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Category: Santo AgostinhoConteúdo sindicalizado

Doutor da Igreja.

Sobre a disciplina cristã

Capítulo Primeiro: Objeto do discurso.

1. Através da boca da Escritura, vem o Senhor fazer escutar sua voz, dirigindo a nós esta urgente exortação: “Recebei a disciplina na morada do ensino”. Quem aprende é o discípulo; a morada do ensino, a Igreja de Jesus Cristo. Que se aprende aqui e por quê? Quem aprende e quem o ensina? Aprende-se a boa vida, e se aprende a boa vida para merecer a felicidade de viver para sempre. Os discípulos são os cristãos; o mestre, Jesus Cristo. Que é a boa vida? Qual a recompensa da vida santa? Quais os verdadeiros cristãos? Enfim, quem o mestre verdadeiro? São estas as questões sobre as quais desejamos vos dizer algumas palavras, se Deus nos der a graça.

Todos habitamos na morada da disciplina, mas muitos não a desejam; e para cúmulo da perversidade, recusam a disciplina habitando na morada da disciplina. Não deveria lhes ser ensinada a disciplina, para assim poder levá-la até suas próprias moradas? Mas não, como se lhes não bastasse a indisciplina nas suas moradas, pretendem conservá-la até na morada da disciplina. Ah!, quem não rejeita a palavra de Deus, mas empresta a atenção dos ouvidos e da alma; quem não se assemelha à via pública sobre a qual os passarinhos devoram a semente tão logo esta se espalhe; quem não se assemelha ao terreno pedregoso no qual a semente não logra penetrar raízes profundas, onde cresce um momento e logo resseca; quem não se assemelha ao campo coberto de espinhos, cuja espessura logo abafa os brotos das sementes; enfim, quem se encontra figurado na terra fértil, amanhada para receber a semente que dá a cem, a sessenta ou a trinta por um, receberão transportados os ensinamentos que o Senhor se agradar de me inspirar; ademais, os que atualmente possuem razões legítimas para se aproximar desta cátedra de ensino, não esqueçam que não é à toa que empresto do Evangelho estas comoventes parábolas. Se Jesus Cristo é o divino semeador, quem sou eu? Mal e mal, sou o cesto que carrega o grão. Ele deseja depositar em mim a semente que vai chantar em vossas almas. Não repareis na baixeza do cesto, mas sede sensíveis ao preço da semente e ao poder do semeador.

 

Capítulo Segundo: Que é a boa vida?

2. Que é a arte da boa vida, que aprendemos aqui? A lei encerra multidão de preceitos, que são como as regras, as linhas e o alfabeto da vida boa. Sim, os preceitos são numerosos e por assim dizer inumeráveis. Mal podemos enumerar as páginas que encerram os preceitos; quanto mais não seria enumerar os mesmos preceitos. Todavia, para não deixar a ninguém o recurso da desculpa, seja porque não os leu, seja porque não os saiba ler, seja porque não os poderia compreender, o Senhor, para impossibilitar a desculpa no dia do julgamento, quis resumir a lei numa só palavra, segundo a predição do profeta: “Deus lançará por sobre a terra uma palavra, que condensará e resumirá todas as outras”. É breve a palavra, mas não acrediteis que seja obscura. Ela é breve, para que seja sempre possível lê-la; é clara, para que ninguém tenha o direito de afirmar: não a compreendi. Constituem as Santas Escrituras um como imenso tesouro, que encerra inúmeros preceitos admiráveis, e são umas tantas pérolas preciosas e vasos de grande preço. Mas quem pode investigar o imenso tesouro, dele se servir e lhe descobrir todas as riquezas? No Evangelho, emprega o Salvador esta comparação: “O reino dos céus é semelhante ao tesouro encontrado no campo”; após, como se temesse que alguém replicasse a incapacidade de cavoucar para descobrir o tesouro, imediatamente se valeu desta outra comparação: “O reino dos céus é semelhante ao negociante que busca boas pérolas, encontra uma preciosa e, para adquiri-la, vende tudo o que possui”. Talvez vos sintais demasiado preguiçosos para cavoucar o tesouro, mas não o sejais a ponto de não levar uma pérola cosida ao bolso da calça e assim assegurar-vos o direito de andar em segurança.

 

Capítulo Terceiro: Mandamento de amar a Deus e ao próximo.

