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Parte I: A voz da Amazônia

Após um hino à Amazônia e ao rio Amazonas como bacia ecológica fundamental e de grande importância para a biodiversidade, o Instrumentum Laboris começa a tratar aquilo que os índios denominam de “bem viver”:

Trata-se de viver em “harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o Ser supremo, dado que existe uma intercomunicação entre o cosmo inteiro, onde não há excludentes nem excluídos, e que entre todos nós podemos forjar um projeto de vida plena

Nota-se a curiosa referência a um Ser supremo, expressão típica do vocabulário maçônico e que encontramos na Revolução francesa, a ponto de Robespierre ter aprovado uma lei sobre o Ser supremo, com uma liturgia pública, ornamentos e atos de culto. Trata-se de uma expressão totalmente estranha ao catolicismo, que cheira a deísmo.

Há mais grave, no entanto. Na passagem citada, começa a emergir uma estranha visão idílica dos indígenas da Amazônia e do seu modo de vida, como se nós tivéssemos retornado ao mito do “bom selvagem” de Rousseau e, sobretudo, esboça uma estranha visão vagamente panteísta em que tudo está em comunhão com tudo: a água, a terra, o homem, Deus. Essa idéia é reforçada na passagem seguinte:

"Esta compreensão da vida se caracteriza pela conectividade e harmonia de relações entre a água, o território e a natureza, a vida comunitária e a cultura, Deus e as diferentes forças espirituais. Para eles, “bem viver” significa compreender a centralidade do caráter relacional-transcendente dos seres humanos e da criação, e supõe um “bem fazer”. Não se podem desconectar as dimensões materiais e espirituais

Surgem algumas questões: Que "forças espirituais" são essas? Trata-se de uma alusão ao culto de espíritos praticado pelos indígenas ou à alguma outra crença pagã existente? Que significa “caráter relacional-transcendente dos seres humanos e da criação”? Devemos pensar que não há mais um nítido salto ontológico entre o homem como sujeito espiritual e a natureza, que a própria natureza é animada espiritualmente? São frases incompreensíveis: ou elas não têm sentido algum, ou indicam o início de um claro abandono da fé católica em favor de algum culto new-age e neo-pagão que diviniza a natureza. Percebe-se a total ausência de cisão entre o plano natural e o plano sobrenatural, o segundo estando absorvido e esmagado sobre o primeiro.

Ora, essa concepção idílica da vida comunitária dos indígenas é apresentada como sendo gravemente ameaçada pela exploração capitalista dos recursos e das pessoas, exploração trazida pelos colonizadores brancos, que causaram, “a perda de sua cultura originária e de sua identidade (idioma, práticas espirituais e costumes)”.

Sem defender a exploração e a injustiça que indubitavelmente existiram e são inevitáveis em todo processo histórico, o texto do Instrumentum Laboris parece ter se esquecido completamente do dogma do pecado original: como podemos deplorar que os indígenas — que, de fato, no momento da descoberta do Novo Mundo vivam num nível de civilização ligeiramente superior ao da idade da pedra — tenham abandonado as suas “práticas espirituais”? A conquista espanhola e portuguesa da América do Sul e da América Central levou o Evangelho aos povos indígenas, e legiões de missionários converteram e batizaram povos prisioneiros de verdadeiros cultos satânicos fundados sobre o sacrifício humano. Como se pode lamentar que os indígenas tenham perdido as suas “práticas espirituais e costumes”? Basta ler o belíssimo texto de Jean Dumont, L’heure de Dieu sur le nouveau monde, para compreender o dom imenso que foi para todos os povos sul-americanos a conquista pelos Europeus. É uma aberração que bispos deplorem precisamente o que deveriam exaltar e defender, como se pudesse haver algum valor superior ao anúncio do Evangelho da salvação e à possibilidade de entrar na Igreja pelo batismo.

 

A terra como lugar teológico

Toda a estrutura conceitual do Instrumentum Laboris repousa sobre a idéia de que o território amazônico representa um “lugar teológico” que deve servir, portanto, de fonte de inspiração para a doutrina:

Ameaças e agressões à vida geram clamores, tanto por parte dos povos como da terra. Começando por estes clamores como lugar teológico (a partir de onde pensar a fé), podemos dar início a caminhos de conversão, de comunhão e de diálogo, caminhos do Espírito, da abundância e do 'bem viver’"

Essa noção será retomada diversas vezes ao longo do texto e visa de modo explícito alimentar este sofisma; a particularidade da região amazônica torna legítima a introdução de novas categorias teológicas e a modificação profética da doutrina, da moral e da lei eclesiástica.

