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Santo Tomás de Aquino (3981)

Art. 1 — Se o anjo pode iluminar o homem.

(III Cont. Gent., cap. LXXXI; De Verit., q. II, a. 3; De Malo, q. 16, a. 12; Quodl IX, q. 4, a. 5).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que o anjo não pode iluminar o homem.
 
1. — Pois, o homem é iluminado pela fé; por isso Dionísio atribui a iluminação ao batismo, que é o sacramento da fé. Ora, esta imediatamente vem de Deus, conforme a Escritura (Ef 2, 8): É pela graça que fostes salvos, mediante a fé, é isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Logo, o homem não é iluminado pelo anjo, mas, imediatamente, por Deus.
 
2. Demais. — A propósito do passo da Escritura (Rm 1, 19) — Deus lho manifestou — diz a Glossa: não só por meio da razão natural foram manifestadas as coisas divinas aos homens, mas também Deus lhes fez revelações, por meio das suas obras, i. é, por meio da criatura. Ora, tanto a razão natural, como a criatura, procedem imediatamente de Deus. Logo, Deus ilumina o homem imediatamente.
 
3. Demais. — Quem é iluminado conhece a sua iluminação. Ora, os homens não têm consciência de serem iluminados pelos anjos. Logo, não são iluminados por eles.
 
Mas, em contrário, Dionísio prova, que as revelações das coisas divinas chegam aos homens, mediante os anjos. Ora, tais revelações são iluminações, como já se disse (q. 106, a. 1; q. 107, a. 2). Logo, os homens são iluminados pelos anjos.
 
Solução. — Como esta na ordem da divina providência, que os seres inferiores estejam submetidos às ações dos superiores, conforme já se disse (q. 109, a. 2; q. 110, a. 1), em relação aos anjos inferiores, iluminados pelos superiores; assim também os homens, inferiores aos anjos, são por estes iluminados. Mas o modo dessas iluminações é, em parte, semelhante e, em parte, diverso. Pois, como se disse (q. 106, a. 1), a iluminação, que é a manifestação da divina verdade, é considerada a dupla luz: enquanto o intelecto inferior é reforçado pela ação do superior; e enquanto são propostas ao intelecto inferior as espécies inteligíveis do superior, para que possam ser apreendidas por aquele. E isto nos anjos se faz quando o anjo superior divide com o inferior, segundo a capacidade deste, a verdade universal concebida, como já se disse (Ibid). Mas o intelecto humano não pode apreender a verdade inteligível, em si mesma, por que lhe é conatural inteligir voltando-se para os fantasmas, conforme já ficou estabelecido (q. 84, a. 7). E por isso os anjos propõem aos homens a verdade inteligível, debaixo de semelhanças sensíveis, conforme ensina Dionísio, dizendo que é impossível chegue até nós a luz dos raios divinos, sem que seja circunvelada pela variedade dos sagrados véus. Mas por outro lado, o intelecto humano, como inferior, é fortificado pela ação do intelecto angélico. E nestes dois pontos de vista é que se considera a iluminação que o homem recebe do anjo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Duas coisas levam ao fim. — A primeira é o hábito do intelecto que o dispõe a obedecer à vontade, que tende para a divina verdade; pois, o intelecto assente à verdade da fé não como convencido pela razão, mas como obrigado pela vontade; pois, conforme Agostinho, só crê quem quer. E, a esta luz a fé vem só de Deus. — Em segundo lugar, para haver fé é necessário que as coisas que se devem crer sejam propostas ao crente. E isto se opera por meio do homem, enquanto que a fé é pelo ouvido, conforme diz a Escritura (Rm 10, 17); mas, principalmente, por meio dos anjos, pelos quais são reveladas aos homens as coisas divinas. E portanto, os anjos contribuem em alguma coisa, para a iluminação da fé. — E contudo os homens são iluminados por eles, não só quanto ao que devem crer, mas também quanto ao que devem fazer.
 
Resposta à segunda. — A razão natural, procedente de Deus, imediatamente, pode ser reforçada pelo anjo, como já se disse. E, semelhantemente, pelas espécies recebidas das criaturas, tanto mais alto se elevará à verdade inteligível, quanto mais forte for o intelecto humano. E assim o homem é auxiliado pelo anjo, para que, partindo das criaturas, chegue a um conhecimento divino mais perfeito.
 
