Garrigou Lagrange, O.P.
Espalha-se, em alguns lugares, a opinião de que apenas o pecado de malícia é mortal, e que os pecados de ignorância e fraqueza jamais o são. É importante recordar, acerca deste ponto, o ensinamento da teologia, tal como se encontra formulado por Santo Tomás de Aquino na sua Suma Teológica (Ia-IIae, q. 76, 77, 78).
O pecado de ignorância é o que provém de ignorância voluntária e culpável, chamada ignorância vencível. O pecado de fraqueza é o que provém de forte paixão, que diminui a liberdade e obriga a vontade a dar seu consentimento. Quanto ao pecado de malícia, é o que se comete com plena liberdade “quasi de industria”, com aplicação e frequentemente com premeditação, sem paixão, nem ignorância. Recordemos o que Santo Tomás nos ensina sobre cada um deles. (Continue a ler)
Os pecados de ignorância
No que diz respeito à vontade, a ignorância pode ser antecedente, consequente ou concomitante.
A ignorância antecedente é a que não é absolutamente voluntária, ela é dita “moralmente invencível”. Por exemplo, acreditando atirar em um animal numa floresta, um caçador mata um homem que não havia dado sinal algum de sua presença e que de modo algum se poderia supor estar onde estava. Neste caso, não há falta voluntária, mas somente pecado material.
A ignorância consequente é a que é voluntária, ao menos indiretamente, por efeito da negligência em instruir-se acerca daquilo que se pode e deve saber; é chamada ignorância vencível, pois seria possível, com aplicação moralmente possível, libertar-se dela; ela dá causa a uma falta formal, desejada, ainda que indiretamente. Por exemplo, um preguiçoso estudante de medicina que não se aplica aos estudos e consegue, de algum modo, colar grau como doutor, apesar de ignorar as coisas mais elementares de sua arte. Se lhe ocorre de acelerar a morte de alguns de seus pacientes, ao invés de lhes curar, não há nisso pecado diretamente voluntário, mas há certamente uma falta indiretamente voluntária, que pode ser grave e pode ir até o homicídio por imprudência ou grave negligência.
A ignorância concomitante é a que não é voluntária, mas acompanha o pecado de tal modo que, independente de existir ou não, ainda haveria pecado. É o caso do homem mui vingativo que deseja matar seu inimigo, e, um dia, por ignorância, mata-o de fato, julgando atirar num animal na floresta; este caso é manifestamente diferente dos dois precedentes.
Segue-se que a ignorância involuntária ou invencível não é pecado, mas que a ignorância voluntária ou vencível daquilo que devemos e podemos saber é pecado mais ou menos grave, conforme a gravidade das obrigações que contrariamos.
A ignorância voluntária ou vencível não pode escusar totalmente o pecado, pois houve negligência; ela apenas diminui a culpabilidade.
A ignorância absolutamente involuntária ou invencível escusa totalmente o pecado, suprime a culpabilidade.
Quanto à ignorância concomitante, não escusa o pecado, pois ainda que não houvesse, o pecado ocorreria.
A ignorância invencível é chamada “boa fé”; para que seja verdadeiramente invencível ou involuntária, é preciso não ser possível moralmente libertar-se dela, pela aplicação em conhecer os deveres. Ela não pode aplicar-se sobre os preceitos primeiros da lei natural: “é preciso fazer o bem e evitar o mal”; “não faça ao próximo o que não quer que faça contigo mesmo”; “não matarás”; “não furtarás”; “adorarás a um só Deus”. Ao menos pela constatação da ordem do mundo, pela contemplação do céu estrelado e do conjunto da criação, o homem tem facilmente uma probabilidade da existência de Deus, ordenador e legislador supremo; e quando tem essa probabilidade, deve buscar esclarecer-se mais e pedir luz; de outro modo, não está mais na verdadeira boa fé ou ignorância absolutamente involuntária e invencível. É preciso dizer o mesmo de um protestante, a quem se torna seriamente provável que o catolicismo é a verdadeira religião; deve buscar esclarecer-se pelo estudo e pedir a Deus luz; sem isso, como diz Santo Afonso, peca contra a fé pela negligência em tomar os meios necessários para chegar a ela.
