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"Nosso Querido Reitor" - nota biográfica sobre o Pe. Henri Le Floch

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX 

Foi em 1853 que se inaugurou o Seminário Francês em Roma, tanto para elevar o nível intelectual e espiritual do clero quanto para promover o movimento ultramontano de adesão a Roma. Foi o Papa Pio IX que o aprovou em 1859, confiando-o perpetuamente à Congregação do Espírito Santo. A orientação romana e o favorecimento papal foram coroados em 1902 com sua conversão em Instituto de Direito Pontifício.

O Pe. Henri Le Floch (1862-1950) foi seu Reitor de 1904 a 1927. Nascido em 1862, natural da diocese de Quimper, formado pelos Padres espiritanos desde 1878 e ordenado sacerdote em 1886, atuou primeiro como professor de Seminário, depois como Diretor do Colégio de Beauvais em 1895, Superior do Escolasticado de Chevilly em 1900 e finalmente Reitor do Seminário Francês em Roma a partir de setembro de 1904. Conhecido por não ter qualquer envolvimento político, opunha-se fortemente, todavia, ao laicismo militante presente na França da época.

Durante seus 23 anos como Reitor, fortaleceu o Seminário, anteriormente desmoralizado por falta de liderança, aumentando o número de seminaristas de 100 para 209, ampliou os prédios, renovou a equipe e adotou a postura anti-modernista de São Pio X. Amigo de outras figuras anti-modernistas, adquiriu com o tempo uma posição de considerável importância em Roma como consultor de várias Congregações romanas, incluindo o Santo Ofício, o que lhe deu considerável influência sobre a escolha de bispos franceses.

Dom Marcel Lefebvre o conheceu em outubro de 1923 ao entrar no Seminário Romano. O Padre Superior havia reunido os seminaristas para lhes dar sua primeira palestra espiritual do ano. Aos 61 anos, Pe. Henri Le Floch já caminhava para o ocaso quanto à idade, mas não quanto a suas faculdades intelectuais. De estatura alta e exalando confiança, lembrava uma árvore frondosa na exuberância de sua plena maturidade. Pele corada e rosto largo, no qual as proeminentes sobrancelhas contrastavam com a finura de seu nariz e lábios, portava-se com nobre dignidade, trazendo um aspecto de firmeza em seus olhos azuis acinzentados. Sua natural seriedade era aliviada por um ar de bondade e um sorriso discreto, ainda que prontamente exibido. Deu sua palestra sem demonstrar qualquer afetação; era a dignidade e a afabilidade em pessoa. Além disso, havia ali uma mistura de extrema auto-confiança e total esquecimento de si mesmo: um servo da Igreja, um homem de doutrina verdadeira e católica. Obviamente era um teólogo, mas seu espírito, intuitivo e inquieto, alcançava grandes alturas sem ter de passar por todos os níveis do argumento teológico. Não que ele desprezasse a teologia como uma ciência racional, mas, em última análise, quase nunca a usava dessa maneira. Sua firmeza na Fé vinha acompanhada por uma profunda compreensão dos mais frutuosos conceitos teológicos.

“Eu sofria por não ver o reino de Deus estabelecido onde deveria estar.” O reino de Deus, diz São Gregório, é freqüentemente entendido na linguagem sacra como “a Igreja do tempo presente”. Pe. Le Floch admitia sofrer por isso, algo que o acompanhou por toda a vida. Mas enquanto era capaz de agir, enquanto podia combater, ele não apenas sofreu: agiu, lutou por essa causa, a única pela qual valia a pena consagrar seus esforços, sem poupar nada para si, tudo entregando pelo reino da Igreja. A Igreja é o único meio de salvação, mas não o entendamos apenas com referência à salvação eterna. Pe. Le Floch o entendia também em relação à salvação temporal. A Igreja é o único órgão autorizado da Revelação divina e possui o depósito das verdades que o Pai quis que conhecêssemos ao falar por meio de Seu Filho.

“O único homem pleno é o cristão…” O homem, tendo sido criado para ser cristão, não o sendo, não terá alcançado a plenitude de sua humanidade. Isso porque os valores humanos em si mesmos, a partir do pecado original, só podem ser plenamente acessíveis a todos, sem mistura de erro, no contexto dos valores cristãos e com a modificação interna operada por estes. Nem tudo isso é dogma, mas teologia certa, vigorosa e invencível, diante da qual cabe perguntar como o liberalismo pode se sustentar por um momento que seja na mente de um cristão, que não deve considerar nada tão precioso quanto a glória da Igreja. O erro do liberalismo consiste em pensar que, na presente ordem da sociedade humana, podemos abandonar a realidade da soberania da Igreja desde que a mantenhamos como um ideal, ainda que irrealista.

O jovem seminarista Lefebvre escreveu: “Dei-me conta de que, de fato, eu tinha um punhado de idéias erradas. Estava muito satisfeito por aprender a verdade, feliz em saber que estava errado, que tinha de mudar minha forma de pensar sobre certas coisas, especialmente ao estudar as encíclicas dos papas, que nos mostravam todos os erros modernos; aquelas encíclicas magníficas de todos os papas até São Pio X e Pio XI. Para mim foi uma completa revelação. Foi assim que nasceu silenciosamente em nós o desejo de conformar nosso juízo ao dos papas. Costumávamos dizer entre nós: Mas como os papas julgavam esses eventos, idéias, homens, coisas e épocas?”

