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A crise das elites

Marcel de Corte

Com esse título abrangente e ambicioso demais, gostaria de falar com a maior simplicidade possível sobre coisas conhecidas e, principalmente, sobre coisas desconhecidas, que só se tornaram desconhecidas por causa do mundo moderno. Hoje conhecemos muitas coisas que nossos pais ignoravam. A civilização atual, que é essencialmente uma civilização do livro ou do impresso, a cada dia introduz nos cérebros uma massa de conhecimentos que digerimos mais ou menos bem, ou melhor, nem tão bem assim. Estendem-se tais conhecimentos a objetos tão numerosos que a multidão deles amedrontaria as gerações que nos precederam. Para tanto, comparem-se os estudos que se exigiam dos médicos há trinta ou quarenta anos, com os que se exigem atualmente – e isso vale para todas as profissões. Em contrário, segundo uma lei bem simples, expressa no provérbio “um prego empurra o outro”, esse afluxo de informações submergiu certas evidências elementares e as relegou ao esquecimento. Os leigos e os cientistas já não conhecem, por ex., os nomes das quatro virtudes cardeais que outrora o comum do povo conseguia apontar nos vitrais ou nas estátuas das catedrais. Recobriu-se de sombras uma área imensa do saber; em todo lugar regrediu o saber moral, o saber propriamente humano. (Continue a ler)

Em poucas palavras, poder-se-ia afirmar que nunca os conhecimentos do mundo e do homem foram tão diversos e numerosos, e que nunca o conhecimento do mundo e do homem foi tão confuso e pobre. A mim parece capital a distinção entre este singular e aquele plural, pois é ela a distância entre um homem que faz experiências num domínio qualquer e um homem experimentado, entre as honrarias e a honra, entre os títulos e a autoridade, etc. Não se trata apenas duma oposição entre saberes especializados e o saber que os coordena, ou entre o múltiplo e o uno, mas entre a superfície e a profundidade. Simboliza-se ela talvez na evidente diferença que existe entre a chamada “psicologia das profundezas”, que explora o inconsciente humano, e “a psicologia profunda”, que penetra até ao cerne da natureza e cujo lume aos lampejos esclarece certas obras de gênio; ou ainda entre a microfísica, que analisa os compostos mais sutis da matéria, e o sentido universal que o gênio traz em si. Os melhores homens acumularam essas riquezas, mas já não há quem as reconheça: hoje em dia, ao eterno que aqueles homens traziam em si prioriza-se o atual e a novidade; ao conhecimento normal, o gigantismo; ao original, o estranho e as contorções que certas pessoas às vezes se obrigam a fazer de modo a parecerem originais: “Precisaríamos do novo, se já não estivesse no mundo”, dizia-nos o Fabulista.

Não vos trarei novidades; meu desejo é simplesmente (e digo “simplesmente” com aquela dúvida de quem acha que está abaixo da tarefa) vos tanger aquela fibra que a acumulação dos conhecimentos embotou. Sem dúvida, essa é uma fibra pessoal, que ou ainda existe ou já deixou de existir. Intentarei tocar em cada um esse ponto sensível do ser, que subsiste sob o montão dos conhecimentos atuais. Intentarei fazer brotar em vós já aquilo que dizia o poeta: “O confuso ruflar de asas recriador”.

“Não me forcem a submeter meus discursos ao sufrágio da multidão, proclama Sócrates no Górgias, o único que chamo como testemunha de minhas palavras é o observador onisciente: a massa não me interessa. Só o sufrágio dele me importa; não dirijo minhas palavras à multidão.” E como acabei de citar um poeta, vou acrescentar mais um, o velho Íbicos, que temia “ofender os deuses agradando aos homens”.

Eis-me então diante do problema das elites, cujo sentido quero apontar. Que mais poderia dizer, senão a evidência de que elite implica superioridade? A elite é a “flor”; como a flor que ergue a haste acima do solo, a elite está acima do rasteiro e designa os melhores indivíduos duma espécie: são a mesma coisa a elite do exército e a flor do exército, mas se deve ter em conta algumas nuanças: “A flor” indica o que existe de mais brilhante e notável em beleza, nascimento, talento, etc., enquanto elite exprime o preferível e o mais escolhido. A palavra já diz isso: elite deriva dum antigo particípio passado do verbo eleger [élire], e eleição implica designação a uma dignidade ou função, em razão duma escolha. A elite pressupõe a aprovação de outrem, entendida não apenas no sentido de sufrágio universal ou eleição democrática, mas no sentido de estima mais ou menos difusa no grupo, sem os traços artificiais da propaganda; trata-se antes dum reconhecimento natural e espontâneo dos “melhores” do grupo. Expressões como “elite do exército”, “elite da classe” e “elite do país” demonstram o significado social da elite. Mas há sociedades e sociedades, assim como há palheiros e palheiros. A elite se origina da comunidade hierarquizada, cujo destino ela partilha com mais vigor e lucidez que os outros membros. Numa comunidade qualquer, todos se submetem às mesmas alegrias e tristezas numa interdependência mútua de que a elite assume os maiores esforços e maiores honras que daí resultem. É impossível imaginar, um instante sequer, uma dissociação entre o destino da elite do exército e o destino da tropa durante uma batalha. A característica essencial da elite é conjugar o máximo de comunhão com o máximo de diferença em relação ao inferior. Por isso, a elite emerge acima da comunidade dos mortais, pois sua existência é incompatível com a estrutura duma sociedade igualitária e atomizada qual uma sociedade de escravos: o chefe dos escravos não faz parte da elite.

