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1ª parte: exposição do sistema e sua divisão

1ª PARTE

Exposição do sistema e sua divisão

E para procedermos com ordem em tão abstrusa matéria, convém notar que cada modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto é, o de filósofo, o de crente, o de teólogo, o de historiador, o de crítico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princípios e nas conseqüências das suas doutrinas.

O modernista filósofo

Começando pelo filósofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo. Por força desta doutrina, a razão humana fica inteiramente reduzida à consideração dos fenômenos, isto é,  só das coisas perceptíveis e pelo modo como são perceptíveis; nem tem ela direito nem aptidão para transpor estes limites. E daí segue que não é dado à razão elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existência, nem mesmo por intermédio dos seres visíveis. Segue-se, portanto, que Deus não pode ser de maneira alguma objeto direto da ciência; e também com relação à história, não pode servir de assunto histórico. Postas estas premissas, todos percebem com clareza qual não deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelação externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atribuem ao intelectualismo, que chamam ridículo sistema, morto já há muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros tão monstruosos. Pois que, de fato, o Concílio Vaticano I assim definiu;

Se alguém disser que o Deus, único e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, seja anátema (De Revel. Cân. 1);   e também:

Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe é devido, seja anátema (Ibid. Cân. 2); e, finalmente:

Se alguém disser que a divina revelação não pode tornar-se crível por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à fé senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada, seja anátema (De Fide, Cân. 3).

De que modo porém os modernistas passam do agnosticismo, que é puro estado de ignorância, para o ateísmo científico e histórico que, ao contrário, é estado de positiva negação, e por isso, com que lógica, do não saber se Deus interveio ou não na história do gênero humano, passam a tudo explicar na mesma história, pondo Deus de parte, como se na realidade não tivesse intervindo, quem  o souber  que o explique.

Há entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que é o dever ser atéia a ciência a par da história, em cujas raias não haja lugar senão para os fenômenos, repelido de uma vez, Deus e tudo o que é divino. E dessa absurdíssima doutrina ver-se-á, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistérios e da sua vida e morte, da sua ressurreição e ascensão ao céu.

Este agnosticismo, porém, na doutrina dos modernistas, não constitui senão a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanência vital.

Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religião, quer a natural quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, impedido o acesso à revelação ao rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é de fato senão uma forma da vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa.   Demais, a primeira moção, por assim dizer, de todo fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade;  os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.

Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência; oculta-se (porém), primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, torna-se religião, será esta a resposta dos modernistas: a ciência e a história, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno, que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante; além destes dois limites acha-se o incognoscível. Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião.

Nem acaba aí o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles não encontram unicamente a fé; mas, com a fé e na mesma fé, do modo como a entendem, sustentam que também se acha a revelação. E  que é o que mais se pode exigir para a revelação? Já não será talvez revelação, ou pelo menos princípio de revelação, aquele sentimento religioso, que se manifesta na consciência? Ou também o mesmo Deus a manifestar-se às almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da fé, essa revelação é de Deus como objeto e também provém de Deus como causa; isto é, tem a Deus ao mesmo tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Veneráveis Irmãos, a absurda afirmação dos modernistas, segundo a qual toda a religião, sob diverso aspecto, é igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promíscua significação que dão aos termos consciência e revelação. Daqui a lei que dá a consciência religiosa, a par com a revelação, como regra universal, à qual todos se devem sujeitar, inclusive a própria autoridade da Igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matéria de culto ou disciplina.

Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a fé e a revelação, deve atender-se principalmente a uma coisa de não pequena importância, pelas conseqüências histórico-críticas, que daí fazem derivar. Aquele Incognoscível, de que falam, não se apresenta à fé como que nu e isolado; mas, ao contrário, intimamente unido a algum fenômeno que, embora pertença ao campo da ciência ou da história, assim mesmo, de certo modo, transpõe os seus limites. Este fenômeno poderá ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum quê de misterioso, ou poderá também ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinárias da história. A fé, pois, atraída pelo Incognoscível unido ao fenômeno, apodera-se de todo o mesmo fenômeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.

A primeira é uma certa transfiguração do fenômeno, por uma espécie de elevação das suas próprias condições, que o torna mais apto, qual matéria, para receber o divino.

A segunda é uma certa desfiguração, resultante de que, tendo a fé subtraído ao fenômeno os seus adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade não tem; o que particularmente se dá em se tratando de fenômenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas são elas. Destes dois pressupostos, os modernistas deduzem outros tantos cânones que unidos a um terceiro já deduzido de agnosticismos, constituem a base da crítica histórica. Esclareçamos o fato com um exemplo tirado da pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Cristo, dizem, a ciência e a história não acham  mais do que um homem. Portanto, em virtude do primeiro cânon deduzido do agnosticismo, da história dessa pessoa se deve riscar tudo o que sabe de divino. Ainda mais, por força do segundo cânon, a pessoa histórica de Jesus Cristo foi transfigurado pela fé; logo, convém despojá-la de tudo o que a eleva acima das condições históricas.

Finalmente, a mesma foi desfigurada pela fé, em virtude do terceiro cânon; logo, se devem remover dela as falas, as ações, tudo enfim que não corresponde ao seu caráter, condição e educação, lugar e tempo em que viveu. É em verdade estranho tal modo de raciocinar; contudo é esta a crítica dos modernistas.

sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião e a razão de tudo o que tem havido e haverá ainda em qualquer religião.

Este  mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princípio, pouco a pouco, sob o influxo do misterioso princípio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeiçoando, a par com o progresso da vida humana, da qual, como já ficou dito, é uma forma.

Temos, pois, assim a origem de toda a religião, até mesmo da sobrenatural; e estas não passam de meras explicações do sentimento religioso. Nem se pense que a católica é excetuada; está no mesmo nível das outras, pois não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro não houve nem haverá. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmações tão audaciosas e sacrílegas! Entretanto, Veneráveis Irmãos, não é esta linguagem usada temerariamente só pelos incrédulos. Homens católicos, até muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delírios tais se vangloriam de reformar a Igreja.

Já não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um quase direito à ordem sobrenatural.

Vai-se muito mais longe ainda; chega-se até a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isto com suma razão o Concílio Vaticano I definiu: Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus elevado a conhecimento e perfeição, que supere as forças da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja anátema (De Revel Cân. 3).

Até agora porém, Veneráveis Irmãos, não lhes vimos dar nenhum lugar à ação da inteligência. Contudo, segundo as doutrinas dos modernistas, tem ela também a sua parte no ato de fé. Vejamos como.

Naquele sentimento, dizem, de que tantas vezes já se tem falado, precisamente porque é sentimento e não é conhecimento, Deus de fato se apresenta ao homem, mas de modo tão confuso que em nada ou mal se distingue desse mesmo crente. Faz-se, pois, mister lançar algum raio de luz sobre aquele sentimento, de maneira que Deus se apresente fora e distinto do crente. Ora, isto é obra da inteligência, à qual somente cabe o pensar e o analisar, e por meio da qual o homem a princípio traduz em representações mentais os fenômenos de vida, que nele aparecem, e depois os manifesta com expressões verbais.

Segue-se daí esta vulgar expressão dos modernistas: o homem religioso deve pensar à sua fé. – Sobrevindo, pois, a inteligência ao sentimento, inclina-se sobre este, elabora-o  todo, a modo de um pintor que ilumina e reanima os traços de um quadro estragado pelo tempo. O paralelo é de um dos mestres do modernismo. Neste trabalho a inteligência procede de dois modos: primeiro, por um ato natural e espontâneo, exprimindo a sua noção por uma proposição simples e vulgar; depois, com reflexão e penetração mais íntima, ou, como dizem, elaborando o seu pensamento, exprime o que pensou com proposições secundárias, se forem finalmente sancionadas pelo supremo magistério da Igreja, constituirão o dogma.

Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que é a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma põem-na eles, pois, naquelas primitivas fórmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais à fé, pois que a revelação, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara aparição de Deus na consciência. O mesmo dogma porém, ao que parece, é propriamente constituído pelas fórmulas secundárias. Mas, para bem se  conhecer a natureza do dogma, é preciso primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.

Não haverá dificuldade em o compreender para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim, senão o de facilitarem ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que umas intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.

