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O Genocídio da Armênia

 

Às portas do século XX, o mundo viu renascer as hostilidades do islamismo contra a religião e a civilização cristã. Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano lançou-se furioso contra a população da Armênia, num episódio hoje largamente considerado como Genocídio, o primeiro do século XX. Deportações, destruições de igrejas, conversões forçadas ao islamismo e o sistemático massacre de homens, mulheres e crianças, foram marcas do holocausto armênio, cujo número de vítimas se estima em mais de um milhão.

O dominicano Jacques Rhétoré, missionário, vivia em Mossul, atual Iraque, quando foi deportado para a província de Mardin, na Armênia. Lá, em companhia de outros religiosos, testemunhou a coragem e a paciência de um povo perseguido por sua fé.

O texto a seguir é um capítulo do seu livro de memórias “Les Chrétiens Aux Bêtes”, Les Éditions Du Cerf, 2005.  

 

O MASSACRE DAS MULHERES

 

Por todo o verão de 1915, até fins de outubro, prossegue o extermínio das famílias armênias de Mardin. A cada semana, e mesmo com maior freqüência, comboios numerosos levavam famílias inteiras. Se os pais, os maridos e os irmãos mais velhos puderam escapar ao massacre dos homens, pelo qual começou o extermínio, não escaparam das buscas seguintes, realizadas com o intuito de destruir todos os lares armênios. Aqueles que estiveram unidos na vida, também o estiveram na morte. Darei alguns exemplos, continuando a mencionar os traços de coragem dos cidadãos de Mardin. 

A família Nasri Zalatan constituía-se do pai, da mãe e de três filhos, entre os quais uma jovem de 18 anos, chamada Wardâni. Todos foram capturados e conduzidos a um comboio de deportados. Ao longo do caminho, o pai e a mãe não cessavam de exortar seus filhos para que não temessem a morte: “Ela nos abrirá as portas do céu, diziam, e nos fará merecer a bela coroa dos mártires, pois é pelo ódio ao nome cristão, e contra a justiça, que somos perseguidos. Morrer nestas condições é uma grande graça que Deus nos dá”. Ao chegar à cidade muçulmana de Harrin, a 3 horas de Mardin, o comboio parou e logo se iniciaram as execuções. As vítimas, despidas, eram conduzidas à proximidade de umas cisternas que existiam na região, e suas cabeças eram colocadas sobre um tronco de madeira utilizado como apoio. Em seguida, os soldados ou os curdos as decapitavam e lançavam seus corpos na cisterna.

Nasri e sua esposa foram assim executados. Wardâni marchava atrás de sua mãe, em cujos braços seguia um bebê ainda em fase de amamentação; mas um soldado agarrou a moça e a levou consigo. Sua mãe, ao perceber isto, gritou-lhe:

“Minha filha, aonde vais? Não te separes de mim. Eu vou ao céu. E tu, aonde vais?”. “Não sei, mamãe, levam-me à força”, responde Wardâni, desatando em prantos ao compreender que não compartilharia do destino de seus pais. Juntamente com seu irmãozinho de sete anos, é confiada a um muçulmano.

Este decide somar a moça ao número de suas esposas, mas, antes, exige que ela aprenda as fórmulas islâmicas a fim de ser, em seguida, admitida em sua religião. Felizmente, Wardâni adoece. A doença persistia e os amigos do seu amo diziam: “Esta moça não te serve para nada, é melhor matá-la”. Wardâni escutava o que dela diziam, e tinha razão em temê-los – vira passar, sucessivamente, diante de sua porta, seis cristãs, doentes como ela, levadas para fora da cidade para serem executadas como cães raivosos. Porém, a brava jovem temia menos a morte à apostasia que dela exigiam; por isso, rezava de todo seu coração à Virgem Maria, para que a socorresse. Quando seu amo lhe exigia aprender as fórmulas do islã, respondia: “Senhor, tenha paciência, até eu ficar curada”. E o timbre destas simples palavras sempre apaziguava a impaciência do muçulmano. Um dia, ouviu seu amo retrucar diretamente aos maus conselhos de seus amigos: “Não, eu não a matarei. Que Deus a leve, Ele mesmo, se assim o quiser”. Com o tempo, a doçura e a paciência de Wardâni terminaram por conquistar a confiança de toda a gente da casa, de modo que não mais lhe importunavam. Assim, arrisca-se ela, após muitos meses de cativeiro, a pedir permissão para ir a Mardin consultar um médico e respirar o ar de sua terra natal por alguns dias. Como se acreditava que todos seus familiares estivessem mortos, autorizam-lhe a viagem. Porém, uma vez em Mardin, a moça consegue fugir de uma vez por todas das buscas de seu amo. A pobre Wardâni estava num estado de saúde lastimável, após tantas e terríveis emoções. Alguns brincavam com ela: “Seu amo curdo te espera impaciente para celebrar as núpcias contigo.” Ela respondia: “Cristo me salvou. Ele só é meu amo”.