3. Que palavra é essa que resume todas as outras? “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo teu espírito, e a teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois preceitos estão contidos toda a lei e os profetas”. Eis o que se aprende na morada da disciplina: amar a Deus, amar ao próximo; a Deus por si mesmo, e ao próximo como a si mesmo. Encontrareis alguém que se possa igualar a Deus, ao ponto de afirmar: amai a Deus como amais aquela criatura? Foi possível encontrar uma medida para o próximo, porque sois iguais ao próximo. Buscais o modo de amar ao próximo? Lançai o olhar sobre vós mesmos, e amai o próximo com o mesmo amor com que amais a vós. Aqui não é possível o erro. Quero confiar-vos o próximo, para que o ameis como a vós; desejo-o, mas o receio ainda. Desejo-vos dizer: amai ao próximo como vós vos amais. Imploro-vos, sem amargura. Por que vos é confiado o próximo, devo abandonar-vos assim, tratando convosco só por um tempo? Não formais senão um só homem, e para vós o próximo é a multidão dos homens, não somente o irmão, o parente, o aliado. Não, pois todo homem tem como próximo por sua vez todo homem. O pai e o filho, o sogro e o genro possuem entre si laços estreitos de proximidade. Ora, nada há de tão próximo quanto o homem de seu próximo. Caso vós estejais tentados a pensar que são próximos apenas os nascidos dos mesmos parentes, relembrai-vos de Adão e Eva, e compreendereis que todos somos irmãos. Somos irmãos na singela qualidade de homem, quanto mais não seremos na de cristãos! Enquanto homens, tendes um único pai, Adão, e uma única mãe, Eva; enquanto cristãos, tendes um só Pai, que é Deus, e uma só mãe, que é a Igreja.

 

Capítulo Quarto: Como amar o próximo a quem se ordenou amar o próximo como a si mesmo.

4. Vede pois de que multidão de homens somos próximos, cada um de nós. Todos os homens com quem encontramos, todos a quem podemos nos unir é o próximo. Como saber de que amor se ama se são seus próximos tantos homens, a quem deve amar como a si mesmo? Que ninguém se exaspere assistindo-me examinar o como se ama. A mim pertence o discorrer, a vós reconhecer-vos nas minhas palavras. Por que discorrer? Posso eu saber o estado da alma de cada um? Discorro, para que cada um se interrogue, olhe e veja sem disfarces, para que se encare e pose diante dos próprios olhos, sem voltar às costas para si mesmo. É justamente isso que se há de fazer enquanto falo, para melhor proveito de minhas palavras. Como vos amais? Vós que me escutais, antes, que escutais o Senhor pela minha boca, enquanto estais aqui nesta morada da disciplina, prestai contas a vós mesmos de que maneira vos amais. Tomara eu pergunte se vós vos amais, e me respondais afirmativamente. Com efeito, alguém pode odiar a si? Talvez me responderíeis: mas alguém consegue odiar a si? Se vós vos amais, não ameis a iniqüidade, pois se a amais, escutai, não a minha palavra, mas a do salmista: “Quem ama a iniqüidade, odeia sua alma”. Se vós amais a iniqüidade, escutai a verdade, não a que vos incha, mas a que vos declara: vós odiais a vós mesmos. Quanto mais repetis que vos amais, mais vos odiais, pois “quem ama a iniqüidade, odeia sua alma”. Que direi eu da carne, a porção mais vil de nós mesmos? Se odeia sua a alma, como ama sua carne? Quem ama a iniqüidade, odeia sua alma, e cobre sua carne de torpeza. Vós, que amais a iniqüidade, como queríeis que vos confiassem o próximo, para que vós o amásseis como a vós mesmos? Ó homem, por que vos perdeis? Se amais de modo a vos perder, não perdereis aquele a quem amais como a vós mesmos? Proíbo-vos de amar quem quer que seja; perecei só, se desejardes perecer. Reformai vosso amor, ou renunciai toda sociedade.

 

Capítulo Quinto: O amor pernicioso ao próximo.