Resposta à terceira. — A operação intelectual e a iluminação podem ser consideradas de duplo modo. De um, em relação à coisa inteligida, assim quem intelige ou é iluminado tem de ambas estas coisas consciência, porque conhece que algo lhe é manifestado. De outro modo, em relação ao princípio, e assim quem intelige qualquer verdade nem por isso sabe o que seja intelecto, princípio da operação intelectual. E semelhantemente, quem é iluminado pelo anjo nem por isso se conhece como iluminado.

Questão 111: Da ação dos anjos sobre os homens.

Em seguida deve-se tratar da ação dos anjos sobre os homens. E primeiro discute-se se aqui eles podem, por virtude natural, imutar a estes. Segundo, de que modo são enviados por Deus, para o ministério dos homens. Terceiro, como guardam os homens.
 
Sobre o primeiro ponto quatro artigos se discutem:

Art. 4 — Se os anjos podem fazer milagres.

(Infra, q. 114, a. 4; III Cont. Gent., cap. CII, CIII; De Pot., q. 6, a. 3, 4; Compend. Theol., cap. CXXXVI; Opusc.XI, Resp. de XXXVI Artic., a. 15, 16, 18; in Ioan, cap. X, lect. V).
 
O quarto discute-se assim. — Parece que os anjos podem fazer milagres.
 
1. — Pois, como diz Gregório, chamam-se virtudes os espíritos pelos quais mais freqüentemente se fazem presságios e os milagres.
 
2. Demais. — Como diz Agostinho, os magos fazem milagres por contratos privados; os bons Cristãos, por pública justiça; os maus Cristãos, por sinais da justiça publica. Ora, os magos fazem milagres por serem ouvidos pelos demônios, como o mesmo autor diz, no mesmo livro. Logo, os demônios podem fazer milagres e com maior razão os anjos bons.
 
3. Demais. — Como Agostinho diz, crê-se que as coisas visivelmente feitas, mesmo pelas potestades inferiores do ar, podem ser feitas, sem absurdo. Ora, dizemos que há milagre, quando um efeito das causas naturais é produzido sem dependência da causa; p. ex., quando alguém sara de febre, sem ser por operação da natureza. Logo, os anjos e os demônios podem fazer milagres.
 
4. Demais. — A virtude superior não esta sujeita à ordem da causa inferior. Ora, a natureza corpórea é inferior ao anjo. Logo, este pode operar fora da ordem dos agentes corpóreos, o que é fazer milagres.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura, de Deus (Sl 135, 4): O que faz grandes maravilhas só.
 
Solução. — Diz-se que há propriamente milagre, quando alguma coisa se realiza, contra a ordem da natureza. Não basta porém para a existência do milagre que alguma coisa se faça contra a ordem de alguma natureza particular; pois então quem atirasse uma pedra para cima faria milagre, por isso contra a ordem da natureza da pedra. Chama-se, portanto, milagre ao que se faz contrariamente à ordem de toda a natureza criada. Ora, isso Deus apenas pode fazer; porque tudo quanto fizer o anjo, ou qualquer natureza criada, por virtude própria, fa-lo-á conforme à ordem da natureza criada e então não é milagre. Donde se conclui que só Deus pode fazer milagres.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Diz-se que certos anjos fazem milagres ou porque por desejo deles Deus os faz, assim como também se diz que os santos os fazem; ou porque desempenham certas funções, nos milagres, p. ex., reunindo as cinzas, na ressurreição geral, ou fazendo coisas semelhantes.
 
Resposta à segunda. — Chamam-se milagres, simplesmente falando, segundo já disse, as coisas feitas contra a ordem de toda a natureza criada. Mas, como não nos é conhecida toda a virtude da natureza criada, por isso dizemos que para nós há milagre quando alguma coisa é feita contra a ordem da natureza criada, que conhecemos, por alguma virtude criada, que ignoramos. Assim não é milagre, em si mesmo, mas só para nós, qualquer coisa que os demônios façam por virtude natural; sendo desse modo que os magos fazem milagres, por meio dos demônios. E diz-se que isso se faz por contratos privados porque qualquer virtude criada está para o universo como a virtude de qualquer pessoa privada está para a cidade. Por onde, quando um mago faz qualquer coisa, por pacto concluído com o demônio, faz tal por um como contrato privado. A justiça divina porém está para todo o universo, como a lei pública, para a cidade. E por isso, diz-se que os bons Cristãos, quando fazem milagres, por meio da justiça divina, fazem-nos por justiça pública. Ao passo que os maus Cristãos os fazem pelos sinais da justiça pública, invocando o nome de Cristo ou empregando certos sacramentos.
 
