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A antigüidade da civilização

Um viajante observa a aurora em uma terra para ele desconhecida. Espera vê-la clarear, levantando-se sobre as planícies desoladas e os cumes selvagens. Tal é o estado de ânimo do homem moderno que aborda o estudo das origens da Humanidade. Mas, à medida que o Oriente clareia, vê-se surgir na penumbra o perfil gigantesco de cidades sepultadas na noite dos tempos, edificações colossais, mansões de titãs adornadas com bestas esculpidas, que ultrapassam as copas das palmeiras, e retratos pintados, doze vezes maiores que o tamanho natural; túmulos como montanhas, edificados pela mão do homem, e touros barbudos e alados, que montam guarda eterna à porta dos templos, enormes, silenciosos e imóveis, como se acreditassem que um só golpe de seus chifres comoveria o mundo.

Desde seus primeiros raios, a aurora da história revela uma Humanidade em plena civilização, ao mesmo tempo em que a inépcia das generalidades de que nos nutrimos sobre o período em que essa civilização iniciou o seu desenvolvimento.
 
As duas primeiras sociedades humanas que conhecemos, com certeza, são a Babilônia e o Egito. E estes dois grandiosos testemunhos do gênio antigo depõem de um modo esmagador contra dois dos preconceitos mais correntes de nossos dias. Para desfazer as tolices que nos hão subministrado acerca dos nômades, o homem das cavernas e o homem dos bosques, olhai para esses fatos maciços e formidáveis que se chamam Egito um, e Babilônia, outro.
 
Está bem claro que a maior parte dos teóricos que descrevem o homem primitivo têm o olhar fixo nos selvagens modernos, e querem demonstrar a evolução dizendo-nos que uma boa parte do gênero humano estacionou, não evoluindo nem mudando de qualquer modo. Devem exagerar em um e outro sentido. Nunca conseguirão me fazer crer que o homem civilizado seja o fruto de um progresso tardio, nem que o bárbaro esteja sujeito a uma imutabilidade absoluta.
 
Vejamos as coisas com simplicidade. Um selvagem moderno não é um selvagem primitivo, uma vez que é moderno. Milhares de anos de existência terrestre passaram sobre sua raça, como sobre a nossa, trazendo-lhe, como a nós outros, experiências que, se lhe serviram, não lhe aproveitaram. Sofreu a influência do meio ou da mudança de ambiente e, sem dúvida, não deixou de adaptar-se a ele, segundo as regras da mais pura ortodoxia evolucionista.
 
Isto seria verdade, mesmo quando o ambiente fosse inexpressivo e a experiência benigna, pois o tempo também opera por monotonia. Mas, muitas pessoas bastante inteligentes e documentadas acreditam perfeitamente provável que o fenômeno dos selvagens modernos possa ser explicado como um caso de regressão. Os que contradizem esta opinião não parecem possuir uma idéia bastante clara do que possa ser o ocaso de uma civilização. Praza aos céus que não descubram tão prontamente! Para identificar o homem da caverna ao canibal, lhes é suficiente que ofereçam eles alguns traços comuns , tais como o uso de certos instrumentos. Mas, todo o povo, em determinadas condições, reagirá do mesmo modo. Que nos tirem as nossas armas de fogo e forçoso nos será servimo-nos do arco. Durante a sua famosa retirada, os russos estiveram, segundo parece, tão escassos de munições que tiveram de defender-se a pauladas. Com este dado o historiador futuro poderá, equivocadamente, chegar à conclusão de que o exército russo de 1916 era uma tribo “scytha” que nunca pusera o nariz para fora do bosque natalício. A segunda infância não é a imagem exata da primeira. Um recém-nascido é tão calvo como um velho, mas a pessoa que nunca vira uma criança de peito, se equivocaria se julgasse que ela poderia ter uma longa barba branca. E ainda quando o ancião e a criança experimentam dificuldade igual em andar, quem espere ver um velho consolar-se rebolcando-se no chão e chupando o dedo polegar, prepara, para si mesmo, uma segura desilusão.
 
Por que os primeiros pioneiros do gênero humano haviam de ser semelhantes em tudo aos retardatários e aos incapazes? Esta distinção é mais necessária do que nunca quando se discute a origem dos governos. Fiz, antes, alusão a Mr. H. G. Wells e a seu “velho” do qual fala com tanta familiaridade. Amparando-nos nos fatos comprovados, esse brilhante retrato de um chefe da idade da pedra não é desculpável senão com a indulgente hipótese de que o amável e fecundo novelista esquecera-se de que estava escrevendo história, transportando-se, maquinalmente, ao seu primitivo ofício. Onde terá encontrado que a etiqueta em uso na corte desse monarca lhe reservava o título de Velho (com maiúscula se quereis)?  Ou, então, ainda isto, que é mais extraordinário: “Ninguém tinha o direito de tocar em sua lança ou de se sentar em seu assento”. De minha parte, torna-se-me difícil acreditar que se tenha desenterrado uma lança provida de uma inscrição pré-histórica: “Roga-se não tocar”, ou um trono assinalado com este letreiro: “Reservado para o Velho”. Cautelosamente, faremos bem em presumir que o autor não tirou todos estes detalhes do seu cérebro, e que aceita o paralelo improvável que, em geral, se estabelece, entre o primitivo e o “não civilizado”. Assim se pode admitir, com efeito, que o chefe desse povo degenerado se intitule – o velho – e que se tenha medo de tocar em sua lança, porque ele exerça, talvez, uma tirania feroz.
 
