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Artigo 1: Introdução ao Sermão da Última Ceia

Artigo 1: Introdução ao Sermão da Última Ceia

 

Este sermão, que Jesus começou logo após a saída de Judas do Cenáculo, proferiu-se após o fim das ceias legal e eucarística, no dia anterior a sua morte. Nele se unem de modo admirável uma nobreza divinal e uma suavíssima singeleza. Até no quarto Evangelho, em que a sublimidade chega a ser habitual, em parte nenhuma, à exceção do Prólogo1, encontram-se passagens comparáveis a este discurso e à oração que o segue, manancial de riquezas teológicas e em particular de provas da divindade de Jesus Cristo. Mas antes de proceder à explicação, será necessário fazer alguns esclarecimentos para a melhor compreensão.

 

Ambiente histórico do Sermão da Ceia

Antes do mais, para que se entenda o significado profundo do Sermão da Última Ceia, há de se ter em mente alguns fatos que o precederam de imediato e influem em seu sentido: são estes sobretudo o lava-pés, o anúncio da traição de Judas e a instituição da Sagrada Eucaristia.

1º. O lava-pés causou enorme impressão no ânimo dos discípulos. A assombrosa humildade do Mestre os deixou desconcertados e aniquilados; porém aquela inconcebível humildade e simplicidade do Mestre infundia-lhes uma coragem e confiança que os conduziam até Ele. A humildade do Mestre e a confiança humilde dos discípulos preparam a intimidade do Sermão.

2º. O anúncio da traição de um deles os deixou a todos aterrados, como se fosse o estampido dum trovão. Diante de seus olhos abriram-se perspectivas de sangue e morte. Ao primeiro espanto seguiu-se um profundo abatimento.

3º. A instituição da Eucaristia, delicadeza insuspeita, exacerbou os desencontrados sentimentos de temor e confiança. Por um lado o Mestre falava de sangue derramado e morte, mas por outro o regalo amoroso do Mestre estreitava a intimidade dos discípulos com Ele.

 

Ambiente sentimental do Sermão da Ceia

Em tais circunstâncias, neste ambiente histórico, era vivíssima a emoção do Mestre e dos discípulos. Por efeito desta emoção, o Sermão da Última Ceia é único, se comparado aos outros discursos de Jesus. Não é possível apreciá-lo com justiça nem entendê-lo sem levar em conta a emoção de quem fala e de quem escuta.

1º. O Coração do Mestre palpitava de emoção: sentimentos desencontrados lutavam Nele: por um lado saboreava em antecipação o gozo inefável do retorno ao Pai, junto ao qual recobraria a glória eterna e divina que sua humanidade agora humilhada compartilharia; mas por outro lado sentia pesar sobre si a tremenda responsabilidade dos pecados do mundo, que Ele iria expiar com sangue e morte. Estes afetos contrários originavam em seu Coração um estado de violência que, chegado o momento crítico, explodiria no Getsêmani. Entretanto grandes ideias Lhe absorviam a alma: a glorificação do Pai, a reabilitação dos homens e o estabelecimento da Igreja. Também abrasava seu Coração, até o interior das entranhas, o amor por aqueles pobres discípulos, destinados a serem executores de seu pensamento e continuadores da obra salvífica; no entanto, embora cheios de boa vontade, ainda estavam desorientados, não compreendiam o pensamento de Jesus. Todos esses sentimentos latejam nas declarações que dá Jesus durante o Sermão.

2º. Não menos importante para o entendimento do Sermão é o conhecimento do estado sentimental dos discípulos. A declaração inicial e repentina do Mestre: Para onde eu vou, vós não podeis ir, causou dolorosa repercussão no coração dos discípulos. Criava-se para eles uma situação nova, jamais imaginada, resumida nesta pergunta desoladora, que vagamente os embargava: “Sem ele, que será de nós?” Sem ele..., e o pensamento tétrico de verem-se um dia desamparados da presença do Mestre os entristecia, acovardava e abatia. Que será de nós?... e esta sensação de insegurança os desorientava, transtornava e perturbava. Covardia e perturbação: estes dois sentimentos dominantes determinam o que será o Sermão da Última Ceia: Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize2, dir-lhes-á o Mestre; o Sermão será palavra de luz que sossega a perturbação, e palavra de encorajamento que desterra a covardia: luz de instrução para ensinar aos discípulos o que terão de fazer à ausência do Mestre, e luz de coragem ou conforto para os reanimar, consolar e ainda cumular de alegria indescritível.