5. Talvez vós me dissésseis: Amo meu próximo como a mim mesmo. Compreendo-o perfeitamente. Desejais vos inebriar com aquele que amais como a vós mesmos. Gozemos a valer agora, bebamos o quanto pudermos. Reconhecei que é assim que vos amais, e que atraindo para vós o próximo, o convidais para o que vos agrada. Sentis a necessidade de usar aquele a quem amais para inchar o amor que tendes por vós mesmos. Homem demasiado humano, ou antes, homem cruel, que ama o que amam as bestas selvagens! Inclinou Deus em direção à terra a face dos animais, para que buscassem alimento; já a vós, ele vos elevou acima da terra, para tangê-la apenas com os pés. Quisera que vossa fronte se voltasse em direção ao céu. Que vosso coração não desminta o vosso rosto. Não tenhais a fronte altiva e o coração servil, antes escutai a palavra tão verdadeira quanto bela: Corações ao alto; não mintais dentro da morada da disciplina. Quando vos dirigirem esta palavra, respondei, mas que não seja mentira. Neste sentido é que deveis vos amar, e aí então amareis o próximo como a vós mesmos. Não é alçar o coração ao alto encarnar esta palavra: “Ama o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito”? Se existem apenas dois preceitos, não seria bastante formular apenas um? Um só basta, à condição que seja bem entendido. Com efeito, na Escritura encontramos as palavras referidas por São Paulo: “Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e ainda outros mandamentos que existam, eles se resumem nestas palavras: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é o pleno cumprimento da lei”. Que é a caridade? A dileção. Como se nada houvesse dito a Deus acerca da dileção, deixa o Apóstolo entreouvir que a dileção ao próximo basta para o cumprimento da lei. Qualquer outro mandamento se encontra resumido, observado nesta palavra. Qual palavra? “Amareis ao próximo como a vós mesmos”. Eis o mandamento; todavia, disséramos que havia dois, nos quais se resumem toda a lei e os profetas.

 

Capítulo Sexto: Consiste a felicidade do homem em amar a Deus.

Vede como a lei continua a se restringir, e ainda somos negligentes! Eis que os dois preceitos de que falávamos se resumem a um só. Ameis ao próximo, e isso basta. Mas amai-o como vós vos amais, e não como vós vos odiais. Amai ao próximo como a vós mesmos, mas antes de tudo amais-vos vós mesmos.

6. Resta-vos saber como vos amais a vós, por isso escutai esta palavra: “Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma e todo teu espírito”. O homem que não acredita em si, pode menos encontrar para si a felicidade. Uma potência essencialmente distinta do homem fez o homem; uma potência essencialmente distinta dele torná-lo-á feliz. Mas, infelizmente, como tem o firme sentimento de que não consegue ser feliz por si só, cai em erro ao escolher o objeto cujo amor torná-lo-ia feliz; ama-o, pois lhe parece que nisto encontra a felicidade. E nesta busca, que ama? A riqueza, o ouro, a prata, as posses; ou, para resumir em uma palavra, a riqueza. Com efeito, designa esse nome tudo que possuem os homens nesta terra, e que podem controlar. Seja o escravo, o vaso, o campo, o bosque, a manada, tudo são riquezas. Denominavam os antigos a riqueza como pécula, porque as manadas (pécus) eram toda sua riqueza. Lemos que os antigos patriarcas eram ricos em manadas. Ó homem, amais a riqueza; vós a contemplais como princípio de felicidade, prodigalizando para ela todo vosso amor. Se desejardes amar ao próximo como a vós mesmos, partilhai com ele as riquezas. Busquei saber quem éreis; agora, já vos vistes a vós, já vos examinastes e considerastes. Não estais dispostos a partilhar vossas riquezas com o próximo. Contudo, que me responde a diligente avareza? Que me responde ela? Se a partilho com alguém, será menor a minha parte, e a sua também; o meu amor se achará reduzido, nem eu nem ele possuiremos todo o tesouro. Mas visto que o amo como a mim mesmo, aspiro-lhe tantas riquezas quantas as que possuo; desta maneira, não serei privado de nada, e ele possuirá tanto quanto eu. 

 

Capítulo Sétimo: A inveja é vício diabólico, oriundo do orgulho.