Não é portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, pois que este sentimento, tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer, hoje um, amanhã outro e da mesma sorte como aquele que crê pode  passar por essas e aquelas condições, segue-se que também as fórmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também a variarem.

Assim pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religião!

Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. De fato, entre os pontos principais da sua doutrina, contam também este, que deduzem da imanência vital: as fórmulas religiosas, para que realmente sejam tais e não só meras especulações da inteligência, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso. Daí porém não se deve concluir que essas fórmulas, particularmente se forem só imaginárias, sejam formadas a bem desse mesmo sentimento religioso; porquanto nada importa a sua origem, nem o seu número, nem a sua qualidade; segue-se, porém, que o sentimento religioso, embora modificando-as, se houver mister, as torna vitais e fá-las viver de sua própria vida. Em outros termos, é preciso a fórmula primitiva seja aceita e confirmada pelo coração, e que a subseqüente elaboração das fórmulas secundárias seja feita sob a direção do coração. Procede daí que tais fórmulas para serem vitais, hão de ser e ficar adaptadas tanto à fé quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptação, perdem sua primitiva significação e devem ser mudadas. Ora, sendo assim mutável o valor e a sorte das fórmulas dogmáticas, não é de admirar que os modernistas tanto as escarneçam e desprezem, e que por conseguinte só reconheçam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja acusando-a de caminhar fora da estrada, e de não saber distinguir entre o sentido material das fórmulas e sua significação religiosa e moral, e ainda mais, agarrando-se obstinadamente, mas em vão, a fórmulas falhas de sentido, de deixar a própria religião rolar no abismo. Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar  a verdade (Gregório XVI, Encíclica “Singulari Nos” 7 Jul. 1834).

Assim, Veneráveis Irmãos, pensa o modernista como filósofo.

 

O modernista crente

Agora, passando a considerá-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o crente difere do filósofo, convém observar que, embora o filósofo reconheça por objeto da fé a realidade divina, contudo esta realidade não se acha noutra parte senão na alma do crente, como objeto de sentimento e afirmação; porém, se ela em si mesma existe ou não fora daquele sentimento e daquela afirmação, isto não importa ao filósofo. Se, porém, procurarmos saber que fundamento tem esta asserção do crente, respondem os modernistas: é a experiência individual. Com esta afirmação, enquanto na verdade discordam dos racionalistas, caem na opinião dos protestantes e dos pseudo-místicos.

 Eis como eles o declaram: no sentimento religioso deve reconhecer-se uma espécie de intuição do coração, que pôs o homem em contato imediato com a própria realidade de Deus e lhe infunde tal persuasão da existência dele e da sua ação, tanto dentro como fora do homem, que excede a força de qualquer persuasão, que a ciência possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experiência, capaz de vencer qualquer experiência racional; e se esta for negada por alguém, como pelos racionalistas, dizem que isto sucede porque estes não querem pôr-se nas condições morais que são necessárias para consegui-la. Ora, tal experiência é a que faz própria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto vai dessa à doutrina católica! Já vimos essas idéias condenadas pelo Concílio Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo. Cumpre, entretanto, desde já, notar que, posta esta doutrina da experiência unida à outra do simbolismo, toda religião, não executada sequer a dos idólatras, deve ser tida por verdadeira. E na verdade, porque não fora possível o se acharem tais experiências em qualquer religião? E não poucos presumem que de fato já se as tenha encontrado. Com que direito, pois, os modernistas negarão a verdade a uma experiência afirmada, por exemplo, por um maometano? Com que direito reivindicarão experiências verdadeiras só para os católicos? E os modernistas de fato não negam, ao contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras. É claro, porém, que eles não poderiam pensar de outro modo.

Em verdade, postos os seus princípios, em que se poderiam porventura fundar para atribuir falsidade a  uma religião qualquer? Sem dúvida seria por algum destes dois princípios: ou por falsidade do sentimento religioso, ou por falsidade da fórmula proferida pela inteligência. Ora, o sentimento religioso, ainda que às vezes menos perfeito, é sempre o mesmo; e a fórmula intelectual para ser verdadeira basta que corresponda ao sentimento religioso e ao crente, seja qual for a força do engenho deste. Quando muito, no conflito entre as diversas religiões, os modernistas poderão sustentar que a católica tem mais verdade, porque é mais viva, e merece mais o título de cristã, porque mais completamente corresponde às origens do cristianismo. A ninguém pode parecer absurdo que estas conseqüências todas dimanem daquelas premissas. Absurdíssimo é, porém, que católicos e sacerdotes que, como preferimos crer, têm horror a tão monstruosas afirmações, se ponham quase em condição de admiti-las. Pois, tais são os louvores que tributam aos mestres desses erros, tais as homenagens que publicamente lhes prestam, que facilmente dão a entender que as suas honras não atingem as pessoas, que talvez de todo não desmereçam, antes, porém, aos erros, que elas professam às claras, e entre o povo procuram com todos os esforços propagar.

Há ainda outra face, além da que já vimos, nesta doutrina da experiência, de todo contrária à verdade católica. Pois, ela se estende e se aplica à tradição que a Igreja tem sustentado até hoje, e a destrói. E com efeito, os modernistas concebem a tradição como uma comunicação da experiência original, feita a outrem pela pregação, mediante a fórmula intelectual.

Por isto a esta fórmula, além do valor representativo, atribuem certa eficácia de sugestão, tanto naquele que crê, para despertar o sentimento religioso quiçá entorpecido, e restaurar a experiência de há muito adquirida, como naqueles que ainda não crêem, para despertar neles, pela primeira vez, o sentimento religioso e produzir a experiência. Por esta maneira a experiência religiosa abundantemente se propaga entre os povos: não só entre os existentes, pela pregação, mas também entre os vindouros, quer pelo livro, quer pela transmissão oral de uns a outros. Esta comunicação da experiência às vezes lança raízes e vinga; outras vezes se esteriliza logo e morre. O viver para os modernistas é prova de verdade; e a razão disto é que verdade e vida para eles são uma e a mesma coisa. E daqui, mais uma vez, se infere que todas as religiões existentes são verdadeiras, do contrário já não existiriam.

Levadas as coisas até este ponto, Veneráveis Irmãos, já temos muito para bem conhecermos a ordem que os modernistas estabelecem entre a fé e a ciência; notando-se que neste nome de ciência incluem também a história. Antes de tudo se deve ter por certo que o objeto de uma é de todo estranho e separado do objeto de outra. Porquanto a fé unicamente se ocupa de uma coisa, que a ciência declara ser para si incognoscível. Segue-se, pois, que é diversa a tarefa de cada uma; a ciência acha-se toda na realidade dos fenômenos, onde a fé por maneira alguma penetra; a fé, pelo contrário, ocupa-se da realidade divina, que de todo é desconhecido à ciência. Conclui-se, portanto, que nunca poderá haver conflito entre a fé e a ciência; porque, se cada uma se restringir a seu campo, nunca poderão encontrar-se, nem portanto contradizer-se. Se, entretanto, alguém objetar que no mundo visível há coisas que também pertencem à fé, como a vida humana de Cristo, responderão os modernistas negando.  E a razão é que, conquanto tais coisas estejam no número dos fenômenos, todavia, enquanto viveram pela fé e, no modo já indicado, foram pela mesma transfiguradas e desfiguradas, foram subtraídas ao mundo sensível e passaram a ser matéria do divino. Por este motivo, se ainda se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, a ciência agnóstica o negará e a fé o afirmará; e nem assim haverá luta entre as duas. Nega-o o filósofo como filósofo, falando a filósofos e considerando Cristo na sua realidade histórica; afirma-o o crente, como crente, falando a crentes e considerando a vida de Cristo a reviver pela fé e na fé.

