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Foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria

45 — Não é somente necessário ao cristão acreditar que Jesus é o Filho de Deus, como acima mostramos, mas também convém crer na Sua Encarnação. Por isso, o Bem-aventurado João, após ter falado muitas coisas elevadas e de difícil compreensão, logo a seguir nos insinua a Sua Encarnação, quando diz: “E o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14).

Para que possamos aprender algo dessa verdade, darei dois exemplos:
 
Sabe-se que nada é tão semelhante ao Filho de Deus como a palavra concebida em nosso interior, mas não pronunciada exteriormente. Ninguém conhece a palavra enquanto está no interior do homem, a não ser ele, que a concebeu. Mas logo que é proferida exteriormente, torna-se conhecida. Assim o Verbo de Deus não era conhecido senão pelo Pai, enquanto estava no seio do Pai. Mas logo que se revestiu da carne, como a palavra concebida no interior, pela voz, tornou-se manifesto e conhecido. Lê-se na Escritura: “Depois disso foi visto na terra, e conviveu com os homens” (Br 3, 38). Vejamos o segundo exemplo. A palavra, pronunciada exteriormente, é ouvida, mas não é vista, nem se pode nela tocar. Escrita, porém, em uma folha, pode ser vista e tocada. Assim também o Verbo de Deus tornou-se visível e palpável, quando foi, de certo modo, escrito em nossa carne. Ora, quando numa mensagem estão escritas as palavras do rei, ela também é chamada de palavra do rei. Do mesmo modo, o homem a quem está unido o Verbo de Deus numa só pessoa, deve ser chamado do Filho de Deus. Lê-se em Isaías: “Toma o grande livro e escreve nele com a pena de um homem” (Is 8, 1). Declararam também os Apóstolos: “Que foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria”.
 
46 — Com relação a este artigo do Credo, muitos caíram em erros. Por isso os Santos Padre, em outro símbolo, o de Nicéia, acrescentaram muitos esclarecimentos que nos permitem ver agora como esses erros foram destruídos.
 
47 — Orígenes1 afirmou que Cristo nasceu e que veio a este mundo para salvar também o demônio. Disse ainda que todos os demônios seriam salvos no fim do mundo. Afirmar tal coisa, porém, é ir contra a Sagrada Escritura, pois se lê no Evangelho de São Mateus: “Afastai-vos de mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mat. 25, 41). Por essa razão, foi acrescentado no Símbolo: “Que desceu dos céus para nós, homens (não se diz: para os demônios) e para a nossa salvação”. Essas palavras evidenciam, ainda mais, o amor de Deus para conosco.
 
48 — Fotino2, não obstante ter aceito que Cristo nasceu da Bem-aventurada Maria Virgem, afirmou que Ele era um simples homem, que, por ter vivido bem e ter feito a vontade de Deus, mereceu ser considerado Filho de Deus, como o são os outros santos. Contra essa afirmação, lê-se na Escritura: “Desci do céu, não para fazer a minha, mas a vontade de quem me enviou” (Jo 6, 38). Ora, é evidente que não teria descido do céu, se aí não estivesse; e, se fosse um simples homem, não poderia ter estado no céu. Para afastar esse erro, foi acrescentado: “desceu dos céus”.
 
49 — Manés3 ensinava que Cristo foi sempre Filho de Deus e que desceu do céu, mas que não possuía verdadeira carne, pois que esta era apenas aparente. Isso é falso. Ora, não convinha ao Mestre da verdade, mostrar-se com alguma falsidade. Por isso, como apareceu em verdadeira carne, devia também possui-la. Lê-se no Evangelho de São Lucas: “Palpai e vede, porque o Espírito não tem carne nem ossos, como me vedes possuir” (Lc 24, 39). Para afastar tal erro, os Padres acrescentaram: “E se encarnou”.
 
50 — Com relação a Ebion4, que era judeu, aceitava ele que Cristo tivesse nascido da Bem-aventurada Maria, mas de uma união carnal, e de sêmen humano. Isso, porém, é falso, porque o Anjo disse: “O que nascerá dela, é obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20). Para afastar esse erro, os Padres acrescentaram: “Do Espírito Santo”.
 