Para Dom Marcel Lefebvre, “o Pe. Le Floch fez-nos entrar e viver na história da Igreja, nessa luta que os poderes perversos travam contra Nosso Senhor. Fomos mobilizados contra esse medonho liberalismo, contra a Revolução e as forças do mal que tentavam prevalecer sobre a Igreja, o reino de Nosso Senhor, os Estados católicos e toda a cristandade. Acho que toda a nossa vida como sacerdotes ― ou como bispos ― foi marcada por essa luta contra o liberalismo. Esse liberalismo era praticado por católicos liberais, pessoas de duas caras que se diziam católicos, mas que não suportavam ouvir toda a verdade, não queriam condenar o erro ou os inimigos da Igreja, não toleravam viver continuamente uma cruzada.”

Homem da verdade e da doutrina, o Pe. Le Floch também era, na força e integridade de sua vocação, um homem da Igreja. Quais seriam as convicções interiores que impulsionavam toda sua atividade? Como um homem da Igreja, colocava-se exclusivamente a seu serviço, defendendo apenas o que era diretamente de interesse dela. Preferia manter com determinação aquela atitude reservada que a Igreja, com raras exceções, impõe aos clérigos; ao longo de toda a sua vida, envolveu-se num único tipo de polêmica, a saber, a defesa da Santa Sé, de quem era, de acordo com o testemunho do Cardeal Secretário de Estado, “a caneta francesa”. Salvo essa única circunstância, trabalhava em silêncio, sem poder evitar que um crescente renome se lhe viesse associar, ao mesmo tempo em que não podia deixar de flagelar seu próprio coração com o desdém pela glória mundana. Extremamente reservado, tendia a mostrar-se cada vez menos e a desaparecer cada vez mais. Homens de seu calibre não se preocupam em parecer o que não são. Sabem muito bem que aquilo que são vale muito mais do que a imagem que poderiam construir de si mesmos. Mas o Pe. Le Floch não estava nem mesmo preocupado em parecer o que era.

“Era possível se enganar, e nós nos enganamos a princípio”, disse o Pe. Berto, futuro teólogo de Dom Marcel Lefebvre no Concílio Vaticano II. “Durante todo o meu primeiro ano no Seminário, perguntava-me como puderam colocar numa posição tão elevada um homem que, apesar de possuir uma presença nobre, parecia exercer tão pouco sua autoridade.” Pe. Berto compartilhou sua opinião com um colega seminarista que, ao ouvir essa bobagem, exclamou com espanto: “O que você está dizendo, meu amigo? Nada se faz aqui que não esteja de acordo com a vontade do Padre Superior. Só que não dá para ver.” Era algo tão discreto, de fato, que se poderia pensar que a instituição mantinha seu curso por conta própria, sendo que a verdade era completamente o contrário. A direção era mantida por uma mão tão firme e segura, com uma atenção tão vigilante, sem jamais deixar de prestar atenção ou fazer um movimento em falso, que a ação do piloto tornava-se tanto mais imperceptível quanto mais poderosa e bem ordenada. Por natureza e por graça, por intuição e por estudo, o Pe. Le Floch colocava acima de tudo a ordem, e a desordem abaixo de tudo. Em todas as coisas, era um homem de ordem: tão firme e inflexível ao comunicar seus pensamentos, quanto lhe eram estranhos todo desejo e toda necessidade de comunicar-se a si mesmo.

Sob o comando do Pe. Le Floch, o Seminário Francês permaneceu perfeitamente fiel ao papado sob São Pio X, Bento XV e Pio XI, particularmente quanto à condenação do modernismo social por este último, em 1922. O Pe. Le Floch deixou bem claro que aceitava a condenação da Action Française em dezembro de 1926, apesar de pessoalmente acreditar que a Igreja não devesse se envolver nessa política. Entretanto, sua renúncia em 1927 foi causada pela oposição pessoal do Papa Pio XI, baseada numa suposta conexão que teria com a Action Française, seguida por ataques de quatro professores e dez estudantes do Seminário. Viveu os 23 anos restantes de sua vida numa aposentadoria ativa.

Mons. Pucci, um padre italiano que tinha informações internas sobre as circunstâncias de sua remoção, logo escreveria: “Pio XI decidiu que o Pe. Le Floch, tendo servido por 20 anos sob um diferente arranjo político, não estava apto a servir sob o seu, ou a conduzir sua implantação.” Como se uma implantação desse tipo tivesse algo a ver com os estudos num Seminário! Volta e meia, entretanto, alguns seminaristas tiveram de fazer as malas porque o clima em Roma não lhes era propício. Foram por isso chamados de “Pro Action Française”, quando, na realidade, só não haviam conseguido lidar com a partida do Pe. Le Floch e com a nova atmosfera. Marcel Lefebvre permaneceu em Santa Chiara, não sem certa nostalgia pela perda de um grande líder, a quem ele sempre chamava com emoção de “nosso querido Reitor”.

(Angelus Press no. 444. Tradução: Permanência)

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