Introdução
Uma pesquisa rápida pela internet, a leitura despretensiosa de livros caros à tradição católica, ou a simples consulta aos nossos padres sobre as causas da crise da Igreja e do caos dos nossos dias levam o pesquisador sério, ou o mero curioso, ao encontro de algumas encíclicas papais do século XIX.
Se a Quanta Cura de Pio IX ou a Libertas de Leão XIII se avultam entre as mais lembradas, para não citar outras tantas desses dois papas, sempre haverá uma primeira, aquela a partir da qual o estudo principia. Nossos autores e professores favoritos são quase unânimes em afirmar que Mirari Vos de Gregório XVI é este documento.
A encíclica tem algumas características que a distinguem das anteriores. Ela é abrangente sem deixar de ser clara; responde a um problema da época com afirmações atemporais; e ratifica condenações anteriores em conjunto, servindo de modelo para as futuras.
Dom Félix Sardá y Salvany, em seu livro “Liberalismo é pecado” (Permanência 292), explica a gênese do problema condenado pela encíclica de 1832:
“Já quando apareceu na França, em sua primeira Revolução, a famosa Declaração dos Direitos do Homem, que continha em germe todos os desatinos do moderno liberalismo, foi condenada por Pio VI. Mais tarde, esta doutrina funesta foi desenvolvida e aceita por quase todos os governos da Europa, mesmo pelos príncipes soberanos, o que é uma das mais terríveis cegueiras que a história das monarquias ofereceu. Tomou em Espanha o nome pelo qual hoje é conhecida em toda parte: liberalismo.”
Continua o padre: “Ocorreram as terríveis contendas entre monarquistas e constitucionalistas, que se designaram mutuamente pelos nomes de servis e liberais. Da Espanha, essa denominação estendeu-se por toda a Europa. Pois bem, na maior força da luta, por ocasião dos primeiros erros de Lamennais, Gregório XVI publicou sua Encíclica Mirari Vos, condenação explícita do liberalismo, tal como era então entendido, ensinado e praticado pelos governos constitucionais.”
O grande arcebispo Dom Marcel Lefebvre, no Capítulo X de seu livro “Do liberalismo à apostasia”, reúne as principais condenações papais à liberdade religiosa, uma das facetas do ‘liberalismo’. Começa curiosamente citando Pio VI e Pio VII, papas que reinaram na eclosão da Revolução e na Ascensão de Napoleão ao trono francês, respectivamente, para depois citar Mirari Vos.
Pio VI condena a liberdade religiosa em sua carta Quod Aliquantulum, de 10/03/1791:
“A finalidade da Constituição decretada pela Assembleia é aniquilar a religião católica, e com ela a obediência devida aos reis. O resultado é que se estabelece na sociedade, como se fosse um direito do homem, esta liberdade absoluta que não só lhe assegura o direito de não ser perturbado quanto às suas opiniões religiosas, como também lhe assegura licença de pensar, de dizer, de escrever, e até mesmo de imprimir impunemente tudo o que possa sugerir a imaginação mais desordenada; direito monstruoso que parece à Assembleia ser o resultado da igualdade e liberdade naturais a todos os homens. Mas o que poderia haver de mais insensato do que estabelecer entre os homens tal igualdade e tal liberdade desenfreada que parece afogar a razão, o dom mais precioso que a natureza fez ao homem e o único que o distingue dos animais?”
Pio VII, na carta apostólica ao bispo de Troyes Post tam Diuturnas, de 29/04/1814, incrimina a “liberdade de cultos e de consciência” estabelecida pela Constituição de 1814 do Rei Luís XVIII :
“Um novo motivo que aflige ainda mais o nosso coração, enche-o de tristeza e que, confessamos, causa-nos tormento, opressão e angústia é o artigo 22 da Constituição. Nele não só se permite a liberdade de cultos e de consciência, como também promete-se apoio e protecção a esta liberdade e aos ministros dos chamados ‘cultos’. Certamente não são necessárias muitas explicações ao nos dirigirmos a um bispo como vós, para vos fazer conhecer claramente que ferida mortal este artigo infligiu à religião católica na França. Pelo mesmo artigo que estabelece a liberdade de todos os cultos sem distinção, confunde-se a verdade com o erro e se coloca no mesmo grupo das seitas heréticas, inclusive da pérfida judaica, a Esposa Santa e Imaculada de Cristo, a Igreja fora da qual não há salvação.”
