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A inspiração

Henri Charlier

 

Quem pode conhecer a Deus? A razão só nos dá a conhecer Sua existência, Sua natureza em negativo e Seu espírito criador de tudo quanto há de bom e belo. Só conhecemos a parte que Ele comunica de Si – o amor. A cada qual seu quinhão, que é bem discreto, tão discreto que ficamos atordoados só em examiná-lo. Discorrer sobre ele então, nem pensar! Mas é justamente o que eu pretendo! Como enaltecer essa liberalidade de bens de que usa conosco?  Só falando podemos transmiti-la, e falando queremos mostrar que esquecemos o principal.

Eis o principal: Deus revelou-se como Trino e Uno. Deu-nos a saber que está acima da razão. Assim, confere-nos um excelente instrumento para que cumpramos na terra a tarefa com que nos assinalou desde o começo: cultivar e guardar. Cultivar? Sim, fazemo-lo bem, pois que nos é necessário. Guardar? Muito mal. Os homens destruíram e destroem espécies inteiras de animais; transformaram em desertos os países onde intervieram sem observar as vocações naturais. Os ratos infestam Madagascar desde a destruição dos aligátores. A pradaria americana podia resistir a dez anos de absoluta seca: mesmo após cem séculos as raízes ainda esmiuçavam a terra; tudo renascia à primeira garoa. Mas desde a implantação das culturas anuais no lugar da vegetação original, o vento carreia as partículas do solo desprotegido e arroja-as ao oceano. O desperdício parece um progresso, mas é o efeito irracional da concupiscência dos bens desse mundo, junto com nosso esquecimento do Criador.

Deitamos a perder os bens ofertados. Mas como guardamos os mandamentos?

Como Eva.

O Criador revelou-se como acima da razão, o Criador da casca de ovo, das algas marinhas, do oxigênio e da sílica é trino e uno. Descartes, quando deduziu o princípio da inércia da natureza de Deus – Que é imóvel – não pensava na Santíssima Trindade, mas sim no Deus dos filósofos e cientistas, um princípio bem à mão, autor de Tudo, mas que quedava imóvel e inofensivo à pretensão desses senhores. Imóvel quer dizer apenas que Deus está acima de todo o exprimível e que nossa mutabilidade não Lhe convém, pois Ele está além da esfera do tempo criado. Ele o vê passar, mas não participa. Não obstante sabemos por certeza e experiência que Deus é vivíssimo e fonte da vida. Nosso conhecimento limita-se à Sua revelação dentro da ação histórica e da explicação que Seu Cristo deu sobre ela.

A filosofia e a ciência sem a Revelação sempre tropeçam no problema do um e do múltiplo e desde Zenão de Eléia e Heráclito tentam resolvê-lo de maneiras diversas e contraditórias, quando não por meios artificiosíssimos, como Pitágoras com os números, dando causa ao desaparecimento das noções espirituais mais elevadas, obnubiladas pela quantidade: o músico Rameau dizia em 1760 no seu Código Musical: “O um é o princípio de tudo – eis a verdade sentida por todos os homens com uso da razão e por nenhum deles conhecida”. Rameau esforçava-se por encontrar tal princípio em sua arte. Não era à toa, já que possuía uma profunda experiência nesse campo (além de uma inspiração superior).

Parece que as artes ágrafas, como a arquitetura e a música, aproximaram-se dessa unidade mais que as outras. Por quê?

Porque as formas coaguladas e indecisas que os conceitos tomam dentro da linguagem tornam-nos pouco qualificáveis, e a forma de sua lógica torna menos perceptível a interdependência das causas, fenômeno este constante e muito pouco notado. A música e as artes plásticas se valem melhor e mormente dos conceitos que a linguagem (sem ter a necessidade de traduzi-las em linguagem nenhuma).

Convém saber que a S.S. Trindade manifesta-se dentro da criação sob forma una e trina, modelo da unidade e da diversidade com as quais as almas se confrontam.

O Livro da Sabedoria (7.24), que os estudiosos datam de dois séculos antes de Jesus Cristo, mostra-nos que já existia uma espécie de idéia estabelecida sobre a natureza insondável de Deus.