O ambiente mui afetivo dá ao Sermão do Senhor as seguintes características: a) por um lado o Senhor sustenta durante a longa conferência uma efusão afetiva em face dos apóstolos, qual um Pai que dá em testamento aos filhos os mais perfeitos documentos da vida cristã e apostólica; b) por outro lado uma certa incoerência ou vai-e-vem de pensamento, talvez mais aparente que real, que quiçá se deva ao estado psicológico de Jesus naqueles momentos de emoção suprema, em que iria Ele morrer e separar-se dos discípulos amados3.

 

Lugar do Sermão da Última Ceia

No que respeita ao lugar de pronunciamento do discurso, todos os exegetas católicos concordam: aconteceu no Cenáculo, mas no que se refere a sua continuação, dividem-se eles em duas correntes:

1º. Uns afirmam que o sermão se proferiu inteiramente no Cenáculo4, considerando que não é verossímil que Jesus fizesse um discurso tão elevado e extenso perto de meia-noite e às portas duma quase furtiva saída da cidade. Se alguém lhes objeta que disse Jesus: “Levantai-vos, vamo-nos daqui”5, contestam afirmando que Jesus realmente se dispôs a sair com os apóstolos, mas antes da saída definitiva retomou a palavra e deu seguimento ao tema inicial, “como costumam os amigos, que a custo se despedem dos amigos, recomeçar os discursos interrompidos”6.

2º. Outros afirmam que, a partir do primeiro versículo do cap. 15, Jesus prosseguiu em conferência com os discípulos no trajeto entre Jerusalém e o horto de Getsêmani7; apoiada tal opinião na palavra de Jesus: “Vamo-nos daqui”, esses comentadores não acreditam que Ele permanecesse por mais tempo com os discípulos no Cenáculo. É a opinião mais natural, que se restringe ao que disse São João, e é a mais persuasiva, pois que o Mestre recomeçara a falar propondo a metáfora da vinha, do vinhateiro e dos sarmentos, sugerida quer pela vista da videira de ouro colocada na fachada do Templo, ante o qual provavelmente passaram, quer pela vista dos campos e seus vinhedos recém-podados, como sói acontecer na Palestina naquela época do ano, ocasião em que os camponeses despojavam as vides dos sarmentos que não prometiam fruto8.

 

Importância do Sermão da Ceia

1º. Como Jesus falasse apenas aos apóstolos e fosse a última conversa que travaria com eles antes de sua morte, tendo em perspectiva a prova terrível por que [os apóstolos] deveriam passar, tais fatos conferem ao discurso uma importância extraordinária, convertendo-o verdadeiramente na despedida e testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo a sua Igreja.

2º. O discurso se dirigiu aos apóstolos em íntima relação com o sacrifício eucarístico (depois de receberem o Corpo e o Sangue de Jesus e de Nosso Senhor Jesus Cristo os ordenar sacerdotes, a fim de perpetuarem este sacrifício) e na iminência da imolação cruenta da Cruz. Este é o sermão eucarístico por excelência, pois se trata da ação de graças da primeira Comunhão realizada no mundo, celebrada pelo Mestre em pessoa, em que se expressa à evidência os efeitos da Eucaristia nas almas e os do sacrifício da Cruz, que Jesus antecipa.