Segue-se daí que a natureza da elite depende essencialmente da estrutura do grupo social de que participa. Ela vai variar de acordo com o grupo social: a elite dos bombeiros não terá as mesmas características da elite dos médicos. Que definirá a elite dum grupo? Decerto, a finalidade que o grupo persegue e as virtudes de que se vale para alcançá-la. Definir-se-á a elite do exército pelo objetivo do exército: defender a integridade do território nacional, com a coragem que requer tal objetivo. Definir-se-á a elite dos camponeses pela valorização do solo, pelas virtudes da paciência, do apego ao solo, da submissão aos ritmos da natureza, etc. Mas a elite não se define apenas através dos fins e dos meios de grupos particulares e um tanto restritos.

Para além das pequenas sociedades de fins limitados e de virtudes quase sempre ligadas a um ofício ou profissão, existe aquilo que se pode chamar de “a grande sociedade”, o conjunto dos homens que participam da civilização comum e possuem uma mesma concepção do homem. As civilizações passadas tiveram elites que encarnavam certo ideal humano; todas se propuseram a concretização dum tipo humano cuja essência se conformava à sociedade; para alcançar tal fim, cultivaram virtudes propriamente humanas. É impossível compreendermos a civilização grega sem conhecer o kalos kagathos, “o belo e o bom” de que se compunha a flor dos cidadãos; a civilização romana sem o vir bonus dicendi peritus ou sem o civis romanus; a civilização medieval sem o santo, o cavaleiro, o hidalgo; a civilização francesa do século XVII sem o honnête homme; a civilização inglesa anglo-saxã sem o gentleman. Uma civilização não se limita a ser um repositório de obras literárias, artísticas, científicas e religiosas: é antes certo modo de vida, de atitudes e de hábitos que distingue o homem do animal, e cuja perfeição e maturidade é apanágio dos melhores, i. e., das elites. Por isso, as grandes civilizações puseram em relevo certo tipo de homem e de modelo humano que talvez não exista, mas cuja atração ordena os esforços dos que se beneficiam de seu esplendor. A tendência da elite é seguir o modelo que lhe é proposto: ela dá testemunho desse esforço de aperfeiçoamento, trabalha de modo pessoal para que o modelo se entranhe nela, ergue obras que concretizam o ideal e, sobretudo, pratica as virtudes humanas, que são outras tantas aproximações do modelo. As elites respondem à finalidade elevada que se lhes oferecem com ações virtuosas que a encarnem. Já não se trata de virtudes especializadas e orientadas, como nas sociedades restritas, nem de capacidades que por certo e amiúde estão acompanhadas de carências: uma pessoa pode pertencer à elite do exército, ter em registro várias ações grandiosas, revelar grande coragem diante do perigo – e faltar com as outras virtudes que constituem o homem completo. Aqui estamos falando dos modelos que só se concretizam com a prática das virtudes que constituem o homem em sua plenitude. Os tipos humanos que as civilizações propõem à imitação das elites tentam abarcar o homem na sua totalidade e se baseiam nas virtudes cardeais, de que dependem as demais virtudes e que evoco a toda hora: a prudência, a justiça, a força e a temperança. Certamente os modelos humanos não serão idênticos em cada uma das civilizações: o cavaleiro da Idade Média não corresponde com exatidão ao cidadão romano, nem este ao finíssimo honnête homme, o que não impede que todos se esforcem, por caminhos análogos, a um mesmo objetivo ou na mesma direção. É possível imaginar, sem que haja absurdo, uma conversa nos Campos Elíseos entre os homens virtuosos de outrora, pois todos tendiam a “bem fazer o homem”; eles iriam se entender.

Alguém que vislumbre o cortejo das civilizações na Europa desde a origem, percebe que cada uma conseguia engendrar um tipo humano que inspirava suas elites, quando o modelo anterior desaparecia junto com a civilização a que se ligava. Por uma espécie de retorno às fontes, a civilização nova se nutria nas mesmas profundidades humanas que a civilização decaída, de sorte que as histórias [das duas civilizações – a nova e a antiga] manifestam duma ponta à outra a continuidade e, a despeito das diferenças, certa identidade, ou melhor, certa convergência entre os tipos humanos, o que explica a ausência de fraturas abruptas entre eles: cada um herda algo do modelo que o precedeu, pois todos participavam dum substrato comum. Desse modo, os tipos de homens formavam uma corrente invisível que uniu as diversas civilizações que se sucederam no Ocidente.

É testemunha disso o exemplo do honnête homme em relação ao modelo anterior. O modelo de homem medieval, encarnado em São Luís, possui características bem nítidas: ele se submete à revelação sobrenatural, desafia os exuberantes instintos, pratica o ascetismo, protege os fracos, revela coragem física e moral, orienta o espírito em direção a Deus, preocupa-se com a salvação da própria alma. Tais elementos formam na alma uma paveia bem ligada. O homem medieval busca o ponto de equilíbrio no lugar mais elevado. Ele poda os brotos que superabundam nas suas poderosas raízes vitais; nele porém não há vestígios de dualismo, nem de oposição entre as partes do ser, nem de conflito entre o espírito e a vida. Se houve alguma vez homem que fosse “duma só peça”, esse era o homem medieval. A elite recusou tal modelo a partir da tremenda crise dos séculos XV e XVI, causada pelas grandes invenções, as grandes descobertas, o nascimento da ciência, a consciência de que o homem depende de si e das próprias forças, o desenvolvimento da curiosidade, a confiança no poder da razão humana em resolver os problemas do mundo e da vida, a admiração e a exaltação duma natureza amputada das relações com o Verbo Encarnado, etc. Para se perceber a antítese entre o modelo humano medieval e o renascentista, basta comparar um São Luís, um grande místico, um grande fundador de ordem, um grande predicador das cruzadas – enfim, os membros da elite medieval – com um Leão X, um Leonardo da Vinci, um Rabelais, um Maquiavel, um Montaigne, um Francisco I, um Henrique IV, etc. Assistimos a uma explosão de energias dispersas que em vão tentavam se coordenar já não à elevadíssima ordem do sobrenatural, mas à altura da natureza que a inteligência humana interpreta. O homem inteiriço desapareceu. Esses dois tipos humanos se chocaram e se feriram de morte: nem um nem outro sobreviveram como tais. Ora, o século XVII os recuperou ao sintetizá-los com ordem, harmonia e hierarquia; absorveu as duas aspirações que se defrontavam e as equilibrou no mesmo patamar. Num átimo se acordaram a natureza e a fé, graças a um instrumento novo, que já se encontrava forjado nas oficinas dos grandes teólogos medievais e dos filósofos gregos: a razão. A razão do século XVII não é racionalista, mas repleta e ardente, que se conhece a si como reflexo da razão e que tem horror dos próprios excessos:

“A perfeita razão foge à extremidade

E quer que saibamos com sobriedade.”

Essa razão percebe o real não só em generalidade, mas também em multiplicidade variada e móvel; penetra os matizes mais sutis da vida psicológica e moral. Possui duas diretivas, sempre parelhas, o espírito de geometria e o espírito de fineza.

A fraqueza do honnête homme – tal como a do gentleman, cuja concepção se funda no empirismo – se deve certamente aos tênues laços intelectuais e afetivos que o liga a uma finalidade transcendente ao homem. Nem a recusa do excesso, no sentido duma usurpação da vontade dos deuses, de que é prova “o belo e o bom”; nem o culto dos ancestrais e de Roma, que era a preocupação do cidadão romano; nem o amor a Deus e ao próximo, que animava o santo e o cavaleiro medieval – ressurgiram renovados e reanimados na civilização francesa do século XVII, para a qual a religião era, sobretudo, tradição. Preocupado em conservar a razão dentro dum equilíbrio razoável, e ademais preenchendo todas as possibilidades de tal equilíbrio e temendo o retorno da chama anárquica dos conflitos que tratava de sublimar ao seio, o honnête homme se conserva naquele grande caminho do meio de que dispõe: a razão exercida em detrimento da finalidade. Ele prefere apegar-se a uma conduta de regras e conveniências a elevá-la até a um Ser que a supere; prefere opor à agitação do Renascimento, de cujos efeitos ainda se ressente, virtudes sólidas, e já não uma finalidade superior. Ninguém melhor que Pascal experimentou a atração desse duplo abismo da razão livre e dos instintos naturais libertos, que foi a grande tentação do homem abortado do Renascimento; não houve quem aguilhoasse com mais sapiência a virtude dominante da razão – em todas as suas formas, grosseiras ou sutis –, que boiava na fervura das potências obscuras que lavravam o homem. “Trabalhemos para bem pensar”: a prescrição demonstra o quanto a atenção de Pascal, por mais místico que fosse, estava atraída mais pelo meio que pelo fim.

A literatura do Grande Século – como as memórias e as correspondências que chegaram até nós – proclama o honnête homme como o polo de atração das elites da época. Essa repercussão marca novamente a relação entre o modelo ideal e a elite que o encarna e vivifica, e de tal modo que é possível enunciar esta lei: não há elites sem arquétipos de homem.

É significativo que a noção de modelo humano perfeito tenha desaparecido atualmente; ele ainda subsiste nos livros de história da civilização, que nos recordam a existência duma concepção comum de homem em direção à qual se orientavam, conscientemente ou não, os esforços dos melhores e a admiração aprobatória dos demais.

Conhecemos os antecedentes dessa derrocada: Paul Hazard expô-los magistralmente no livro A Crise da Consciência Europeia. O tipo do honnête homme desapareceu já no fim do século XVII, não sendo substituído por nenhum outro tipo durável. Não é de espantar que, à falta de modelos, as elites se tenham extraviado. As causas desse imenso fenômeno histórico, cuja amplidão em espaço e tempo se compara aos longos séculos de estagnação que se seguiram à queda da civilização antiga, são também mui conhecidas: o individualismo, que destruiu a concepção comum do homem; a ruína das hierarquias; o esfriamento da fé cristã, etc.

Resumem-se elas numa fórmula: a crise do homem. Há dois séculos que os homens não sabem o que são: já não existem modelos que lhes proponham o ser homens completos, homens que têm os pés na terra e a cabeça voltada ao céu. Eles já não sabem o que são nem sabem se tornar o que são; vagueiam ao acaso na busca do ser e se arrimam sobre o que lhes aparece. Uns se mudam em ventres, outros em cérebros; uma ou outra das multíplices tendências em que se reparte o ser humano – e que o modelo desaparecido reunia em sua síntese – constitui a finalidade total da vida [do homem moderno]. O totalitarismo é a inchação da parte em todo. Especializou-se nossa época na fabricação de pseudomodelos de homens mutilados, cortados em pedacinhos incrivelmente tumefactos que se pretendem o homem integral!

Dentre os tipos mutilados que tentaram impor-se à atenção dos homens, convém citar o homo oeconomicus, comum ao liberalismo econômico e ao marxismo, os quais amesquinham o ser humano à só qualidade de produtor; o homo civis do fascismo, que o encerra na qualidade de cidadão; o homo ethnicus, que o define tão-somente pela raça; o homo democraticus, que o refere apenas ao boletim eleitoral; o homo sexualis, que o remete aos instintos de prazer e de morte. Caracteriza esses pseudotipos a eleição duma parte do ser humano num todo que absorve as outras partes.