Havia, portanto, a percepção desde muito cedo que a Revolução era a fonte de diversos erros, em especial o “liberalismo”, que acaba por assumir o papel mais importante dentre as consequências práticas de 1789.
Mas afinal, o que é liberalismo?
Por se tratar de termo que abrange muitos significados, e que hoje é capaz de exprimir ideias distintas, resumo abaixo um excerto de um artigo publicado na Revista Permanência 292, escrito pelo padre da FSSPX Grégoire Célier, em 2004.
Segundo o sacerdote “… o liberalismo é o maior de todos os erros da sociedade moderna”, porém, em seguida, ele admite que essa afirmação representa uma ‘esquematização’. “Por que se a verdade é una, o erro é múltiplo, (…) pois se nós detivermos nas relações entre a criatura espiritual e Deus, mediadas pela graça sobrenatural, deve-se falar de ‘naturalismo’; se nos interessarmos pelo exercício da razão humana em face da Revelação divina, deve-se falar de ‘racionalismo’; se considerarmos a situação da vontade em relação à obrigação religiosa, deve-se falar em ‘indiferentismo’; se examinarmos a acção da vontade em relação com os mandamentos de Deus, deve-se falar de ‘moral independente’.”
Continua o autor: “De fato, somente quando falamos da vida política e social em sua relação com Deus e a revelação podemos empregar com rigor o termo ‘liberalismo’. Assim é que de boa vontade resumimos o conjunto dos erros modernos com essa palavra, enfatizando o aspecto social e político.”
E conclui: “… o liberalismo busca acima de tudo a emancipação diante de Deus como fim último do homem e da sociedade humana. E, para alcançá-la, estabelece como princípio fundamental que a liberdade é o primeiro e principal bem do homem, um bem sagrado e absolutamente inviolável, que não se pode ameaçar de forma alguma.”
O surgimento de Lamennais
No início da Restauração (1814-1830) o pleno entendimento do “liberalismo”, isto é, a apreensão do conceito como ‘esquema’ por parte da cúria, dos papas e da maioria dos estudiosos era extremamente difícil.
E é nesse momento que surge Hugues Felicité Robert de Lamennais, um padre francês brilhante, que faz convergir para si muitas inteligências, e recebe o apoio papal tão logo publica sua primeira grande obra: “Essai sur l’indiference en matière de Religion”, de 1817-23.
Leão XII (1823-29) chega a recebê-lo em Roma, no verão de 1824, e lhe oferece uma distinção particular por seus serviços. Parece inclusive se inspirar na obra do padre para escrever sua “Ubi primum”, encíclica em que condena o “indiferentismo”ou “tolerantismo”:
Ei-la: “Certa seita… mostrando uma agradável aparência de piedade e benevolência, professa e exalta o tolerantismo, ou seja, o indiferentismo, não só nas questões civis, que não são nosso assunto, mas também nas questões de religião, ensinando que por Deus foi dada a cada pessoa ampla liberdade, para que qualquer um, sem perigo para a salvação, possa abraçar e adoptar a seita ou opinião que segundo seu juízo pessoal lhe agradar. A esta afirmação se contrapõe o apóstolo Paulo [Rm 16,17]. Claro que este erro não é novo, mas em Nossos dias ele irrompe com fúria contra a constância e integridade da fé Católica. (…) O indiferentismo corrente desenvolveu-se ao ponto de arguir que qualquer um está no caminho certo… .”
