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1. Traços do conhecimento do pecado original entre os antigos

Capítulo primeiro

Traços do conhecimento do pecado original entre os hindus, os persas, os assírios, os egípcios, os chineses, os nativos da América, os gregos e os romanos; entre os judeus e entre os muçulmanos.

 

Nós conhecemos uma família – diremos seu nome – uma família em que o pai errou miseravelmente; ele perdeu tudo que é possível perder, inclusive a honra: Cum in honore esset, non intellexit (Sl 48, 13).

O erro do chefe da família tornou-se a herança de seus filhos: ele os empobreceu e os envergonhou singularmente. Os filhos não podiam sequer olhar uns aos outros. Que digo eu? Eles não podiam sequer se olhar a si mesmos sem enrubescer. Os mais velhos da família sabiam: conheciam a causa da desonra, e da indigência e da vergonha; os mais novos nada sabiam da causa de sua desgraça, mas suspeitavam que uma grande tragédia havia acontecido, pois eles carregavam a vergonha. Se os primeiros tinham o conhecimento e a inteligência da situação, os outros dela tinham ao menos o sentimento, e o sentimento era a vergonha.

Expliquemos a parábola: a família é nossa família, é todo o gênero humano. Adão, nosso pai, cometeu um pecado, um pecado enorme, um pecado imenso. Ele perdeu seus bens, que deveriam ser nossos bens, e nos legou sua vergonha que se tornou nossa vergonha.

Os mais velhos da família são aqueles a quem Deus fez como tais, e lhes restituiu parte dos bens perdidos na origem; trata-se daqueles a quem Deus restituiu a fé.

Os mais novos são aqueles que permaneceram no estado em que a desgraça original os deixou.

Os primeiros lêem em sua fé, na fé que Deus lhes deu, lhes restituiu, a história completa da família, sua felicidade inicial, sua grande fortuna de origem, depois a queda e as conseqüências da queda. Eles sabem.

Os outros, os que não têm a fé, nem por isso sofrem menos as conseqüências da queda.  Eles têm o sentimento, a vergonha, e ainda que não saibam claramente o que se passou, conservam ao menos algumas lembranças da história da família.

Nosso propósito é recolher essas lembranças, e nos servir delas como um primeiro raio de luz, uma introdução ao conhecimento pleno e íntegro do pecado original, tal como o possuem, pela graça de Deus, os homens que têm a fé.

Em nosso primeiro contato com os deserdados da família, começaremos pelos hindus.

Os hindus, como provam seus livros mais antigos, consideravam a condição primeira da humanidade como um estado de felicidade e imortalidade. Yama, o primeiro homem, cedendo aos apelos de sua irmã Yami, cometeu uma falta que o lançou, a ele e à humanidade inteira, na imundície e na escravidão.

A grande falta fora aconselhada por seres superiores, divindades, assim como por Yami.

Em um de seus hinos, diz-se: “Nós buscamos com nossos sacrifícios ganhar a imortalidade que foi perdida por Yama”.

Os antigos persas possuíam conhecimentos preciosos sobre a unidade de Deus, a Santíssima Trindade, o Salvador futuro. Eles sabiam também do paraíso terrestre, que eles definiam como “um lugar de natureza agradável onde, contudo, nem tudo foi alegria”. Nesse lugar, Deus fizera crescer uma infinidade de árvores úteis, salutares, e no meio delas a árvore da vida. Lá habitava o homem chamado Yama, o primeiro homem, a quem, diziam, deus convidara a conversar com ele.

Porém o mais maligno de todos os espíritos, a serpente, o mentiroso, o enganador dos mortais, fez Yama cair na desobediência e, em seguida, na morte. A prerrogativa da imortalidade foi perdida para ele e para toda a humanidade.

Os babilônios e os assírios conheciam também a queda, inclusive a queda dos anjos, que chamavam de revolução dos anjos.

De acordo com seus monumentos mais antigos, eles sabiam que o homem fora criado num estado de perfeição, usufruindo da companhia de Deus; mas o dragão Tiamat levou o homem ao pecado: ao saber disso Deus irou-se, porque o homem corrompera sua pureza. O homem foi então punido com a morte, e por causa do pecado todos os males irromperam no homem.

Recentemente, foi encontrado um desenho da mais alta Antigüidade, onde estão representados dois personagens sentados de cada lado de uma árvore e que estendem suas mãos para o fruto dessa árvore, enquanto uma serpente se ergue atrás da mulher.

O Egito só se tornou mais conhecido há pouco tempo, mas entre os monumentos de sua religião primitiva destaca-se o papiro de Turim chamado Ritual Fúnebre. Nele se lê: “Existe um que é santíssimo, que criou tudo que há na terra, que governa os dias”.

Entre os egipícios encontramos também a noção da serpente inimiga de Deus, a noção de um cordeiro imolado para a remissão dos pecados, assim como a esperança num salvador, o que implica a queda original da humanidade[1].