Com destreza persuadem o homem a enxergar na parte o todo, pois essa é a inclinação de suas paixões e instintos. O homem apaixonado só enxerga em si as próprias paixões, dissolve-se nelas e com elas identifica-se. O universo do ébrio está todo no copo de bebida, o morfinômano transmuda-se em seringa, o sensual atrofia-se até se tornar um falo, etc. A propaganda política entendeu a função mutiladora da paixão e se limita a um esquema único: amotinar no homem uma de suas paixões e enxertá-la à força de publicidade no instinto gregário; o homem-coto multiplica-se com rapidez prodigiosa. Vede a propaganda comunista: suas idas e vindas fazem parte duma tática constante, qual seja, identificar o homem com as necessidades materiais, impedir a resolução definitiva dos problemas econômicos, incutir o sentimento de fragilidade no homem, generalizar pela pressão publicitária esse basbaque desejo. Confessa-o ingenuamente o hino da Internacional: “Se nada somos, sejamos tudo!” Eis o fabordão dos totalitarismos que amotinam os sapos humanos e os incitam a se inflarem em bois planetários.

Agora gostaria de examinar um pouco mais ao perto a situação do homem contemporâneo.

Quando se propõe às elites e às massas um tipo humano completo, quais aqueles de épocas mais afortunadas, cada um tende a imitá-lo segundo os meios que possui e se esforça para se tornar um homem mais ou menos completo; disso resulta uma forte coerência tanto no indivíduo quanto na sociedade. Assim foram as cruzadas: as pessoas tentavam imitar o cavaleiro e a sociedade impregnava-se do ideal cavalheiresco. Decerto o êxito não era total: nem todos os participantes das cruzadas eram cavaleiros, mas ao menos o tipo cavalheiresco exercia certo magnetismo sobre as condutas humanas; encarnava-se ele nas condutas humanas e, por elas, distribuía-se pela sociedade.

Que acontece à falta do tipo humano completo? Ah, a coerência humana e social fica sob a ameaça da destruição! O ser humano é substância frágil, cujos extremos biológicos e espirituais só conseguem se coordenar a muito custo. Onde desaparecem os modelos e as elites, é certa a desorganização interior do ser humano. Evaporando-se a energia motora do exemplo ideal e vivido, desagrega-se psiquicamente a imensa maioria dos homens; se convencionarmos chamar de mente ao conjunto das faculdades humanas superiores que nos elevam para além de nós mesmos, e de vida ao conjunto das faculdades inferiores que introduzem o espírito no mundo da natureza e o alimentam de realidade – sem um tipo humano, a mente e a vida se desatrelam.  A mente se torna desvitalizada e cerebral, e no ser humano se instala o conflito: divide-se a personalidade em elementos antagônicos, que se defrontam. É a hora da psicose, da neurose e da esquizofrenia, cujas crises se multiplicam de modo inquietante no mundo moderno, conforme caracteriza a fórmula de Valéry: “a multiplicação dos isolados”; os deserdados da existência, privados do contato caloroso dos ambientes naturais e vitais e das elites que animam esses cenários, são presas fáceis. Nos dias de hoje, o homem isolado desconcerta-se interiormente em meio à massa dos anônimos: a mente apartada da vida, que nos relaciona com o real, funciona em falso, qual uma moenda que moesse quimeras a esmo. O que disse Chesterton ainda vale: “o louco não é o homem que perdeu a razão; louco é aquele que perdeu tudo, exceto a razão”.

No mais das vezes, tenta o homem moderno reconstruir em si a unidade da mente e da vida, mas a partir do nível mais abjeto, em que os componentes do ser encontram-se arruinados. Alia-se o cérebro hipertrofiado aos impulsos tenebrosos dos instintos, aglutina-se a mente fria e calculista aos reflexos animais. A política moderna oferece inumeráveis exemplos dessa confusão, uma mistura extraordinária de ideologia racional e paixão irracional, de que se vale para penetrar até aos recônditos da alma contemporânea e comover as engrenagens íntimas da ação: por ex., o liberalismo e o instinto egoísta, o igualitarismo e a inveja, o socialismo e o instinto gregário, o imperialismo e o instinto de dominação e agressividade, o pacifismo e o instinto temeroso de defesa, etc. O marxismo fermenta em seu sistema todos os instintos desorbitados; é ele a ideologia das ideologias e a combinação de todas as paixões; é a política que se adapta como luva naquilo em que o homem moderno está tornando-se, na ausência dos modelos e das elites; é destarte um instrumento crítico de temível eficácia contra o mundo apelidado de livre, na medida em que este não se conscientiza da crise das elites que o afeta, ou tenta resolvê-la tão-somente por meios artificiais de seleção.

Há pouco dizia eu que as civilizações do passado elaboraram um tipo humano completo, em direção ao qual convergiam as tendências das elites. Ao assinalar às elites a imitação desse tipo como a finalidade que deveriam perseguir, as civilizações do passado encontraram naturalmente os meios para alcançá-lo. Para lograr esse fim moral, elaboraram elas um sistema de virtudes, em que pertencer à elite era praticar as virtudes da mente e da vida, as quais perfazem o homem completo. A finalidade moral assinalada suscitava meios morais que o homem em sua inteireza punha em funcionamento.

A civilização moderna, que já não sabe o que é o homem, que não lhe propõe o “bem fazer o homem”, que está amputada de qualquer finalidade – é essencialmente uma civilização dos meios e da técnica. Já não são os fins os motivos da existência dos meios, antes são os meios em si o fim perseguido. Como já não convergem em direção a um tipo, as elites atuais têm como único recurso lançar mão das técnicas artificiais de elevação social: dominar a técnica é pertencer de pronto à elite; possuir os meios é possuir o fim (a situação só não é pior porque os meios de ingresso nessa nova elite estão disponíveis). O ter substituiu o ser.