O prestígio de Lamennais era tão grande que o papa seguinte, Pio VIII (1829-30), também o tinha em grande estima. Sua encíclica “Traditi humilitati” de 1829 reforça o ensinamento de seu antecessor, e traça um programa para o seu pontificado em que combateria o indiferentismo:
“… A autoridade da Igreja é enfraquecida e os guardiões das coisas sagradas são afastados e tratados com desprezo. Todas as coisas que concernem à religião são consideradas velhas fabulas e vãs superstições. … pela conspiração dos sofistas deste século, que não admitem qualquer diferença entre diferentes profissões de fé e que pensam que a porta da eterna salvação está aberta para todos de qualquer religião. (…) De facto essa ideia malfadada que afirma a ausência de diferença entre religiões é refutada até pela luz natural da razão. Nós somos assegurados disso porque as distintas religiões não concordam entre si. Se uma é verdadeira, a outra certamente é falsa, e não pode existir nenhuma associação entre a luz e as trevas. Contra esses sofistas experimentados o povo deve ser ensinado que a profissão da fé Católica é a única verdadeira, como o Apóstolo proclama: Um só Senhor, uma só fé, um só baptismo.”
O decisivo ano 1830
Cada papa do drama que descrevemos era testado pelas obras dos seus “filhos queridos em Cristo”: os reis e imperadores ‘soi disant’ católicos. Pio VI por José II da Áustria, com seu josefismo, Pio VII por Napoleão, Leão XII pelo ressentimento e incompetência dos Bourbons de Espanha e França, e Pio VIII pela Revolução de Julho na França.
De fato, a partir de 1830, as monarquias europeias entraram em ebulição. Lembremos o exemplo português que nos é mais próximo, em que a sucessão de Dom João VI suscitou uma guerra que opôs os irmãos Miguel, católico, e Pedro, maçom.
Mas Pio VIII, ao contrário de seus antecessores, não opôs qualquer resistência à Revolução em curso na França. Censurou clérigos franceses que buscaram refúgio nos Estados Pontifícios (EP) e ‘legitimou’ o “Rei dos franceses” Luis Felipe de Orleans, entendendo a causa como perdida, e escolhendo o que entendeu como o “mal menor” para evitar um conflito. Morreu com apenas 20 meses na cátedra de Pedro, três dias após a visita de Nossa Senhora das Graças à uma freira da Rue du Bac.
Naquele segundo semestre, outras rebeliões eclodiram na Bélgica, na Polônia e nos EP, dificultando ainda mais as tomadas de decisão de Pio VIII e da Cúria, que se veem no fim do ano num interregno e na necessidade de um conclave rápido. Em outubro do mesmo ano, é lançada na França a revista “L’Avenir”, fundada por Lamennais e seus correligionários, entre eles, Lacordaire, Montalembert e Dom Gueranger. A revista defende o impensável: a separação de Igreja e Estado, adota a divisa “Deus e Liberdade”, e apoia indiretamente o governo que se instalara havia três meses.
Sob o pretexto da opressão dos católicos que viviam em países de maioria protestante ou cismática, passam a discutir a legitimidade dos reis, segundo uma nova interpretação da doutrina perene de Igreja: nascia o “catolicismo liberal”.
Em 1960, no seu livro “Revolution and Papacy”, E. E. Y. Hales explica com certa simpatia a reivindicação dos ‘católicos liberais’:
“Por volta dos anos 1830, a teoria liberal se espraiava difusamente em um largo campo de ideias, alguns deles mais revolucionários, outros menos, mas não necessariamente todos eles mereceriam ser classificados como maus porque haviam sido praticados na Revolução Francesa de 1789, ou na República Romana de 1798, ou na Cisalpina, ou porque aqueles regimes haviam sido bastante hostis aos direitos da Igreja. Os cardeais às vezes percebiam isso, mas quando consideravam a filosofia do problema, eles sempre se deparavam com o intrigante fato de que a soberania defendida pelos liberais deveria pertencer, de uma ou outra maneira, ao povo. E isto soava como absurdo a eles, porque eles estavam bem certos de que a soberania pertencia a Deus, e sob Ele deveria permanecer com a Igreja, na esfera espiritual, e com os seus legítimos príncipes na esfera temporal. Este último poderia fazer concessões, mesmo concessões bem consideráveis – assembleias representativas e similares – tais como as que existiam na Inglaterra e na França, mas elas eram concessões. Elas não poderiam existir como um direito, porque o povo não tem direitos soberanos contra os seus príncipes, excepto se os mesmos negassem ao povo sua religião, e mesmo assim seria um erro insistir nesses direitos, se fazer isso significasse destronar um príncipe legítimo, e eles achavam isso um erro muito maior do que Suarez poderia supor.”