Os chineses são mais explícitos. Em hebraico, o nome ‘Adão’ significa “terra roxa”: ora, os chineses chamam o primeiro homem de Hoang-Chi. Hoang significa “terra roxa”, e Chi, “senhor” ou “patriarca”. A primeira mulher é chamada de Louy-Tsou. Tsou significa a matriarca, a avó ou bisavó, e louy, aquela que arrasta os outros para o mal.

Em chinês, Kong-Hong significa o arquiteto de todo o mal; e é representado pela cabeça de um homem com os cabelos cor de fogo e o corpo de uma serpente. Em um livro muito antigo é dito: homem e não-homem, serpente e não-serpente, ele não passa de mentira e engano.

Um autor chinês, Lopi, diz ainda que ele (Kong-Hong) foi o primeiro dos rebeldes, que ele destruiu os laços que uniam o céu e a terra, e que, orgulhoso da sua sabedoria, atribuía a si só todas as virtudes.

Os chineses sabiam também de um jardim maravilhoso situado, diziam, ao pé da porta fechada do céu. No meio do jardim está a fonte da imortalidade, e ela jorra de quatro rios. Eles falam também da Grande Era da natureza perfeita. Não havia nem calamidades, nem doenças, nem morte. A mulher, diziam, levou o gênero humano à perdição, foi ela a causa de todos os males.

A respeitos dos índios da América, M. de Humbolt escreveu: “… o grupo representa a mulher da serpente. Os mexicanos a vêem como a mãe do gênero humano. Sempre a vemos representada relacionada com uma grande serpente.” Outro autor conta que, na Pensilvânia, um violento temporal derrubou um enorme carvalho e sob suas raízes descobriu-se uma grande pedra, onde estavam gravadas diversas figuras, entre elas, duas formas humanas separadas por uma árvore, uma delas tendo à mão umas frutas. Esses mesmos mexicanos mergulhavam na água a criança recém-nascida, dizendo: “Que este banho possa purificar teu coração!” Desse modo, eles seguem uma prática universal, como já vimos ao tratar do Batismo[2].

Os gregos e os romanos, povos mais próximos de nós, mas que receberam de seus ancestrais as doutrinas primitivas, tinham noção da mancha original; por isso também mergulhavam os bebês na água. Platão diz claramente que aquele que morrer sem se purificar pelos ritos expiatórios (Teletai) será precipitado no abismo do inferno; em contrapartida, o homem purificado será recebido na morada dos deuses (Phédon).

Fiel à mesma doutrina, Virgílio representa, chorando no inferno, os bebês que a morte levou deste mundo em suas primeiras horas, isto é, antes que recebessem a purificação. Entre os romanos, a purificação acontecia no nono dia para os meninos e no oitavo para as meninas (Eneida, VI).

Acabamos de percorrer rapidamente o mundo antigo e em toda parte constatamos a lembrança da queda original. Ferida no coração, a humanidade sente seu ferimento e em toda parte sofre as conseqüências formidáveis.

Herdeiros das promessas de Deus, portadores das revelações divinas e de todas as esperanças do mundo, os judeus tinham sobre esse ponto uma doutrina mais luminosa, e noções mais exatas: eles sabiam.

Os doutores da Sinagoga nos transmitiram os ensinamentos de seus pais, e estão em todos os aspectos em perfeito acordo com a doutrina católica. Aliás, sabemos que a doutrina da Igreja se diz católica exatamente porque pertence a todos os tempos e a todos os lugares.

Drachi, uma rabino convertido à fé católica, em seu livro “Harmonia entre a Igreja e a Sinagoga”, nos legou em suas páginas um tratado do pecado original segundo os rabinos. Vamos resumi-lo rapidamente.

O Tentador, segundo eles, é o anjo decaído: a serpente e o anjo caído são um só, e causaram a morte do mundo inteiro.

A Sinagoga sempre ensinou que o pecado de Adão e Eva foi ligado à sua posteridade, a qual existia virtualmente nos primeiros pais. Tal doutrina é transmitida pelo seguinte mito: “No momento em que a serpente se juntou à Eva, lançou nela uma sujeira que continua a infectar seus filhos.” Freqüentemente os livros rabínicos falam da sujeira com que a serpente conspurcou Eva. Tal sujeira é também chamada de veneno.

Em um comentário místico sobre o Livro de Ruth, lê-se: “A sujeira foi jogada em Adão e Eva pela velha serpente: essa sujeira é pois a verdadeira origem das gerações saídas de Adão e Eva. É o que ouvimos dos nossos doutores, que o receberam de seus predecessores, que já o receberam de outros e outros remontando até à boca do profeta Elias.”

O Rabi Menahhem de Recanati explica como se dá a transmissão do pecado original: “No dia em que o primeiro homem foi criado, toda a Criação foi consumada; Adão foi portanto a conclusão do sistema do mundo, e a súmula do gênero humano, que ele contém em germe. Desse modo, quando ele pecou, todo o gênero humano pecou com ele; é assim que nós carregamos a pena de sua iniqüidade.”

