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Segunda parte: o ministério desnaturado

CAPÍTULO I  
O Ministério pode ser Desnaturado

O ministério eclesiástico é uma criação de Nosso Senhor. Mas como ele é confiado aos homens, pode acontecer, — em conseqüência de ser a natureza humana sujeita a fraquezas — que o ministério não seja por eles mantido na completa integridade de sua natureza.

Nosso Senhor é Deus e homem. Tem havido homens empenhados em afirmar que n’Ele não há unidade de divindade e humanidade; em negar uma e outra; e por conseguinte em destruir, como se tal fosse possível, esse grande mistério, e estancar a torrente de graças das quais Ele é a fonte.

Diz São João que isso é obra do Anticristo: Omnis qui solvit Jesum Antichristus est (Todo aquele que não professa Jesus é do Anticristo — 1 Jo 4,3).

Se o mistério da Encarnação pode ser assim mutilado, desagregado e aniquilado quanto a seus efeitos, não é de admirar que o mesmo possa acontecer com o ministério, pois este é uma conseqüência e uma limitação da divina Encarnação.

CAPÍTULO II 

Como o Ministério pode ser Desnaturado

O ministério consistindo essencialmente em três coisas, — oração, pregação e sacramentos —, é evidente que sua natureza seria mudada, alterada, destruída, caso uma dessas três coisas fosse ou suprimida ou alterada.

Quem aliás não vê que a obra de salvação dos homens seria paralisada se a oração cessasse, se a pregação emudecesse, se os sacramentos não fossem mais administrados?

Isto aconteceria não somente se as três coisas desaparecessem ao mesmo tempo, como também se apenas uma qualquer delas viesse a faltar.

Mas, mesmo que subsistam todas as três partes essenciais do ministério, este seria infrutuoso se essas três partes não mantivessem à disposição desejada por Deus, se a ordem estabelecida por Ele não fosse exatamente conservada e observada.

A quem serão ministrados os sacramentos e com que proveito serão eles minis-trados, se não forem precedidos pela pregação capaz de fazer nascer nas almas a fé, princípio animador das obras necessárias à salvação?

E a pregação terá, para tal fim, a eficácia que Deus lhe quer dar, se não for precedida pela oração, que atrai a graça do alto quer para o pregador quer para quem o ouve?

CAPÍTULO III

Continuação do Precedente

No ministério há corpo e alma. Faltando-lhe seja uma seja outra dessas duas coisas, ele fica desnaturado.

O corpo do ministério é coisa bem conhecida, sendo, ele próprio, composto de coisas santas e muito santas. Mas a alma, o espírito interior que deve vivificar esse corpo, é coisa bem pouco conhecida.

Há aqueles que crêem ter cumprido o ministério quando desempenharam todas as obras exteriores. Mas a parte do ministério denominada oração é freqüentemente conside-rada como sendo obra particular da pessoa do padre, conquanto seja obra não da pessoa, mas do próprio ministério, conforme já acentuamos (Livro I, cap. IV).

Isto é muito importante. Quando um padre chega a persuadir-se de que poderá cumprir seu ministério, apenas exercendo perante os fiéis tudo aquilo que estes podem cristãmente desejar e requerer dele, acabará então dizendo a si próprio: se não sou um homem interior, um homem de oração, isso é coisa que só a mim concerne e que não tem conseqüência senão para mim próprio. Esse padre, porém, está gravemente enganado. E esse erro é bastante comum, atualmente.

O ministério será, dessa forma, um ministério sem alma, um ministério sem vida e muito freqüentemente um ministério de morte, ministratio mortis (2 Cor 3,7).

CAPÍTULO IV  

O Ministério  Desnaturado na sua Primeira Parte: A Oração

Acabamos de dizer como o padre prejudicaria seu ministério se considerasse a oração como uma obrigação não do ministério da Igreja, mas obrigação particular de cristão que é.

O padre não deve nem pode dissociar em si o cristão do padre ou o padre do cristão. Embora seja certo dizer-se que ele é cristão para si e padre para os outros, não menos verdade é isto: ele de fato é um cristão que se fez padre.

Os deveres do cristão e os deveres do padre são uma coisa só, assim como o cristão e o padre são em si apenas uma única pessoa.

Seria, pois, grande engano não reconhecer na oração a maior, a mais importante, a mais indispensável das obrigações do padre. Obrigação que é devida a Deus, à Igreja, às almas e a ele próprio: a Deus do qual é criatura; à Igreja, da qual é ministro; às almas, das quais é servidor; à sua própria alma, da qual, depois de Deus, deve ser o salvador.

É obrigação que jamais cessa: Oportet semper orare (Convém rezar sempre — Lc 18,1).

Segundo a forma canônica, isso todos hão de convir, porque é de obrigação grave, já que comete pecado mortal quem omite uma só das horas do Ofício Divino.

Mas o que geralmente não se considera é que as Horas Canônicas devem ser rezadas nas próprias horas canônicas.