Nesse contexto é eleito o papa seguinte, um monge beneditino camaldulense nascido no Vêneto, professor de filosofia e teologia, e até o conclave, Cardeal Prefeito da Propaganda Fidei (PF). Escolheu para si o nome Gregório, uma homenagem ao patrono do seu mosteiro (São Gregório no Monte Célio) e ao fundador da PF (Gregório XV).
Entronizado em fevereiro de 1831, em meio a uma crise política e administrativa nos EP, um regime liberal na França, rebeliões em vários estados europeus e a influência funesta da revista L’Avenir, dirigida e editada por sacerdotes “católicos”, Gregório XVI só consegue publicar uma encíclica respondendo a todos os males do seu tempo em agosto de 1832, um ano e meio depois de escolhido.
Justificou assim seu silêncio: ‘A rebelião dos ímpios’.
Mirari Vos: resposta ao ‘liberalismo’
A encíclica compila em vinte parágrafos [versão em português] as justificativas para sua demora, a exposição e condenação dos erros, a reafirmação da doutrina perene da Igreja e a indicação do remédio para esses males.
Abaixo transcrevo excertos da encíclica, que mais mereceria ser lida in toto 1.
JUSTIFICATIVA PARA A SUA DEMORA
1 – “Creio-vos admirados, porque desde que sobre nós pesa o cuidado da Igreja universal, ainda não vos dirigimos Nossas cartas (…). Mas bem sabeis que a procela de males e aflições que nos combateu (…). E Nós, ainda que com tristeza indizível, vimo-Nos obrigado a reprimir, com pulso firme, a contumácia daqueles homens, cujo furor se exaltava de mais a mais, longe de se abrandar pela constante impunidade e pela Nossa clemência…”
2 – “…O clamoroso estrondo de opiniões novas ressoa nas academias e liceus, que contestam abertamente a fé católica, não já ocultamente e por circunlóquios, mas com guerra cura e nefária; e, corrompidos os corações dos jovens pelos exemplos e ensinamentos dos mestres, cresceram desproporcionadamente o prejuízo da religião e a depravação dos costumes. Por isso, rompido o freio da religião santíssima, somente em virtude da qual subsistem os reinos e se confirma o vigor da potestade, vemos campear a ruína da ordem, a desonra dos governantes e a perversão de todas a autoridade legítima; e a origem de tantas calamidades devemos buscá-la na acção simultânea daquelas sociedades, nas quais depositou, como em sentina imensa, quanto de sacrilégio, subversivo e blasfemo acumularam a heresia e a impiedade em todos os tempos”.
EXORTAÇÃO AOS BISPOS PARA SE MANTEREM UNIDOS À SÉ DE PEDRO
3, 4 e 5 – “… Para reprimir, portanto, os que ora intentam infringir os direitos desta Sé, somente na qual se apoiam e recebem vigor, preciso é inculcar um sentimento profundo de fidelidade e veneração para com ela, (…). Deveis [Bispos], pois, trabalhar e vigiar assiduamente, (…). Portanto todo Bispo deve aderir fielmente à Cátedra de Pedro, guardar o depósito da fé santa e apascentar o rebanho de Deus que lhe foi confiado… .”
DEFESA DA DOUTRINA IMUTÁVEL DA IGREJA, DO CELIBATO CLERICAL E DO MATRIMÔNIO
6 – “… com efeito, como reza o testemunho dos Padres do Concílio de Trento, que ‘a Igreja recebeu sua doutrina de Jesus Cristo e dos seus Apóstolos, e que o Espírito Santo a está continuamente assistindo, ensinando-lhe toda a verdade’, é por demais absurdo e altamente injurioso dizer que se faz necessária uma certa restauração ou regeneração, para fazê-la voltar à sua primitiva incolumidade, dando-lhe novo vigor, como se fosse de crer que a Igreja é passível de defeito, ignorância ou outra qualquer das imperfeições humanas;… .”