Somente nada de tudo isto proporciona a sombra de um vestígio, de uma aparência, que prove que o regime primitivo tenha sido tirânico. O único fato que, ao contrário, a história registra sem reserva, é que um estado despótico representa freqüentemente uma democracia fatigada. À medida que uma sociedade republicana é atacada de lassidão, seus cidadãos perdem a afeição à eterna vigilância, que é o preço da liberdade, e preferem confiar a uma só sentinela o cuidado de velar seu sono.
 
Certas reformas violentas têm exigido, de igual modo, freqüentemente, o braço armado de um homem, e este tem abusado, geralmente, das circunstâncias para tiranizar seu povo como um sultão do Oriente. Porém, isto não quer dizer que a figura do sultão seja anterior a tantos outros tipos humanos. O homem armado, ao contrário, funda a sua superioridade na excelência de suas armas e a indústria do armamento é já o sinal de uma civilização avançada. Um homem abaterá a vinte de seus semelhantes em um momento com o auxílio de uma metralhadora, mas é menos provável que consiga o mesmo com o auxílio de uma simples pedra. A lenda do mais forte, governando pela força de seus bíceps, é alguma coisa assim como a invocação das façanhas do papão. Vinte homens num momento podem reduzir à razão o mais musculoso dos homens do passado, do presente e do futuro. Quando muito, suscitaria uma espécie de admiração novelesca e poética, parecida com o sentimento moral e místico que acompanha o mais virtuoso e o mais prudente. Pelo contrário, a submissão abjeta aos caprichos de um déspota não é própria de uma sociedade jovem senão de uma sociedade já cristalizada. Um “Velho”, como o seu nome indica, só pode governar a uma velha humanidade.
 
Uma pura democracia: tal é a idéia que, de boa vontade, faria das instituições primitivas, e que sugere o espetáculo das singelas comunidades aldeãs que subsistem, ainda, em nossos dias. A democracia está sempre disposta a abrir passagem por entre as complicadas malhas da nossa civilização. Se dirá, talvez, que ela é a inimiga da civilização; mas, — é preciso ter cuidado — muitos dentre nós preferiremos, em fim de contas, a primeira e a segunda. Os lavradores que, em uma rude igualdade, cultivam os seus trechos de terra e se reúnem para votar debaixo do olmeiro comunal, encarnam, sempre, o ideal do governo autônomo em termos acessíveis aos povos mais simples. E, ainda, se o homem não é mais que um animal, deve-se-lhe prestar menos solidariedade que às ratas ou às gralhas? Estas bestas que se sentem bem com um chefe, como todos os animais gregários, ignoram o baixo servilismo que caracteriza, segundo nos dizem, aos supersticiosos súditos do Velho.
 
Sem dúvida houve, sempre, alguém para preencher as funções do corvo carregado de invernos que, como disse Tennyson, “guia o vôo da tribo sonora”. Mas, se este venerável volátil tivesse a malfadada fantasia de se fazer sultão asiático, a tribo — não o duvideis — chegaria a tornar-se desmesuradamente sonora, e o corvo, carregado de invernos, correria o risco de não voltar a ver mais a estação da geada. Se os corvos seguem ao macho mais velho, veja-se que não seguem ao mais forte, são, pois, mais acessíveis à experiência madura que à brutalidade, no que se mostram muito superiores ao vulgar sentimentalismo que arroja os modernos aos pés do Homem Forte...
 
Nunca se saberá nada de concreto sobre este ponto. Mas, suposição por suposição, uma é tão plausível como a outra, e o povoado balcânico ou pirenaico tem, para nós, um ar mais natural e humano que o serralho de um sultão. Os dois são modernos, porque ambos existem em nossos dias; porém, é o palácio o que parece significar o antiquado.
 
Por outro lado, eu não procuro afirmar nada. Formulo as minhas reservas e nada mais. Mas, eu não estou só. É conveniente observar que a escola moderna não vacila em ir buscar entre os bárbaros e os homens primitivos o rastro de instituições liberais — quando as necessidades da causa o exigem. Os socialistas proclamam a remota antigüidade do regime coletivista; os judeus predicam seus antigos jubileus ou redistribuições regulares dos bens; os pangermanistas se vangloriam mostrando o parlamento, o jurado e outros benefícios do governo popular, florescentes entre as tribos da Alta Germania, enquanto que os campeões da Irlanda oprimida têm feito, amiúde, valer a justiça distributiva que reinava sob o regime feudal dos clãs. Cada um puxa brasas para a sua sardinha. Porém, do conjunto dos argumentos invocados nos é permitido deduzir uma verdade de ordem mais geral, a saber: que os tempos pré-históricos conheciam outros móveis mais que o temor e a superstição. Cada um afia suas próprias armas, mas não desdenha utilizar o machado de pedra. O machado de pedra, além de tudo, foi tão republicano como o cutelo da guilhotina.
 