De muito se enganaria quem, postas estas teorias, se julgasse autorizado a crer que a ciência e a fé são independentes uma da outra. Por parte da ciência, essa independência está fora de dúvida; mas, já não é assim por parte da fé, que não por um só, mas por três motivos, se deve submeter à ciência. Efetivamente é de notar, em primeiro lugar, que em todo  fato religioso, tirada a realidade divina e a experiência que o crente tem da mesma, tudo o mais, e principalmente as fórmulas religiosas, não sai do campo dos fenômenos; cai portanto sob o domínio da ciência. Afaste-se embora do mundo o crente, se lhe aprouver; mas, enquanto se achar no mundo, nunca poderá se furtar, queira-o ou não, às leis, às vistas, ao juízo da ciência e da história. Ainda mais, embora se tenha dito que Deus só é objeto da fé, isto entretanto não se deve entender senão da realidade divina e não da idéia de Deus. Esta é dependente da ciência; a qual, enquanto se deleita na ordem lógica, também se eleva até o absoluto e o ideal. É, pois, direito da filosofia ou da ciência indagar da idéia de Deus, dirigi-la na sua evolução, corrigi-la quando se lhe misturar qualquer elemento estranho. Fundados nisto é que os modernistas sustentam que a evolução religiosa deve ser coordenada com a evolução moral e intelectual; isto é, como ensina um dos seus mestres, deve ser-lhes subordinada. Deve-se enfim observar que o homem, em si, não suporta um dualismo, por conseguinte o crente experimenta em si mesmo uma íntima necessidade de harmonizar de tal sorte a fé com a ciência, que aquela não se oponha à idéia geral que a ciência forma do universo. Conclui-se, pois, que a ciência é de todo independente da fé; esta, ao contrário, embora se declame que é estranha à ciência, deve-lhe submissão. Todas estas coisas, Veneráveis Irmãos, são diametralmente contrárias ao que o Nosso antecessor Pio IX ensinava, dizendo (Brev. ad Ep. Wratislaw. 15 jun. 1857): Em matéria de religião, é dever da filosofia não dominar, mas servir, não prescrever o que se deve crer, mas aceitá-lo com razoável respeito, não perscrutar os profundos dos mistérios de Deus, mas piedosa e humildemente venerá-los. Os modernistas entendem isto às avessas: há, pois, sobeja razão de aplicar-se-lhes o que outro nosso predecessor, Gregório IX, escrevia de alguns teólogos do seu tempo:Alguns dentre vós, excessivamente cheios de espírito de vaidade, com profanas novidades se esforçam por transpor os limites traçados pelos Santos Padres, curvando à doutrina filosófica dos racionalistas a interpretação das páginas celestes, não proveito dos ouvintes, mas para dar mostras do saber...E estes, arrastados por doutrinas diversas, transformam em cauda a cabeça e obrigam a rainha a servir à escrava (Ep. ad  Magistros theol., Paris, julho de 1223). 

Estas coisas tornar-se-ão ainda mais claras, tendo-se em vista o procedimento dos modernistas, de todo conforme com o que ensinam. Nos seus escritos e discursos parecem, não raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porém, de caso pensado; isto é, baseados na opinião que sustentam, da mútua separação entre a fé e a ciência. É por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelo católicos; mas, ao virar a página, outras se vêem que pareceriam ditadas por um racionalista. Escrevendo, pois, história, nenhuma menção fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam. Da mesma sorte, na história não fazem o menor caso dos Padres nem dos Concílios; nas instruções catequéticas, porém, citam-nos com respeito. Distinguem, portanto, outrossim a exegese teológica e pastoral da exegese científica histórica. Mais ainda: fundados no princípio que a ciência em nada depende da fé, quando tratam de filosofia, de história, de crítica, não sentindo horror de pisar nas pegadas de Lutero (cf. Prop. 29 conden. por Leão X, Bulla “Exurge Domine” de 16 de maio de 1520): Temos aberta a estrada para enfrentar a autoridade dos Concílios e para contradizer à vontade as suas deliberações, e julgar os seus decretos e manifestar às claras tudo o que nos parece verdade, seja embora aprovado ou condenado por qualquer Concílio), ostentam certo desprezo das doutrinas católicas, dos Santos Padres, dos concílios ecumênicos, dos magistérios eclesiásticos; e se forem por isto repreendidos, queixam-se de que se lhes tolhe a liberdade. Finalmente, professando que a fé há de sujeitar-se à ciência, continuamente e às claras criticam a Igreja, porque irredutivelmente se recusa a acomodar os seus dogmas às opiniões da filosofia, e eles, por sua vez, posta de parte a velha teologia, empenham-se por divulgar uma nova, toda amoldada aos desvarios dos filósofos.

 

O modernista teólogo

Já é tempo, Veneráveis Irmãos, de passarmos a considerar os modernistas no campo teológico. Empenho árduo este, mas em poucas palavras diremos tudo. O fim a alcançar é a conciliação da fé com a ciência, ficando porém sempre incólume a primazia da ciência sobre a fé. Neste assunto o teólogo modernista se utiliza dos mesmos princípios da imanência  e do simbolismo. Eis com que rapidez ele executa a sua tarefa: diz o filósofo que o princípio da fé é imanente; acrescenta o crente que esse princípio é Deus; conclui pois o teólogo: logo Deus é imanente no homem. Disto se conclui a imanência teológica. Outra adaptação: o filósofo tem por certo de que as representações da fé são puramente simbólicas; o crente afirma que o objeto da fé é Deus em si mesmo; conclui pois o teólogo: logo as representações da realidade divina são simbólicas. Segue-se daqui o simbolismo teológico. São erros enormes deveras; e quanto sejam perniciosos vamos ver de um modo luminoso, observando-lhes as conseqüências. E para falarmos desde já do simbolismo, como os símbolos são: símbolos com relação ao objeto, e instrumentos com relação ao crente, dizem os modernistas que o crente, antes de tudo, não deve apegar-se demais à fórmula, que deve servir-lhe só no intuito de unir-se com a verdade absoluta, que a fórmula ao mesmo tempo revela e esconde; isto é, esforça-se por exprimi-la, sem jamais o conseguir. Querem, em segundo lugar, que o crente use de tais fórmulas tanto quanto lhe forem úteis, porquanto elas são dadas para auxílio e não para embaraço; salvo porém o respeito que, por motivos sociais, se deve às fórmulas pelo público magistério julgadas aptas para exprimir a consciência comum, e enquanto o mesmo magistério não julgar de outro modo.

Quanto à imanência, é na verdade difícil indicar o que pensam os modernistas, pois há entre eles diversas opiniões. Uns fazem-na consistir em que Deus, operando no homem, está mais intimamente no homem do que o próprio homem em si mesmo; e esta afirmação sendo bem entendida, não merece censura. Pretendem outros que a ação divina é uma e a mesma com a ação da natureza, como a causa primeira com a causa segunda; e isto já destruiria a ordem sobrenatural. Outros explicam-na, enfim, em um sentido que tem ressaibos de panteísmo; e estes, a falar a verdade, são mais coerentes com o restante das sua doutrinas. 
A este postulado da imanência ainda outro se acrescenta, que pode ser chamado da permanência divina; estes entre si diferem do mesmo modo como a experiência privada difere da experiência transmitida por tradição. Esclareçamos isto com um exemplo, e seja ele tirado da Igreja e dos Sacramentos. Não se pode crer, dizem, que a Igreja e os Sacramentos foram instituídos pelo próprio Cristo. Isto não é permitido pelo agnosticismo, que em Cristo não vê mais do que um homem, cuja consciência religiosa, como  a de qualquer outro homem, pouco a pouco se formou; não o permite a lei da imanência, que não admite, como eles se exprimem, externas aplicações; proíbe-o também a lei da evolução, que para o desenvolvimento dos germens requer tempo e uma certa série de circunstâncias; proíbe-o enfim a história, que mostra que tal foi realmente o curso dos acontecimentos. Todavia deve admitir-se que a Igreja e os Sacramentos foram mediatamente instituídos por Cristo. Mas de que modo? Todas as consciências cristãs, é assim que eles o explicam, estavam virtualmente incluídas na consciência de Cristo, como a planta na semente. Ora, como os rebentos vivem a vida da semente, assim também afirmar-se deve que todos os cristãos vivem a vida de Cristo. Mas a vida de Cristo, segundo a fé, é divina; logo também a vida dos cristãos. Se pois esta vida, no correr dos séculos, deu origem à Igreja e aos Sacramentos, com toda a razão se poderá dizer que tal origem procede de Cristo e é divina. Pelo mesmo processo provam que as Escrituras e os dogmas são divinos. E com isto se conclui toda a teologia dos modernistas. É bem pouco, em verdade; porém, mais que abundante para quem professa que sempre e em tudo se devem respeitar as conclusões da ciência. Cada um entretanto poderá ir por si mesmo fazendo a aplicação destas teorias aos outros pontos, que vamos expor. 

