem em ti… Quando a fé é grande, o homem tem certeza daquilo em que acredita. Ela é um espelho, Trindade eterna, no qual me conheço. Segurando com amor tal espelho, olho para ele, reflito-me em ti e tu em mim, pela união de tua divindade com a nossa natureza humana. Na luz da fé, conheço-te, bem sumo e infinito, bem superior a todo bem, incompreensível, inestimável. Beleza superior a toda beleza! Sabedoria superior a toda sabedoria. Única sabedoria!… Quem pode acrescentar algo à tua perfeição, agradecer-te pelos imensos favores, pelos ensinamentos dados? Foi uma graça especial, acrescentada àquela comum que dás a todos. Desceste até minhas necessidades e nisto outros espelhar-se-ão” 8

Que diferença entre a fé comum, sempre débil e inquiridora 9, e esta fé segura, firme e, digamo-lo logo, intelectualmente intuitiva.

Mas, intuitiva como? — Sem dúvida, aquela luz não poderia nos revelar o mistério tal como é, pois se transformasse nosso exame intelectual numa visão clara, excluiria a fé. Donde vem, pois, essa luz especial que ilumina os mistérios divinos sem desvendá-los?

Pelo coração, como dissemos anteriormente, é que Deus realiza, nesta vida, a divinização de toda nossa atividade, inclusive a intelectual. O Espírito Santo, pela caridade, habita em nossos corações, e é de lá que irradia seus dons 10. Não é já um efeito do amor meramente humano intensificar o ato de inteligência aplicado ao conhecimento do objeto amado, fazer-nos descobrir nas palavras, nos gestos e nos detalhes mais insignificantes, um sentido oculto e, contudo, verdadeiro? Se o amor abandonado aos seus próprios recursos possui ainda instintos e pressentimentos tão seguros, que equivalem a luzes na precisão dos seus diagnósticos, o que sucederá com um coração que se põe sob a influência especialíssima de Deus, que tem o Espírito Santo por diretor, guia e regulador em todos os instantes? Quão infalíveis serão esses divinos impulsos! Quão seguros os  instintos! Quão profundos os pressentimentos! A luz infundida pelo Espírito Santo será tão eficaz e suave! Veni, lumen cordium!

“Esse ato, diz Bossuet, deve ser feito sem esforço, por uma entrega total do coração a Deus. Deve ser… busco um termo para explicar-me, deve ser afetuoso, terno, sensível. Compreendes-me bem? E eu, compreendo-me a mim mesmo? Porque é um movimento do coração que não é sensível pela sensibilidade humana, mas que nasce de uma alegria pura do espírito. Assim, alegra-te e afirma a cada instante: Eu consinto, meu Deus, em toda a verdade do vosso ser, nela encontro minhas delícias e minha felicidade antecipada. Esse é meu paraíso na terra, e também será meu paraíso no céu. Amém” 11.

Esse ato luminoso e cheio de amor não é a essência mesma dos discursos e das obras de Santa Catarina de Siena? Ela vê porque ama. Não se trata mais do simples conhecimento que a fé proporciona: ela amou a verdade mesma que lhe confiava o conhecimento da fé; provou-a, e depois voltou a olhá-la com olhos ardentes, abrasados, com aquele olhar do qual falou o Profeta, quando disse: Provai primeiro, depois olhai: Gustate et videte 12.

Porém, o Dom de Inteligência não para por aí. Santo Tomás nos adverte que ele é um dom a um tempo especulativo e prático, cuja ação necessariamente se faz sentir em nossa vida. A esse respeito, diz Bossuet: “Se é verdade, como é, que somos tanto mais ativos quanto mais somos impelidos, animados e movidos pelo Espírito Santo, o ato pelo qual nos entregamos a Ele, e a ação que realiza em nós, nos coloca, por assim dizer, completamente nas mãos de Deus” 13. Santo Tomás, numa síntese precisa e admirável, viu nas bem-aventuranças do Evangelho narradas por São Mateus a ação dos dons, e se dedicou a sublinhar a correspondência de cada uma dessas bem-aventuranças a um dom do Espírito Santo. Ao Dom de Inteligência corresponde esta: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. A purificação do coração é a obra própria do Dom de Inteligência nesta vida: a luz da visão é a recompensa da purificação meritória, recompensa que, mesmo fazendo-se sentir nesta vida, só alcançará a perfeição na eternidade.