7 – “Reclamamos, aqui, (…) combater a torpíssima conspiração que se tem tramado contra o celibato clerical, a qual, como sabeis, cresce de momento para outro, porque com os falsos filósofos do nosso século fazem coro alguns eclesiásticos que, esquecidos da sua dignidade e estado, e aliciados pela voluptuosidade, chegaram a licenciosidade tal a ponto de em alguns lugares se atreverem a pedir publicamente a faculdade aos príncipes para infringir tão santa disciplina… .”
8 – “Devemos, pois, ensinar aos povos que o matrimonio, legitimamente contraído, já não pode ser dissolvido, e que os unidos pelo matrimonio formam, por vontade de Deus, sociedade perpétua com vínculos tão íntimos que só a morte os pode dissolver… .”
CONDENAÇÃO DOS ERROS
9 – “Outra coisa que tem acarretado muitos males … é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria espalhada por toda parte, graças aos enganos dos ímpios, e que se ensina poder-se conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do recto e honesto… .”
10 – “Dessa fonte lodosa do indiferentismo promana aquela sentença absurda e errônea, digo melhor disparate, que afirma e defende a liberdade de consciência. Este erro corrupto abre alas, escudado na imoderada liberdade de opiniões que, para confusão das coisas sagradas e civis, se estendendo por toda parte, chegando a imprudência de alguém se asseverar que dela resulta grande proveito para a causa da religião. Que morte pior há para a alma, do que a liberdade do erro! dizia Santo Agostinho(…) Daqui provém a efervescência de ânimo, a corrupção da juventude, o desprezo das coisas sagradas e profanas no meio do povo; em uma palavra, a maior e mais poderosa peste da república, porque, segundo a experiência que remonta aos tempos primitivos, as cidades que mais floresceram por sua opulência, extensão e poderio sucumbiram, somente pelo mal da desbragada liberdade de opiniões, liberdade de ensino e ânsia de inovações.”
11 e 12 – Devemos tratar também neste lugar da liberdade de imprensa, nunca condenada suficientemente, se por ela se entende o direito de trazer-se à baila toda a espécie de escritos (…). Há quem leve a ousadia a tal requinte, a ponto de afirmar intrepidamente que esse aluvião de erros que se está espalhando por toda a parte é compensada por um ou outro livro que, entre tantos erros, se publica para defender a causa da religião. É por toda forma ilícito e condenado por todo direito fazer um mal certo e maior, com pleno conhecimento, só porque há esperança de um pequeno bem que daí resulte… .”
13, 14 e 15 – “Mas, tendo sido divulgadas, em escritos que correm por todas as partes, certas doutrinas que lançam por terra a fidelidade e submissão aos príncipes, com o que se alenta o fogo da rebelião, deve-se vigiar atentamente para que os povos, enganados, não se afastem do caminho do bem. Saibam todos que, como disse o apóstolo, toda autoridade vem de Deus e todas as que existem foram ordenadas por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordem de Deus e se condena a si mesmo… .”
16 – “Mais grato não é também à religião e ao principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a Igreja e o Estado, e romper com a mútua concórdia do sacerdócio e do império. Sabe-se, com efeito, que os amadores da falsa liberdade temeram ante a concórdia, que sempre produziu resultados magníficos, nas coisas sagradas e civis.”
CONDENAÇÃO DE CERTAS ASSOCIAÇÕES
17 – “… devem-se acrescer certas associações ou assembleias, as quais, confederando-se com sectários de qualquer religião, simulando sentimentos de piedade e afecto para com a religião, mas na verdade possuídas inteiramente do desejo de novidades e de promover sedições em toda parte, pregam liberdades de tal jaez, suscitam perturbações nas coisas sagradas e civis, desprezando qualquer autoridade, por mais santa que seja.”