Falamos até agora da origem e natureza da fé. Mas, como são muito os frutos da mesma, sendo os principais a Igreja, o dogma, o culto, os livros sagrados, também a respeito destes devemos saber o que dizem os modernistas. Começando pelo dogma, já sabemos, pelo que ficou dito, qual seja a sua origem e natureza. O dogma nasce da necessidade que o crente experimenta de elaborar o seu pensamento religioso, a fim de tornar sempre mais clara a sua consciência e a de outrem. Consiste todo esse trabalho em esquadrinhar e polir a fórmulaprimitiva, não por certo em si mesma e racionalmente, mas segundo as circunstâncias ou, como de modo pouco inteligível dizem, vitalmente. O resultado disto é que, como já dissemos, ao redor da mesma se vão formando fórmulas secundárias, que mais tarde sintetizadas e reunidas em um único todo doutrinal, quando forem ratificadas pelo magistério público como correspondentes a consciência comum, são chamados dogmas. Destas devem cuidadosamente distinguir-se as investigações teológicas; as quais porém, posto que não vivem da vida do dogma, contudo não são inúteis, seja para harmonizar a religião com a ciência e dissipar qualquer contraste entre elas, seja para iluminar a religião e defendê-la; e talvez ainda tenham a utilidade de preparar um futuro dogma. Do culto não haveria muito que dizer, se debaixo deste nome não se achassem também os Sacramentos, a respeito dos quais muito erram os modernistas. Pretendem que o culto resulta de um duplo impulso; pois que, como vimos, pelo seu sistema, tudo se deve atribuir a íntimos impulsos. O primeiro é dar à religião, alguma coisa de sensível; o segundo é a necessidade de propagá-la, coisa esta que se não poderia realizar sem uma certa forma sensível e sem atos santificantes, que se chamam Sacramentos. Os modernistas, porém, consideram os Sacramentos como meros símbolos ou sinais, bem que não destituídos de eficácia. E para indicar essa eficácia, servem-lhes de exemplo certas palavras que facilmente vingam, por terem conseguido a força de divulgar certas idéias de grande eficácia, que muito impressionam os ânimos. E assim como aquelas palavras são destinadas a despertar as referidas idéias, assim também o são os Sacramentos com relação ao sentimento religioso; nada mais do que isto. Falariam mais claro afirmando logo que os Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé. Mas esta proposição é condenada pelo Concílio de Trento (Sess. VII, de Sacramentis in genere, cân.5): Se alguém disser que estes Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé, seja anátema.

Já alguma coisa ficou dito sobre a natureza e origem dos livros sagrados. Segundo a mente dos modernistas, bem se pode defini-los uma coleção de experiências,  não por certo das que de ordinário qualquer pessoa adquire, mas das extraordinárias e das mais elevadas que se têm dado em uma qualquer religião. É precisamente isto que os modernistas ensinam dos nossos livros do Antigo e Novo Testamento.

Todavia, a estas suas opiniões mui astutamente acrescentam que, embora a experiência deva ser do tempo presente, pode assim mesmo receber matéria do passado e do futuro, enquanto o crente pela lembrança revive o passado como se fora o presente, ou já vive do futuro por antecipação. Deste modo se explica porque os livros históricos e apocalípticos são computados entre os livros sagrados. Assim pois, nestes livros, Deus fala por meio do crente; mas, como diz a teologia modernista, só por imanência e permanência vital. Perguntar-lhes-emos, pois, que é feito da inspiração?

Respondem-nos que ela,  a não ser talvez por uma certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e neste sentido um deles dizia: Deus está entre nós, e agitados por ele nós nos inflamamos. Deste modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspiração.

Neste ponto alguém poderia julgá-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspiração como, por exemplo, nas tais citações tácitas. Mas isto não passa de aparências e palavras.

De fato, se segundo as leis do agnosticismo, consideramos a Bíblia um trabalho humano, feito por homens para utilidade de outros homens, seja embora lícito ao teólogo apelidá-la de divina por imanência, de que modo poderia restringir-se nela a inspiração?

Tal inspiração, de fato, admitem-na os modernistas; não, porém, no sentido católico.

Maior extensão de matéria nos oferece o que os modernistas afirmam da Igreja. Pressupõem que ela é fruto de uma dupla necessidade, uma no crente, principalmente naquele que, tendo tido alguma experiência original e singular, precisa comunicar a outrem a própria fé; outra na coletividade, depois que a fé se tornou comum a muitos, para se reunir em sociedade, e conservar, dilatar e propagar o bem comum. Que é, pois, a Igreja? É um parto da consciência coletiva, isto é, da coletividade das consciências individuais que, por virtude da permanência vital, estão todas pendentes do primeiro crente, que para os católicos foi Cristo. Ora, toda sociedade precisa de uma autoridade que a reja, e cujo mister seja dirigir os membros para o fim comum e conservar com prudência os elementos de coesão, que em uma sociedade religiosa são a doutrina e o culto. Há, por isso, na Igreja Católica uma tríplice autoridade: disciplinar, dogmática e cultural. A natureza desta autoridade deve ser deduzida da sua origem; e da natureza, por sua vez, devem coligir-se os direitos e os deveres. Foi erro das eras passadas pensar-se que a autoridade da Igreja emanou de um princípio estranho, isto é, imediatamente de Deus; e por isto, com razão era ela considerada autocrática. Estas teorias, porém, já não são para os tempos que correm.

Assim como a Igreja emanou da coletividade das consciências, a autoridade emana virtualmente da mesma Igreja. A autoridade, portanto, da mesma sorte que a Igreja, nasce da consciência religiosa, e por esta razão fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependência, torna-se tirânica. Nos tempos que correm o sentimento de liberdade atingiu o seu pleno desenvolvimento. No estado civil a consciência pública quis um regime popular. Mas a consciência do homem, assim como a vida, é uma só. Se, pois, a autoridade da Igreja não quer suscitar e manter uma intestina guerra nas consciências humanas, há também mister curvar-se a formas democráticas; tanto mais que,  se o não quiser, a hecatombe será iminente. Loucura seria crer que o vivo sentimento de liberdade, ora dominante, retroceda.

Reprimindo e enclausurando com violência, transbordará mais impetuoso, destruindo conjuntamente a religião e a Igreja. São estes os raciocínios dos modernistas que, por isto, estão todos empenhados em achar o modo de conciliar a autoridade da Igreja com a liberdade dos crentes.

Acresce ainda que não é só dentro do seu recinto que a Igreja tem com quem entender-se amigavelmente, mas também fora. Não se acha ela só no mundo a ocupá-lo; ocupam-no também outras sociedades, com as quais não pode deixar de tratar e de relacionar-se. Convém, pois, determinar quais sejam os direitos e os deveres da Igreja para com as sociedades civis; e bem se vê que tal determinação deve ser tirada  da natureza da mesma Igreja, tal qual os modernistas no-la descreveram.

As regras que hão de servir para este fim são as mesmas, que acima serviram para a ciência e a fé. Tratava-se então de objetos, aqui de fins. Assim pois, como por causa do objeto se disse que a fé e a ciência são mutuamente estranhas, também o Estado e a Igreja são estranhos um à outra, por causa do fim a que tendem, temporal para o Estado, espiritual para a Igreja. Falava-se outrora do temporal sujeito ao espiritual, de questões mistas, em que a Igreja intervinha qual senhora e rainha, porque então se tinha a Igreja como instituída imediatamente por Deus,  enquanto autor da ordem sobrenatural. Mas estas crenças já não são admitidas pela filosofia, nem pela história. Deve, portanto, a Igreja separar-se do Estado, e assim  também o católico do cidadão. E é por este motivo que o católico, não se importando com a autoridade, com os desejos, com os conselhos e com as ordens da Igreja, e até mesmo desprezando as suas repreensões, tem direito e dever de fazer o que julgar o mais oportuno ao bem da pátria.