Resposta à terceira. — As potestades espirituais podem fazer coisas viáveis neste mundo, empregando germes corpóreos, por meio do movimento local.
 
Resposta à quarta. — Embora os anjos possam fazer coisas contra a ordem da natureza corpórea, não podem entretanto fazer nada contra a ordem de toda a criatura; o que é exigido para a existência do milagre, como já se disse.

Art. 3 — Se os corpos obedecem aos anjos quanto ao movimento local.

(De Pot., q. 6, a. 3; De Malo, q. 16, a. 1, ad 14; a. 10; Quodl. IX. Q. 4, a. 5; In Iob, cap. I, lect III).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que os corpos não obedecem aos anjos, quanto ao movimento local.
 
1. — Pois, o movimento local dos corpos naturais resulta da forma deles. Ora, os anjos não causam as formas dos corpos naturais, como já se disse (a. 2). Logo, também não podem causar-lhes o movimento local.
 
2. Demais. — Como o prova Aristóteles, o movimento local é o primeiro dos movimentos. Ora, os anjos não podem causar os outros movimentos, transmutando formalmente a matéria. Logo, também não podem causar o movimento local.
 
3. Demais. — Os membros corpóreos obedecem às concepções da alma, quanto ao movimento local, por terem em si mesmos um princípio vital. Ora, nos corpos naturais não há nenhum princípio vital. Logo, eles não obedecem aos anjos, quanto ao movimento local.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho, que os anjos aplicam os germes corpóreos para produzirem certos efeitos. Ora, tal não podem fazer, senão movendo-se localmente. Logo, os corpos lhes obedecem, quanto ao movimento local.
 
Solução. — Como diz Dionísio, a divina sabedoria une as ínfimas, das criaturas superiores, às supremas, das inferiores. Por onde se vê, que a natureza inferior, no que há nela de supremo, tem contato com a natureza superior. Ora, a natureza corpórea é inferior à espiritual. Entre todos os movimentos corpóreos, porém, o movimento local é o mais perfeito, como o prova Aristóteles; e a razão é que o móvel, no movimento local, não é potencial em relação a algo do intrínseco, como tal, mas só a algo de extrínseco, que é o lugar. E por isso da natureza corpórea é natural ser movida, quanto ao movimento local, imediatamente, pela natureza espiritual. Por onde, os filósofos ensinaram, que os corpos supremos são movidos localmente pelas substâncias espirituais; e por isso vemos que a alma move o corpo, primária e principalmente, pelo movimento local.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Há nos corpos outros movimentos locais, além dos que resultam das formas; assim, o fluxo e o refluxo do mar não resultam da forma substancial da água, mas se dão por virtude da lua. E com maior razão, certos movimentos locais podem ser causados pela virtude das substâncias espirituais.
 
Resposta à segunda. — Os anjos, causando o movimento local, que é o primeiro, podem por este causar os outros movimentos, empregando os agentes corpóreos, para produzirem tais efeitos; assim como o ferreiro emprega o fogo para amolecer o ferro.
 
Resposta à terceira. — Os anjos têm virtude menos limitada que a alma. Por onde, a virtude motiva desta é limitada pelo corpo a que esta unida, que ela vivifica e mediante o qual pode mover outros seres. Enquanto que, a virtude do anjo, não estando limitada por nenhum corpo, ele pode mover localmente corpos que não lhe estão conjuntos.

Art. 2 — Se a matéria corpórea obedece à vontade dos anjos.

(Supra, q. 65, a. 4; q. 91, a. 2; III, Cont. Gent., cap.CIII. De Pot., q. 6, a. 3; De Malo, q. 16, a. 9; Quodl., IX, q. 4, a. 5; Galat., cap. III, lect 1).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que a matéria corpórea obedece à vontade dos anjos.
 
1. — Pois, maior é a virtude do anjo que a da alma. Ora, a matéria corpórea obedece à idéia da alma; assim, pela idéia desta, o corpo do homem sofre a imutação do calor e do frio e, às vezes, até mesmo a da saúde e da doença. Logo, com maior razão, pela idéia do anjo se transmuta a matéria corpórea.
 