INDICAÇÃO DO REMÉDIO PARA ESSES MALES
18 – “… Abraçai, de modo especial, e com afecto paternal, aos que se dedicam à ciência sagrada e à filosofia, exortando-os e guiando-os a fim de que não aconteça que, estribando-se imprudentemente em suas forças, se afastem do caminho da verdade, para seguir as sendas dos ímpios. Entendam que Deus é Senhor da sabedoria e emendador dos sábios (Sab. 7,15) e que é impossível compreender a Deus sem Deus; Deus, que pelo Verbo ensina aos homens a conhecer Deus. É próprio de homens soberbos ou antes néscios querer sujeitar ao critério humano os mistérios da fé, que ultrapassam a capacidade humana, confiando unicamente em nossa razão, que por natureza é débil e fraca.”
19 – “Finalmente, secundem os príncipes estes nossos santos desejos de feliz êxito das coisas sagradas e profanas com seu poder e autoridade, pois não a receberam somente para o governo temporal, mas também para a defesa e guarda da Igreja. Saibam que, quanto se faz em favor da Igreja, destina-se, ao mesmo tempo, ao bem-estar do império; convençam-se sempre mais que devem maior estima à causa da fé que à do reino, e que serão maiores se, segundo São Leão, à sua coroa de reis se ajuntar a da fé.”
PEDE A INTERCESSÃO DE NOSSA SENHORA, SS PEDRO E PAULO E A CONSOLAÇÃO A NOSSO SENHOR
20 – “E para que todos estes desejos se realizem propícia e felizmente, elevemos nossos olhares à Santíssima Virgem Maria, ‘a única que destruiu todas as heresias e constitui a nossa maior esperança’ (São Bernardo, sem. De nativitate B.M.V., 57)… Peçamos humildemente aos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo o dom de permanecermos firmes e constantes em não permitir e nem querer outro fundamento… Apoiado nesta doce esperança, esperamos que o autor e consumador da fé, Cristo Jesus, nos consolará nestas grandes tribulações, (…).”
Conclusão
A encíclica termina pedindo à intercessão de Nossa Senhora para o bom êxito dos desejos, conselhos e ações nela expressos, mas já no seu primeiro parágrafo lhe solicitava a inspiração para escrevê-la. Não por acaso, a carta é datada na véspera da festa de sua gloriosa Assunção, 14 de agosto, e publicada no dia seguinte.
Solicitar a intercessão da Virgem Maria é uma nota que acompanhava os documentos papais desde há muitos séculos. Porém, menos comum do que o esperado, sendo mais encontrado os nomes dos apóstolos Pedro e Paulo e de Nosso Senhor. Também vale salientar a frase ‘a única que destruiu todas as heresias…’, atribuída a São Bernardo, que passou a indicar um propósito, e que será repetido por papas posteriores, mas que, de fato, já havia sido lembrada por Pio VIII na sua‘Traditi humilitati”.
Mesma intenção podemos apontar em relação às datas escolhidas para a publicação: Mirari Vos (15 de agosto – Assunção), Traditi humilitati (24 de maio – N. Sra. Auxiliadora), Quanta Cura (08 de dezembro – Imaculada Conceição) e Pascendi(08 de setembro – Natividade). O papa compreendeu de que auxílio necessitava para derrotar inimigo tão pernicioso: daquela “que esmagará a tua [da serpente] cabeça”.
Por fim, parece justo estabelecer a primeira encíclica do papa Capellari como ponto de partida para um estudo sobre a crise sem fim de nossa época. Entretanto, para fazer justiça aos papas anteriores, Gregório XVI não é o primeiro a condenar os erros do seu tempo.
Mirari Vos não rompe, nem inova o magistério da Igreja, mas é como que o resumo e o ajuste de tudo que foi dito antes pelos papas que sofreram o drama da Revolução em sua fase francesa pós 1789, assim como uma demonstração emblemática daquilo que sempre a Igreja ensinou e condenou, opondo-se aos males de cada época, nesse caso o “liberalismo”.