Querer, sob qualquer pretexto, impor ao cidadão uma norma de proceder, é por por parte do poder eclesiástico verdadeiro abuso, que se deve repelir com toda a energia. - Veneráveis Irmãos, as teorias de que dimanam todos estes erros são as mesmas que o Nosso Predecessor Pio VI condenou solenemente na Constituição apostólica Auctorem fidei (Prop. 2. A proposição que afirma que o poder foi dado por Deus à Igreja, para que fosse comunicado aos Pastores, que são os seus ministros, para a salvação das almas, entendida no sentido de que o poder do ministério e regime eclesiástico passa da comunidade dos fiéis para os pastores: é heresia. Prop. 3. Também aquele que afirma que o Romano Pontífice é chefe ministerial, entendida no sentido de que, não de Cristo na pessoa do bem-aventurado Pedro, mas da Igreja recebeu como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo e chefe de toda a Igreja: é herética).

No entanto, à escola dos modernistas não basta que o Estado seja separado da Igreja. Assim como a fé deve subordinar-se à ciência, quanto aos elementos fenomênicos, assim também nas coisas temporais a Igreja tem que sujeitar-se ao Estado.  Isto não afirmam talvez muito abertamente; mas por força de raciocínio são obrigados a admiti-lo. Em verdade, admitido que o Estado tenha absoluta soberania em tudo o que é temporal, se suceder que o crente, não satisfeito com a religião do espírito, se manifeste em atos exteriores, como, por exemplo, em administrar ou receber os Sacramentos, isto já deve necessariamente cair sob o domínio do Estado. Postas as coisas neste pé, para que servirá a autoridade eclesiástica? Visto que esta não tem razão de ser sem os atos externos, estará em tudo e por tudo sujeita ao poder civil. É esta inelutável conseqüência que leva muitos dentre os protestantes liberais a desembaraçar-se de todo o culto externo e até de toda a sociedade religiosa externa, procurando pôr em voga uma religião, que chamam individual. E se os modernistas, desde já, não se atiram francamente a esses extremos, insistem pelo menos em que a Igreja se deixe espontaneamente conduzir por eles até onde pretendem levá-la e se amolde às formas civis. Isto quanto à autoridade disciplinar.

Mais grave e perniciosos são suas afirmações relativamente à autoridade doutrinal e dogmática. Assim pensam eles acerca do magistério eclesiástico: a sociedade religiosa não pode ser uma, sem unidade de consciência nos seus membros e unidade de fórmula. Mas esta dupla unidade requer por assim dizer um entendimento comum, a que compete achar e determinar a fórmula que melhor corresponda à consciência comum; e a esse entendimento convém ainda atribuir a autoridade conveniente, para poder impor à comunidade a fórmula estabelecida. Nesta união e quase fusão da mente designadora de fórmula e da autoridade que a impõe, acham os modernistas o conceito de magistério eclesiástico. Visto pois que o magistério, afinal de contas, não é mais do que um produto das consciências individuais, e só para cômodo das mesmas consciências lhe é atribuído ofício público, resulta necessariamente que ele depende dessas consciências, e por conseguinte deve inclinar-se a formas democráticas. Proibir, portanto, que as consciências dos indivíduos manifestem publicamente as suas necessidades, e impedir à crítica o caminho que leva o dogma a necessárias evoluções, não é fazer uso de um poder dado para o bem público, mas abusar dele. - Da mesma sorte , no próprio uso do poder deve haver modo e medida. É quase tirania condenar um livro sem que o autor o saiba, e sem admitir nenhuma explicação nem discussões. Ainda aqui, portanto, deve adotar-se um meio termo, que ao mesmo tempo salve a autoridade e a liberdade. E nesse ínterim o católico poderá agir de tal sorte que, protestando o seu profundo respeito à autoridade, continue sempre a trabalhar à sua vontade. Em geral admoestam a Igreja de que, sendo o fim do poder eclesiástico todo espiritual, não lhe assentam bem essas exibições de aparato exterior e de magnificência, com que sói comparecer às vistas da multidão. E quando assim o dizem, procuram esquecer que a religião, conquanto essencialmente espiritual, não pode restringir-se exclusivamente às coisas do espírito, e que as honras prestadas à autoridade espiritual se referem à pessoa de Cristo que a instituiu.

Para concluir toda esta matéria da fé e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Veneráveis Irmãos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que é a evolução. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, já não ouvirá com pasmo a afirmação deste princípio. Posta a lei da evolução, os próprios modernistas passam a descrever-nos o modo como ela se efetua. E começam pela fé. Dizem que a forma primitiva da fé foi rudimentar e indistintamente comum a todos os homens; porque se originava da própria natureza e vida do homem. Progrediu por evolução vital; quer dizer, não pelo acréscimo de novas formas, vindas de fora, mas por uma crescente penetração do sentimento religioso na consciência. Esse mesmo progresso se realizou de duas maneiras: primeiro negativamente, eliminando todo o elemento estranho, como seja o sentimento de família ou de nacionalidade; em  seguida positivamente, com o aperfeiçoamento intelectual e moral do homem, donde resultou maior clareza para a idéia divina e excelência para o sentimento religioso. As mesmas causas que serviram para explicar a origem da fé, explicam também o seu progresso. A estas, porém, devem acrescentar-se aqueles gênios religiosos, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Cristo; seja porque eles na sua vida ou nas suas palavras tinham algo de misterioso, que a fé atribuía à divindade, seja porque alcançaram novas e desconhecidas experiências em plena harmonia com as exigências do seu tempo.

O progresso do dogma nasce principalmente da necessidade de vencer os obstáculos da fé, derrotar os adversários, repelir as dificuldades. Deve-se ainda acrescentar um contínuo esforço, para se penetrar cada vez mais nos arcanos da fé. Deixando de parte outros exemplos, assim sucedeu com Cristo: aquilo de divino que a fé a princípio lhe atribuía, foi-se gradualmente aumentando, até que definitivamente foi tido por Deus. 

O principal estímulo de evolução para o culto, é a necessidade de se adaptar aos costumes e tradições dos povos e bem assim de gozar da eficácia de certos atos, já admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razão do seu evoluir na necessidade de se acomodar às condições históricas e às formas do governo publicamente adotadas. Isto dizem os modernistas de cada um daqueles princípios. E aqui, antes de passarmos adiante, queremos insistir em que se atente nessa doutrina das necessidades, porque ela, além do que já vimos, é como que a base e o fundamento desse famoso método que chamam histórico.

Detendo-nos ainda na doutrina da evolução, observamos que, embora as necessidades  sirvam de estímulo para a evolução, se ela não tivesse outros estímulos senão esses, facilmente transporia os limites da tradição, e assim desligada do primitivo princípio vital, já não levaria ao progresso, mas à ruína. Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evolução é como o resultado de duas forças que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora. A força conservadora está na Igreja e é a tradição. O exercício desta é próprio da autoridade religiosa, quer de direito, pois que é de natureza de toda autoridade adstringir-se o mais possível à tradição; quer de fato, pois que, retraída das contingências da vida, pouco ou talvez nada sente dos estímulos que impelem ao progresso. Ao contrário, a força que, correspondendo às necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas consciências individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com  vida. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, já se percebe o despontar daquela perniciosíssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso. 

De uma espécie de convenção entre as forças de conservação e de progresso, isto é, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem as transformações e os progressos. As consciências individuais, ou pelo menos algumas delas, fazem pressão sobre a consciência coletiva; e esta, por sua vez, sobre a autoridade, obrigando-a a capitular e pactuar. Admitido isto, não é de admirar ver-se como os modernistas pasmam por serem admoestados ou punidos. O que se lhes imputou como culpa, consideram um dever sagrado. Ninguém melhor do que eles conhece as necessidades das consciências, porque são eles e não a autoridade eclesiástica, os que se acham mais em contato com elas. Julgam quase ter em si encarnadas todas essas necessidades; daí a persuasão que têm de falar e escrever sem medo. Nada se lhes dá das censuras da autoridade; porque se sentem fortes com a consciência do dever, e por íntima experiência sabem que merecem aplausos e não censuras. Nem tão pouco ignoram que os progressos não se alcançam sem combates, nem há combates sem vítimas, como o foram os profetas e Cristo. Ainda que a autoridade os maltrate, não a odeiam; sabem que assim está cumprindo o seu dever. Lamentam apenas que se lhes não prestem ouvidos, porque isto será causa de atraso ao progresso dos espíritos; mas, há de vir a hora de se romperem as barreiras, porque as leis da evolução poderão ser refreadas; quebradas, porém, nunca. Traçado este caminho, eles continuam; continuam, com desprezo das repreensões e condenações, ocultando audácia inaudita com o véu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabeça; mas, no entanto a mão e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avançam com toda a reflexão e prudência, tanto porque estão persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e não destruída, como também porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a; mal percebem porém, quando assim se exprimem, que estão confessando que a consciência coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto não têm direito de declarar-se intérpretes da mesma.