Frequentemente, pessoas piedosas não prestam a devida atenção aos pecados de ignorância, que por vezes cometem, ao não considerar, como podem e devem, seus deveres religiosos ou seus deveres de estado, ou ainda os direitos e qualidades das pessoas, superiores, semelhantes ou subalternos com que se relacionam. Somos responsáveis não apenas pelos nossos atos desordenados, mas ainda pela omissão de todo o bem que deveríamos fazer e que de fato haveríamos de fazer, se não nos faltasse o verdadeiro zelo pela glória de Deus e salvação das almas. Uma das causas dos males atuais da sociedade está no esquecimento desta palavra do Evangelho: “os pobres são evangelizados”, na indiferença daqueles que têm mesmo o supérfluo pelos que carecem do necessário.
Pecados de fraqueza
Chama-se pecado de fraqueza ao que provém de forte paixão, que força a vontade a dar seu consentimento. Neste sentido, o que está escrito no salmo (6, 3): “Miserere mei, Domine, quoniam infirmus sum” 1. A alma espiritual é enferma quando sua vontade cede à violência dos movimentos da sensibilidade. Perde, assim, a retidão do julgamento prático e da eleição voluntária ou da escolha, por causa do medo, da raiva ou do desejo. Assim, durante a Paixão, São Pedro, por medo, deixa-se levar até negar Cristo três vezes.
Quando, após viva emoção ou paixão, nos inclinamos a um objeto, a inteligência é levada a julgar o que nos convém, e a vontade a consentir de modo contrário à lei divina2.
No entanto, é preciso distinguir aqui a paixão dita antecedente, que precede o consentimento da vontade, e aquela dita consequente, que se segue ao consentimento. A paixão antecedente diminui a culpabilidade, pois diminui a liberdade do julgamento e da escolha voluntária; é particularmente visível nas pessoas mui impressionáveis. Ao contrário, a paixão consequente ou voluntária não diminui a gravidade do pecado, mas a aumenta, ou antes, é sinal de que o pecado é muito voluntário, visto que a vontade suscita, ela mesma, este movimento desordenado da paixão, como ocorre com quem quer encolerizar-se para melhor manifestar seu desejo mau3. Ora, assim como uma boa paixão consequente, como o foi a santa cólera de Nosso Senhor expulsando os vendilhões do templo, aumenta o mérito, uma má paixão consequente aumenta o demérito.
O pecado de fraqueza do qual falamos aqui é aquele pelo qual a vontade cede ao impulso de uma paixão antecedente e, por isso, sua gravidade é diminuída; mas isso não quer dizer que jamais se trate de pecado mortal. É verdadeiramente mortal quando a matéria é grave, unida à advertência e ao pleno consentimento que cede à paixão; é o caso do homicídio cometido sob o impulso da cólera4.
Pode-se resistir, sobretudo no início, ao movimento desregrado da paixão; e se, no início, não o resistimos como deveríamos, se não rezamos como seria preciso para obter o socorro de Deus, a paixão não é mais simplesmente antecedente, mas torna-se voluntária.
O pecado de fraqueza, mesmo grave e mortal, é mais perdoável, porém, “perdoável”, não é absolutamente sinônimo de “venial” no sentido corrente da palavra5.
Mesmo os fiéis piedosos devem atentar para esse ponto, pois pode ocorrer entre eles movimentos de ciúmes não reprimidos, que podem lhes conduzir a faltas graves, por exemplo, a graves julgamentos temerários e a palavras e atos externos que sejam causa de divisão profunda, contrários tanto à justiça e à caridade.
Seria erro grosseiro sustentar que somente o pecado de malícia pode ser mortal, que só ele comportaria advertência suficiente e pleno consentimento, necessários, com a gravidade da matéria, para o pecado que dá a morte à alma e torna-a digna da morte eterna. Erro semelhante seria resultado de uma deformação da consciência, e contribuiria a aumentar essa deformação. Recordemos que podemos com facilidade resistir no início ao movimento desregrado da paixão, e que é nosso dever fazê-lo, bem como rezar para isto, conforme as palavras de Santo Agostinho, retomadas no Concílio de Trento: “Deus não pede jamais o impossível, mas, no que nos pede, adverte-nos a fazer o que podemos, e pedir-lhe o que não podemos”6.
Pecado de malícia
Contrariamente aos pecados de ignorância e de fraqueza, o pecado de malícia é aquele no qual se escolhe o mal conscientemente; diziam os latinos de industria, isto é, de propósito deliberado, com cálculo, intenção e resolutamente, sem ignorância e mesmo sem paixão antecedente. Frequentemente, é premeditado.
Não quer isso dizer que se queira o mal pelo mal; pois, sendo o bem o objeto adequado da vontade, não pode esta querer o mal senão sob o aspecto de um bem aparente.