Quando se levanta o telão a comédia já se está representando. Houve antes da história que conhecemos uma que nos é desconhecida, mas que se parece, indiscutivelmente, muito com a nossa. O que nada tem que ver com o presunçoso paradoxo de uma “história pré-histórica”, que refere, com precisão, o desenvolvimento que vai do zoófito ao antropóide e do antropóide ao agnóstico. As nossas crônicas mais antigas nos pintam um mundo já velho e cuja estrutura nos é familiar. Não será, pois, nada de estranhar que esse período deixado na sombra estivesse feito, também, de revoluções políticas e de conquistas militares, de repúblicas afogadas pela monarquia e renascendo de suas cinzas, de colônias conquistadas e perdidas, de impérios dissolvendo-se em pó, de nacionalidades e de classes sociais avassaladas, reivindicando seus direitos com as armas na mão. Em uma palavra: deste desfilar interminável dos negócios humanos, que pode não ser chamado progresso, mas que, indubitavelmente, é uma novela. Novela cujas primeiras páginas foram arrancadas; livro do qual nunca leremos o primeiro capítulo.
 
Abandonemos, igualmente, nossas ilusões sobre a evolução das formas sociais. A barbárie e a civilização não representam etapas sucessivas no tempo, senão condições de vida que tem coexistido sempre, como, ainda, coexistem. Houve e há civilizados e selvagens, pastores nômades e lavradores sedentários. A teoria segundo a qual todos os povos passaram por um período comunista, onde a propriedade privada não existia, não tem razão de ser senão do ânimo daqueles que nos querem arrastar a este regime, e como ilustração do espírito conservador dos bons revolucionários.  Paralelamente, quando o feminismo se pôs em moda, não se tardou em descobrir que a Humanidade primitiva fora constituída em matriarcado, e que era a mulher das cavernas que surrava seu marido. Estes achados retrospectivos que o gosto do dia inflige à história não devem ser tomados à sério, em demasia. E, se fora preciso refutar elucubrações deste gênero, diria: vede o Egito e a Babilônia. A história egípcia parece inventada precisamente para demonstrar que o despotismo, longe de ser uma conseqüência da barbárie é, amiúde, uma das condições do progresso, e a história babilônica se diria escrita com a intenção de sublinhar o fato de que o homem não necessita ser nômade ou comunista antes de chegar a ser campesino ou cidadão. 
 
O Egito é uma fita verde estendida sobre a areia vermelha do deserto. Segundo um antigo provérbio, deve sua vida à misteriosa e temível benevolência do Nilo. Os primeiros egípcios que conhecemos habitavam um grupo de pequenos povoados escalonados à margem da água, ao largo do rio, autônomos, porém federados e que tinham alcançado um elevado grau de civilização doméstica. Cada comunidade navegava debaixo de suas próprias insígnias, adornadas com um quadrúpede e um pássaro simbólicos. Ora, bem: a heráldica implica duas idéias, cuja combinação, de uma importância primordial, constitui o nobre princípios de cooperação, sobre o qual repousa a liberdade humana. Como Arte, é sinal de independência, de livre escolha, pelas quais a imaginação se cria um emblema. Como ciência, é sinal de interdependência, de acordo estabelecido entre diversos corpos constituídos para regular o uso dessas imagens.
 
Meu amigo, o mitologista, interrompeu-me aqui. Desde que falei de imagens de animais que o ouvi murmurando, como em sonho, a palavra — “totem”1 — Ah! É precisamente isso que eu condeno: esse costume de falar dormindo. Justamente eu me atormento, de um modo infinito, em eliminar as expressões mecânicas e em por em valor o sentido, antes que o som, dos termos consagrados. Ora bem, eu me pergunto: quê quer dizer um “totem” sob o ponto de vista da sensibilidade? E em que, os que têm um, diferem dos que não o têm? Têm mais medo, que nós, dos animais, ou têm menos?  Temos aqui um indivíduo que tem o lobo por “totem”. Tem os sentimentos do lobo, ou do que corre à vista da fera? Seus sentimentos são os de Rômulo pela mãe loba, de S. Francisco pelo irmão lobo, ou de Mowgli por seus irmãos os lobos? Um “totem”, é majestoso como o leão britânico ou familiar como o bulldog de John Bull?
 
Contentemo-nos, pois, com repetir que essas coletividades primitivas do Egito tiveram entre elas relações pré-históricas, posto que a história as encontra já de posse de acordos concernentes a seus emblemas respectivos. À medida que a história se desenvolve vemos passar os primeiros planos dos assuntos de comunicação, e fazer-se necessário um governo Central. A sombra real desponta, engrandecendo-se, sobre o Egito. Ao lado da realeza, talvez antes desta, a casta sacerdotal se ocupa dos sinais e dos símbolos rituais com a ajuda dos quais os homens podem comunicar-se entre si. E, assim, nasce a invenção a que devemos a História e a diferença entre o histórico e o pré-histórico: - a escritura.
 