Nada, portanto, Veneráveis Irmãos, se pode dizer estável ou imutável na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que também não lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: estes inimigos da revelação divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano, desejariam com temerário e sacrílego atrevimento introduzi-lo na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos (Enc. “Qui pluribus”, 9 de nov. de 1846). acerca da revelação particularmente, e do dogma, os modernistas nada acharam de novo; pois, a sua mesma doutrina, antes deles, já fora condenada no Silabo de Pio IX nestes termos: A divina revelação é imperfeita e por isto está sujeita a contínuo e indefinido progresso, correspondente ao da razão humana (Syllabo, proposição condenada  5); e mais solenemente ainda a proscreve o Concílio Vaticano I por estas palavras: A doutrina da fé por Deus revelada, não é proposta à inteligência humana para ser aperfeiçoada, como uma doutrina filosófica, mas é um depósito confiado à esposa de Cristo, para ser guardado com fidelidade e declarado com infalibilidade. Segue-se pois que também se deve conservar sempre aquele mesmo sentido dos sagrados dogmas, já uma vez declarado pela Santa Mãe Igreja, nem se deve jamais afastar daquele sentido sob pretexto e em nome de mais elevada compreensão (Const. “Dei Fillius”, cap. IV).  De maneira alguma poderá seguir-se daí que fique impedida a explicação dos nossos conhecimentos, mesmo relativamente à fé; ao contrário, isto a auxilia e promove. Neste sentido é que o Concílio prossegue dizendo: Cresça, pois, e com ardor progrida a compreensão, a ciência, a sapiência tanto de cada um como de todos, tanto de um só homem como de toda a Igreja com o passar das idades e dos séculos; mas no seu gênero somente, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo parecer (Lugar citado)

 

 

O modernista historiador e crítico

Já entre os sequazes do modernismo consideramos o filósofo, o crente e o teólogo; resta agora examinarmos também o historiador, o crítico e o apologista.

Há certos modernistas que se atiram a escrever história, que parecem muito preocupados em não passar por filósofos e chegam até a declarar-se totalmente alheios aos conhecimentos filosóficos. É isto um rasgo de finíssima  astúcia; para que ninguém os julgue embebidos de preconceitos filosóficos e assim pareçam, como eles dizem, completamente objetivos. Em verdade, porém, a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as suas deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos. Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderação. Os três primeiros cânones desses tais historiadores ou críticos são aqueles mesmos princípios que acima deduzimos dos filósofos, isto é, o agnosticismo, o teorema da transfiguração das coisas pela fé, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfiguração. Vamos examinar-lhes já, em separado, as conseqüências. Segundo o agnosticismo, a história, bem como a ciência, só trata de fenômenos. Por conseguinte, tanto Deus como qualquer intervenção divina nas causas humanas deve ser relegado para a fé, como de sua exclusiva competência. Se tratar, pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto é, o divino e o humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que é humano passe  para a história, o que é divino para a fé. É este o motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre um Cristo da história e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante. Em seguida, esse mesmo elemento  humano que vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve ser tido como elevado pela fé, por transfiguração, acima das condições históricas. Convém, portanto, subtrair-lhe de novo os acréscimos feitos pela fé, e restituí-los à mesma fé e à história da fé;

Assim se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condições de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condições do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princípio filosófico, também as coisas que não saem fora das condições da história, fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando à fé, tudo o que, a juízo seu não entrar na lógica dos fatos nem for conforme à índole das pessoas. Assim, querem que Cristo não tenha dito aquelas coisas que parecem não estar ao alcance do vulgo.

Por isto eliminam da sua história real e transportam para a fé todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E com que critério, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela consideração do caráter do homem, das condições em que se achou a sociedade, da educação, das circunstâncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a entendemos, se resume em mero subjetivismo. Isto é, procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em circunstâncias idênticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e  partindo de certos princípios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na história real afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem, que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu, acham que podia ter feito e dito.

Assim pois, como a história recebe da filosofia as suas conclusões, assim também a crítica, por sua vez, as recebe da história. O crítico, seguindo a pista do historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o tríplice corte acima referido, passa todo o restante para a história real, e entrega a outra parte à história da fé, ou noutros termos, à história interna. Os modernistas põem grande empenho em distinguir estas duas histórias; e, note-se bem, contrapõem à história da fé a história real, enquanto real. Daí resulta, como já vimos, um duplo Cristo; um real, e outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence à fé; um que viveu em determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditações da fé; tal, por exemplo, é o Cristo descrito no Evangelho de São João, o qual Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princípio ao fim é mera meditação.

Mas o domínio da filosofia na história ainda vai além. Feita, como dissemos, a divisão dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filósofo com o seu princípio de imanência vital, e prescreve que tudo o que se acha na história da Igreja deve ser aplicado por emanação vital. E visto como a causa ou condição de qualquer emanação vital procede de alguma necessidade, todo acontecimento deve ser a conseqüência de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.

Que faz então o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos livros sacros quanto nos demais, vai formando um catálogo de cada uma das necessidades que por sua vez se apresentaram à Igreja, quer relativos ao dogma, quer ao culto ou a outras matérias. Feito este catálogo, passa-o ao crítico. Este, pois, manuseia os documentos destinados à história da fé e os distribui de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato é precedido da necessidade, e a narração, do fato.

Bem poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epístolas, também fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porém é que não se pode determinar a idade de nenhum documento, senão pela época em que cada necessidade se manifestou na Igreja. Convém ainda distinguir entre o começo de um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, não cresce senão com o tempo. Esta é a razão pela qual o crítico ainda deve bipartir os documentos, já dispostos segundo as idades, segregando os que se referem às origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo estes últimos em ordem cronológica.

Feito isto, reaparece  o filósofo e obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da evolução. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstáculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evolução. Concluído este trabalho, ele esboça em suas linhas principais a história do desenvolvimento dos fatos. Segue-se-lhe o crítico, que a este esqueleto histórico adapta os demais documentos.

Escreve-se então a narração; está completa a história; - mas agora perguntamos, essa história a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crítico? A nenhum dos dois, por certo; mas ao filósofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo abundante em heresias. São  na verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apóstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos...gabando-se de sábios, estultos é que se tornaram (Rom 1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignação, quando acusam a Igreja de corromper os documentos para fazê-los servir aos próprios interesses. Isto é, atiram sobre a Igreja aquilo de que a própria consciência manifestamente os acusa.

Dessa desagregação e da disseminação dos documentos pelo decurso do tempo, segue-se naturalmente que os livros sagrados não podem absolutamente ser atribuídos aos autores de quem trazem o nome. E esta é a razão porque os modernistas não hesitam em afirmar a miúdo que esses livros, especialmente o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, de uma breve narração primitiva, foram pouco a pouco se avolumando por acréscimos e interpolações, seja a modo de interpretações teológicas ou alegóricas, seja a modo de transições para ligarem entre si as diversas partes.

Noutros termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evolução vital dos livros sacros, nascida da evolução da fé e correspondente à mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evolução aparecem tão manifestos, que se poderia escrever a história dos mesmos. E chegam mesmo a escrever essa história, e com tanta persuasão que parecem eles mesmos  ter visto com seus próprios olhos cada um dos escritores, que nos diversos séculos estenderam a mão sobre a Escritura para ampliá-la. Para confirmá-lo, recorrem à crítica que chamam textual, e se esforçam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres não se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razões deste mesmo quilate. Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narrações ou alocuções que servem de critério certíssimo para julgar se uma coisa está no seu lugar ou fora dele. Com semelhante método,  julgue quem puder fazê-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos à Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruências, é levado a crer que antes deles ninguém manuseou aqueles livros, e que não houve uma infinita multidão de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.