“A Sabedoria é a mais destra das coisas ágeis; penetra em tudo e em toda parte introduz-se por virtude de sua pureza. 25. É a aragem do poder de Deus, a emanação da glória do Todo-Poderoso; nada pode maculá-la. 26. É o resplendor da luz eterna, reflexo imaculado da ação de Deus e imagem de Sua bondade”.

Um traço desse mistério revela-se na vida de Abraão (Gen. 18), quando Jeová lhe aparece “próximo aos robles de Mambré, como se estivesse assentado à entrada de sua tenda durante o calor do dia. Ele eleva os olhos e percebe, e eis que três homens estavam de pé diante dele. Ao vê-los, correu à entrada da tenda e, pondo-se defronte deles, prosternou-se em terra, dizendo: “Meu Senhor, se encontrei graças a teus olhos...”. Nesse respeito, aquilo de Santo Agostinho: “Tres vidit, unum adoravit”. A três viu, a UM só adorou.

As religiões politeístas possuíram a mesma intuição, mas deformaram o que receberam: fantasiaram tríades divinas. Essa estimação lhes parecia muito mais razoável.

A Santíssima Trindade não é apenas autora do mundo sobrenatural, da graça e da salvação do homem, a quem chama para habitar em Si, mas também do mundo dito natural, do sol, do vento, do torrão de terra que esmago com meus tamancos e onde vivem, sem que homem soubesse até há pouco tempo, miríades de seres infinitamente minúsculos, que transmudam os elementos que, conforme suas necessidades, lhes caem ao alcance, contribuindo à nossa subsistência.

O mundo tem por autor um Ser livre; revelou-nos que a inteligência racional não Lhe abarca e que criou o homem “à Sua imagem e semelhança” (Gên. 1.26). Daí, a inteligência racional tampouco abarca o homem.

Os filósofos católicos, desde o séc. XIV, esqueceram essa verdade, testemunhando assim uma cegueira formidável. S. Bernardo, em um sermão acerca da Anunciação, diz o seguinte sobre essa questão: “Talvez vós me argüísseis daquela túnica inconsútil que não fora rasgada e sobre a qual se jogaram sortes. De mim, creio fosse a imagem de Deus, que não apenas acompanha mas se imprime desde o começo dentro da natureza, e esta não pode ser dividida nem fracionada. Eis porque o homem é feito à imagem e semelhança de Deus: imagem pela liberdade do arbítrio, e semelhança pelas virtudes comunicadas. Em verdade, o pecado destrói a semelhança, mas a imagem permanece para além da vida do homem – ela poderá queimar no inferno, mas não se consumirá (...). Não se aniquilará jamais, nem se destruirá; é dom gratuito que acompanhará a alma para sempre, onde quer que esta se encontre”.

O homem natural é a imagem de um Ser racionalmente ininteligível, e só Ele o é. S. Paulo assim nos diz na epístola aos Romanos (8.18-21): “Creio que os sofrimentos do tempo presente não se comparam à glória que se deve manifestar em nós. O mundo criado espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus. 20. O mundo tornou-se servo da vaidade, não por seu querer, mas por causa daquele que o subjugou 21. com a esperança de que a criação também se libertaria da escravidão da corrupção, para participar da liberdade da glória dos filhos de Deus”.

Alguns dos primeiros Padres da Igreja viram nessa “criação” apenas a humanidade, mas os versículos posteriores se lhes opõem:

“22. Pois sabemos que a criação inteira sofre as dores do parto até agora”.

Isso talvez signifique que a queda do homem, provocada pela desobediência de Adão, arrastara após si toda a natureza. Mas as buscas dos geólogos e arqueólogos provam-nos que, bem antes do aparecimento do homem sobre a terra (tão distante quanto seja), a natureza estava submetida à vaidade, i. é, à mutabilidade e à corrupção. Os animais devoravam-se e sofriam. Já estavam preparados para a queda de Adão e para as misérias que os homens lhes trouxeram.