A idéia corrente que fazemos dos tempos antigos padece de deplorável vulgaridade. Se os vê sob uma luz lúgubre é cem vezes mais triste que a sã melancolia natural no pagão, devido ao secreto pessimismo que se deleita em imaginar o homem primitivo, rastejando temeroso pelas sugidades. Tudo o que é elementar deve ser mau aos olhos dessa irreligiosa religião. Disto resulta uma curiosa conseqüência: que, apesar do número incalculável de novelas pré-históricas, nenhuma acerta com o autenticamente novelesco da vida primitiva. A idade da pedra que pintam está povoada de pobres diabos de pedra e, seu Egito, de múmias abundantes. É que não tentaram representar nas suas prístinas louçanias as coisas que hoje nos são familiares! Víramos o homem saltando e batendo palmas ante a fogueira como uma criança em frente aos fogos de artifício, e jogando ao arco com a primeira roda. É que a juventude do mundo carecia de juventude, de alegria e de riso?
 
Pois bem: sem querer contristar os grandes escritores, vejo-me obrigado a assinalar esta aflitiva comprovação: a arte de escrever parece haver começado com um jogo de palavras. Um rei ou um sacerdote, em uma palavra, alguém do governo, tendo que expedir uma mensagem ao outro extremo do reino, teve a idéia luminosa de por seu pensamento em imagens. Como muitas outras pessoas que, depois, se divertiram deste modo, encontrou algumas dificuldades. Ao cabo, chega-lhe a palavra “imposto” que, em sua língua se pronunciava, pouco mais ou menos, como “porco”. Não vacila, e, a todo o risco, desenha um traço representando um soberbo marrão. O inventor de hieróglifos, que representa “o apetite vem comendo” por uma menina que traz à boca uma fatia de pão, não tem porque envergonhar-se; segue o exemplo de Faraó. Este gênero de missiva devia ser, em suas origens, muito agradável para quem o escrevia e para quem o lia. Por isso, se há pessoas às quais se não pode dissuadir pela doçura nem pela violência de escrever novelas egípcias, peço-lhes não excluírem delas o caráter humano. Proponho-lhes, por exemplo, que nos descrevam o monarca no seu trono, rodeado de seus sacerdotes e compondo uma epístola entre as gargalhadas e as sugestões que surgem de toda a parte, à medida que os reais jogos de palavras se fazem mais enormes e mais desastrosos. Outra cena não menos sedutora nos faria assistir o ato de decifrar um criptograma, segundo os procedimentos clássicos do folhetim policial. Eis aí como eu compreenderia a novela antiga e, mesmo, a história daqueles tempos.
 
Esta digressão aparente tem o mérito de relevar o papel desempenhado pelos sacerdotes. Foram eles que fundaram a ciência, e autores, como Mr. Wells, que não alimentam nenhuma simpatia pelo hábito eclesiástico não deixam de convir comigo neste particular. Ontem, entretanto, ainda se admitia que os sacerdotes se opuseram ao progresso em todas as épocas. Um político me fez observar, certa vez, no curso de uma conferência contraditória, que eu resistia a certas reformas, como um sacerdote antigo devera se ter oposto à invenção da roda. A isso lhe respondi – que o sacerdote fora, provavelmente, quem a inventou. O mesmo sacerdote, como o indica o nome do hieróglifo, criou a escritura, e eu me pergunto, freqüentemente, por que se lhe recusa um lugar de honra entre os heróis da Humanidade. Se fôramos francamente pagãos, ao invés de enervarmo-nos com mesquinhas reações contra o Cristianismo, renderíamos um culto solene aos nossos benfeitores desconhecidos. Queimaríamos incenso ante as estátuas veladas daqueles que descobriram o fogo, construíram uma barca ou domaram um potro selvagem, o que é infinitamente mais razoável que obstruir nossas vias públicas com políticos caducos em sobrecasacas de bronze. Mas, é um sinal dos tempos que a arte de ser pagão com naturalidade se tenha perdido vinte séculos atrás. Em uma palavra: o governo egípcio, tanto real como pontifício, tendeu para assegurar, cada vez mais e mais estreitamente, as comunicações do reino, e, por conseguinte, teve que exercer coação. O Estado se fez despótico, à medida que se civilizava. Os monarquistas dirão: porque se civiliza. A história egípcia, compêndio de história universal, nos mostra, em lugar do “Velho”, já bem conhecido, o “homem novo”, armado de uma maneira, também nova, cuja lança se estende, elevando o seu trono, ao mesmo tempo que a civilização se aperfeiçoa. A senda do progresso leva, diretamente, ao rei.
 
O Egito pôs, assim, em seus termos exatos o problema das relações da liberdade e da civilização, por isso que é um fato que o homem perde em variedade o que ganha em complexidade. Nós, que resolvemos melhor o problema, não o amesquinhamos, supondo que a tirania não poderia ter outro fundamento que um terror abjeto. Babilônia serve para ilustrar as relações entre a civilização e a barbárie.
 