E para esses sapientíssimos doutores tão longe estavam as Sagradas Escrituras de ter alguma coisa de repreensível que, ao contrário, quanto mais eles as aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos homens. 

Mas é que os nossos doutores não se entregaram ao estudo da Escrituras  com os meios de que se proviram os modernistas! Isto é, não se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negação de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, já estar bem declarado o método histórico dos modernistas. O filósofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo após, por seu turno, a crítica interna e textual. E como é próprio da primeira causa comunicar sua virtude às segundas, claro está que tal crítica não é uma qualquer crítica, mas por direito deve chamar-se agnóstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica. Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão grande aceitação entre católicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro é a aliança íntima que há entre os historiadores e críticos desse gênero, não obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenças; o outro é a incrível audácia com que, qualquer parvoíce que algum deles diga, é pelos outros sublimada e decantada como progresso da ciência; se alguém o negar leva a pecha de ignorante; se, porém, o aceitar e defender, será coberto de louvores. Disto se segue que não poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contágio. Mas passemos ao apologista.

 

O modernista apologeta

Entre os modernistas também este depende duplamente do filósofo. Primeiro indiretamente, tomando para matéria a história escrita  sob a direção do filósofo, como vimos; depois diretamente, aceitando do filósofo os princípios e os juízos. Vem daqui o preceito comum da escola modernista, que a nova apologética deve dirimir as controvérsias religiosas por meio de indagações históricas e psicológicas. Por isso, esses apologetas começam o seu trabalho advertindo os racionalistas de que não defendem a religião com os livros sacros, nem com as histórias vulgarmente usadas na Igreja e escritas à moda antiga; fazem-no, porém, com a história real, composta segundo os preceitos modernos e com método moderno. Assim o dizem, não como se argumentassem ad hominem, mas porque de fato acreditam que só em tal história se acha a verdade. Quando escrevem também não se preocupam de insistir na própria sinceridade; já são bastante conhecidos entre os racionalistas, já foram louvados como combatentes sob um mesmo estandarte; e desses louvores, que um verdadeiro católico deverá rechaçar, eles muito se lisonjeiam e se servem como de escudo contra as censuras da Igreja. Vejamos como qualquer um deles faz praticamente semelhante apologética. O fim que se propõe é de conduzir o homem que ainda não crê, a sentir em si aquela experiência da religião católica que, para os modernistas, é base da fé. Há dois caminhos a seguir: um objetivo e o outro subjetivo. O primeiro parte do agnosticismo, e tende a demonstrar que na religião, especialmente na católica, há tal energia vital, que obriga todo sábio psicólogo e historiador a admitir que na sua história se esconde alguma coisa incógnita. Para este fim é mister provar que a religião católica, qual hoje existe, é a mesma fundada por Cristo, ou melhor, é o progressivo desenvolvimento da semente a que Cristo deu origem. Convém, por conseguinte, antes de tudo, determinar qual seja essa semente. Pretendem eles fazê-lo pela seguinte fórmula: Cristo anunciou a vida do reino de Deus, a realizar-se em breve, sendo ele o seu Messias, isto é, o executor e o organizador mandado por Deus. Depois disto convirá demonstrar como essa semente, sempre imanente na religião católica e permanente, devagar e a passo com a história se foi desenvolvendo e adaptando às sucessivas circunstâncias, assimilando vitalmente tudo o que nas mesmas lhe apresentavam de útil às formas doutrinais, cultuais, eclesiásticas; superando ao mesmo tempo os obstáculos, desbaratando os inimigos, e sobrevindo a toda sorte de contradições e lutas. Depois que todas estas coisas, a saber, os obstáculos, os inimigos, as perseguições, os combates, bem como a vitalidade e fecundidade da Igreja, se tiverem mostrado tais que, conquanto na história da mesma se vejam observadas as leis da evolução, todavia não são bastantes ainda para uma explicação cabal, virá pela frente o incógnito, que se apresentará por si mesmo. Assim dizem eles. Contudo, em todo este raciocinar há uma coisa que não percebem; que aquela determinação da semente primitiva é fruto exclusivo do apriorismo do filósofo agnóstico e evolucionista, e que a própria semente é por ele tão gratuitamente definida, que deveras parece convir à sua causa.

Mas esses apologetas, ao passo que com os referidos argumentos procuram asseverar e persuadir a religião católica, também por outra parte concedem que ela contém muitas coisas que desagradam. E também, com um prazer mal disfarçado, publicamente propalam que também em matéria dogmática encontram erros e contradições; não obstante acrescentarem que tais erros e contradições só merecem desculpas, mas, e é o  que mais se admira, devem ser legitimados e justificados. Assim também nas Sagradas Escrituras, afirmam-no, ocorrem muitos erros em matéria científica e histórica. Mas aqueles livros, acrescentam, não tratam de ciência ou história, e sim de religião e de moral. A ciência e a história ali são meros invólucros, que contornam as experiências religiosas e morais, para mais facilmente se divulgarem no povo; e como este povo não poderia entender de outro modo, não lhe seria vantajoso, porém nocivo, estar de posse de uma ciência ou de uma história mais perfeita. Demais, continuam a dizer, os livros sagrados, porque religiosos por natureza, têm necessariamente a sua vida; a vida também por sua vez tem a sua verdade e a sua lógica, certamente diversa da verdade e da lógica racional, e até mesmo de ordem assaz diversa, a saber: é verdade de comparação e proporção, quer com  o ambiente em que se vive, quer com o fim para que se vive. Chegam enfim a tal extremo, que se abalançam a afirmar, sem a menor restrição, que tudo o que se explica pela vida é verdadeiro e legítimo. – Nós, Veneráveis Irmãos, para quem a verdade é uma e única, e consideramos os livros sacros como escritos por inspiração do Espírito Santo e tendo Deus por autor (Conc. Vat. I De Ver. C.2), afirmamos que isto equivale a atribuir a Deus a mentira de utilidade ou oficiosa; e com as palavras de Santo Agostinho protestamos que, uma vez admitida em excelsa autoridade qualquer mentira oficiosa, não haverá nem uma pequena parte  daqueles livros que, parecendo a alguém difícil de praticar ou incrível de crer, com a mesma perniciosíssima regra não seja atribuída a conselho ou utilidade do mendaz autor (Epíst. 28). E daí resultará o que o Santo Doutor acrescenta: Neles, isto é, nos livros sacros, cada um dará crédito ao que quiser, e rejeitará o que não lhe agradar. Mas esses apologetas não se preocupam com isto. Concedem ainda que nos livros sacros para sustentar uma doutrina qualquer, se acham por vezes razões que não se apóiam em nenhum razoável fundamento; a estes gêneros pertencem as que se fundam nas profecias. Contudo eles também como artifício de pregação, que são legitimados pela vida. Que mais? Concedem, pior ainda, sustentam que o próprio Jesus Cristo errou manifestamente, indicando o tempo da vinda do reino  de Deus; e nem é para admirar, dizem, pois então ele ainda se achava sujeito às leis da vida! – Posto isto, que será dos dogmas da Igreja? Também estes estão cheios de evidentes contradições; mas, além de serem aceitos pela lógica da vida, não se acham em oposição com a verdade simbólica; pois, neles se trata do infinito, que tem infinitos aspectos. Enfim, tanto eles aprovam e defendem essas teorias, que não põem em dúvida em declarar que se não pode render ao Infinito maior preito de homenagens, do que afirmando acerca do mesmo coisas contraditórias!  E admitindo-se a contradição, que é o que não se admitirá?

Além dos argumentos objetivos, o crente pode também ser disposto à fé pelos subjetivos. Para este fim os apologetas voltam-se de novo para a doutrina da imanência. Empenham-se em convencer o homem de que nele mesmo e nos íntimos recantos de sua natureza e de sua vida, se oculta o desejo e a necessidade de uma religião, não já de uma religião qualquer, mas da católica; porquanto esta, dizem, é rigorosamente requerida (postulata) pelo perfeito desenvolvimento da vida. E sobre este ponto nos vemos de novo obrigados a lamentar que não faltem católicos que, conquanto rejeitem a doutrina da imanência como doutrina, todavia se utilizam dela na apologética; e fazem-no tão incautamente, que parecem admitir não somente certa capacidade ou conveniência na natureza humana para a ordem sobrenatural, (o que os apologetas católicos com as devidas restrições sempre demonstram), mas também uma estrita e verdadeira exigência. Para sermos mais exatos, dizemos ainda que esta exigência da religião católica é sustentada pelos modernistas mais moderados. Pois, aqueles que podem ser denominados integralistas, pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele mesmo o gérmen que esteve na consciência de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens. Eis aqui, Veneráveis Irmãos, sumariamente descrito o método apologético dos modernistas, em tudo conforme com as doutrinas; e tanto o método como as doutrinas estão cheios de erros, capazes só de destruir e não de edificar, não de formar católicos, mas de arrastar os católicos à heresia, mais ainda, à completa destruição de toda religião!