Sem dificuldades, as técnicas de elevação social são reduzidas em dois grupos: as técnicas materiais e as técnicas intelectuais. Assim vemos dum lado a riqueza e doutro a instrução adquirirem hoje um prestígio que civilizações precedentes à nossa desconheciam. Atualmente, o dinheiro e o diploma possuem uma importância sem medida em comum com o passado. É lícito dizer que a Finança e a Escola Técnica são os dois pilares da civilização contemporânea.

Não estou contestando o aspecto utilitário do dinheiro ou do diploma, mas força é constatar que a constituição de elites fundadas apenas na riqueza ou nas qualidades intelectuais é fenômeno inaudito na história.

 

Sem dúvida a riqueza material sempre cumpriu um papel importante nas sociedades humanas, mas a riqueza, objeto de inveja, nunca fora objeto de admiração. Em todos os tempos, o homem sempre saiu em busca do ouro e da prata, mas nessa procura nunca os considerou a finalidade da vida. É notável que, onde prevalecesse um tipo humano coerente, denunciou-se o auri sacra fames. Da civilização grega à civilização do século XVII, a condenação da avareza é um dos temas constantes da moral apregoada ou vivida. Dão fé a tal afirmação a comédia antiga e a comédia do Grande Século: o avaro acumulador de riquezas é um ser ridículo. Decerto não era a riqueza algo desprezível, mas nossos ancestrais distinguiam com rigor entre o forro e o estofo. Para eles a riqueza era apenas a companheira do esforço criador. Era-lhes inimaginável alguém se tornar uma figura de sociedade tão-só pela riqueza, mas lhes parecia normal que alguém enriquecesse em conseqüência da elevação na hierarquia social; o rico não era o homem que entrava na elite, mas era o membro da elite que se enriquecia. Assim a economia medieval era uma economia em que cada um despendia – e por isso deveria adquirir – segundo sua condição. “Proprius et principalis pecuniae usus est ipisius consumptio sive distractio”: o dinheiro serve para gastar e está ordenado para algo diferente de si mesmo. O tipo do homem econômico é o fastuoso, ou melhor, o liberal, o generoso, cujo símbolo é a chuva d’ouro que Júpiter derrama do imo peito para fecundar Dânae.

Talvez se diga que o “burguês” que só vive para acumular riquezas está atualmente em vias de extinção, que nossos contemporâneos estão cada vez mais inclinados a jogar dinheiro através de portas e janelas e que por isso a riqueza estaria se tornando novamente o que fora outrora – ledo engano. Entre o avaro e o pródigo a distância é infinitesimal e o parentesco próximo: assegura-o o provérbio, que não deixa mentir. A pouca preocupação dos contemporâneos com a poupança não os torna menos ávidos de dinheiro que seus cúpidos, rapaces e argentários ancestrais. Substituiu-se a rigidez cadavérica do unha-de-fome pela deliqüescência do perdulário; a transição do duro ao mole é insensível. O burguês que se apraz na vista dum álamo e o herdeiro preguiçoso que se apraz em devorar o futuro para gozar o presente têm a mesma estrutura mental: a riqueza identifica-se com o ser de ambos – no primeiro caso, um ser grosseiro; no segundo, volátil. Ambos são indiferentes ao papel que o dinheiro poderia desempenhar – se lhes faltasse o forro do estofo – na hierarquia social: eles só dão importância a si mesmos. Não seria estranho perguntar qual é o egoísmo mais virulento: o do avaro ou o do pródigo.

Hoje em dia não existe impedimento para que a riqueza, acumulada ou desperdiçada, suscite a admiração da massa e o aparecimento de “elites” cuja memória se perde tão facilmente quanto os haveres que adquiriram. No mundo moderno, a riqueza é mais inconstante que outrora; os acasos mais estapafúrdios amiúde comandam a conquista. O rico não enraíza a posse na vida e na densidade da matéria, antes a posse faz dele um ser tão superficial quanto a fascinação que provoca, vampiriza sua única camada de personalidade. Por isso, a despeito da lenda, o Estado Moderno não encontra resistência nos ricos, cuja riqueza é a única arma que opõem ao sistema de redistribuição. A classe dos capitalistas quase que desapareceu totalmente da face da terra, eliminada pelos impostos e pela desvalorização. Até mesmo a plutocracia, cujo impacto sobre o Estado é bem real, não tem como se opor à invidia democratica que está se misturando com ela. Ela não é conservadora, conforme costumam acusá-la, mas ao contrário se alia no mais das vezes aos movimentos subversivos, como uma rolha que pretendesse tampar as vagas do mar. Essa é a única maneira de sua ação se tornar efetiva. Se o mais alto imita o mais baixo, como poderia aquele compor uma elite?