Ela contava que uma mulher de seu comboio, levada à beira da cisterna onde cada uma encontrava o seu fim, bradou: “Jesus! Maria! José! Coloco-me em suas mãos”. “É em vão que tu chamas pelo teu Jesus”, disse-lhe um soldado, precipitando-se sobre ela e a estrangulando, para, logo em seguida, lançar seu cadáver na cisterna. “Nós considerávamos que ela teve um final feliz”, acrescentou. “Entre as 150 pessoas do nosso comboio”, disse ainda Wardâni, “apenas uma mulher apostatou, mas seus antecedentes dispuseram-na a isso”. 

A coragem e a virtude das mulheres cristãs de Mardin brilharam de modo extraordinário nestas circunstancias em que, apesar de sua natural fragilidade, foram expostas às mais terríveis provações. A força de Deus está lá, afirmavam todos os que avaliavam estes fatos sem preconceitos. Eram também encorajadores para os infortunados que se sabiam destinados, mais dia, menos dia, às mesmas provações sobre as quais tão bem triunfavam estas mulheres e moças. Ao mesmo tempo, todos os cristãos experimentavam um sentimento de exultação, descobrindo tantos heróis entre seus irmãos e irmãs, enquanto o islamismo apresentava, acima de tudo, monstros de crueldade e despudor. Quantos exemplos posso citar de coragem das mulheres cristãs no meio desta perseguição! Escutem estes que seguem.

Marro Tapik era uma jovem armênia de 19 anos, delicada, dotada de encantos naturais e muito boa cristã. Ela foi levada de Mardin juntamente com sua família, todos mortos, com exceção de um menino de 12 anos que conseguiu escapar. O comboio parou na cidade de Dara, que já conhecemos e que ficará para sempre marcada na Mesopotâmia pelos milhares de cristãos lançados nas cisternas durante esta perseguição de 1915. O comboio de Marro Tapik mal chegara nestas geenas e os carrascos iniciaram seus trabalhos. Fazem-no com a frieza de quem executa ordens superiores, mas também com a sanha de selvagens diante do sangue e das carnes arquejantes. Soldados e curdos estripavam a golpes de punhal, matavam, arrancavam o cérebro a golpes de toupouz, esquartejavam crianças pequenas e jogavam todos os cadáveres pela boca escancarada do abismo das cisternas. As abóbadas ressoavam o lúgubre som dos corpos mortos que caiam e se chocavam uns contra os outros. Era como uma surda maldição elevando-se do abismo contra os crimes cometidos logo acima. Chegou a vez de Marro Tapik:  despida, a moça caminha em meio ao riso dos brutos. Nos seus braços dorme um bebê de 10 meses que pôde salvar da barbárie dos soldados. Ela vira seu marido ser massacrado, bem como seus pais e centenas de outros; seus pés pisavam o barro engrossado pelo sangue. Os carrascos, armados de fuzis, sabres, punhais e cassetetes estavam prontos para matá-la. No entanto, perante essa máquina de massacres, Marro aparentemente não se inquietava; seus pensamentos não se voltavam para coisas terríveis, e sim, para aquelas que a morte não tira, mas nos faz possuir num mundo melhor. Sem hesitar, Marro estendeu a cabeça por si só no tronco de madeira utilizado na matança, mas, com o movimento de se abaixar, o pequeno inocente que ainda dormia em seus braços começou a chorar. Ela se ocupou em consolá-lo. Neste momento, um soldado disse a seus companheiros: “Pena matá-la. É jovem, é bonita. Vamos guardá-la para nós”, e diz a Marro: “Declara que aceita o islamismo e ficaremos contigo, te salvarás”. “Jamais”, respondeu Marro, “jamais aceitarei o islamismo e não quero tua companhia”. Para pressioná-la, os soldados arrancam o bebê de suas mãos, mas ela persevera. Então, decidem tomá-la à força, mas, antes que pudessem colocar as mãos sobre ela, a jovem se joga na cisterna, dizendo: “Não quero ficar com vocês”. Ao perceber que não conseguiriam satisfazer suas paixões, satisfizeram ao menos o seu ódio e, a golpes de fuzil, mataram a moça sobre a pilha de cadáveres onde se lançara.