Essa correspondência entre inteligência e pureza é um aspecto fundamental da vida de Santa Catarina. A vidente de êxtases contínuos é também modelo dos penitentes. E se atentarmos a essa outra espécie de pureza de coração, que é a profissão da fé católica sem mistura de erros, quem mais a cultivou que essa ardente apóstola? Assim, para melhor ver, ela purificou o coração com uma penitência contínua e com a fuga das preocupações mundanas; cada grau de contemplação adquirido inspirava-lhe a idéia de um desapego mais profundo. Uma dupla atividade se vislumbra em seu espírito: a luz provoca a pureza do coração e essa, por sua vez, é causa de luzes maiores. Ao proclamar a harmonia entre o Dom de Inteligência e a Bem-aventurança dos puros, o Angélico Doutor nos revelou a vida da nossa santa 14

Como essa doutrina é consoladora! Os dons do Espírito Santo foram depositados, com a graça e a caridade, na alma de todos os justos 15. Cabe a nós, pois, sob a operação da graça, usá-los. Talvez pergunte o leitor: Quem me ajudará a usá-los? Ora, nós já os possuímos, se os desejarmos com sinceridade, pois nesse desejo nosso está contida a oração de Santo Agostinho: “Se ainda não foste atraído, roga para que sejas”. Mãos à obra, portanto, e digamos: "Desejo gozar desse Dom de Inteligência que espero esteja na minha alma pela graça de Deus. Santa Catarina de Sena, ajudai-me".

Consultemos então as Sagradas Escrituras, de preferência uma dessas passagens que a Igreja canta na liturgia e que nos faz vibrar a alma com as melodias do cantochão; ou ainda, leiamos os salmos; ou, no Evangelho, “as palavras do Senhor”, verba Domini, como dizia Santo Agostinho. Por exemplo: “Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber”, ou ainda: “Convém que ele cresça e eu diminua”. Voltemo-nos em seguida ao nosso hóspede interior, que é a Santíssima Trindade presente em nós pela graça; ou voltemo-nos, se estivermos numa igreja, a Nosso Senhor presente no tabernáculo, e meditemos as palavras escolhidas como se o próprio Deus que tanto amamos as pronunciasse nesse instante mesmo para nós. Saboreemos essas palavras na presença de Deus. E quando o movimento de nosso coração se pôr em contemplação, descobriremos horizontes mais vastos, uma altura, uma largura e uma profundidade que jamais suspeitávamos, que a fé só não nos revela e que só conheceremos pelos olhos do coração, que esperamos seja habitado pelo Espírito Santo 16

Então observaremos o quanto o nosso olhar está obscurecido por imperfeições às quais não atentamos normalmente: aquele amor próprio tão sutil, aquelas preocupações tão funestas, o amor a nossas comodidades ou a idéias falsas e contrárias ao catolicismo. Como é fácil que no ouro mesmo da vida piedosa venha misturado alguma porção de ouropel! O Dom de Inteligência nos inspirará o santo ódio de nós mesmos, como inspirava a Santa Catarina de Sena. Então, recobrando o ânimo, e com o olhar fixo no Crucificado, julgaremos doravante “as coisas doces como amargas e as coisas amargas como doces”, e cresceremos cada vez mais na inteligência dos reconfortantes mistérios de nossa fé, sob a conduta do Espírito Santo.

  1. 1. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 1.
  2. 2. Ex 3, 14. [N. do T.]
  3. 3. Pascal.
  4. 4. Discurso às Visitandinas, no dia da morte do Sr. Mutelle, o seu confessor.
  5. 5. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 2.
  6. 6. S. T. IIa. IIae, q. 8, a. 7.
  7. 7. L. III, C. XXXI, 1.
  8. 8. O Diálogo, Santa Catarina de Sena. Trad. Frei João Alvez Basilio O.P., 15a. reimpressão. Ed. Paulus, São Paulo, 1984. pp. 394-396.
  9. 9. Credere est cum assensione cogitare, IIa IIae, q. 2, a. 1.
  10. 10. S. T., Ia IIae, q. 68, a. 5, c.
  11. 11. Discurso… no dia da morte do Sr. Mutelle.
  12. 12. Cf. João de São Tomás, Ia. IIae, q. 70, disp. 18, a. 3, n. 38.
  13. 13. Discurso sobre o Ato de Abandono.
  14. 14. S. T., IIa IIae, q. 8, a. 7.
  15. 15. S. T., Ia IIae, q. 68, a. 2;  IIa IIae, q. 8, a. 4.
  16. 16. Nunca sabemos com certeza se estamos em estado de graça. Mas devemo-lo esperar, se não tivermos consciência de um pecado mortal e se servirmos a Deus com boa vontade. O Espírito Santo costuma acrescentar, nas almas resolutamente católicas, seu próprio testemunho ao testemunho da consciência. Daí provém um estado de certeza prática que, mesmo deixando lugar para o temor, dá à atividade do fiel um ponto de apoio reconfortante.
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