Ainda falta a elite intelectual. Por uma espécie de reação contra o desaparecimento dos tipos e das antigas elites, cada vez mais a sociedade moderna se acredita capaz de fabricar as elites de que necessita; é para esse fim que a sociedade multiplica esse berçário que são as escolas de todos os níveis. Mais uma vez, trata-se dum fenômeno inédito na história: são fatos recentes a luta contra o analfabetismo, a instrução obrigatória, a multiplicação das escolas de ensino médio e superior. Atribuem o nascimento desse fenômeno à democracia, ao “progresso das Luzes”, à filosofia e à ciência; a uma série de entidades em letras capitais, dentre as quais a Liberdade, o Direito, etc., que não são irrelevantes. De fato, a causa é muito mais simples: como qualquer sociedade precisa de elites, uma sociedade viva naturalmente dá origem a elas. Mas quando uma sociedade se desvitaliza e atomiza, a superestrutura estatal, contudo, permanece. Eis uma das características máximas de nosso tempo: a existência dum estado sem sociedades vivas que o sustentem, em que as famílias, os ofícios, as províncias, as comunidades de talhe humano (onde ainda há pouco se conservavam as elites autênticas) foram substituídas por agrupamentos abstratos definidos segundo semelhanças exteriores, tais quais os partidos, os sindicatos, as ligas patronais, os grupos financeiros, etc. O Estado Moderno é forma sem conteúdo, sem sociedade nem hierarquia verdadeira; ele fabrica de modo artificial as elites necessárias e o único meio de que dispõe é a difusão de conhecimentos: o intelecto substitui a vida desaparecida, a instrução livresca o contato com a natureza das coisas, a prótese racional o membro amputado. Em qualquer lugar em que os esforços de todos já não convirjam em direção a certo tipo de homem e de ideal de espírito, de caráter e de costumes, sobra apenas a escola, molde comum que se impõe à matéria maleável dos cérebros, segundo um ritmo comum e seqüenciado, conforme um programa determinado. No termo dessa usinagem, classificam-se as peças produzidas: umas são descartadas, outras aproveitadas conforme se adaptem ao molde. Não há outro meio: quando falta o exemplo, só a escola dá membros à elite.

Vemos assim a expansão extraordinária desse sistema: não somente os garotos e as garotas se precipitam nas escolas, mas também admitimos tacitamente, sem nenhuma rebelião, que eles se submetam ao prolongado garrote escolar até os dezesseis ou dezessete anos. Toleramos, ainda por cima, que todos os anos o Estado estabeleça nos mínimos detalhes os programas e os métodos escolares. Há de vir o tempo em que um terço ou metade da vida dos homens, em certos países, se passará sobre os bancos escolares.

Esse sistema é monstruoso; como observa Jean Madiran, não há razões aceitáveis para aquartelar legalmente todo o mundo em escolas até o final da adolescência. A pretensa difusão das Luzes dissimula uma intenção obscurantista “que pressupõe arbitrariamente que todo o aprendizado se daria em bancos ou carteiras, diante da lousa, com livros e cadernos, assistindo a cursos e discursos; que todos os espíritos são uniformemente afeitos a aprender por tais caminhos e tais meios”. Dá-se também boa formação ao espírito humano no campo, no fogão, no balcão, com ferramentas, diante de coisas que resistem à ação e nas quais se imprime – num vai-e-vem incessante do espírito ao real e do real ao espírito – uma finalidade propriamente humana. A formação que se dá na terra de cultivo, nas tarefas domésticas e nas oficinas é tanto melhor ao passo que essa formação se transmite com o exemplo que estimula a pesquisa e a invenção, abre a alma e o corpo ao real e excita a criatividade, e não como um saco cheio de conhecimentos que se emborcasse num saco vazio. A verdadeira educação está na natureza das coisas defrontada pela mediação do exemplo – e que ninguém imagine que a introdução duma “lição de coisas” na escola seria remédio suficiente. De fato, a lição de coisas, mesmo em laboratórios ou seminários de ensino superior, não passa no mais das vezes de “teoria na prática” e termina na intelectualização do real por meio da aplicação de fórmulas aprendidas de antemão. A manipulação das ideias e das medidas abstratas absorve a realidade concreta dos seres e das coisas. O “já pronto” devora o real, que só serve de campo de inserção. Daí a origem do apriorismo rígido, do imperialismo da razão pura e do desdém ao dado que exercem tantas devastações nas elites intelectualizadas, quando elas saem das escolas e caem na vida. “Não conheço nada mais desprezível que um fato”, afirmava o majestoso Royer-Collard. É possível citar milhares de exemplos de intelectuais que, armados com lógica impávida, deitam a realidade sobre o leito de Procusto das ideias extraídas dos livros ou arranjadas nos espíritos como um mecanismo azeitado. Insensíveis ao não-racional, tornam-se eles agressivos, perversos e cruéis ante a realidade humana que se opõe às suas injunções. Justificam assim a frase formidável de Bernanos: “Até prova em contrário considero o intelectual moderno como o último dos imbecis”.

A longa experiência universitária que acumulei me incita a lhes dar um aviso: desconfio dos intelectuais sem contato com a vida, encerrados em torres de marfim e thinking departaments. Uma cultura de enxerto, baseada em livros ou aparelhos de laboratório, não me parece cultura verdadeira: ou enraíza-se a mente na vida cotidiana, ou ela não é nada. O intelectual que não preservou a alma como a de um camponês em contato direto com os seres e as coisas não me parece lá muito profundo, a despeito da couraça de erudição ou de estatística com que se gaba; ele executa materialmente a obra intelectual, ao passo que um bom número de trabalhadores manuais cumpre mentalmente as tarefas materiais; isola-se atrás duma tela que lhe mascara realidades; faz malabarismos com conceitos vazios ou, quando muito, com palavras – como o prova o espaventoso jargão da filosofia contemporânea, só superado pelo da economia. Assim vai se tornando impossível a comunicação de homem para homem, e com velocidade alucinante se bizantiniza a cultura.