Existiram outros exemplos de mulheres que preferiram antes a morte que lhes salvava de seres imundos, mais sequiosos em atentar contra seu pudor do que contra sua vida. A maior apreensão das mulheres cristãs, que partiam para ser massacradas, era o de ter talvez de se submeter à imundice dos seus executores; assim, quando percebiam que a morte lhes era oferecida sem esta vergonha, aceitavam-na como feliz redenção. 

Preferir a morte à imundice era o sentir da jovem mardiniana sobre quem agora falarei. Ela pertencia a uma boa família armênia da cidade. Levada com outros deportados, tornou-se presa de um Curdo que fez comércio de sua pessoa, vendendo-a a outros, os quais, por sua vez, revenderam-na. Levada a Mardin por um de seus compradores, é adquirida por um poderoso muçulmano da cidade. Este homem desejava tomá-la como esposa; para alcançar seu propósito, tratava-a muito bem e apontava as honras e vantagens que ela teria se acedesse a sua vontade. “Dei minha palavra ao meu marido diante de Deus, dizia a moça, e não posso traí-la; também trairia meu Deus e minha religião se abraçasse o islamismo”. “Teu marido”, respondia o muçulmano, “foi executado com os outros armênios; por conseqüência, quanto a isso, você está livre”. “Somente no final destes conflitos, retrucava a cristã, a verdade sobre a morte de meu marido poderá ser conhecida. Antes, não posso contrair outras núpcias, esta é a lei de nossa religião. Deus me puniria se eu falhasse”. Era preciso coragem a esta moça para manter tal linguagem diante de um destes leões muçulmanos que não perdoava quem lhe resistisse às paixões. E ele só esperava por estar convencido de que ela não lhe resistiria para sempre. A moça acabou por conseguir fugir do cativeiro, mas era então o auge das perseguições; sem conseguir refúgio, foi encontrada por seu amo. Destemida perante as inúmeras ameaças e seduções, continua a falar-lhe do mesmo modo. Para encontrar sustento durante sua luta, ia por vezes escondida à igreja, onde se munia dos sacramentos. Tentou ainda fugir cinco vezes, sem mais sucesso do que na primeira. “Não teme que o teu amo te mate?” Perguntavam-na. “É tudo o que quero, respondia, assim também terei a coroa do martírio”. Finalmente, ela conseguiu que lhe tirassem do perigo levando-a para fora do país. Deixava nesta casa de infiéis o odor de suas virtudes e o exemplo de sua coragem ao sustentar a honra de esposa cristã. Diante destes exemplos os perseguidores perguntavam aos cristãos: “Que espírito faz suas mulheres tão superiores às nossas? Em seu lugar, as nossas teriam renegado Maomé mil vezes e feito tudo o que se lhe pedissem”. Deste modo, a superioridade da religião cristã era, como nos primeiros tempos, pregada aos infiéis pela coragem e virtude das cristãs perseguidas.  

Tiveram realmente ocasião de se espantar, os perseguidores, ao ver a coragem com que meninas tímidas, de 13 ou 14 anos, como Catarina Sarkis e Zakia Makhoulé, seguiam tranquilamente para a morte, sem se perturbarem com as ameaças dos que as conduziam.