51 — Valentino5aceitava que Cristo tivesse sido concebido pelo Espírito Santo, mas também ensinava que Cristo trouxera um corpo celeste e o depositara na Bem-aventurada Virgem, e que este corpo era o de Cristo. Por esse motivo, dizia, a Bem-aventurada Virgem nada fizera senão ter-se dado como receptáculo daquele corpo, e, que este passava por ela, como por um aqueduto. Mas tal afirmação é falsa, porquanto o Anjo disse: “O santo que de ti nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc. 1, 35). Do mesmo modo, o Apóstolo: “Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho feito de mulher” (Gl 4, 4). Eis porque os Padres acrescentaram no Símbolo: “Nasceu da Virgem Maria”.
 
52 — Ario6 e Apolinário7 afirmaram que Cristo era o Verbo de Deus e que nasceu da Virgem Maria, mas que não possuía alma, estando em lugar desta, a divindade. Mas isto é contra a Escritura, onde se encontram estas palavras de Cristo: “Agora, a minha alma está perturbada” (Mt 26, 38). Para refutar o erro de ambos, os Santos Padres acrescentaram no Símbolo: “E fez-se homem”. Ora, o homem é constituído de alma e corpo. Por conseguinte, Ele possuiu tudo o que o homem pode possuir, exceto o pecado.
 
53 — Pela expressão — “fez-se homem” — são destruídos todos os erros acima enumerados, e todos os que possam surgir. Foi destruído, por essa expressão, principalmente o erro de Eutíquio8 que ensinou ter havido uma mistura, isto é, que havia uma só natureza em Cristo, oriunda da divina e da humana, de modo que Cristo não era nem simplesmente Deus, nem simplesmente homem. Tal afirmação é falsa, porque, se não fosse falsa, Cristo não seria homem como fora definido: “fez-se homem”.
 
É destruído também o erro de Nestório9 que afirmou que o Filho de Deus reuniu-se ao homem só por inabitação. É falsa também essa doutrina, porque então não estaria escrito apenas homem, mas no homem. O apóstolo declara que Cristo foi homem: “Foi reconhecido, conforme se apresentou, como homem” (Fl 2, 7). Lê-se também em São João: “Por que me quereis matar, eu, um homem que vos disse a verdade que ouvi de Deus?” (Jo 8, 40).
 
54 — Dessa exposição sobre o 3° artigo do Credo, podemos tirar algumas conclusões práticas para nossa instrução. Em primeiro lugar, para confirmação da nossa fé. Se alguém falasse de uma terra longínqua, na qual nunca estivera, não seria tão bem aceita a sua palavra como seria, se a conhecesse.
 
Antes da vinda de Cristo, os Patriarcas, os Profetas e João Batista falaram algumas verdades a respeito de Deus. Os homens, porém, não acreditaram nelas como acreditaram em Cristo, que este com Deus, e, mais do que isso, constituía um só ser com Ele. Eis porque a nossa fé foi muito mais confirmada pelas verdades transmitidas por Cristo. Lê-se em São João: “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho Unigênito, que está no seio do Pai, nos revelou” (Jo 1, 18). Muitos mistérios da fé, que antes estavam velados, nos foram revelados após o advento de Cristo.
 
55 — Em segundo lugar, para elevação da nossa esperança. Sabemos que o Filho de Deus não sem elevado motivo veio a nós, assumindo a nossa carne, mas para grande utilidade nossa. Fez, para consegui-la, um certo comércio: assumiu um corpo animado, e dignou-se nascer da Virgem, para nos entregar a sua divindade; fez-se homem, para fazer o homem, Deus. Lê-se em São Paulo: “Por quem temos acesso pela fé nessa graça, na qual permanecemos, e nos gloriamos na esperança da glória dos filhos de Deus” (Rm 5, 2).
 
56 — Em terceiro lugar, para que a nossa caridade seja mais fervorosa. Nenhum indício é mais evidente da caridade divina do que o Deus, Criador de todas as coisas, fazer-se criatura; o do Senhor nosso, fazer-se nosso irmão; o do Filho de Deus, fazer-se filho de homem. Lê-se em São João: “Tanto Deus amou o mundo, que lhe deu o Seu Filho” (Jo 3, 16). Pela consideração dessa verdade, deve ser reacendido e de novo em nós afervorado, o nosso amor para com Deus.
 