7. Desejais de modo a não perder coisa alguma; mais prouvera a Deus se vossa palavra fosse sincera, ou vosso desejo verdadeiro! Com efeito, temo que sejais invejosos. Se a felicidade alheia vos inquieta e tormenta, como será a vossa felicidade comum a todos? Começa vosso vizinho a enriquecer, a se elevar, a caminhar sobre vossos passos, não temeis que ele vos persiga e ultrapasse? Certamente, amais ao próximo como a vós mesmos. Não falo das vítimas da inveja. Que Deus os preserve desta triste doença do espírito todos os homens, sobretudo os cristãos; eis aí um vício de fato diabólico, do qual se tornou o demônio culpado, eternamente culpado. Pronunciando a sentença de condenação contra o demônio, não lhe disseram que cometera adultério, mas somente que usurpara o bem a outrem: porque caístes, levastes a inveja ao homem, que está de pé. É a inveja, pois, vício diabólico, cuja mãe é o orgulho. O orgulho é a mãe dos invejosos. Sufocai a mãe, e a filha não nascerá. Eis o porquê de Jesus Cristo ensinar com tanta humildade. Dirijo-me não aos invejosos, mas aos que alimentam bons desejos. Falo àqueles que desejam o bem a seus amigos, e lhe aspira na mesma medida que para si mesmos. Por exemplo, aspiram a que os pobres tenham fortuna semelhante a sua, mas se recusam em lhes dar parte dela.

Vós vos ensoberbeceis, cristãos, de aspirar ao bem dos outros? Mas o mendigo é superior a vós, porque em nada tendo deseja para vós mais do que tendes. Dignai-vos desejar o bem de quem nada lhe dá; antes, dai alguma coisa a quem lhe deseja o bem. Se for boa obra desejar o bem aos outros, dai-lhes a recompensa merecida. O pobre aspira ao vosso bem, por que tremeis? Vou mais longe: estais na morada da disciplina. Encareço o já dito: dai àquele que vos deseja o bem, pois este é simplesmente o próprio Jesus Cristo. Quem vos pede é o mesmo que vos dá. Enrubescei-vos de vergonha. Pudera este rico ser pobre, para que tivésseis sempre pobres a quem dar. Oferecei qualquer coisa a vosso irmão, ao vosso próximo, a vosso companheiro. Sois rico e ele, pobre. É este o caminho verdadeiro, não vos recuseis de o percorrerdes juntos.

 

Capítulo Oitavo: Diminuir, pela esmola, o fardo das riquezas.

8. Talvez me respondais: Eu sou rico, e ele pobre. Ides marchar juntos, sim ou não? Dizer eu sou rico, e ele pobre, não é afirmar que eu estou carregado, e ele sem fardo algum? Eu sou rico, e ele pobre. Lembrai-vos de vosso fardo, e transmiti o peso que vos esmaga. O que mais me impressiona é o estar vós encadeado a vosso fardo, não podendo por isso estender a mão. Estais sobrecarregados, ligados, de que pois vos orgulhais? Por que vos derramais em elogios? Parti as correntes, aliviai o fardo. Passando-o ao companheiro de viagem, vós o ajudais e vos aliviais. Enquanto derramais elogios pomposos a vosso fardo, Jesus Cristo pede-vos a esmola, e nada recebe, e para melhor disfarçar a crueza da recusa, invocais a ternura paternal e dizeis: Não o devo entesourar para meus filhos? Apresento-vos Jesus Cristo, opondes-me vossos filhos. A vossos olhos, é justo que possais contemplar vossos filhos em abundância luxuriante, e vosso Senhor na miséria? “O que fazeis ao menor de meus irmãos, é a mim que o fazeis.” Nunca pesastes nem lestes essas palavras? Eis aqui o homem derrotado, e vós me enumerais vossos filhos? Que seja, enumerai-mos, mas a esse número acrescentai mais um, vosso Senhor. Se tendes um, acrescente o segundo; se tendes dois, o terceiro; se tendes três, o quarto. Sei que nada disso vos apraz. É desse modo que amais vosso próximo, até torná-lo partícipe de vossa perdição.

9. Como vos dizer ainda de que modo amais o próximo? Homem avarento, que palavra comove vossa orelha? Vós não afirmaríeis a vosso filho, irmão ou pai, que aqui a felicidade é ser rico? Mais ricos sejais, maiores serão aos olhos dos homens. Fazei de um tudo e amontoai tesouros. Eis o que murmurais à orelha do próximo; não fora isso, todavia, o escutado, nem o aprendido na morada da disciplina.

 

Capítulo Nono: Evitar os perniciosos discursos dos avarentos.