Uma e outra faziam parte, com seus pais, de um longo comboio de famílias proscritas, que deixara Mardin com destino desconhecido, ou antes, desconhecido pelas famílias, mais uma razão para que eles se preparassem para a morte. E era isso o que faziam as duas pequenas amigas, Catarina e Zakia, enquanto desciam as encostas de Mardin em direção ao deserto.  Rezavam juntas o Rosário e faziam outras orações aprendidas na escola de freiras onde tantas outras moças e moços de Mardin aprenderam a morrer generosamente pelo bom Deus, como estas duas iriam fazer. Não estavam apreensivas, mas sim contentes, pois não enxergavam a morte como término da viagem, senão como a bela coroa do martírio. O fervor de sua oração também tendia, continuamente, a reforçar-lhes o tom.

Próximo a elas marchava uma dessas feras de rosto humano que o governo perseguidor elegera preferencialmente para acompanhar tais expedições. Fuzil pendurado nas costas, seguia adiante sem que sua alma inerte notasse a beleza do semblante pacífico dessas duas moças, num momento em que os fortes estão abalados e prestes a chorar como gazelas.  Suas orações apenas conseguiram incomodar-lhe as orelhas amassadas sob a boina vermelha, e assim, como uma ferra irritada, grita às duas que rezavam: “Calem a boca!”. Contudo, sem se intimidarem, as moças baixam o tom; porém, o fogo em seus corações faz com que suas vozes, pouco a pouco, aumentem de volume, acentuando-se, projetando-se até os ouvidos do soldado, o qual, dessa vez, com as armas em punho, ameaça as jovens de morte, caso continuem. Após um momento de emoção, as duas tímidas moças retomam a Ave Maria: “Ave Maria, Cheia de graça”, repetem em árabe, a língua delas e de seu condutor. “Rogai por nós, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Como se tal hora tivesse realmente chegado, sua oração torna-se cada vez mais intensa e, sem que elas percebessem, sua voz se elevara mais alto nos céus. De um golpe, como um demônio enfurecido pela oração cristã, a fera de boina vermelha lança-se sobre as jovens. “Querem a morte? Querem a morte?” Dois golpes de fuzil derrubam-nas ao longo do caminho. Estas pessoas estavam autorizadas a tudo, sem ter de responder a ninguém. Os que precediam ou seguiam o comboio testemunharam essa cena digna de selvagens. Viram Catarina e Zakia adormecidas na morte, uma ao lado da outra, com o terço na mão, resplandecendo, nos seus traços extintos, a paz eterna de que gozam suas almas. Os demais proscritos que seguiam para a morte encorajavam-se ao ver estas duas meninas mortas pelo bom Deus. Os sobreviventes deste comboio relataram o que acabo de dizer, e me esforcei por fazer reviver o seu relato no meu.

O corpo destas duas virgens cristãs merecia ter sido piedosamente recolhido para ser guardado com honra, mas os perseguidores jamais o teriam permitido. No seu desprezo pelos cristãos, diziam: “Essa gente merece que a terra a cubra; devemos deixá-los apodrecer sob o sol, ou serem devorados por cães ou chacais”.       

Este comboio, que levava os pais de Catarina e Zakia, terminou, como os demais, num massacre. As famílias passaram juntas desse mundo de perseguição àquele de paz e justiça.

Entre os comboios de mulheres proscritas de Mardin saídos àquela época, há um que inspira particularmente a compaixão quando se conhece sua história.