 3º. É cabível ponderar também o fato de que neste discurso se descortinam os mais altos mistérios da vida íntima da Trindade e os mais profundos da vida cristã. Nele o Divino Mestre abriu de par em par seu pensamento e coração, dando aos apóstolos o que poderíamos chamar a quintessência do Evangelho. Ele aqui oferece o que há de mais apurado nos mistérios da vida divina, tanto em Deus quanto no homem a quem Deus a comunica. Os mistérios estão para a Lei, assim como o Sermão da Última Ceia está para o Evangelho; por isso já denominaram estes capítulos o “Sancta Sanctorum” dos Evangelhos, e por isso mesmo não há outra parte do Evangelho de São João que mereça tanto o nome de “pneumático” ou espiritual.

4º. Finalmente, deixa-se entrever neste sermão, embora não se afirme de modo expresso, a reprovação do povo judeu por causa de sua infidelidade e recusa ao Messias. Com efeito: a) Nosso Senhor promete aos apóstolos um reencontro após a Paixão, e uma assistência especial, que negou ao povo judeu por conta de sua resistência; b) do mesmo modo ao aplicar a Si e aos apóstolos a comparação da videira e dos sarmentos, está declarando que Israel, devido à infidelidade, deixou de ser a vinha do Senhor; c) ou ao prometer o dom do Espírito aos apóstolos, mostra claramente que o Espírito se retirou da Sinagoga, como outrora se retirara de Saul para pousar em Davi; d) quando exorta os apóstolos para que se unam a Ele, está pressagiando a separação de seu povo até o final dos séculos. Assim a Sinagoga se vê privada de todos estes dons que concede o Senhor à Igreja na pessoa dos apóstolos.

 

Idéia central e plano do Sermão da Ceia

Discurso de despedida ou Testamento do Senhor: estes dois nomes expressam bem a idéia dominante, em torno da qual se agrupam todos os demais pensamentos. Dentro de algumas horas Jesus vai morrer; antes de separar-se dos apóstolos lhes dirige as últimas palavras de consolo, exortação e promessa. A ordem da exposição é de todo conforme à psicologia.

Assim que pronuncia a palavra “partida” (13, 31-38), apressa-se Cristo em consolar os apóstolos, pondo-lhes diante dos olhos os felizes efeitos que para eles e para Ele terá a separação (14, 1-31); logo após os exorta a se conservarem intimamente unidos a Ele e entre si com laços de caridade indefectível (15, 1-27); enfim os avisa do que o futuro lhes reserva e às predições dolorosas opõe o contrapeso das brilhantes promessas de vitórias e felicidade (16, 1-33). A fé é o tema do discurso no cap. 14, a caridade no cap. 15, e a esperança no cap. 16. Termina o discurso com a admirável Oração Sacerdotal de Jesus (17, 1-26).

Se observarmos apenas o aspecto exterior do discurso, as palavras “Levantai-vos, vamo-nos daqui” o dividem em duas partes: a) a primeira é mais familiar, um como diálogo com os apóstolos: Pedro, Tomé, Felipe e Judas Tadeu fazem sucessivas perguntas ao Mestre, às quais Ele responde com a costumeira bondade; b) a segunda é mais grave e solene: afora duas interrupções dos apóstolos, é um discurso em forma de monólogo.

 

Primeira parte, no Cenáculo,

Em forma de diálogo com os apóstolos (13, 31-14, 31).

 

I. Exórdio: separação iminente de Cristo e seus resultados (13, 31-38).

1º. Jesus logo será glorificado e o Pai Nele;

2º. O novo mandamento;

3º. Predição da tripla negação de Pedro.

 

II. Fé: Consolos de Cristo aos apóstolos (14).

1º. Primeiro consolo: a certeza duma futura reunião no céu.

a) Jesus retorna ao Pai e ali preparará um lugar para seus amigos;

b) Há de se ver o Pai em Jesus;

 

2º. Segundo consolo: Jesus manifestará sua união com os apóstolos de três maneiras:

a) Facultando-lhes a realização de obras ainda maiores que as suas;

b) Enviando-lhes o Espírito Santo;

c) Vivendo misticamente na Igreja;

 

3º. Epílogo da primeira parte.

a) Recapitulação;

b) Dolorosa palavra de separação;

c) Admirável resignação de Jesus a todas as vontades do Pai.