Mas esses são apenas os casos aberrantes. Quão grande seja a influência massiva das ideologias, sua multiplicação não exerce estragos tão profundos quanto os da pseudocultura atual, que o moderno sistema de ensino difundiu entre as elites intelectuais. Consiste o verdadeiro ensino menos em obrigar ao ingurgitamento de conhecimentos e receitas de ação e mais em estar cônscio dos modos de conhecer e agir. O professor de escol ensina mais pelo que é do que pelo que diz, ou seja, requer-se o exemplo encarnado e vivido dum tipo humano para que seja o ensinamento frutuoso. Mas como tais exemplos hão de subsistir num clima social que já não os tolera? Como não degeneraria a cultura, nas elites docentes e discentes, em mera acumulação de conhecimentos? Se for lícito dizê-lo, é “normal” substituir o ser deficiente – eis uma lei universal do comportamento humano. Decerto o inchamento dos programas escolares em todos os níveis resulta duma necessidade social: para viver e adaptar-se a uma sociedade cada vez mais complexa, há mister de inúmeros conhecimentos – em que não acreditamos. A dilatação dos conhecimentos não é menos exigida atualmente que outrora, pela boa e simples razão de que se pode ordenar a multiplicidade à unidade. Ora, é justamente isso o que está faltando: num mundo onde desapareceram as elites e os modelos verdadeiros, cada um tem um ponto de vista pessoal sobre o que é conhecer e agir. Já não existe ordem nas disciplinas científicas e práticas, pois já não existe ordem no próprio homem. O progresso e o ensino se tornaram anárquicos, não obstante o processo seja mais lento no ensino. Em lugar da cultura universal, possuímos uma cultura enciclopédica que procede por adição de matérias disparatadas e sucessivas, sem a preocupação de ligar organicamente as noções sacadas ao real. Na maior parte do tempo, essa pseudocultura se amesquinha em “digestos” e verbalismo, de modo que podemos defini-la como o humorista: outrora, a cultura era aquilo que sobrava logo que esquecíamos tudo; agora, ela é aquilo que falta logo que aprendemos tudo.

Aproveito o assunto e invoco minha já longa experiência universitária. Meus alunos, os membros da futura elite intelectual, não são menos inteligentes que os alunos das outras universidades. Todavia, constato que eles estão desaprendendo a manejar os instrumentos intelectuais: ignoram que a função da inteligência é captar o geral no particular, desconhecem o liame vivo que une o abstrato ao concreto, tornaram-se nominalistas aferrados. Para eles o universal é vazio de sentido, mas ao mesmo tempo são incapazes de compreender o individual, o mundo real e existente e os seres e as coisas que lhes surgem perante os olhos. Os hábitos adquiridos ao longo dos anos de estudos lhes pulverizaram o julgamento, que consiste em restituir as noções que a inteligência tomou  do real.  É por isso que seus raciocínios se desenvolvem numa espécie de no man’s land, de universo informe onde os mais intelectualizados entalham uma coerência factícia que mutila a realidade. Desejam eles criar o “outro” mundo e o homem “novo” que possam responder aos conceitos desencarnados que trazem junto ao espírito e lhes dar um sentido. Com incrível rapidez esses hiperintelectuais se transformam em revolucionários; eles acreditam ingenuamente que são os jogadores da partida e, como cegos ante a realidade, controlam os peões e dirigem ao arbítrio os técnicos da subversão totalitária.

 

A ruptura entre o abstrato e o concreto nas “elites” intelectuais explica ainda um fenômeno típico da era moderna e gravíssimo, a especialização, sobretudo nas profissões ditas liberais. Geralmente se acredita que a especialização é uma aproximação ao real, mas é o contrário: uma realidade qualquer só é deveras conhecida se examinada de cabo a rabo e nas relações que mantêm com os diferentes níveis do ser; quem a considere isoladamente acaba por se afastar dela; quanto mais a conhecemos, mais a ignoramos. A frase sarcástica de Bernard Shaw é admirável em sua propriedade: “O especialista é um homem que conhece cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada”. O culto do especialista em todas as áreas nos parece um retrocesso da inteligência, sobretudo porque desenvolve: 1) a tentação de fazer da parte um todo; 2) o instinto totalitário; 3) a pretensão do conhecimento exaustivo da realidade e; 4) a vontade de transpor os métodos bem sucedidos num domínio limitado a outros domínios. Passa-se facilmente de observações limitadas a generalizações altivas. O cientificismo, o evolucionismo, o materialismo, etc., todas as frágeis construções do espírito contraditadas em outros campos do saber – nasceram dessa tendência.

Como é impossível alcançar e abarcar a realidade, obstinam-se em tecer no entorno dela uma teia de métodos e receitas que visam raptá-la. Desaparecida a espontaneidade vital, elaboram-se técnicas para entrar em contato com os seres e as coisas. As técnicas de fazer amizades e bons-casamentos, de ter sucesso nos negócios e conservar a saúde, etc., que atualmente se propagam como febre, são o sinal inquietante do desaparecimento dos dons naturais. É possível ir mais além nesse diagnóstico: o sucesso estrondoso desses “macetes” a mim só se explica pelo deslocamento patológico das potências de espanto e admiração que moldam o homem. Hoje em dia já não é mais a realidade que maravilha, antes é a ciência; as pessoas estão persuadidas de que tudo é passível de ensino, pois cada uma delas adora a si mesma em sua diferença específica – a razão –, daí o êxtase perante a própria figura; a autolatria é a raiz da propaganda e da publicidade. Acreditamos que a credulidade de nossos pais não era nada perto dessa divinização pueril do homem por si mesmo.