Este comboio, composto de cerca de seiscentas mulheres e crianças, todas católicas armênias, deixou Mardin em 10 de agosto de 1915. Era a época do calor mais cruel. Que ocorreria no caminho com esses seres frágeis, cujos corações foram devorados por males? Os que as conduziam não poderiam se importar menos. Para eles, este rebanho de cristãos era, na verdade, uma chusma de cães destinada a desaparecer, não importava como. Foram levados pelo deserto em brasa, e, sem água, chegaram à cidade curda de Kikié, 9 horas de Mardin. Muitos morreram no caminho, de fadiga, de inanição, de sede. O cassetete dos condutores abatia quem não podia continuar. Em Kikié, os lobos curdos esperavam esse infeliz rebanho. Após terem levado quem lhes convinha para os haréns ou para o comércio, decidem massacrar o restante. Trezentas vítimas já haviam morrido; entre as que restavam, trinta já estavam despidas, prontas para a execução, quando uma briga começou entre os curdos e os soldados. Graças à desordem reinante, favorecidas pela escuridão da noite, as prisioneiras conseguiram escapar e, descendo os barrancos do deserto, puderam se distanciar dos locais habitados. Nos dias que se seguiram, um cristão, também sobrevivente, desejoso de retornar a Mardin, encontrou-as, queimadas pelo sol e prestes a morrer de fome. “Peça a nossos irmãos de Mardin, diziam-lhe elas, para terem pena de nós, e nos enviarem o quanto antes pão e vestimentas”. O mensageiro atendeu aos pedidos das vítimas, mas o que se poderia fazer por elas, nesse tempo em que os armênios eram vigiados como animais perigosos e em que todos os outros cristãos temiam por suas vidas?  De todo modo, foi possível enviar-lhes algum socorro. Infelizmente, muitas já tinham perecido ou foram recapturadas pelos curdos antes que a ajuda chegasse.

Uma cristã de Mardin, que sobrevivera aos massacres após ter visto centenas de pessoas serem mortas diante de seus olhos, forneceu informações importantes sobre os sentimentos das vítimas sobre os seus algozes e sobre a morte; disse ela também algo sobre a mecânica das matanças e sobre os lucros que delas tiravam os que perpetravam os massacres. Algo que se deve conhecer, a fim de se poder fazer uma idéia correta sobre estas terríveis execuções. Nosso relato já tratou dessas coisas em casos particulares; e será confirmado pelas informações da mardiniana.

Esta mulher foi levada de Mardin durante o verão de 1915 com um numeroso comboio de mulheres e crianças, quase todas massacradas diante dela. Ela narrou que, antes de serem conduzidas à morte, as vítimas eram despojadas de suas vestes, mas que a maioria se despia por si só, para evitar serem tocadas pelos soldados ou pelos curdos. Todas, independentemente da idade, não demonstravam tristeza alguma de se verem diante da morte; antes, estavam contentes ao pensar como, em um instante, estariam na posse do céu: “Foi assim, dizia ela, que vi mulheres idosas, jovens, meninas e mesmo crianças. Nosso comboio, acrescentava, foi levado a um lugar onde havia umas cisternas, diante das quais as execuções eram realizadas. Na borda da cisterna havia uma peça de madeira sobre a qual as cabeças eram cortadas e em seguida lançadas junto ao corpo no buraco. As vítimas não precisavam ser levadas; vinham sozinhas, pacificas e tranqüilas, passavam no meio dos algozes, armados para matá-las, entravam no mar de sangue que se formara ao redor da peça de madeira e se deixavam decapitar sem nada dizer, como cordeiros. As demais vítimas, ao invés de se aterrorizarem com o espetáculo, aguardavam sua vez com o desejo que se experimenta antes de uma graça que se vai receber. “Ninguém”, dizia a mardiniana, “pensava em outra coisa senão no céu, já aberto para nos receber; esquecíamos tudo o que era da terra – casa, riquezas, parentes. Tudo isso abandonávamos nas mãos de Deus. Não nos preocupávamos em nada com os tormentos, nem com os sofrimentos, nem com o horror da decapitação. Isso tudo, pensávamos, era um nada perante a posse de Deus, que logo seria a recompensa disso”.