 

O modernista reformador

Pouco resta-nos finalmente dizer a respeito das pretensões do modernista como reformador. Já pelo que está exposto fica mais que patente a mania de inovação que move estes homens; mania esta que não poupa absolutamente nada ao catolicismo. Querem a inovação da filosofia, particularmente nos seminários; de tal sorte que, desterrada a filosofia dos escolásticos para a história da filosofia, entre os sistemas já obsoletos, seja ensinada aos moços a moderna filosofia, que é a única verdadeira correspondente aos nossos tempos. Para a reforma da teologia, querem que aquela teologia que chamamos racional, seja fundamentada na filosofia moderna. Desejam, além disto, que a teologia positiva se baseie na história dos dogmas. Querem também que a história seja escrita e ensinada pelos seus métodos e com preceitos novos. Dizem que os dogmas e a sua evolução devem entrar em acordo com a ciência e a história. Para o catecismo, exigem que nos livros de catequese se introduzam só aqueles dogmas, que tiverem sido reformados e estiverem ao alcance da inteligência do vulgo. Acerca do culto, clamam que se devem  diminuir as devoções externas e proibir que aumentem, embora, a bem da verdade, outros mais favoráveis ao simbolismo, se mostrem nisto mais indulgentes. Gritam a altas vozes que o regime eclesiástico deve ser renovado em todos os sentidos, mas especialmente na disciplina e no dogma. Por isto, dizem que por dentro e por fora se deve entrar em acordo com a consciência moderna, que se acha de todo inclinada para a democracia; e assim também dizem que o clero inferior e o laicato devem tomar parte no governo, que deve ser descentralizado. Também devem ser transformadas as Congregações romanas, e antes de todas, as do Santo Ofício e do Índice. Deve mudar-se a atitude da autoridade eclesiástica nas questões políticas e sociais, de tal sorte que não se intrometa nas disposições civis, mas procure amoldar-se a elas, para penetrá-las no seu espírito. Em moral estão pelo Americanismo, dizendo que as virtudes ativas devem antepor-se às passivas, e que convém promover o exercício daquelas de preferência a estas. Desejam que o clero volte à antiga humildade e pobreza e querem-no também de acordo no pensamento e na ação com os preceitos do modernismo. Finalmente não falta entre eles quem, obedecendo muito de boa mente aos acenos dos seus mestres protestantes, até deseje ver suprimido do sacerdócio o sacro celibato. Que restará, pois, de intacto na Igreja, que não deva por eles ou segundo os seus princípios ser reformado?

Crítica geral de todo o sistema

Talvez que na exposição da doutrina dos modernistas tenhamos parecido a alguém, Veneráveis Irmãos, demasiadamente prolixos. Isso, porém, foi de todo necessário, tanto para que não continuem a acusar-nos, como costumam, de ignorar as suas teorias, como também, para que se veja que quando se fala de modernismo, não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser. Por isso, também quisemos servir-nos de uma forma quase didática, e nem recusamos os vocábulos bárbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas. Tão longe se adiantaram eles, como já o notamos, que destruíram não só o catolicismo, mas qualquer outra religião. Com isto se explicam os aplausos do racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de não ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Veneráveis Irmãos, à prejudicialíssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligência está fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ação. Quem não percebe, porém, que isto se afirma em vão? O sentimento corresponde sempre à ação de um objeto, que é proposto pela inteligência ou pelos sentidos. Excluí a inteligência, e o homem seguirá mais arrebatadamente os sentidos pelos quais é já arrastado. Além de que, quaisquer que sejam as fantasias de um sentimento religioso, não podem elas vencer  o senso comum; ora, o senso comum nos ensina que toda a perturbação ou preocupação do espírito, longe de ajudar, impede a investigação da verdade (queremos dizer da verdade em si mesma); ao passo que aquela outra verdade subjetiva, fruto do sentimento íntimo e da ação, quando muito serviria para um jogo de palavras, sem nada aproveitar ao homem, que antes de tudo quer saber se, fora de si, existe ou não um Deus, em cujas mãos há de cair um dia. Recorrem outrossim e com afinco à experiência. Mas, que pode ela acrescentar ao sentimento? Nada, por certo; poderá apenas torná-lo mais intenso; e esta intensidade tornará proporcionalmente mais firme a persuasão da verdade do objeto. Estas duas coisas, porém, não farão que o sentimento deixe de ser sentimento, nem lhe mudarão a natureza, sempre sujeita a engano, se não for auxiliada pela inteligência; pelo contrário, confirmarão e reforçarão o sentimento, pois que este, quanto mais intenso for, tanto mais direito terá a ser sentimento. Como porém tratamos aqui do sentimento religioso e da experiência, que nele se contém, sabeis por certo, Veneráveis Irmãos, com quanta prudência convém tratar esta matéria, e quanta ciência se requer para regular esta mesma prudência. Vós o sabeis, pelo contacto que tendes com as almas, especialmente aquelas em que domina o sentimento; Vós o sabeis pelo estudo dos tratados de ascética que, não obstante serem menosprezados pelos modernistas, contém doutrina mais sólida e mais fina observação do que aquela de que se vangloriam os modernistas. E a Nós, na verdade, parece-Nos ser só de um demente ou pelo menos de um rematado imprudente o admitir, sem mais exame, por verdadeiras, as tais experiências íntimas apregoadas pelos modernistas. Por que será então, dizemo-lo aqui de passagem, que tendo essas experiências tão grande força e certeza, não o possa também ter a experiência de milhares de católicos, quando afirmam que os modernistas vagueiam por um caminho errado? A maior parte dos homens sustenta e há de sempre sustentar com firmeza que, só com o sentimento e a experiência, sem a guia e a luz da inteligência, nunca se chegará ao conhecimento de Deus. Resta, portanto, ainda uma vez, ou o ateísmo ou a absoluta falta de religião. Não esperem os modernistas melhores resultados da sua doutrina do simbolismo. De fato, se todos os elementos, que chamam intelectuais, não passam de meros símbolos de Deus, por que motivo não será também um símbolo o mesmo nome de Deus ou de personalidade divina? E se assim for, bem se poderia duvidar da mesma personalidade divina, e teremos aberta a estrada para o panteísmo. Do mesmo modo, a um puro e simples panteísmo leva a outra doutrina da imanência divina. Pois, se perguntarmos: essa imanência distingue ou não distingue Deus do homem? Se distingue, que divergência então pode haver entre essa doutrina e a católica? Ou então, por que rejeitam os modernistas a doutrina da revelação externa? Se, pelo contrário, não se distingue, temos de novo o panteísmo. Mas, de fato, a imanência dos modernistas quer e admite que todo o fenômeno de consciência proceda do homem enquanto homem. Com legítimo raciocínio deduzimos portanto que Deus e o homem são uma e a mesma coisa; e daqui o panteísmo. Também a distinção que fazem entre as ciência e a fé, não leva a outro resultado. Põem o objeto da ciência na realidade do cognoscível, e o da fé na realidade do incognoscível. Ora, o incognoscível é produzido pela completa desproporção entre o objeto e a inteligência. E esta desproporção, acrescentam, nunca poderá cessar. Logo, o incognoscível ficará sempre incognoscível, tanto para o crente quanto para o filósofo. Se, pois, alguma religião houver, o seu objeto será sempre a realidade do incognoscível; e não sabemos por que motivo essa realidade não poderá ser a alma universal do mundo, como querem certos racionalistas. Isto já é bastante para bem nos certificarmos de que muitos são os caminhos, pelos quais a doutrina modernista vai acabar no ateísmo e na destruição de toda religião. Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o completo ateísmo.

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