 

Segunda Parte, a caminho do Getsêmani,

Em forma de monólogo (15,1-17,26)

 

III. Caridade: Exortações de Cristo aos apóstolos (15)

1º. Alegoria da videira ou união de Cristo com os apóstolos.

a) A videira e o vinhateiro;

b) A videira e os sarmentos.

 

2º. Jesus exorta os apóstolos a viverem em caridade perfeita e recíproca.

 

3º. Ódio que manifestará o mundo aos enviados de Cristo.

a) Os discípulos serão detestados pelo mundo, como detestaram o Mestre;

b) Grande pecado do mundo;

c) O ódio do mundo não impedirá que brilhe a verdade sobre Jesus Cristo.

 

IV. Esperança: Promessas de Cristo aos apóstolos (16)

1º. Ação do Espírito Santo diante do mundo e dos apóstolos.

a) Introdução: perseguições que os apóstolos hão de sofrer em breve;

b) A obra do Paráclito em face do mundo;

c) A obra do Paráclito em face dos apóstolos.

 

2º. A tristeza presente se transformará em gozo vivíssimo e imorredouro.

a) Os apóstolos logo se verão privados do Mestre, mas por pouco tempo;

b) Gozo sem fim dos apóstolos, após este breve momento de tristeza;

c) Conclusão e recapitulação de todo o discurso.

 

V. Oração sacerdotal de Nosso Senhor Jesus Cristo (17).

1º. Jesus roga ao Pai por Si mesmo.

a) Introdução;

b) Cristo conjura ao Pai a que O glorifique ao cumprir sua missão.

 

2º. Cristo reza pelos apóstolos.

a) Razões por que esta oração merece ser ouvida;

b) O que pede Jesus para o colégio apostólico.

 

3º. Cristo reza por todos os cristãos do futuro.

a) Pede a unidade para a Igreja;

b) Pede a glória e felicidade eternas para todos os fieis;

c) Conclusão e recapitulação da oração de Jesus.

  1. 1. Jn 1, 1-18.
  2. 2. Jo 14, 27.
  3. 3. Admitem alguns autores que esta incoerência pode atribuir-se ao apóstolo redator do Evangelho, que escrevera pela primeira vez aqueles longos discursos muitos anos após o pronunciamento, sacando-os da memória aos pedaços, diz Patrizzi; não é crível que a inspiração divina suplementasse cada uma das palavras deste trabalho, segundo Corluy, já que é doutrina geralmente admitida que o Espírito Santo, ao inspirar os Santos Livros, respeita na ordem psicológica e literária a maneira de ser de cada um dos autores secundários que os escreveram.
  4. 4. Maldonado, A Lapide, Knabenbauer.
  5. 5. Jo 14, 31.
  6. 6. A Lapide.
  7. 7. Cajetano, Corluy, Fillion, Fouard.
  8. 8. Parece-nos exagero chamar este Sermão, como o fazem alguns autores, de “problema literário de difícil solução”. À medida que se esteiam naquilo em que o cap. 14 parece um discurso completo, de modo que se faltassem os caps. 15 e 16 deles não sentiríamos falta, pois que o começo do cap. 15 está completamente desligado do cap. 14 – eles concedem à opinião que explica a unidade literária do Sermão tão-somente a dignidade de hipótese possível, mas pouco provável. Segundo eles, melhor seria supor que São João, no cap. 14, quis reproduzir o cerne do Sermão ou então o recordava de forma espontânea, e mais tarde, desejoso em dar uma ideia mais cabal do Sermão, completou o escrito primitivo, mas não o refundiu com o cap. 14, antes redigiu em separado os caps. 15 e 16. As provas disso? Todas provenientes de crítica interna ou de suposições gratuitas, tão frágeis quanto as opiniões que eles descartam, de modo que estamos diante de outra hipótese possível, mas pouco provável. Por isso, relegando o problema literário ao escaninho dos falsos problemas, restringimo-nos ao modo como sempre se entendeu este Sermão, i. e., proferido por Nosso Senhor tal como o transcreve São João.
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