2. Demais. — Tudo o que pode a virtude inferior pode a superior. Ora, a virtude angélica é superior à corpórea. Ora, o corpo tem a virtude de transmutar a matéria corpórea para que esta receba determinada forma; assim quando o fogo gera o fogo. Logo, com maior razão, os anjos por virtude própria podem levar a matéria corpórea a determinada forma, transmutando-a.
 
3. Demais. — Toda a natureza corpórea é governada pelos anjos, como já se disse (a. 1); assim pois os corpos estão para eles como instrumentos, porquanto é da essência do instrumento ser motor movido. Ora, nos efeitos há algo da virtude dos agentes principais, que não pode ser causado pela virtude do instrumento e isto é o que há de principal no efeito. Assim, a digestão da nutrição dá-se em virtude do calor natural, instrumento da alma nutritiva; mas, se daí resulta a carne viva, é em virtude da alma. Semelhantemente, é virtude própria da serra cortar a madeira; mas por virtude da arte é que esta chega a receber a forma de um leito. Logo, a forma substancial, que é o principal nos efeitos corpóreos, resulta da virtude dos anjos; e portanto, a matéria, quanto à sua informação, obedece aos anjos.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não se deve pensar que a matéria das coisas visíveis obedeça à vontade dos anjos transgressores, mas, só a Deus.
 
Solução. — Os Platônicos ensinam que as formas materiais são causadas pelas imateriais, porque as concebem como umas participações destas. E a estes adere Avicena, sob certo aspecto, admitindo que todas as formas materiais procedem da concepção da Inteligência e que os agentes corpóreos só dispõem para as formas. — Mas enganaram-se pensando que a forma é algo feito por si mesmo, procedente, como tal, de um princípio formal. Pois, como o Filósofo o prova, o que vem propriamente a ser é o composto, que existe, propriamente, como por assim dizer subsistente. Ao passo que a forma não se chama ente, porque exista, mas porque é o princípio da existência de alguma coisa: e assim, por conseqüência, ela não vem propriamente a ser, pois, vem a ser o que existe, não passando o vir-a-ser se não de via para o existir. Ora, é manifesto que o feito é semelhante ao que o fez, porque todo agente age semelhantemente a si mesmo. Por onde, o que faz as coisas naturais tem semelhança com o composto, ou porque é composto, e assim o fogo gera o fogo; ou porque o composto total, quanto à matéria e quanto à forma, existe em virtude de quem os fez, o que é próprio de Deus. Assim, pois, toda informação da matéria ou vem imediatamente de Deus, ou de algum agente corpóreo; não porém imediatamente, do anjo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A nossa alma está unida ao corpo, como forma, não sendo pois, de admirar se este se transmuta, formalmente, à idéia daquela; sobretudo estando o movimento do apetite sensitivo, que se realiza com certa transmutação corpórea, sujeito ao império da razão. Ora, como o anjo não se comporta assim em relação aos corpos naturais, a objeção não colhe.
 
Resposta à segunda. — O que pode a virtude inferior pode a superior, não do mesmo, mas de modo mais excelente; assim como o intelecto conhece os sensíveis de modo mais excelente que o sentido. O anjo, pois, transmuta a matéria corpórea de modo mais excelente que os agentes corpóreos, a saber, movendo, como causa superior, estes agentes.
 
Resposta à terceira. — Nada impede que, por virtude dos anjos, resultem, nas coisas naturais, certos efeitos, para os quais não bastariam os agentes corpóreos. Mas isto não quer dizer que a matéria obedeça à vontade do anjo; assim como ela não obedece à vontade dos cozinheiros que, com uma certa sabedoria artística, obtêm um modo de decocção, por meio do fogo, que este por si só não poderia causar. E isto porque reduzir a matéria ao ato da forma substancial não excede à virtude do agente corpóreo, pois, é natural a este poder obrar o que lhe é semelhante.

Art. 1 — Se a criatura corpórea é governada pelos anjos.

(III Cont. Gent., cap. LXXVIII; De Verit., q. 5, a. 8).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que a criatura corpórea não é governada pelos anjos.
 
1. — Pois, seres com determinado modo de obrar não precisam ser governados por nenhum superior; e se precisamos ser governados é para não agirmos de modo diverso do necessário. Ora, os seres corpóreos obram determinados atos resultantes dos dons naturais, outorgados por Deus. Logo, não necessitam o governo dos anjos.
 