É preciso contudo assinalar que a possibilidade de se considerar uma região geográfica como um lugar teológico é completamente fantasiosa. Com efeito, a doutrina dos “lugares teológicos” foi sistematizada por Melchor Cano na primeira metade do século XVI, na obra De Locis Theologicis, na qual ele estabelece dez lugares teológicos, ou seja, os lugares “de todos os temas teológicos, de onde os teólogos tiram todos os seus argumentos, seja para confirmar, seja para rejeitar” uma doutrina.

Para Melchior Cano, os lugares teológicos dividem-se em “próprios" (Escrituras, Tradição, Igreja, Concílios, Papas, Padres, teólogos) e “impróprios" (razão humana, filosofia, história). Como se vê, a geografia não é um lugar teológico. Assim, a Amazônia e os “clamores" da terra não podem nem influenciar nem modificar a doutrina da Igreja em ponto algum. Mas, infelizmente, uma das idéias centrais do pensamento do Papa Francisco ressoa essa utilização inapropriada da noção de “lugar teológico”, a saber, que o Espírito Santo possa inspirar, de um modo diferente segundo os lugares e os tempos, reviravoltas doutrinais e mudanças naquilo que sempre foi crido. Para ele, a fé e a Igreja só são vivas se elas se colocarem no encalço dos homens e das suas necessidades ou exigências cambiantes: o pastor deve seguir as ovelhas, e não guia-las; é ele que tem de ter o cheiro do rebanho, não o inverso. Uma Igreja que tivesse a pretenção de impôr a todos os cristãos a mesma doutrina imutável seria uma Igreja de fariseus, que petrifica a Revelação. Para o Pontífice reinante, a Revelação não se encerrou com a morte do último apóstolo, mas continua, sobretudo por obra dos pobres e das periferias. Eis o contexto teológico gravemente heterodoxo no qual devemos enquadrar o Sínodo em preparação atualmente.

O que acabamos de dizer é confirmado no capítulo II do Instrumentum Laboris, intitulado “território”:

"Além disso, podemos dizer que a Amazônia – ou outro espaço territorial indígena ou comunitário – não é somente um ubi (um espaço geográfico), mas também um quid, ou seja, um lugar de sentido para a fé ou a experiência de Deus na história. O território é um lugar teológico a partir do qual se vive a fé, mas é também uma peculiar fonte de revelação de Deus. Estes espaços são lugares epifânicos onde se manifesta a reserva de vida e de sabedoria para o planeta, uma vida e sabedoria que falam de Deus. Na Amazônia manifestam-se as “carícias de Deus” que se encarna na história"

Aí está o fundamento da nova fantasia eco-teológia que pretendem lançar! A floresta amazônica é uma “peculiar fonte de revelação de Deus”. É claro que aqui não se pretende reafirmar que o céu e a terra, a beleza da criação em geral, cantam a glória de Deus, dão testemunho por sua perfeição da existência de Deus, que é a suprema inteligência e bondade. Ao contrário, procura-se afirmar que a Amazônia, enquanto tal, e de modo exclusivo, é lugar de uma revelação especial de que o planeta inteiro deve se apropriar: trata-se, em suma, de uma espécie de “floresta eleita”, portadora de uma mensagem nova da parte de Deus a ser transmitida a todos os homens.

Temos a impressão de estarmos diante de um delírio teológico, e lamentamos não poder usar um termos menos forte. 

Ora, quem conhece bem a Amazônia sabe que essa visão idílica da floresta tropical é totalmente inexata: trata-se de um dos lugares mais inóspitos da terra, praticamente despovoado e inabitável, onde 390 tribos de selvagens ainda existentes possuem costumes bárbaros e arcaicos. Na floresta, insetos, parasitas de todos os gêneros, predadores, dificuldade de se encontrar água potável, humidade acentuadíssima, ameaçam continuamente a vida humana, tornando-a impossível na prática. Curiosamente, para os redatores da IL, a Amazônia é, ao contrário, um lugar paradisíacos, onde cada indígena é uma espécie de São Francisco:

Uma visão contemplativa, atenta e respeitadora dos irmãos e irmãs, e também da natureza – da irmã árvore, da irmã flor, das irmãs aves, dos irmãos peixes e até das irmãzinhas mais pequeninas, como as formigas, as larvas, os cogumelos ou os insetos (cf. LS, 233) – permite que as comunidades amazônicas descubram como tudo está interligado, valorizem cada criatura, vejam o mistério da beleza de Deus que se revela em todas elas (cf. LS, 84 e 88) e convivam amigavelmente

Note-se na passagem citada a idéia de que “tudo está interligado”: o homem a natureza são um todo, não há mais nenhum salto ontológico entre o sujeito espiritual e livre, destinado à vida eterna, e as plantas, os pássaros, as larvas. A natureza não é mais confrontada com o homem que recebeu de Deus o dever de dominá-la (Gênesis 1): agora a natureza absorve o homem, que não passa de uma parte acessória dela. Deus mesmo parece confundir-se com a natureza, perdendo a sua transcendência: estamos em pleno panteísmo. Com efeito, acrescenta o texto, uma vez que na Amazônia tudo está interconectado, ela nos ajuda a “compreender de forma integral nossos relacionamentos com os demais, com a natureza e com Deus, como refere o Papa Francisco”. Se tudo está interconectado — mesmo Deus — então a transcendência mesma de Deus é implicitamente negada e nos cabe apenas, como na gnose antiga, reencontrar as vias capazes de restaurar o pleroma divino original, que se subdividiu por uma série de faltas. A existência do sujeito individual e o seu face-a-face espiritual com Deus, a história da sua salvação, perde toda consistência e significação. Deus é o todo, coincidindo com a natureza e com os homens, e não transcende o mundo — não é mais pensado como Santíssima Trindade.

 

Culpabilização do Ocidente

Nessa abordagem panteísta, o único mal é proveniente da colonização ocidental e da exploração dos recursos amazônicos que ela desencadeou. Eis o mal supremo. Como católicos, sabemos, ao contrário, que o único mal verdadeiro é o pecado, e que não conseguimos nos liberar dele sem a fé e a vida da graça; sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo se incarnou e se fez homem, que padeceu e morreu na cruz para salvar os homens, não para nos reconciliar com a floresta amazônica. Os redatores do IL parecem ignorar que o homem possui uma alma imortal e que pertencer à Igreja é essencial para a salvação. Em todo o documento preparatório que aqui comentamos, não se lê uma única palavra, nem a menor preocupação, acerca da vida da fé, da salvação das almas, do estado de pecado no qual vive uma multidão de homens. Numa passagem dramática, a religiosidade pagã e naturalista dos indígenas parece ser abertamente defendida, não se faz a menor alusão à necessidade deles se converterem:

A vida das comunidades amazônicas ainda não atingidas pelo influxo da civilização ocidental se reflete na crença e nos ritos sobre a atuação dos espíritos, da divindade – chamada de inúmeras maneiras – com e no território, com e em relação à natureza. Esta cosmovisão se resume no “mantra” de Francisco: “Tudo está interligado” […] Tanto as cosmovisões amazônicas como a cristã estão em crise por causa da imposição do mercantilismo, da secularização, da cultura do descarte e da idolatria do dinheiro.”

Essa passagem não pode ter sido escrita por bispos e teólogos católicos, de tão surreal que é! De início, exalta a religiosidade animista e panteísta dos índios, em seguida ressalta a sua proximidade com o pensamento do papa, finalmente deplora que a visão amazônica e a visão cristã do mundo esteja em crise por conta do mercantilismo… Em resumo, exalta-se a sabedoria ancestral e a religiosidade dos índios como modelos dos quais a Igreja deve se inspirar. Aspira-se, em suma — é esse o sentido de todo o documento — a uma espécie e missão às avessas, em que a cultura e a religião primitivas indígenas sirvam para colonizar e transformar a Igreja e a fé católica. A Igreja não deve anunciar o Evangelho e chamar à conversão povos prisioneiros nas trevas do erro e da superstição, mas deixar-se invadir por essas trevas e se converter de modo humilhante pelo presumido respeito pela natureza dos pagãos da Amazônia.

 

Que missão na Amazônia?