Segue-se a essa miopia da “elite” intelectual o seu aviltamento. Malgrado o fetichismo de que se acercaram os especialistas e que os alça ao pináculo, parece que vários intelectuais sofrem com certo desfavor. É certo, por ex., que frente à opinião pública as vedetes do cinema e os atletas gozam de maior notoriedade que os romancistas e os cientistas: hoje em dia Victor Hugo seria menos conhecido e admirado que Lollobrigida, ou Pasteur que o vencedor da Volta da França. O intelectual, a despeito de seus esforços, não se constitui um tipo encarnável. Ele não pretende se “misturar com o povão”, como se diz por aí. Contudo o povo, ainda com bom-senso e apesar dos erros que lhe deitam à goela, não os compreende: ele só entende as ideias prenhes de carne e de alma ou, na falta dessas, de instinto brutal e de ideologia. O povo continua muito mais natural do que pensamos; ele admira homens que o tocam nas cordas sensíveis – dissonantes, mas resistentes. É admirável que nenhum poeta contemporâneo tenha caído nas graças do grande público: quando se invocam os tipos antigos, sente-se humilhado, vide alguns filmes em que o santo, o gênio e o herói, conquanto deformados, ainda ganham sufrágios. Desumanizado de abstração, o intelectual moderno não fornece mais receitas.

Dever-se-ia sublinhar aqui a desvalorização da carreira de ensino, a fonte das “elites” intelectuais. Talvez um professor de faculdade seja considerado “alguém” numa cidadezinha de província, mas seu crédito diminuiu. A relação entre mestre e discípulo afrouxou-se numa relação entre professor e aluno; a mesma baixa de consideração se observa entre os professores de ensino médio e fundamental. Traduz-se essa ruína no tratamento que lhe dá o Estado: enquanto no século XIX eram eles a elite da elite, hoje se deixam seviciar pelas pretensas necessidades da sociedade e tendem doravante a se tornarem servidores dela, quando não seus empregados domésticos. A República dos Professores, de que falava Thibaudet, pertence a um passado definitivamente morto. Em vez de dirigirem a sociedade, tal como outrora aspiravam, são eles os dirigidos por ela.

Vários intelectuais despencam pela mesma ladeira; como não conseguem constituir uma elite que polarize a consideração do setor social em que se encontram, precipitam-se em direção ao setor franco da funcionalização. Estatizam-se os intelectuais e a própria sociedade, cuja agulha já não aponta para o polo magnético dos bem pensantes. Os intelectuais se põem em fuga ante a mecanização universal; impelem-nos uma como aberração coletiva que os incita à obtenção a qualquer preço dum diploma que lhes permitirá ganhar a vida despendendo o mínimo de energia vital. Conquistado o diploma, ingressam numa carreira pré-estabelecida que se identifique com a função exercida.

Já não se preocupam as famílias com a formação do caráter e dos costumes de seus rebentos: ou elas lhes buscam estabilidade e segurança, em lugar de insuflar a vitalidade que lhes permitiria chantar-se no real e traçar o próprio caminho na vida, ou então os abandonam sem guias ou apoio, o que dá no mesmo: ante o temor supersticioso do futuro, procuram salvaguarda, proteção e defesa contra os riscos e os golpes da fortuna. Não há como ser diferente numa sociedade privada de modelos e de elites que os encarnem. Para os adolescentes desvitalizados, o diploma aparece como a única saída, porque ele é o caminho mais fácil, não obstante o peso dos programas. Eles não dão a menor importância – e como poderiam? – aos fatores essenciais à vida: o caráter, a retidão da vontade, a honra, o dever, o senso moral e estético, etc., mas julgam somente a inteligência formal – o diploma é que faz o homem.

Segue-se que a sociedade moderna se inclina, sob a força desse peso, para o mandarinato. A idolatria do pergaminho é sinal indubitável da perda da invenção. Já que não existe a fonte de renovação que é o exemplo, perde-se a faculdade da retomada. Não suscitam mais êmulos os santos, os gênios e os heróis, e os “grandes homens” não passam de criações aventadas pela publicidade. Apesar desse turbilhão, a sociedade moderna tende à estagnação. 

 

A conclusão a que chegamos, após análise tão alongada, será breve e clara: uma civilização não pode durar sem elites verdadeiras. É preciso que a sociedade as recupere, caso não queira submergir na barbárie. Diante dos olhos evidencia-se o inventário dos recursos – se ao menos nós o consultássemos! – em sua trágica antítese: por um lado, imensos meios de realização e técnica incomparável, conhecimento de detalhes elevado ao infinito; por outro, a ausência quase total da finalidade humana, o silêncio prodigioso sobre a questão fundamental: “para onde vamos?”, a derrocada do sentido de convergência. A saúde ameaçada da civilização depende da solução que daremos ao problema da rearticulação entre os meios e os fins. Ninguém duvida da dificuldade da solução; à primeira vista, o obscurecimento dos modelos vivos torna-a impossível. Por que é tecnicamente desenvolvida e humanamente atrofiada, perecerá a civilização?  De fato, isso não é nada. Se a grande cadeia dos modelos intermediários – os santos, os gênios e os heróis – perdeu o poder de atração, nos sobram nas extremidades dessa corrente dois tipos que ainda guardam o valor de exemplo: o Verbo Encarnado e o pai e a mãe de família. No cristianismo e no lar ainda se encontram inalteráveis os exemplos vivos da vida total. Nosso destino está preso à persistência dessa conjugação. Ademais, a família cristã é o único lugar da terra onde ainda é possível, se quisermos, manter a elite. Se quisermos! Está tudo aí... Devem pai e mãe se comportar de tal maneira que os filhos possam admirá-los, aprová-los, imitá-los e descobrir neles os modelos de homem e cristão e os exemplos vivos de finalidade natural e sobrenatural; a subordinação dos meios aos fins reduz-se a um jogo quando se encarna lúcida e voluntariamente.

Destarte, pelo contágio do exemplo, hão de nascer elites novas, humildes, sólidas e verazes – no segredo do coração em oração perpétua, no segredo do lar ao pé do lume aceso.

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