2. Demais. — Os seres inferiores são governados pelos superiores. Ora, há certos corpos considerados inferiores, e outros, superiores. Logo, aqueles são governados por estes, sem necessidade de serem governados pelos anjos.
 
3. Demais. — As diversas ordens dos anjos distinguem-se pelas diversas funções. Ora, se as criaturas corpóreas são governadas pelos anjos, estes terão tantas funções quantas às espécies daquelas. Logo, também haverá tantas ordens de anjos, quantos estas espécies, o que é contra o que já ficou estabelecido (q. 108, a. 2). Logo, a criatura corpórea não é governada pelos anjos.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: todos os corpos são governados pelo espírito racional da vida. E Gregório: neste mundo visível nada pode ser disposto senão pela criatura invisível.
 
Solução. — Tanto nas coisas humanas, como nas naturais, é comum seja o poder particular submetido ao universal e por este regido; assim, o poder do bailio está submetido ao do rei. E também em relação aos anjos já foi dito (q. 108), que os superiores, que presidem aos inferiores, têm ciência mais universal. Ora, é manifesto, que a virtude de qualquer corpo é mais particular que a da substância espiritual; pois, ao passo que toda forma corpórea é individuada pela matéria e determinada, local e temporalmente, as formas imateriais são absolutas e inteligíveis. Por onde, assim como os anjos inferiores, de formas menos universais, são governados pelos superiores, assim todos os corpos são governados pelos anjos. E isto é ensinado não só pelos santos Doutores, mas também por todos os filósofos que admitem substâncias incorpóreas.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — As coisas corpóreas têm determinados atos, que só se exercem quando elas são movidas, porque é próprio do corpo não agir senão pelo movimento. Logo, é necessário seja a criatura corpórea movida pela espiritual.
 
Resposta à segunda. — A objeção procede, segundo a opinião de Aristóteles, que ensinava serem os corpos celestes movidos pelas substâncias espirituais; e ele procurou determinar o número delas pelo dos movimentos que se verificam nos corpos celestes. Mas não ensinou existirem quaisquer substâncias espirituais com governo imediato sobre os corpos inferiores, a não serem talvez as almas humanas. E isto porque não admitia outras operações, nos corpos inferiores, senão as naturais para explicar as quais bastava o movimento dos corpos celestes. Mas nós admitimos que muitas coisas se realizam, nos corpos inferiores, que escapam aos atos naturais dos corpos. E para explicá-los não bastam as virtudes dos corpos celestes, sendo necessário admitirmos que os anjos têm governo imediato, não só dos corpos celestes, mas também dos inferiores.
 
Resposta à terceira. — Os filósofos trataram diversamente das substâncias imateriais. — Assim, para Platão, elas são as razões e as espécies dos corpos sensíveis, sendo umas mais universais que outras. E por isso ensina que essas substâncias têm o governo imediato de todos os corpos sensíveis, correspondendo a diversos corpos diversas substâncias. — Para Aristóteles porém, elas não são espécies de corpos sensíveis, mas algo de mais elevado e universal. E por isso, não lhes atribuiu o governo imediato de cada um dos corpos, mas só dos agentes universais, que são os corpos celestes. — Avicena enfim seguiu uma via média. Com Platão, admite uma substância espiritual que preside imediatamente à esfera dos corpos ativos e passivos; porque com Platão, admite serem as formas desses sensíveis derivadas das substâncias imateriais. Mas, diferindo de Platão, ensina a existência de uma só substância imaterial, que governa todos os corpos inferiores e a que chama Inteligência agente.
 
Mas os santos Doutores, de outro lado, ensinam com os Platônicos, que os diversos seres corpóreos são presididos por diversas substâncias corporais. Assim, Agostinho diz: Cada ser visível deste mundo tem uma inteligência, que lhe é preposta. Damasceno: O diabo era das virtudes angélicas que presidiam à ordem terrestre. E Orígenes, a propósito daquilo da Escritura — A jumenta vendo o anjo: o mundo precisa de anjos, que governem os animais, presidam-lhes ao nascimento, bem como ao crescimento dos rebentos, das plantações e dos demais seres. Mas isto não se funda em que um anjo por natureza seja mais apto a presidir aos animais, que às plantas; porque qualquer anjo, ainda mínimo, tem virtude mais alta e universal do que qualquer gênero de corpos; mas, sim, na ordem da divina sabedoria, que prepôs, a coisas diversas, diversos superiores. Daqui porém não se segue haja mais de nove ordens de anjos; pois, como já foi dito (q. 108, a. 2), as ordens se distinguem pelas funções gerais. Por onde, assim como, segundo Gregório, à ordem das Potestades pertencem todos os anjos que, propriamente, governam os demônios, assim, à das Virtudes pertencem todos os que governam as coisas puramente corpóreas e, pelo ministério destes realizam-se às vezes os milagres.