No entanto, é bem claro o sentido das palavras do Breviário:  Ad Matutinum, ad Primam, ad Terciam, ad Sextam, ad Nonam, ad Vésperas, ad Completorium (em Matinas, em Prima, em Terça, em Sexta, em Nona, em Vésperas, em Completas).

Dir-se-á: sim, outrora era assim. Por certo; mas por que já não o é mais?

Hoje, reza-se Matinas em dia antecipado, isto é, faz-se da oração da noite e da manhã uma oração do fim do dia, isto é, uma oração fora de hora.

E isto, por que se terá achado mais fácil despertar tarde, em vez de cedo?

Diz-se: é para haver tempo para a meditação. Mas acaso nossos pais não praticavam a meditação? Será que somos nós mais dados a meditação do que nossos pais?

Não há dúvida, porém, de que nós meditamos menos que nossos pais; e possuímos uma dose de preguiça e de imortificação que certamente nossos pais não conceberiam.

As horas do dia, — que nossos pais espaçavam tão sabiamente com intervalos de três horas para lembrar-nos, sem cessar, a adoração da Santíssima Trindade —, são hoje recitadas de contínuo, como se fossem uma só peça. Isto, ao que dizem, a fim de que se fique mais livre.

Mais livre! Mas que liberdade é esta, que despreza a pontualidade na oração? Em que será empregada essa liberdade? Será para vagar e divagar? Para rir e para brincar?

Ah! A liberdade! Nossos pais tinham sobre ela uma idéia diferente da nossa. Pois admiravam a definição de Santo Agostinho: Libertas est charitas! (liberdade é caridade!1 Livro I, cap. LXV).

A caridade! Amar a Deus e ao próximo; amar a Deus e rezar; amar ao próximo e trabalhar para a sua salvação. Segundo nossos pais, isso seria a liberdade.

Não há dúvida de que hoje se entende de forma diferente da deles o que seja a liberdade e o dever de rezar.

A oração canônica quase não é mais recitada em lugar algum nas horas canônicas. Não será porventura esta uma das causas pelas quais o ministério frutifica tão pouco, e isto em toda parte?

Ora, se o ministério se mostra assim impotente para salvar aquilo para cuja salvação foi instituído, é caso de concluir-se então que ele deve ser considerado como uma instituição lastimavelmente viciada, ou usando o termo próprio, desnaturada.

CAPÍTULO V  

O Ministério Desnaturado na sua Segunda Parte: A Pregação 

Há mais de um modo de desnaturar o ministério, no que concerne à pregação da palavra de Deus.

Antes de mais nada, desnatura-se o ministério quando simplesmente se deixa de pregar, merecendo-se então as palavras que o Espírito Santo aplicava a pastores por demais negligentes aos quais chamava de: canes muti, non valentes latrare (cães mudos, incapazes de ladrar — Is 56,10).

O Senhor se referia assim às sentinelas de Israel, homens desatentos e ignorantes,, cães que não sabem latir, homens cujos olhos só estão abertos para a vaidade, homens sempre adormecidos que só amam seus próprios sonhos: Speculatores ejus coeco omnes, nesciarunt universi: Canes muti, non valentes latrare, videntes vana, dormientes, amantes somnia (Esses vigias são todos cegos, ignoram tudo; são cães mudos, incapazes de ladrar, interessados em coisas vãs, dorminhocos, amantes do sonho — Is 56,10).

A tais palavras do Espírito Santo nada há que acrescentar.

Em seguida, desnatura-se o ministério quando se prega como palavra de Deus o que não é palavra de Deus. Eis o que o Senhor diz a Jeremias:

Falso prophetae vaticinantur in nomine meo; non misi esos et non praecepi eis, neque locutus sum ad eos; visionem mendacem et divinationem et fraudulentiam cordis sui prophetant vobis(profetas que falsamente profetizam em meu nome; não os enviei, não os instruí, nem lhes falei; visão mentirosa, fantasia, fraude, ilusão de seu próprio coração, eis o que eles profetizam —  Jer 14,14).

Enfim, mesmo pregando a palavra de Deus, poder-se-á fazê-la sofrer certas alterações como as que São Paulo tinha em mente quando chamava certos pregadores de corruptores, falsificadores, adulteradores da palavra de deus: Adulterantes verbum Dei (2 Cor 2,17 e 4,2)2.

Adulteram a palavra de Deus, manejando-a dolosamente, todos quantos não a professam tal como lhes foi transmitida, íntegra, pura e sincera, mas de mistura com sabedoria profana ou com doutrina judaica, isto é, com deturpações e erros. Ou então se transmitindo a palavra de Deus deixam de visar à glória de Deus para buscar vantagens pessoais, e querendo agradar os homens acomodam às suas terrenas paixões a palavra de Deus.

Para concluir este capítulo, lembramos que a palavra de Deus deve ser pregada com o Espírito de Deus; e o Espírito de Deus não estará conosco se não formos homens de oração. Isso faz-nos ver mais uma vez como todo ministério está na dependência da oração, que São Pedro colocou antes de tudo mais: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus (At 6,4).