Os filósofos, acostumados a viver em gabinete ou a flanar pelo jardim (quando faz tempo bom), resistem instintivamente às palavras de S. Paulo, palavras da Revelação. É comum que nunca tenham vivido entre animais – cavalos, asnos, vacas – que nunca tenham testemunhado o sofrimento e a morte; nunca mataram, limparam, esquartejaram um coelho com o profundo espanto de vê-lo vocacionado para a vida enquanto é imolado, e de tê-lo um como semelhante, se considerarmos a estrutura de ambos (por recurso a imagens). O filósofo não conhece o apego do cão de caça a seu dono, nem do cavalo a seu cavaleiro. Alguns cães recusam abandonar o túmulo do mestre sepultado. Vimos, durante a noite, sob a luz das chamas, o pranto de um cavalo sobre o corpo do mestre. O mestre, um capitão, acabava de ser morto. Jazia por terra sobre uma padiola. Ferindo o solo com seu casco, o cavalo esticava o pescoço, cheirava aquele corpo, reerguia a cabeça e começava tudo de novo: uma estranha comunhão de destinos estabelecera-se entre o homem e a besta. O pensamento de Descartes tem contra si, a começar pelo ponto de partida – o Cogito, não apenas uma filosofia mais sensata, mas a experiência de todos os que conhecem a fundo os animais. Sabe-se que as bactérias auxiliam na formação dos minerais no solo. As flores são da parentela do sol, para o qual se inclinam. Não conhecemos nada da sua sensibilidade; só o que se nos revela são os fenômenos físicos ou químicos, não obstante são seres vivos.

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Não desconfiamos da razão, mas nos servimos dela e tanto, que através dela chegamos a expor até seus limites e inaptidões. A razão é um grande dom de Deus, um instrumento útil da inteligência, além de ser algo a mais, de que ninguém se lembra: é aquilo que os criadores nomeiam de a inspiração, e os filósofos de a intuição.

A inspiração e a intuição não dependem do raciocínio, pois que são Dons. Eles modificam de uma hora para outra o aspecto intelectual de um grupo de conceitos.

Esse fato, geral e comprovado por todos os criadores, é o sinal da ação da Santíssima Trindade na alma humana, ação tanto natural quanto sobrenatural – é o caso da fé. A fé é dom de Deus. Transmite-se ao bebê através do sacramento do batismo, mas qual um germe que se deve cultivar com diligência, regado para que não morra. Beneficia o infante com a abertura de sua inteligência às verdades da fé e com o desejo dessas verdades. É de grande valia que a criança inocente receba-o quanto antes... isso se os pais não esquecerem seu dever.

Esse dom é súbito e manifesto entre os convertidos à idade madura, vide São Paulo; o homem, de repente, vê-se convertido e de inteligência aberta ao que lhe estava escondido. Que seria pois a fé, senão a inspiração divina passando pela inteligência dita natural para ser compreendida? Os filósofos, inclusive os cristãos, resistem com todas as forças a tais constatações. Querem estudar a natureza humana pondo de lado a questão da ação divina. Mas é o mesmo Deus em tudo, trino e uno, a agir conforme Sua natureza; a razão não pode compreender isso; a analogia reina no acordo profundo da inteligência, não a identidade.

A filosofia é o exercício racional das causas intelectuais, como a ciência o é das causas materiais. Aquela tende a esquecer que a inteligência não é só razão. Em um livro excelente, lemos o seguinte: “Sobre a intuição: o apelo à compreensão total das realidades metafísicas realiza-se no exercício de um misticismo em que a razão se arriscaria a perder seus direitos”. É verdade, mas a razão também não se arriscaria a perder seus direitos em face do que conhecemos da natureza divina? dos Evangelhos? de São Paulo? Gregório IX, desta feita, ao comentar sobre os teólogos da Universidade de Paris, escrevia: ne philosophos se ostentent, “que não se considerem filósofos”1.