Segundo os mesmos rabinos, o pecado original está indicado nas seguintes passagens das Escrituras:

I. No Gênesis (Gn 6, 5), ele é chamado de o mal: “Deus, vendo que era grande a malícia dos homens sobre a terra, e que todos os pensamentos do seu coração estavam continuamente aplicados ao mal (…)”. É daí que os judeus tomaram o nome de pecado original: eles o chamavam simplesmente: o mal, hará, ou ainda inclinação ao mal: Yetser hará. Como mais adiante se lê no mesmo livro (Gn 8, 21)[3].

II. Os judeus também chamavam o pecado original de um nome tomado do Deuteronômio (10, 16): Circumcidite igitur praeputium cordis vestri… Isto é, a incircuncisão do coração: expressão bastante enérgica e significativa, indicando, à maneira judaica, que a natureza do mal que o gênero humano traz no coração é uma sujeira.

III. Os filhos de Israel chamavam ainda o pecado original de coração de pedra, seguindo as palavras do profeta Ezequiel: “Derramarei sobre vós uma água pura, e sereis purificados de todas as vossas imundícies; purificar-vos-ei de todos os vossos ídolos. Dar-vos-ei um coração novo e porei um novo espírito no meio de vós; tirarei da vossa carne o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne” (Ez 36, 25-26). O coração de carne é um coração dotado de vida e de sentimento; o coração de pedra é insensível, é a própria morte: é o estado dos homens que não receberam a água pura e purificadora do batismo.

IV. Os antigos, como nós mesmos, também encontravam nestas palavras de Jó a doutrina do pecado original: “Quem pode fazer sair o puro do impuro? Ninguém” (Jó 14, 4). Impuro é o homem tal como o fez Adão, é o homem caído.

V. Uma passagem do profeta Joel era explicada pelo pecado original. Diz o profeta: “Afastarei de vós aquele que vem da parte do Aquilão” (Jl, 2, 20). No estilo dos profetas, o Norte ou o Aquilão é o mal, assim como o Sul ou o Noto é o bem. Também os doutores da Sinagoga entendiam a palavra de Joel como se referindo ao pecado original. O sábio rabino David Kimhhi diz sobre o tema: “Nossos mestres, de feliz lembrança, expõem esse versículo sobre o tempo do Cristo da seguinte maneira: ‘Afastarei de vós aquele que vem da parte do Aquilão’ - O lugar do mal se oculta e reside no coração do homem.”

Os doutores da Sinagoga determinaram de modo muito preciso a doutrina sobre o pecado original. Eis algumas passagens do Talmude[4] sobre o tema: “A partir de que momento a maldosa concupiscência (ou o pecado original) domina o homem? É depois do seu nascimento ou desde o tempo de sua formação (ietsira)? Resposta: Desde o tempo de sua formação.” “Enquanto viverem os justos terão de combater sua concupiscência.” “No mundo futuro, não haverá concupiscência.” Com freqüência, o “mundo futuro” designa o tempo do Messias; então não haverá mais pecado original por causa da água pura anunciada por Ezequiel. Se, por mundo futuro, entende-se a vida eterna, é certo que toda concupiscência será destruída. “No tempo que virá, diz ainda o Talmude, Deus fará vir a maldosa concupiscência e a matará diante dos olhos dos justos e diante dos olhos dos ímpios.”

VI. Os antigos viam também a doutrina do pecado original no versículo 7 do salmo Miserere, quando Davi diz: “Eis que nasci na culpa, e minha mãe concebeu-me no pecado”. Nada se poderia dizer de mais claro: a Sinagoga entende esse versículo assim como o compreende a Igreja.

Essas doutrinas tão profundamente enraizadas na consciência humana, solidamente apoiadas na tradição mosaica, penetraram até ao fundo o Islamismo. Maomé, seu pretenso profeta, escreveu a respeito da Virgem, em seu Corão: “Os anjos disseram à Maria: Certamente Deus vos escolheu e vos fez pura.” E o grande comentador do Corão Djelal-Eddin, dá em suas próprias palavras a seguinte explicação: “É da Tradição que ninguém vem ao mundo sem que Satã o toque no momento do nascimento. É o que os faz cair num choro cheio de lágrimas. Porém Maria e seu Filho permaneceram isentos.”

 


[1] Para mais detalhes sobre todos os povos que mencionamos acima, ver Paganisme et Revelation, do Dr. Fisscher.

[2] Bulletin de la Sainte Esperance, t. I, pp. 414-415.

[3] O autor refere-se certamente à passagem seguinte das Escrituras: “[...] os sentidos e os pensamentos do coração do homem são inclinados para o mal desde a sua mocidade” [N. do E.]

[4] O Talmude é uma compilação em 10 volumes in-fólio contendo os ensinamentos dos rabinos. Para eles, a Bíblia é como a água, o Talmude como o vinho.

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