Antes que estivesse civilizada para poder falar não sabemos nada dela. Sua voz nos chega através do pesado e rígido simbolismo dos caracteres cuneiformes, que contrasta vivamente com a pinturesca imagem dos hieróglifos. Por muito rígido que pareça,  a arte egípcia lembra-se, amiúde, das curvas flexíveis do rio. Seus lotus têm uma graça viva; seus pássaros e suas frechas voam com pura e rápida elegância. Em compensação, Babilônia é uma civilização de desenhos e de diagramas. O cuneiforme está talhado nos tijolos que é a base de toda a sua arquitetura – no tijolo de barro amassado e cozido no forno que não permite a escultura em relevo. Cultura estática, porém científica, experiente na mecânica da vida, e muito moderna sob vários pontos de vista. Desprende-se desta formidável fortaleza de barro endurecido a idéia de uma enorme colmeia. Colmeia humana, não obstante, com os mesmos problemas sociais que o Egito antigo e a Europa moderna, e, apesar de seus defeitos, obra da arte humana. Um sistema engenhoso de canais distribuía pelos campos as águas do Tigris e do Eufrates, assegurando à cidade imensa sua vida material. Sua vida intelectual, intensa, estava orientada para a filosofia. Sobre seu berço se inclinam as altas figuras que encarnam, para nós, toda a antiga astrologia, os mestres de Abraão e os magos da Caldéia.
 
Contra esta sociedade densa e compacta dura muralha de tijolo nu, rompia, de tempos em tempos, a onda espumosa das hordas nômades, lançadas desde o fundo do deserto, onde a vida errante reinava, então, como em nossos dias. Seguir os rebanhos que procuram as pastagens, acampar ao abrigo das tendas, nutrir-se de leite e de carne, - é uma vida simples, uma vida fácil, que dá ao homem tudo o que necessita, exceto um lar. Estes pastores, desde os tempos mais remotos, entretinham-se com enigmas do livro de Jó. Abraão foi um deles que legou ao mundo o povo judeu e seu furioso monoteísmo. Além disso, nações selvagens, que um torvelinho impetuoso lançava, incessantemente, ao assalto de uma civilização que não compreendiam e que não queriam. A história da Babilônia é a de uma defesa interminável contra as tribos do deserto, que, século após século, vinham atacar suas muralhas. Uma importação de sangue nômade, segundo dizem, contribuiu para a fundação de Nínive e do arrogante reino da Assíria, cujos monstruosos touros alados aplastaram o mundo com seus cascos de pedra. Assíria foi um intermédio imperial informe. Nos tempos pré-históricos, sem dúvida, como nos históricos, a onda errante se precipitava sobre as terras cultivadas, devastando tudo em sua passagem. A última vez que irrompeu, seu chefe chamava-se Maomé, e não encontrou mais que ruínas.
 
Este fato merece um comentário. Com efeito, contradiz ponto por ponto a versão corrente de que o nomadismo seja o estado primitivo e pré-histórico, e a civilização o estado recente e moderno de um só e mesmo tipo de sociedade. Ora, nada indica que os babilônios tenham, jamais, andado errantes, nem que os nômades tenham, em geral, terminado por se estabelecerem. Os mais notáveis etnologistas estão de acordo nisso. Porém, eu não me tenho que haver com os notáveis etnologistas e com seus intermináveis trabalhos. Com quem tenho de entender-me é com uma vasta onda de opinião que, prematuramente, se empapou de dados incompletos e de hipóteses inexatas, segundo as quais um mono se transformou em homem, e um bárbaro em civilizado; de modo que em toda ocasião, necessariamente, a barbárie está por trás e a civilização na frente. Opinião frágil em todo o sentido da palavra. Constitui mais uma atmosfera que uma doutrina, e se respira mais que se demonstra. Sendo este gênero de humor mais aberto às imagens visuais que às intelectuais, rogo, simplesmente, aos que a ele estejam propensos, fecharem os olhos, cada vez que caiam no acesso, e contemplarem, em espírito, semelhante a um alcantilado fervedouro humano, os formidáveis contrafortes da muralha babilônica.
 
Uma sombra nos detém o passo, e nos ataca, mesmo, ante os dois mais velhos impérios do mundo: a sombra da escravidão, triste colosso evocado como um monstro de legenda, para fatigar-se, obscuramente, em gigantescas construções de tijolo e de granito.
 
Aqui, tão pouco, aparece a barbárie do lado da reação. A escravidão, sob sua primeira forma, foi, em geral, menos cruel do que foi depois, e, quiçá, ainda o seja algum dia. Assegurar a subsistência coletiva instituindo o trabalho forçado para determinados indivíduos, é um expediente muito humano, ao qual, uma vez ou outra, se intentará voltar. Porém a escravidão antiga representa, pelo menos, uma lição essencial para a inteligência da antigüidade pré-cristã: a insignificância absoluta do indivíduo ante o Estado, tão rigorosa na democracia helênica como soba a autocracia babilônica. Em virtude deste princípio pouco importava que toda uma classe fosse invisível e muda. O contemporâneo que disse: “O homem não é nada; só sua obra é que vale”, não emitiu, como julgava, uma truculenta vulgaridade a Carlyle. Expressou a sinistra divisa do regime servil. Há algo de verdade na visão convencional de pirâmides e colunatas gigantescas, incessantemente erguidas até um céu imóvel, por uma multidão sem rosto, anônima, inumerável, sangrando sob o látego e morrendo no serviço, aplastada pela obra, mesmo, de suas próprias mãos.
 