O texto de IL, após ter reafirmado mais uma vez os graves danos infringidos na região amazônica pela colonização e pela Igreja, cúmplice dos colonizadores, aborda o problema da evangelização, e começa por observar que "Muitos dos obstáculos a una evangelização dialógica e aberta à alteridade cultural têm um cunho histórico e se escondem por detrás de certas doutrinas petrificadas”. Em substância, o documento acusa a Igreja de ter se enganado até aqui na sua ação ao impôr à Amazônia (mas em realidade a todos os demais territórios) doutrinas “petrificadas”. A expressão “doutrinas petrificadas” é tirada da linguagem pejorativa que Francisco utiliza quando ataca o mundo da Tradição em geral e a Igreja pré-conciliar. Como já vimos, para o Papa e para os redatores do IL, o dogma está sempre em movimento, a doutrina tem de evoluir e se adaptar às necessidades que surgem, país a país, época a época: a Revelação, para eles e para todos os modernistas — tal como foi denunciado na Pascendi — não se encerrou, mas continua aberta e evolui, e quem pretender que ela encerrou a “petrifica" impedindo-a de frutificar e de ser aceita.

Se a doutrina é móvel e a Revelação aberta e sempre em curso, e não governada pelo princípio da não-contradição, segue-se que a Igreja não deve mais ensinar, mas entabular um diálogo com todo o mundo para descobrir o que o Espírito Santo quer para os nossos tempos. O ápice dessa nova idéia de religião (que de fato não é mais católica) é apresentada no parágrafo 39:

"Muitos povos amazônicos são constitutivamente dialógicos e comunicativos. Existe um amplo e necessário campo de diálogo entre as espiritualidades, crenças e religiões amazônicas, que exige uma abordagem cordial das diferentes culturas. O respeito por este espaço não significa relativizar as próprias convicções, mas sim reconhecer outros caminhos que procuram desvendar o mistério insondável de Deus. A abertura não sincera ao outro, assim como uma atitude corporativista, que reserva a salvação exclusivamente ao próprio credo, são destruidoras desse mesmo credo. Assim o explicou Jesus ao Doutor da Lei, na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 30-37). O amor vivido em qualquer religião agrada a Deus. “Através de um intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem”

Nesta passagem, que é uma síntese perfeita de todo o problema do diálogo ecumênico e interreligioso imposto a partir do Concílio Vaticano II e em particular com o documento Nostra Aetate, tem-se não apenas uma visão modernista da fé cristã, mas uma aproximação visível da concepção maçônica do fenômeno religioso. Com efeito, falar em “mistério insondável de Deus” que todas as religiões procuram desvendar de modo parcial, equivale a pôr em pé de igualdade toda fé e toda crença religiosa, a colocar no mesmo plano o catolicismo e o culto animista, a aceitar todas as convicções religiosas, sob a condição de que não pretendam impôr a sua verdade como única e universalmente válida — tudo isso é típico da ideologia maçônica.  

Mas, no trecho citado, chega-se a uma blasfêmia, quando o IL condena uma “atitude corporativista, que reserva a salvação exclusivamente ao próprio credo”, pois ela seria destruidora desse mesmo credo. Nega-se aqui o princípio nulla salus extra Ecclesiam, ou seja, nega-se a universalidade e a unicidade da salvação operada por Cristo, pondo no mesmo plano o catolicismo, reduzido ao status de simples “convicção” pessoal, e toda outra crença religiosa. Inútil dizer que a parábola do bom Samaritano está completamente deformada e mal compreendida, e que em última instância, para quem pensa assim, não se compreende que sentido pode haver em falar de “evangelização”.

Para os heréticos que escreveram IL, Deus parece não ter se revelado, o Verbo parece não ter se encarnado e feito homem para ensinar a todos os povos a via da salvação que foi aberta pela fundação da Igreja.

A conclusão desse lenga-lenga nos conduz até a direção que será em seguida adotada por todo o resto do documento:

A vida na Amazônia, entrelaçada pela água, pelo território e pelas identidades e espiritualidades de seus povos, convida ao diálogo e à aprendizagem de sua diversidade biológica e cultural. A Igreja participa e gera processos de aprendizagem que abrem caminhos de uma formação permanente sobre o sentido da vida integrada com seu território e enriquecida por sabedorias e experiências ancestrais.”

Essa linguagem um pouco delirante e verborrágica diz em substância o seguinte: os índios da Amazônia, com sua sabedoria ancestral e panteísta superior, devem ensinar à Igreja e, por seu intermédio, aos povos ocidentais, a viver uma nova vida integrada ecologicamente ao território: eis o que entendem por evangelização hoje em dia esses modernistas que ocuparam a Igreja.

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