Ora, o irracional abunda nas ciências. Essa palavra não significa um conceito absurdo ou por demais imbecil para se aceitar. Meyerson a utiliza com freqüência. Aconselhamos os amigos interessados nessas questões a lerem esses livros2. Meyerson, ao explicar a palavra, diz que só a dedução a partir de um princípio é verdadeiramente racional. A indução, utilizada amiúde nas ciências naturais (e fora delas), não é. Quando procuramos adivinhar as intenções de alguém, de um inimigo no campo de batalha, aplicamo-nos ao raciocínio, mas nada é certo; induzimos, mas não deduzimos.

Os fundadores da ciência moderna, como Descartes ou Leibniz, criam que o número daria a inteligência perfeita da natureza, pois que eram matemáticos.

A ciência nascitura perseguia fatos que pareciam bem simples, como a mecânica celeste ou a fratura aparente de um bastão mergulhado pela metade na água. O sucesso divisava-se como evidente. Leibniz declara que “o efeito integral pode reproduzir a causa inteira ou seu semelhante”, e que “o efeito como um todo equivale sempre à sua causa plena”. Em matemática, é bem verdade que duas equações de diferentes formas podem se unir pelo sinal de igual (=) e serem reversíveis. Mas em física? O princípio de Carnot mostra a irreversibilidade do tempo na natureza, pois que não se pode transmitir o calor de um corpo frio a um corpo quente. Eis o irracional. A matemática e a física discordam em diversos pontos, e a luta continua mais encarniçada que nunca. Os cientistas, defrontados com a complexidade dos problemas, andam mais modestos que ao tempo de Leibniz e Descartes.

É curioso ver a ciência mudar os princípios para permanecer racional. Por exemplo, ela acabou de abandonar o princípio de Euclides sobre as retas paralelas. Para mim, tanto faz. Sei que nunca se deduzirá de um princípio as três dimensões do espaço, senão da revelação de que Deus é trino – se já não o fizeram.

A matemática é uma construção da alma humana que não se confunde com a natureza. Nesta, o tudo é continuo e o número é descontínuo. Por isso uma linha tão simples - a diagonal de um quadrado – possui um número incomensurável. A matemática, aplicada à natureza, não pode ser exata.

Já existiu alguma vez um verdadeiro quadrado na natureza? afora aqueles que os primeiros homens traçaram para delimitar um terreno?  Mas os quadrados dos agrimensores primitivos nunca foram perfeitos. A origem da geometria é coeva com a da matemática. A matemática é perfeita, seus desdobramentos racionalíssimos, mas não se aplica com exatidão à natureza. Ora, o cientista só admite como real o mensurável. Ele está enganado, mas é o seu campo de saber: seria tolo negar o escopo desse trabalho.

As discussões entre cientistas comprovam a que ponto podem ignorar as questões fundamentais suscitadas pela forma da alma humana (e até mesmo pela existência dela).

As almas grandiosas entre si confessam de certo modo a percepção do problema. Cuvier escreveu: “todos sabem que a produção da percepção – a ação dos corpos exteriores sobre mim resultando uma sensação, uma imagem – é um problema desde sempre incompreensível; nesse ponto entre as ciências físicas e as ciências morais há um fosso que nem todos os esforços da alma poderão preencher”.

Pasteur, na ocasião da recepção na Academia Francesa, declarou em seu discurso: “Tenho a noção de Infinito como uma expressão inevitável, onde quer que se vá. Por meio dela, o sobrenatural reside no fundo de todos os corações (...). A idéia de Deus é uma das formas da idéia do Infinito; daí vem o mistério do Infinito pairando sobre o pensamento humano, os templos erigidos para Seu culto, e Deus apelidado de Brama, Alá, Jeová ou Jesus. Vereis homens ajoelhados sobre os ladrilhos do templo, prosternados, abismados a pensar no Infinito”.

Pensamentos assim tão ajuizados nesses dois homens não lhes obstou a produção de grande obras nas ciências que estavam chamados a exercer, de acordo com seus dons. Não eram, de fato, matemáticos. Mas um matemático de gênio, Pascal, escrevera sobre os dois infinitos páginas célebres, completando com dois séculos de avanço o pensamento de Pasteur.