57 — Em quarto lugar, para conservação da pureza de nossa alma. A nossa natureza foi a tal ponto enobrecida e exaltada pela união com Deus, que foi assumida para consorciar-se com uma Pessoa Divina. Por esse motivo o Anjo, após a Encarnação, não permitiu que o Bem-aventurado João o adorasse10, quando antes permitira que até os maiores Patriarcas o fizessem. O homem, pois, reconsiderando e atendendo à própria exaltação, deve perceber como se degrada e avilta a si e à própria natureza, pelo pecado. Por isso escreve São Pedro: “Por quem nos concedeu as máximas e preciosas promessas, para que nos tornássemos consortes da natureza divina, fugindo da corrupção da concupiscência que existe no mundo” (2 Pd 1, 5).
 
58 — Em quinto lugar, a meditação dos mistérios da Encarnação aumenta em nós o desejo de nos aproximarmos de Cristo. Se alguém, irmão de um rei, dele longe estivesse, naturalmente desejaria aproximar-se dele, estar com ele, permanecer junto dele. Ora, sendo Cristo nosso irmão, devemos desejar estar com Ele e nos unirmos a Ele. Com relação a esse desejo, lê-se em São Mateus: “Onde quer que esteja o cadáver, aí se apresentarão os abutres” (Mt 24, 28). São Paulo desejava dissolver-se para estar com Cristo: esse desejo cresce também em nós pela consideração do mistério da Encarnação.
 