Questão 110: Do governo dos anjos sobre a criatura corpórea.

Em seguida devemos considerar o governo dos anjos sobre a criatura corpórea.
 
E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 4 — Se os bons anjos têm superioridade sobre os maus.

O quarto discute-se assim. — Parece que os bons anjos não têm superioridade sobre os maus.
 
1. — Pois, a superioridade, nos anjos, se baseia sobretudo na iluminação. Ora, os maus anjos, sendo trevas, não são iluminados pelos bons. Logo, estes não têm superioridade sobre aqueles.
 
2. Demais. — O que os súbditos fazem de mal é atribuído à negligência do chefe. Ora, os demônios fazem muito mal. Se, pois, estão sujeitos ao governo dos bons anjos, resulta que há nestes alguma negligência, o que é inadmissível.
 
3. Demais. — A superioridade dos anjos resulta da ordem da natureza, como se disse antes (a. 2). Ora, se como se diz comumente, os demônios decaíram, das várias ordens, muitos deles são superiores, na ordem da natureza, a muitos bons anjos. Logo, estes não têm superioridade sobre todos os maus.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: o espírito, transviado da vida racional e pecador, é governado pelo de vida racional, pio e justo. E Gregório: chamam-se potestades os anjos a cujo império estão sujeitas as virtudes adversas.
 
Solução. — Toda a ordem da superioridade está primária e originalmente em Deus; e é participada pelas criaturas, conforme o grau em que se aproximam de Deus. Assim, as mais perfeitas e mais próximas de Deus têm influência sobre as outras. Ora, a máxima perfeição, e que mais aproxima de Deus, é a das criaturas que o fruem, como os santos anjos, e dessa perfeição os demônios estão privados. Por onde, os bons anjos têm superioridade sobre os maus, que são governados por eles.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Os santos anjos revelam aos demônios muitas coisas dos mistérios divinos, quando a divina justiça exige certas se façam pelos demônios, quer para punição dos maus, quer para exercitação dos bons; assim como nas coisas humanas, os assessores do juiz revelam aos algozes a sentença do mesmo. E tais revelações, referidas aos anjos reveladores, são iluminações, porque eles as ordenam para Deus. Não o são, porém, em relação aos demônios, que assim não as ordenam, senão à satisfação da iniqüidade própria.
 
Resposta à segunda. — Os santos anjos são ministros da divina sabedoria. Por onde, assim como esta permite que certos males sejam feitos pelos maus anjos ou pelos homens, por causa do bem que deles venha, assim, os bons anjos não coíbem totalmente os maus de fazerem o mal.
 
Resposta à terceira. — O anjo inferior, na ordem da natureza, governa os demônios, embora superiores, nessa ordem; porque a virtude da divina justiça, a que inerem os bons anjos, é mais poderosa que a virtude natural angélica. Por isso, entre os homens, o espiritual julga todas as coisas, como diz a Escritura (1 Cor 11, 15). E o filósofo diz, que o virtuoso é a regra e a medida de todos os atos humanos.

Art. 3 — Se nos demônios há iluminação.

O terceiro discute-se assim. — Parece que nos demônios há iluminação.
 
1. — Pois, a iluminação consiste na manifestação da verdade. Ora, um demônio pode manifestar a verdade a outro, porque os superiores têm maior vigor, quanto ao acume da ciência natural. Logo, os demônios superiores podem iluminar os inferiores.
 
2. Demais. — O corpo com luz superabundante pode iluminar o que é dela deficiente; assim, o sol ilumina a lua. Ora, os demônios superiores têm mais abundante participação do lume natural. Logo, podem iluminar os inferiores.
 