Egito e Babilônia também têm outros títulos que reclamam nossa atenção. A tradição popular lhes assegura um lugar de honra, e seu nome se encontra em numerosas esquinas, é o caso de dizer – rua da Babilônia, rua das Pirâmides, rua do Cairo - ; suas princesas, em transe de reencarnação, invadem nossos “armazéns”, e a Imprensa diária, geralmente tão retardatária, chegou, já neste ponto, ao reino de Tutan-Khamen. E o instinto popular, como de costume, não se engana. Está num país conhecido, pois, os viajantes, de Heródoto a Lord Carnavon, tiveram cuidado de fazê-lo familiar. Venera nele, com razão, o lugar de suas mais antigas e verdadeiras certezas. A ciência moderna, mais eclética, nos proporciona mapas detalhados do universo primitivo, sulcados e pontuados, indicando as migrações e as invasões em lugares em que o cartógrafo medieval contentou-se em assinalar a “Terra desconhecida”, ou, com aproveitar os brancos para pintar um dragão que desse aos exploradores uma idéia do que podia se seu provável destino. Porém, é uma questão importante saber qual dos dois métodos é o mais fabuloso. As pessoas inteligentes, e, em particular, as de imaginação, têm, com efeito, uma tendência fastidiosa para crer que quanto mais vasto é um conceito, tanto mais fora comprovado. Parecem-se com o habitante de uma cabana de bambu do centro de Tibet, a quem ensinaram que faz parte do império chinês ou, se se apresenta o caso, do império britânico, e que finaliza por ter o império que não vê por mais real que a coisa que tem diante de seus olhos; chegaria, ainda, a procurar provar que um tão glorioso Estado não saberia, por definição, conter um tão miserável casebre.
 
Tais são as brincadeiras que nos pode fazer a ilusão. Os modernos não estão isentos delas, e esquecem, por exemplo, que o sistema solar não é mais que uma hipótese, cômoda, na verdade, e de uma grande verossimilhança , mas, que se não pode erigir em axioma. Todos os nossos cálculos podem ser falsos, sem que o sol, as estrelas e até os lampiões de gás deixem de alumiar. E, não obstante, estamos dispostos a questionarmos com o sol se se desvia uma linha das exigências do sistema que tem seu nome”. Este erro de juízo, lamentável quando se aplica a realidades tão pouco comprovadas como a China ou a rotação da Terra, assume proporções de cataclismo quando se refere a simples construções do espírito.
 
Assim, a história chamada pré-histórica tem o horrível costume de generalizar, abundantemente, sobre as questões das raças. Com que lamentáveis conseqüências políticas? Suplico que se me permita não insistir nisto. As raças, segundo vagas conjecturas, engendraram as nações. As nações, pois, seriam tidas por mais vagas que as raças. Inventa-se uma causa com um efeito, e, em seguida, se subordina este àquela. Trata-se ao celta em postulado e ao irlandês em dedução, e, depois disto, estranha-se que o irlandês não esteja contente e se revolucione, sem que se inquietem por saber se os celtas existiram, mesmo, alguma vez. O que importa, única e aparentemente, são as dimensões da teoria: quanto maior, tanto mais os fatos se devem humilhar diante dela. Supõe-se que os irlandeses pertencem a uma imensa raça céltica, pois os irlandeses não subsistem e não respiram senão por ela. Da mesma maneira, os ingleses e os alemães fundiam-se, faz alguns anos, em uma única raça teutônica, que devia tornar impossível toda guerra entre elas. E quanto mais obscuro e antigo é o problema, tanto mais categórico é o sábio da era vitoriana. Está mais seguro de ser ariano que anglo-saxão, anglo-saxão que inglês. Jamais se preocupou se era europeu, mas, nunca duvidou de ser indo-europeu. Tão tenaz pode chegar a ser um costume mental.
 
Nenhuma raça humana sobre a face do globo escapou a esta ordem de especulações. A européia sofreu várias revoluções retroativas. Em outro tempo se intitulava caucástica, e eu li, na minha infância, um livro de Brest Harte sobre o perigo amarelo, que, começava com estes termos: “Desapareceu o caucaseano? “ Desaparecera aparentemente, pois, o pouco tempo depois, se converteu em indo-europeu, e às vezes – digo-o com desgosto – em indo-germano. O hindu e o alemão, ao que parece, usam vocábulos semelhantes para dizer papá e mamãe, e o sânscrito tem outros pontos comuns em várias línguas ocidentais. Não fez falta mais que isto para borrar todas as diferenças superficiais que pareciam, à primeira vista, distinguir o indígena de Heildelberg do de Madrás. Este personagem composto era, em geral, designado sob o nome de ariano, e sua função principal era a de ter descido até o Oeste – vindo das altas planícies da Ásia, - onde deixou vestígios de sua língua. Lendo há muitos anos esta explicação, me perguntava porque não se supôs o ariano subindo até o Este e levando sua língua consigo. Se a tornasse a ler, confesso que não a entenderia; mas não a releio, porque é teoria morta. Haverá desaparecido, também, o ariano? Em todo o caso, não somente trocou de nome, como também de direção, de ponto de partida e de itinerário. Uma nova tese quer que nossa raça provenha do Meio-dia. Se nos ensina que saiu da África, e não na da Ásia. Até há gente – apenas ouso confessá-lo – capaz de dizer que os europeus provêm da Europa, ou, mais exatamente, que nunca saíram dela.
 