  1. 1. Orígenes (185 – 253) é das personalidades mais discutidas da patrística. Filho do mártir Leônidas, cedo, pela sua notável inteligência, foi chamado para dirigir a Escola Catequética de Alexandria. Visitou Roma e todo o oriente católico. Para melhor seguir o Evangelho mutilou-se. Sendo ordenado sacerdote irregularmente, por esse motivo foi excomungado. Não abandonou, contudo, a Igreja, morrendo vítima das torturas que sofreu pela fé na perseguição de Décio. De cultura invulgar, tendo exercido atividade de ensino em Roma, Cesária e Alexandria, Orígenes escreveu obras de teologia em número imenso, ditando-as para diversos taquígrafos, tendo até pagãos em suas aulas, que eram atraídos pela sua sabedoria. A influência de Orígenes, na teologia do Oriente antigo, equipara-se a de Santo Agostinho, na do Ocidente. Orígenes tentou formular um sistema teológico, fundamentando-o no neo-platonismo e, em parte, em Aristóteles. Esse ecletismo filosófico levou Orígenes a afirmar muitas teses falsas no plano da fé, como o traducianismo (os pais transmitem a alma aos filhos), a eternidade do mundo, a igualdade inicial de todos os seres espirituais, a sucessão cíclica dos mundos, a volta de tudo a Deus, no retorno final (“apocatastase”). Até o inferno desaparecerá no fim de tudo. Interpretava a Escritura, também de modo ambíguo. São Jerônimo considerou Orígenes: “o pai de todas as heresias”. Foi posteriormente condenado, diversas vezes, como herege. Orígenes foi vítima do subjetivismo na interpretação da Escritura e do otimismo, na consideração das coisas. Faltando-lhe a filosofia verdadeira, naturalmente caiu em erros. Todavia Orígenes sempre procurou ser fiel à Igreja, em muitos aspectos é o iniciador da teologia oriental, testemunho também, em outros, da tradição católica. É notável a sua influência nos Padres Capadócios. Devido à sua genialidade foi denominado “Adamantino”.
  2. 2. Fotino (ver nota n° 5).
  3. 3. Manés (ver nota n° 2).
  4. 4. Ebionitas. Propriamente não há o fundador Ebion, mas o nome da seita deriva do termo pobreza, em hebraico. Esta seita vinha dos tempos apostólicos, constituíam-na judeus-cristãos que não aceitavam a doutrina do Apóstolo Paulo, nem a divindade de Cristo. Esperavam também um reino terreno messiânico de mil anos (Milenarismo = quiliasma). A seita espalhou-se pela Síria e perseverou até o séc. V.
  5. 5. Valentino — Gnóstico Alexandrino que difundiu sua doutrina em Roma pelos anos de 136 a 160. Grande talento oratório, formulou um sistema doutrinário religioso-filosófico baseado na filosofia neoplatônica. Tornaram-se os valentinianos perigosos, porque usavam os mesmos ritos da Igreja e, assim, iludiam e atraiam os católicos.
  6. 6. Ario (Ver nota n° 8).
  7. 7. Apolinário — Bispo de Laodicéia, na Síria, aplicou a doutrina da tricotomia platônica a Cristo, de modo que Cristo não teria alma racional. O “Logos” fazia às vezes dela, sendo Cristo constituído de “carne”, “alma animal” e do “Logos”. Sem o perceber, Apolinário de fato ensinava que o verbo se encarnou em um ser irracional. Não obstante ter combatido o Arianismo, Apolinário, pelo conceito falso a respeito da humanidade de Cristo, caiu neste erro. Diversos Sínodos condenaram o “apolinarismo”, os Padres Antioquenos logo o rejeitaram e o Imperador Teodósio, em 388, exilou os seus adeptos. A heresia foi absorvida pela Igreja Ortodoxa, manifestando-se mais tarde na forma do nonofisitismo. Apolinário faleceu em 390.
  8. 8. Eutíquio era Arquimandrita de Constantinopla, piedoso, mas sem cultura teológica. Com Eutíquio inicia-se a grande luta monofisita, que terminará na Igreja com o Concílio Ecumênico de Calcedônia, 451. Em forte oposição ao nestorianismo (ver nota 19), os monofisitas ensinavam que em Cristo há uma só natureza, a divina, pois a natureza humana de Cristo foi divinizada, não sendo mais igual à nossa. Em Cristo haveria “uma e única natureza”. Eutíquiu agiu com muita violência contra os que afirmavam haver duas naturezas em Cristo, identificando-os com os nestorianos. No Concílio de Calcedônia, foi lida a carta do Papa Leão Magno (440-461) sob grande aplausos, na qual era condenado o monofisitismo e o nestorianismo. Assim escrevia o Papa: “Nós ensinamos e professamos um único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas entre si, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças, antes, cada uma das naturezas conservou as propriedades e se uniu com a outra numa única pessoa e numa única hipótese”. A heresia monofisita difundiu-se pela cristandade, aceitando-a ainda hoje as igrejas Ortodoxa da Armênia, da Abissína (coptas) e da Síria (jacobitas).
  9. 9. Nestório, monge piedoso e bom orador, foi eleito Bispo de Constantinopla em 428. Seguindo a escola teológica antioquena, que exagerava de tal modo a distinção das duas naturezas de Cristo a ponto de parecer afirmar a existência n’Ele de duas pessoas, Nestório levou ao extremo as teses antioquenas negando haver em Cristo só a Pessoa Divina. Consequentemente, Maria era apenas mãe de Cristo, não Mãe de Deus (Teotókos). São Cirilo Alexandrino de modo contundente combateu o erro de Nestório, tendo o Papa Celestino I apoiado a doutrina deste Padre. Firme no erro e na Cátedra de Constantinopla que deveria renunciar, Nestório solicitou do Imperador Teodório II a convocação de um Concílio Ecumênico para dirimir a questão. Realizou-se este em Éfeso, no ano de 431, presidido por Cirilo, representante do Papa, sendo Nestório destituído da função episcopal e reafirmada a dualidade de natureza em Cristo e a unidade de pessoa. Maria foi declarada Teotókos. O Concílio, que é o terceiro ecumênico, não publicou novo Símbolo de fé, considerando o Símbolo Niceno suficiente. A heresia nestoriana difundiu-se pelo Oriente, entre os indianos, chineses e mongóes e no século XVI os nestorianos caldeos voltaram ao seio da Igreja Católica. Subsistem ainda adeptos do nestorianismo no norte do Iraque.
  10. 10. Lê-se no Apocalipse que João tentou adorar o “Anjo vigoroso” (Ap 18, 21). Mas foi admoestado a que não o fizesse (Ap 19, 10).
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