Não é esse o amor que vos peço ao próximo. Oh!, quem me dera conseguir apartar-vos de tais pessoas! Pois “as más conversações corrompem os bons costumes”. Mas não posso esperar que nunca vos aproximeis de um estranho, para murmurar à sua orelha a linguagem vergonhosa que teimais em não desaprender; não somente não o quereis, mas vos alegrais de comunicar a outrem. Condeno-o vigorosamente, e desejo, contudo em vão, interpor entre vós e vossos irmãos uma barreira intransponível. Ah, dirijo-me diretamente aos outros, aqueles cujas orelhas desejais entreter e macular, para ali injetar o veneno até que escorra ao coração. Ó vós, que recebeis a palavra de vida na morada da disciplina, “erigi uma barreira de espinhos em torno de vossas orelhas”. “As más conversações corrompem os bons costumes; erigi uma barreira de espinhos em torno de vossas orelhas”. Cercai-a, cercai-a de espinhos, para quem tentar penetrá-la, não só seja afastado, mas ferido. Arredai-o para longe de vós. Dizei-lhe: vós sois cristão, eu sou cristão; não foi isso que aprendemos na morada da disciplina, nessa escola onde entramos gratuitamente, nessa disciplina cujo Mestre tem cátedra no céu. Não me faleis assim, ou afastai-vos. Com efeito, este é o sentido destas palavras: “Cercai vossas orelhas com uma barreira de espinhos”.

10. Agora, dirijo-me a vós. Vós sois avarentos, amais o dinheiro: desejais ser felizes? Amai o Senhor vosso Deus. A riqueza não vos torna felizes; vós a honrais com todas as veras, mas ela vos não torna felizes. Como amásseis muito a riqueza, vejo que ides onde vos arrasta o ardor dos desejos. Preguiçoso, ide onde vos chama a caridade; vede e observai bem se nosso Deus não é infinitamente superior à riqueza. O sol que nos alumia é mais formoso que a riqueza, e entretanto não é Deus. Se essa luz é mais formosa que a riqueza, quanto mais não será aquele que criou essa luz? Desejais pois medir o dinheiro com essa luz? Que desaparecesse o sol durante a noite, mostrai-me então vosso dinheiro. Ele rebrilha, mas somente quando se pontua a noite com uma fogueira; eis que sois ricos, mostrai-me vossas riquezas; se não tendes luz, se vossos olhos estão mergulhados em obscuridade, mostrai-me onde estão vossas riquezas.

 

Capítulo Dez: A cegueira dos avarentos.

Não logram os olhos sondar a horrível profundidade da avareza, mas é certo que o espírito o pode. Vimos avarentos cegos; dizei-me o que os torna cegos. Tenha ou não posses, o avarento é um cego. Por quê? Porque, desde que ele crê possuir, é cego. A crença é o que o torna rico; logo, é rico porque assim o crê, e não porque o vê. Quanto mais rica não é, certamente, a elevação da fé em direção a Deus! Não vedes o que possuis, e é o mesmo Deus quem vo-lo diz. Não o vedes ainda, mas amai-o e então o vereis. Cegos que sois, amais o dinheiro que não verás. Possuis como cegos, e morrereis como cegos, abandonando cá embaixo o que possuíeis. Até durante a vida, não possuíeis, pois não víeis o que tínheis.

11. E Deus, que vos disse? Escutai a palavra da sabedoria: amai a Deus “como ao dinheiro”. É infâmia e ultraje comparar a sabedoria ao dinheiro: contudo, aqui nos contentamos de comparar amor e amor. Com efeito, vejo-vos tomados do amor à riqueza, pelas quais, sob as ordens dele, empreendeis os trabalhos mais penosos, suportais o jejum, singrais os mares, confiais-vos aos ventos e às vagas. Sei o que poderíeis amar, mas não sei o que poderia eu acrescentar ao amor que já possuís. Amai-me assim, não há modo mais subido de me amar, diz o Senhor.

Dirijo-me aos homens injustos e avarentos; amais o dinheiro, dai-me a mim então esse amor. Sem dúvida, sou infinitamente superior à riqueza, mas vos peço apenas o mesmo amor; amai-me tanto quanto amais o dinheiro. Ao menos enrubesçamos de vergonha, confessemos nosso crime, batamos sobre o peito, em lugar de revestir nossas veredas com pedra ou mármore. Quem bate sobre o peito e não se corrige, consolida seus pecados, não os destrói. Batamos sobre o peito, firamo-nos, corrijamo-nos, se não quisermos que o mestre por sua vez não nos fira a nós. Até aqui, dissemos o que devemos aprender; digamos agora porque devemos aprender.