Poderia ainda chegar as migrações vindas do Norte, que levaram os gregos a Creta e atiraram os gauleses, por cima dos Alpes, nos campos da Itália ...  Porém, o que vos digo tem como objetivo mostrar como nossos augúrios têm feito a volta completa da bússola, e não pretendo igualá-los. Trato só de prevenir que o bom senso é uma rara e bela coisa, que nos ajuda, em particular, a diferençar uns madeiros flutuantes de uma frota de navios e uma hipótese de um obelisco.
 
Olhamos na escuridão. As trevas, nos primeiros tempos da história, envolvem inteiramente a terra, e só brilham, aqui e ali, raros pontos luminosos, que alumiam alguns ilhotes de humanidade próximo deles. Uma dessas chamas luz nos altos lugares de Babilônia; a outra sobre a Grande Pirâmide. Outras luminárias distantes, em verdade, surgem na noite: a China ancestral, México e Peru, refinados ao ponto de adorar o diabo, e outros povos mais cuja tradição se perdeu. A da China, que subsiste, está fechada para nós. O que intenta sondar a antigüidade chinesa, com o auxílio de medidas chinesas, sente-se escapar às leis do tempo e do espaço, e transportado a um universo invertido, onde a duração se desenvolve como um telescópio, onde os séculos tomam a marcha lenta das épocas geológicas. A cabeça lhe anda à roda, e se olha, furtivamente, por cima do ombro, se não está em perigo de que lhe nasça uma trança. Não saberia tomar, ao pé da letra, a estranha perspectiva histórica que vai diretamente ao pagode primitivo do primeiro Filho do Céu. Falei já do dragão que ilustra os mapas da idade média; porém, que viajante antigo, nem aquele, mesmo, que gostava dos monstros, jamais esperou chegar à morada de um dragão filantropo? Não considero a China, neste caso, senão sob a luz da sua antigüidade e para assinalar a continuidade tradicional que nos une aos egípcios e aos babilônicos, em contraste com o passado chinês, de que nos achamos totalmente desvinculados. Heródoto está infinitamente mais próximo de nós que os chineses com cartola, que bebem um litro na Rotonde2. Os sentimentos de Daví e de Isaías nos são, certamente, mais conhecidos que os do general Feg. Os pecados de Elena ou de Maria Madalena continuam sendo para nós emblemas eternos da fragilidade humana e do perdão divino; as virtudes do chinês têm alguma coisa de terrorífico. Tais são os efeitos da destruição ou da conservação de uma herança histórica contínua. Se procurarmos, agora, qual é, justamente, a natureza de nossa herança, nos veremos conduzidos ao fato central da história.
 
Este centro é o mediterrâneo, mundo antes que mar; porém feito à imagem do mar, em que se arrojam e se unificam as correntes mais dispares. Como o Nilo e o Tiber misturam as águas com as do Mediterrâneo, Egito e Estrúria se fundem em uma cultura comum. O resplendor do mar augusto franqueia os desertos, as montanhas e as selvas; estende-se até os árabes e os gauleses. Mas, é ao largo de suas margens que se cumpre a primeira missão da antigüidade e se elabora a civilização que aquela havia de dar ao mundo. É no círculo do orbis terrarum que se libra o combate do melhor e do pior, a luta sem fim da Europa e da Ásia, da fuga dos persas em Salamina à dos turcos em Lepanto; o duelo da morte em que se enfrentaram, segundo a carne e o espírito, as duas formas perfeitas do paganismo, latino e púnico. Reinado da guerra e da paz, do justo e do injusto; reinado de todos os nossos ódios e de todos os nossos amores... Com toda a reverência, aztecas e mongóis, meus irmãos, não destes ao mundo nada comparável à tradição mediterrânea.
 
Entre ela e o Oriente, é verdade, houve intercâmbios religiosos, militares, comerciais que a beneficiaram na medida em que estavam conformes com o seu gênio. A cavalgata dos persas pôs fim à Babilônia, e lemos, em grego, como esses bárbaros aprenderam a atirar ao arco e dizer a verdade. Alexandre, o grego, marcha até à saída do sol, e regressa carregado de pássaros da cor da aurora, de frutos singulares e de pedrarias e de diademas de reis desconhecidos. O Islam, por sua vez, subjugou este mundo oriental e no-lo fez compreender, tendo nascido como nós, nas terras que rodeiam o nosso mar. Na idade média, o império mongol alarga seu poder sem diminuir seu mistério. Os tártaros conquistaram a China, e os chineses não se dignaram, sequer, adverti-lo.
 
Tudo isto é, em si, sumamente interessante, mas não suficiente para deslocar o centro de gravidade dos negócios humanos. Em resumidas contas, se não ficasse no mundo mais do que foi dito, feito, pensado e edificado no estanque mediterrâneo, seria um mundo admirável este em que vivemos.
 
Esta cultura meridional, quando estendeu suas conquistas até o Norte e o Oeste, produziu assombrosos resultados, dos quais nós, os ingleses não somos o menos assombroso. Quando ganhou terras novas além dos mares, continuou imperando durante todo o longo tempo em que foi cultura. Porém, todas as realidades profundas de que está feita pertencem às ribeiras do mar de Ulisses e de S.Paulo: a República e a Igreja, a Bíblia e Homero, Israel, o Islam e a memória dos impérios abolidos, Aristóteles e a medida de todas as coisas. E porque ela é a luz verdadeira da nossa jornada terrestre, não a escura claridade que cai das estrelas, por isso, assinalei o lugar onde pousou primeiro: nas cidades muralhadas do Mediterrâneo Oriental.
 