Mas, em contrário. — A iluminação vai com a purificação e a perfeição, como antes se disse (q. 106, a. 1, 2). Ora, purificar não cabe aos demônios, conforme a Escritura (Ecle 34, 4): que coisa será limpa por um imundo? Logo, nem a iluminação.
 
Solução. — Nos demônios não pode haver iluminação. Pois, como já se disse (q. 107, a. 2), a iluminação sendo propriamente, a manifestação da verdade, ela se ordena por Deus, que ilumina todo intelecto. Mas, outra manifestação da verdade pode ser a locução, como quando um anjo manifesta a outro o seu conceito. Ora, a perversidade dos demônios faz com que um não procure ordenar o outro para Deus, mas, antes, afastá-lo da ordem divina. E por isso um não ilumina o outro, mas pode comunicar a este o seu conceito, por meio da locução.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Não é qualquer manifestação da verdade que se domina iluminação, mas só a que foi referida.
 
Resposta à segunda. — No que diz respeito ao conhecimento natural, não é necessária a manifestação da verdade, nem entre os anjos, nem entre os demônios. Pois, como já se disse (q. 55, a. 2), logo, desde o princípio do conhecimento deles, conheceram tudo o que respeita o conhecimento natural. Por onde, a maior plenitude de luz natural, existente nos demônios superiores, não pode ser causa de iluminação.

Art. 2 — Se entre os demônios há superiores.

(Supra. Q. 63. a. 8; II Sent., dist. VI, q. 1. a. 4; IV, dist. XLVII, a. 2, qa 4).
 
O segundo discute-se assim. — Parece que, entre os demônios, não há superiores.
 
1. — Pois, toda superioridade se funda nalguma ordem da justiça. Ora, os demônios perderam totalmente a justiça. Logo, entre eles não há superiores.
 
2. Demais. — Onde não há obediência e sujeição não há superioridade. Ora, esta não pode existir sem a concórdia, que de nenhum modo existe nos demônios, conforme a Escritura (Pr 23, 10): Entre os soberbos há sempre contendas. Logo entre os demônios não há superiores.
 
3. Demais. — Se entre eles existisse alguma superioridade, esta haveria de lhes pertencer, quer à natureza, quer à culpa ou à pena. Ora, não à natureza, porque não desta, mas do pecado é que resultou a sujeição e a servidão. Nem à culpa ou à pena, porque então os demônios superiores, que pecaram mais, estariam sujeitos aos inferiores. Logo, não há superiores entre os demônios.
 
Mas, em contrário, diz a Glossa: Enquanto durar o mundo, os anjos governarão, os anjos; os homens, os homens e os demônios, os demônios.
 
Solução. — Como o ato resulta da natureza da coisa, nos seres, cuja natureza é ordenada, necessariamente hão-de os atos se ordenar entre si. Como é patente nos seres corpóreos; pois, porque os corpos inferiores dependem, por ordem natural, dos corpos celestes, os atos e os movimentos daqueles estão sujeitos aos atos e movimentos destes. Ora, é manifesto, pelo que já foi dito (a. 1), que os demônios estão constituídos uns sob a dependência dos outros. Por onde, os atos daqueles dependem dos atos destes. E nisto consiste a essência da superioridade, a saber, que o ato do súdito esteja submetido ao do superior. Assim, pois, a disposição natural mesma dos demônios exige que haja entre eles superior. E isto também convém à divina sabedoria, que nada deixa desordenado no universo, e que atinge fortemente desde uma extremidade à outra, e dispõe todas as coisas com suavidade, como diz a Escritura (Sb 8, 1).
 
Donde a resposta à primeira objeção. — A superioridade, nos demônios, não se lhes funda na justiça, mas na justiça de Deus que tudo ordena.
 
Resposta à segunda. — A concórdia, pela qual uns demônios obedecem a outros, não nasce da amizade que tenham entre si, mas da nequícia comum com que odeiam os homens e repugnam à justiça de Deus. Pois, é o próprio aos homens ímpios unirem-se e submeterem-se aos de forças superiores, para executarem a própria nequícia.
 
Resposta à terceira. — Os demônios não são iguais por natureza e por isso há entre eles superiores. O que não se dá com os homens, iguais por natureza. Ora, submeterem-se os demônios inferiores aos superiores, não é para bem, mas antes para mal destes; pois, fazer o mal sendo a máxima miséria, governar maus é ser mais miserável que eles.

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