 

Capítulo Onze: Aprender as letras para um fim temporal.

12. Por que ides à escola? Porque vos bateram, e foram conduzidos por vossos parentes, caçados em vossa fuga, arrastados à força e disciplinados com instrumentos de penitência? Por que vos bateram? Qual a causa das violências que padecestes durante a juventude? Tudo foi para vos obrigar a aprender. Que aprendestes vós? As letras. Por quê? Para adquirir riquezas, ou honrarias, e subir às mais altas dignidades. Vede como um simples algo que deve perecer, deve conduzir-vos igualmente à perdição: quantos sofrimentos padecestes para aprender lições perecíveis, e todavia éreis realmente amados por aqueles que vos submetiam às rudes provações. Mas os que vos batiam, batiam-vos para vos forçar a aprender o quê? As letras. São boas as letras? Sem dúvida alguma. Sei bem o que me direis: vós, bispos, lestes nas letras; tratastes das Santas Escrituras com o auxílio da literatura. Com certeza, mas não é precisamente para tal fim que aprendemos as letras. Nossos pais, ao nos enviar para a escola, não nos diziam: aprende as letras para que possas ler a lei do Senhor. Inclusive os cristãos não sustentam esta linguagem para com seus filhos. Que lhes dizem eles? Aprende as letras. Por quê? Para que sejas homem. E por quê? Sou por acaso animal? Não, mas te digo para aprenderes a fim de te tornares homem, i. é, que possas resplandecer entre os homens. Daí este provérbio: na terra, só presta quem tem. Tenhais pois o mesmo que os outros, ou que os privilegiados; ou mais que os outros, ou que os privilegiados, obtereis como prêmio honrarias e dignidades. Mas o que se há de tornar tudo isso quando soar a morte sua hora? Seria a morte estimulante, e o temor poderoso excitante? Como esta palavra que acabei de pronunciar foi privilegiada, atingindo-vos o coração? Como vossos gemidos vêm atestar o temor que vos obseda? Escutei, e muito bem, que gemestes, que temeis a morte. Se a temeis, por que não a evitais? Temeis a morte; por que a temeis? Ela virá; tema ou não tema, ela virá; cedo ou tarde, ela virá. Apesar de a temer, fingis que não há nada que se temer.

 

Capítulo Doze: A boa morte preparada na boa vida.

13. Tende muito medo daquilo que depende apenas de vossa vontade. E que vem a ser isso? o pecado. Temei cometer o pecado, pois que se amais o pecado, incorrereis em morte eterna, a qual não temereis se não amais o pecado. Mas estais tão pervertidos que preferis antes a morte à vida. Exclamais: “Deus me livre disso”. Qual homem ama mais a morte que a vida? Talvez eu vos convença que amais mais a morte que a vida. Apresento-vos o meio de convencimento. Amais vossa túnica e, em conseqüência, a quereis boa; amais vossa estância, e a quereis boa; amais vosso filho, e o quereis bom; amais vosso amigo, e o quereis bom; amais vossa casa, e a quereis boa. Que quereis exatamente quando desejais que vossa morte seja boa? Como é mister morrer, rogai a Deus a cada dia para dar-vos uma boa morte, dizendo “que me preserve Deus de uma morte ruim”. Amai pois mais a vossa morte que vossa vida. Temeis o mal morrer, mas não o mal viver. Abstendes-vos do mal viver, e temeis o mal morrer. Ou antes, não a temeis, pois não se pode morrer mal, quando se viveu bem.