Em nossa imaginação aparecem, diretamente, em primeira fila, o Egito e a Babilônia, como na de nossos pais e na dos pais dos nossos pais. Isto não quer dizer que elas tenham vindo da Ásia e da África. Recentes e sábias investigações aumentam, incessantemente, o nosso conhecimento da antiga civilização européia, e, especialmente, dos que nos é preciso chamar gregos de antes da Grécia. Seu centro foi Creta, durante a era chamada “minoena”3, em lembrança do rei Minos, a quem a legenda imortalizou. Seu labirinto foi, efetivamente, exumado pelos nossos arqueólogos. Esta sociedade européia civilizada foi varrida pela invasão de seus vizinhos do norte, os quais criaram ou herdaram a Hélade que conhecemos pela História. Mas teve, antes de morrer, ocasião de fazer, ao mundo, presentes tão preciosos, que a Humanidade esforçou-se, em vão, depois de reconhecê-los, em plagiá-los.
 
Em um lugar escondido da costa jônica que dá frente a Creta e ao Arquipélago, elevava-se uma cidade, que chamaríamos, hoje, povoação fortificada. Chamava-se Ilion; depois, chamou-se Tróia, e seu nome vibra para sempre na memória dos homens. Um poeta que foi, talvez, mendigo e cantor ambulante, sem dúvida iletrado, e que a lenda apresenta como cego, compõe um poema, cujo assunto era a guerra que os gregos fizeram a esta cidade para reconquistar a mais bela mulher do mundo.
 
Que a mais bela mulher do mundo tenha habitado essa aldeia pode parecer lendário. Que o mais formoso poema do mundo fosse inventado por um homem, que não vira mais que essa aldeia, é um fato histórico. Assegura-se, em verdade, que a obra pertence ao período em que a cultura estava em seu ocaso. Se assim é, eu pergunto que produziria, então, em seu apogeu. Além disso, nosso primeiro poema podia ter sido, mesmo, o último; representa a primeira e a última palavra do homem sobre o seu destino terrestre. Se o mundo morre pagão, o último dos humanos, antes de fechar os olhos, andaria bem citando a Ilíada. Esta grande revelação da Humanidade antiga contém um elemento de alta importância histórica, que a história descuidou demasiado, até agora. O poeta concebeu, em efeito, o plano de seu poema de tal maneira, que suas simpatias vão – assim parece – ao vencido mais que ao vencedor. Enquanto às do leitor, não cabe dúvida, e este sentimento vai crescendo na tradição, à medida que se afasta de sua origem. Aquiles representa um papel como se fosse um semi-deus pagão e, depois, desaparece. Porém Heitor4 engrandece-se de século em século. Chega a ser um dos paladinos da Mesa Redonda e a sua espada é a que a canção põe nas mãos de Rolando em seu último combate, na púrpura e na glória de seu próprio desastre. A figura de Heitor traçada com linhas arcáicas sobre o crepúsculo matutino, é a imagem profética do primeiro cavalheiro. O nome de Heitor pressagia as derrotas sem número que deviam sofrer nossa raça e nossa fé, e o triunfo de sobreviver a todas as derrotas.
 
A narrativa do fim de Tróia não terminará nunca. Écos viventes, eternos como nosso desespero e como nossa esperança, o prolongam indefinidamente. De pé, permaneceria obscura; mas, sua queda foi suspensa por um sopro de fogo que a fixou para sempre no imortal instante de seu aniquilamento. A chama que a consome não se consumirá jamais.
 
O fogo sagrado correu como um incêndio ao largo das margens do mar interior, iluminando no cimo dos cabos e na ponta das ilhas o santo resplendor da pequena cidade que fez a grandeza dos cidadãos, da aldeia com cinturão de muralhas pela qual morreram os heróis. A Hélade, com suas mil estátuas, não deixou mais nobre imagem que a desta estátua viva: o homem dono de si mesmo. A Hélade, com suas estátuas, não tinha mais que uma poesia, e suas mil aldeias fortificadas ressoavam todas as lamentações de Tróia.
 
Uma legenda, concebida posteriormente, mas não de modo fortuito, indicou, mais tarde, que troianos desterrados haviam fundado uma república nas costas da Itália. É verdade, segundo o espírito, que a virtude republicana tivesse semelhante raiz. Um mistério de honra, que não é do Egito nem é de Babilônia, continuou brilhando na sombra, como o escudo de Heitor, desafiando a Ásia e a África, até a aurora sonora do dia ilustre, em que – com o vôo das águias e o troar do nome novo, o mundo despertou-se em presença de Roma.

  1. 1. Totem – Animal ou coisa que os selvagens da América têm como sagrada – Deus primitivo e grosseiro dos selvagens do novo continente.
  2. 2. Rotonde – Grande café em Paris.
  3. 3. O autor se refere a Homero, ao cantor da Ilíada.
  4. 4. Heitor – Herói troiano, filho de Príamo, vencido por Aquiles, e personagem principal da Ilíada que termina com os seus funerais.
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