Ora, quem peca por malícia, com conhecimento de causa e má vontade, quer conscientemente um mal espiritual (por exemplo, a perda da caridade ou amizade com Deus) para possuir um bem temporal. Claro está que esse pecado, assim definido, difere, no grau de gravidade, do pecado de ignorância ou de fraqueza.
Não se deveria concluir, contudo, que todo pecado de malícia seja pecado contra o Espírito Santo, que é dos mais graves dos pecados de malícia, e que se verifica quando alguém rejeita, por desprezo, aquilo mesmo que o poderia salvar ou livrar do mal, por exemplo, quando se combate a verdade religiosa conhecida (impugnatio veritatis agnitae) ou quando, por ciúmes, deliberadamente, entristece-se das graças e do progresso espiritual do próximo.
Frequentemente, o pecado de malícia procede de vício engendrado por múltiplas faltas; mas pode dar-se mesmo na ausência desse vício; assim, o primeiro pecado do demônio foi pecado de malícia, não de malícia habitual, mas de malícia atual, de má vontade, da exaltação do orgulho.
Claro está que o pecado de malícia é mais grave que os de ignorância ou fraqueza, ainda que, por vezes, estes últimos sejam já mortais. É por isso que as leis humanas punem mais gravemente o homicídio premeditado do que o crime passional.
A gravidade maior dos pecados de malícia provém de serem mais voluntários que os demais, de normalmente procederem de um vício engendrado por faltas reiteradas, de se preferir com conhecimento um bem temporal à amizade divina, sem a escusa parcial de certa ignorância ou de forte paixão.
Nessas questões, há dois enganos possíveis. Uns inclinam-se a pensar que somente o pecado de malícia pode ser mortal; não percebem a gravidade de certos pecados de ignorância voluntária, e de certos pecados de fraqueza, nos quais há, contudo, material grave, suficiente advertência e pleno consentimento. Outros, ao contrário, não compreendem a gravidade de certos pecados de malícia executados friamente, com moderação afetada e um simulacro de bondade ou de tolerância. Assim, aqueles que combatem a verdadeira religião e afastam as crianças do pão da verdade divina podem pecar mais gravemente do que quem blasfema e mata outrem sob o impulso da cólera.
O pecado é tanto mais grave quanto mais voluntário, esclarecido e procedente do amor desregrado de si mesmo – que chega por vezes até o desprezo de Deus, como diz Santo Agostinho.
Por outro lado, o ato virtuoso é tanto mais meritório quanto mais voluntário, livre e inspirado pelo amor de Deus e do próximo – amor que chega por vezes até o santo desprezo de si mesmo, como diz Santo Agostinho.
É assim que quem reza com muito apego às consolações sensíveis merece menos do que quem persevera na oração sem consolação alguma, em contínua e profunda aridez; porém, no final dessa provação, seu mérito não terá diminuído, se sua oração proceder de igual caridade, que possuirá então uma feliz relação com a sensibilidade. Um ato interior de puro amor é mais valioso aos olhos de Deus que muitas obras exteriores inspiradas por menor caridade.
Em todas essas questões, trate-se do bem ou do mal, é preciso sobretudo estar atento ao que procede de nossas faculdades superiores: a inteligência e a vontade. Ou seja, ao ato da vontade realizado com pleno conhecimento de causa. Deste ponto de vista, se um ato mau, plenamente deliberado e consentido, como um pacto formal com o demônio, tem consequências formidáveis, um ato bom, como a oblação de si mesmo a Deus, feita de modo plenamente deliberado, consentido e frequentemente renovado, pode ter ainda maiores consequências na ordem do bem, pois o Espírito Santo é infinitamente mais poderoso que o espírito do mal, e pode fazer mais pela nossa santificação do que este para nossa perda. É bom refletir nessas coisas perante a gravidade dos acontecimentos atuais, em particular os que se passam em Espanha7 nesse momento. Assim como o amor de Cristo, morrendo por nós na Cruz, mais agradava a Deus do que todos os pecados reunidos o desagradavam, assim também o Salvador é mais poderoso para salvar-nos que o inimigo do bem para perder-nos. Neste sentido, disse Jesus: “Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; mas temei antes aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo” (Mt 10, 28). O inimigo do bem não pode, se não lhe abrirmos a porta de nosso coração, penetrar no íntimo da nossa vontade, enquanto Deus é mais íntimo a nós mesmos do que nós o somos, e pode levar-nos, forte e suavamente, a realizar atos livres e meritórios os mais profundos e elevados, que serão o prelúdio da vida eterna 8.
(La Vie Spirituelle, nº. 210.)