Ouso dizer e repeti-lo, pois “tendo acreditado, falei”: não se pode mal morrer, quando se bem viveu. Eis o que vos repetis a vós mesmos: muitos justos não morreram em naufrágios? Não se pode morrer mal, quando se viveu bem? Não tombaram muitos justos sob a espada dos inimigos? Não se pode morrer mal, quando se viveu bem? Muitos justos não tombaram sob os golpes de assassinos, ou devorados por bestas feras? Não se pode morrer mal, quando se viveu bem? Respondo: morrer no naufrágio, traspassado pela lâmina ou devorado pelas bestas feras vos parece má morte? Não fora esse gênero de morte a dos mártires, cujo nascimento no céu celebramos? Que gêneros de morte não tiveram os condenados? E todavia se somos cristãos, se não nos esquecemos o que somos nesta morada da disciplina, se ao sair daqui não esquecemos o que aqui vimos, se nos lembramos das verdades que aqui escutamos, não é porque celebramos a morte dos mártires? Buscai saber como morreram os mártires, interrogai os olhos da carne, e concluireis que tiveram má morte. Interrogai os olhos da fé, e concluireis que “A morte dos santos é preciosa aos olhos de Deus”. Se imitais os santos, não haveis que temer diante da morte. Trabalhai para levar boa vida; e qualquer seja a circunstância da vossa saída do corpo, saí em repouso, numa felicidade sem mescla de temor e infinita. Poderíamos acreditar boa a morte do mal rico, expirando engolfado entre a purpura e o linho; mas qual terrível não será a morte do desgraçado devorado de sede, implorando aos berros por uma gota d’água, em meio a tormentos! Alguém acredita má a morte do pobre Lázaro, expirando às portas do rico, lambido pelos cães, apetecendo, para aliviar a sede e a fome, as migalhas que caíam da mesa do rico morto em desgraça, em morte desgraçada. Vede como ele terminou; sois cristãos, abri os olhos da fé: “Morreu o pobre, e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão”. Para o rico devorado de fome e sede nos infernos, de que valia o túmulo de mármore? E as chagas e úlceras, como podiam tolher o pobre enquanto repousava no seio de Abrãao? Divisou o rico ao longe o pobre em repouso, o mesmo que jazia a porta do palácio. Escolhei entre esses dois mortos; dizei-me: qual dos dois tivera boa morte, e qual má morte? Parece-me a morte do pobre preferível a do rico. Vós vos quereis encerrados no báratro, com uma sede infernal a devorar-vos? Não, me responderíeis. Ao menos, suponho ser essa vossa resposta. Aprendei pois a morrer bem, vivendo bem. A recompensa da boa vida é a eterna recompensa.

 

Capítulo Treze: Os bons e os maus ouvintes.

14. Quem se instrui, prova que é cristão; quem escuta e não se instrui, que interesse inspira ao semeador? Nem a distância do caminho, nem as pedras, nem os espinhos amedrontam a mão do semeador, que lança o que lhe pertence. Quem teme que a semente caia em terra ruim, se detém antes de alcançar a boa terra. Nós, pelo menos, falamos, lançamos e dispersamos a semente. Entre os ouvintes, há os que a desprezam, e os que se queixam, e os que fazem troça. Se temêssemos todos os ouvintes, não seria possível semear; morreríamos de fome no tempo da colheita. Tomara se achegue a semente à boa terra. Sei que quem me escuta, e escuta seriamente, sente em si algo enfraquecer e algo progredir; enfraquece em iniqüidade, progride na verdade; enfraquece no século, progride em direção a Deus.

 

Capítulo Quatorze: Quem é o verdadeiro mestre?

15. Com efeito, quem é o mestre que nos ensina? Não é um homem qualquer, mas um apóstolo. E mais, se é um Apóstolo quem fala, não é ele quem ensina. “Quereis provar o poder de Jesus Cristo que fala por minha boca?” Quem ensina é Jesus Cristo, de sua cátedra no céu, como dizia eu não faz um instante. Sua escola está sobre a terra; ela é seu corpo. A cabeça instrui os membros, a língua fala aos pés. Quem ensina é Jesus Cristo: escutemos, temamos, obedeçamos. Guardai-vos de desprezar Jesus Cristo, pois é por vós que veio ele em carne, revestindo-se das lambugens da mortalidade; por vós padeceu fome e sede, por vós assentou-se fatigado nas amuradas dos poços; por vós dormira esgotado dentro do barco; por vós recebeu injúrias atrozes, por vós permitiu lhe escarrassem em rosto; por vós foi vergastado; por vós cosido à cruz, por vós morto, por vós depositado no túmulo. Seria tudo isso o que desprezais em Jesus Cristo? Quereis saber quem ele é? Recordai-vos do Evangelho que escutastes: “Meu Pai e eu somos um só”.

16. Unidos ao Senhor, roguemos-lhe por nós e por todo o povo reunido conosco na morada do Todo-Poderoso; imploremos que se digne guardar e proteger esse povo, por Nosso Senhor Jesus Cristo seu Filho, que com ele vive e reina, pelos séculos dos séculos. Amém.

 

Tradução: Permanência

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