“Que seres estes cristãos!” exclamavam os algozes. “Que espírito há em seus corpos para que até moças e crianças não temam a morte?” Viam estas coisas, mas, como demônios do inferno, apenas se enfureciam ainda mais para matar estes inocentes. “Chegou minha vez de morrer”, continua a Mardiniana, “Deus tinha mudado o meu coração assim como tinha feito com os de minhas companheiras e eu estava contente. O curdo que devia me matar estava perto de mim e remunerou-se antecipadamente pelo seu serviço, roubando minhas vestimentas. Ele me disse: “Avance!”; e caminhei até o patíbulo, quando um outro curdo chegou e lhe falou: “Tome estas duas moedas (o equivalente a 9 francos) e dê-me esta mulher”.  Com esse ganho, meu algoz não hesitou e entregou-me ao outro, que me levou embora. Nada iguala a pena de ver que perdemos a morte que nos levaria à posse da vida eterna. Não choramos ao ver o patíbulo, mas choramos de lágrimas quentes ao ver que retornávamos à vida, sobretudo quando se considera o que é a vida de uma mulher no cativeiro de um curdo – vida de maus tratamentos, de aviltamento, de imundices forçadas freqüentemente. Partia, pois, chorando amargamente a minha sorte, seguindo o novo curdo sem as vestimentas que o anterior me havia roubado. Logo, um árabe surge e diz ao curdo: “Tome 4 moedas (o equivalente a 18 francos) e dê-me esta mulher”. Fui vendida sem discussão, e segui o árabe que me levou a seu vilarejo. Os árabes são mais humanos que os curdos. Vivia em sua casa como uma doméstica, ninguém me importunava. Ao cabo de algum tempo, disse-me o árabe: “Tenho de te matar porque, se o governo souber que te salvei a vida, eu mesmo serei morto”.  “Por que me matar”?, perguntei-lhe, “melhor será se tu me conduzires a Mardin, onde tenho algum dinheiro para recompensar o bem que me fizeste”. A proposta foi aceita: a mardiniana disfarçou-se de mulher árabe e foi assim levada até sua casa. Ela deu 5 libras turcas (o equivalente a 115 francos) a seu árabe, que partiu contente. Quanto a ela, soube manter-se ao abrigo de toda busca.

Esta mulher contava que os algozes preferiam que os massacres fossem feitos nas bordas das cisternas, pois assim poderiam esconder imediatamente os seus crimes. É o instinto de todo assassino: parece-lhes que a luz do sol os acusará se deixarem suas vítimas expostas ao dia. As execuções se faziam também no meio dos campos, como vimos em Abdulimam, em particular, e então se matava de diferentes maneiras (por meio de armas de fogo; do khandjar; do topouz; decepando a cabeça; rasgando o peito; estripando — o que se fazia sobretudo com grávidas; esquartejando crianças; desmembrando e outros suplícios que o espírito destes selvagens era fecundo em inventar). Os corpos ficavam no lugar para serem comidos pelos animais selvagens. Em certas partes do deserto de Mardin, as cabeças e os ossos dos massacrados estavam dispersos em grande número sob o sol, como ouvi de muitos viajantes, entre os quais, o guarda muçulmano do cônsul americano de Alep. A mulher de Mardin nos disse, como nosso relato o mostrou freqüentemente, que as mulheres eram despojadas de suas vestimentas. Assim era a avidez dos perseguidores curdos ou circassianos. Quando viam um comboio, lançavam-se sobre os prisioneiros e lhes arrancavam as vestes para pegar o dinheiro que supunham escondido nas dobras. Os soldados, sentindo-se lesados por este procedimento dos curdos, queriam pôr ordem nesta operação, e combinaram com eles que o dinheiro encontrado em poder dos prisioneiros ficaria com os soldados, sob o pretexto de que pertencia por direito ao governador, mas as vestimentas ficariam com o curdo que deteve o prisioneiro.

Este curdo nem sempre matava quem detinha, mas a guardava em sua casa ou a revendia a outro. Quando a matava, pegava todas suas vestimentas para fazer dinheiro com sua venda.

Que raça de patifes, que celerados esses assassinos que faziam tais combinações sobre a existência de seres humanos, como não o fariam sobre ovelhas ou cães! Que vergonha para a Turquia ter suscitado homens tais!

E estes mercadores embrutecidos encontravam com que insultar a religião cristã mesmo nas suas indignidades. “Por que nos despem antes de nos matar?” perguntou um dia uma vítima ao soldado que iria matá-la. “É porque, respondeu o bárbaro, o teu Cristo foi colocado na cruz nu; morrerás como ele”. Não imaginava, este miserável, que sua resposta, lembrando à sua vítima a semelhança com Cristo, derramava na alma cristã uma consolação que adoçava a morte.

 

[Tradução: Alexandre Bastos. Originalmente publicado na Revista Permanência, n. 264]

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