CAPÍTULO VI  

O Ministério Desnaturado na Administração dos Sacramentos

Dissemos mais acima (Livro I, cap. VII) qual é o papel dos sacramentos na economia da religião e, conseqüentemente, no ministério eclesiástico.

Uma vez que os sacramentos não dão as disposições necessárias para sua frutuosa recepção, é evidente que o ministério será desnaturado se aquele que administra os sacra-mentos não tiver toda a solicitude necessária para fazer nascer essas disposições, toda indispensável atenção para percebê-las quando efetivamente existentes, e toda firmeza para negar os sacramentos quando não existirem as disposições requeridas pelo próprio Deus.

Quão facilmente as pessoas imaginam hoje que têm as disposições para recepção de um sacramento, desde que sintam vontade de recebê-lo, ou tenham a complacência de aceitá-lo!

Não sei se esta norma é aceita por muitos. Mas é fora de dúvida que, onde ela se pratica, o ministério é de todo carente das condições imprescindíveis para que produza frutos.

CAPÍTULO VII

Em que se transforma o Ministério  Desnaturado

O ministério pode desatender à sua finalidade por muitas causas diversas, conforme mostramos nos capítulos precedentes. Tornar-se-á, então, mera rotina, empirismo ou uma espécie de trabalho maquinal, como se explica a seguir.

A rotina é um tipo de ministério eclesiástico que apenas se ocupa em atender ao que lhe é solicitado ou aos casos que se apresentam. Faz-se o que deve ser feito em virtude de uma certa ordem material, de um costume estabelecido que em si mesmo não merece censura. A semelhante ministério falta apenas aquilo, que também os cadáveres não têm: a alma, o espírito.

O empirismo é palavra chocante, quando aplicada à matéria em consideração. Faz lembrar, com desagrado, aqueles homens — chamados charlatães — que se proclamam detentores de um remédio infalível, capaz de curar todos os males. Quando no exercício do ministério o método seguido se assemelha ao desse tipo de homens, pode-se agir com vontade de obter bom êxito (não confundir com a boa vontade no sentido teologal), com desejo do bem, com empenho no sentido do bem; mas esse empenho é guiado por uma vontade pouco ou mal esclarecida. Pode-se caminhar largos passos esperando chegar, por fim, ao bom caminho, contudo, não se tem clara noção nem do que seja o bom caminho nem das condições requeridas para trilhá-lo com segurança.

Chamamos engenhosidade uma forma de ministério eclesiástico, na qual se faz grande aplicação de raciocínio, pois inventam-se mil meios, põem-se em cena mil estímu-los, empregam-se múltiplos recursos de imaginação. Mobiliza-se, em suma, o nosso espírito, mas é esquecido o Espírito de Deus.

Temos em mão um livro mui recentemente escrito, que foi muito promovido e até premiado em concurso. Esse livro é um verdadeiro método de engenhosidade em questão de ministério. Há nele cem tipos de expedientes, indicados seja para um executivo seja para seu adjunto, para o castelão como para a castelã, para o tabelião, para o médico, para o professor, para o guarda-florestal, etc., etc. Terminada a leitura desse livro, imaginamos: eis aí coisas que São Pedro e São Paulo não sabiam! Mas depois veio-nos à mente esta reflexão: melhor é saber o que sabiam São Pedro e São Paulo.

CAPÍTULO VIII  

As Conseqüências do Ministério Desnaturado

Quando o ministério é assim desnaturado, o padre que não consegue converter as almas é levado a queixar-se do ministério antes que de si próprio. Não lhe acode dizer: não sou um homem de oração; não trato a palavra de Deus como sendo ela de Deus; não cuido que os sacramentos que são santos sejam santamente recebidos. Mas, ao em vez, pronta mente dirá a si mesmo que os meios à nossa disposição são ineficazes, e que por conseguinte nada podemos e nada há que fazer.

Então, o padre poderá cair numa espécie de torpor espiritual que não lhe permitirá mais perceber (?????) para que seu ministério se torne útil, não só ao próximo como a si mesmo.

Se o mal se agrava, poderão surgir dúvidas no espírito do padre sobre a própria razão de ser do ministério; e o fato de, em suas mãos, o ministério se ter verificado inoperante, pode ser por ele atribuído a inoperância intrínseca ao próprio ministério instituído por Nosso Senhor.

Com mais um passo, o padre a princípio desencorajado, em seguida hesitante na fé, cairá na desesperança; poderá perder a fé e deixar-se cair em faltas que não têm mais nome, já que cometidas por um padre. Non peccata, sed monstra (mais que pecados, são monstruosidades) diz Tertuliano.

Queremos dizer que nessa gradação há uma seqüência lógica, não uma inevitável fatalidade, e que uma queda é possível. Queira Deus, porém, que o padre seja dela preservado.

  1. 1.De natura et Gratia”, livro I, cap.LXV.
  2. 2. Na primeira dessas passagens, São Paulo diz: Kapeleuontes, e na segunda: dolountes. A primeira designa o trabalho dos mercadores que introduzem substân cias estranhas em suas mercadorias (p. exp. os mercadores de vinho). A segunda palavra, dolountes, designa toda espécie de falsificação ou adulteração.
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