O esquecimento desses vaticínios a respeito da forma da alma tira dos cientistas o poder de julgar sensatamente o lugar e os limites da ciência. Esse esquecimento, ademais, lhes confere uma autoridade que contribui para o descaminho da sociedade moderna.

Os estudos da natureza sob o signo da quantidade são bons em si, o método é bom e depende de seu principal instrumento, a matemática, de uso quase obrigatório; o método provém de um desejo escondido na alma humana desde a queda, qual seja, o de explicar o mundo enquanto matéria. Mas a natureza se não submete apenas à quantidade, pois que existem o homem, com sua alma dotada de amor, e a inexplicável consciência do mundo circundante. A ciência só estuda as “relações”, dentro de estruturas limitadas, sem nunca lograr o conhecimento, ou mesmo a busca do Todo. A idéia geral que temos, ou melhor, que fazemos hoje em dia da ciência é falsa, como se ela fosse a solução para tudo – para dar a felicidade (material), suprimir os males (físicos) e comandar a vida. Essa idéia é maléfica para a sociedade atual.

Dos cinqüenta milhões da franceses, quantos se interessam realmente por esse problema? Muito poucos, mesmo que vivam dentro de um gabinete de pesquisa.  Mas se se trata de um novo modelo de faca para churrasco, aí é bem diferente. Dá para se contar nos dedos da mão os cientistas que realmente fazem o progresso da ciência que estudam.

Todo o mundo, até mesmo os cientistas, vivem sob o domínio da qualidade, não da quantidade. O café da manhã está quentinho e farto? A mulher está satisfeita? As crianças comportadas e bem de saúde? A mamãe sabe pô-las nos eixos para obedecer sem dramas? A mulher espera que o marido chegue na hora e cuida para que ele encontre tudo arrumadinho quando chegar: as crianças amorosas e quietas, os narizes assoados, a mulher limpa e cheirosa depois de um dia de trabalho. Ela aspira por utensílios práticos que vão facilitar sua vida. O marido deve entendê-la. Não é questão de quantidade, mas de amor. Como pô-lo em equação? Como fazer disso uma igualdade entre causa e efeito? Reversibilidade existe, igualdade nunca. O marido, econômico, pensa em garantir o sustento. Claro, questões de quantidade vão se misturar aqui e ali, mas dominados pela qualidade de vida moral, que retificará os desejos exagerados ou quiméricos e dará a paz.

O estado atual da sociedade ocidental, próxima da ruína caso Deus não lhe envie alguma luz, demonstra que a predominância das idéias científicas mascara as verdadeiras necessidades da natureza humana. A verdade é que a glória dessas idéias é o resultado do esforço convergente e resoluto, há dois séculos, dos inimigos da civilização cristã. Hoje vemos o resultado: elas são uma chaga para a alma humana; a sociedade inteira sofre desse mal em cada uma de suas partes, e vai se apodrecendo.

Por isso acreditamos na utilidade de voltar a atenção para a inspiração, fato mais das vezes despercebido, visto que a razão busca se aproximar dela para parasitá-la; a razão não entende a inspiração, assim como a muitas outras coisas dentro da ordem do mundo.

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Sabe-se que Bérgson atraiu a atenção dos filósofos para essa possibilidade de a alma receber, sem intermédios, pensamentos que conduzirão a razão e não serão conduzidos por ela. Alcunharam-no de antiintelectualista, posto que sua obra testemunhe uma grande e raríssima inteligência, de um método severo até à estreiteza. O Sr. Étienne Gilson disse que “Bérgson, sob a alcunha de inteligência, percorrera tão-somente o processo da razão, ou mesmo da razão privada de inteligência” (mesma obra, p. 187). O método seria verdadeiro se se pudesse recortar a realidade como se recorta os conceitos. Para maior prazer, citemos: “A verdade é que existe um certo racionalismo, inimigo do intelecto e incapaz de compreender a vida, ao qual se opunha Bérgson, mas essa oposição não é a inteligência. Ela é a luz simples do intelecto que, para circular entre os objetos, difrata-se em razões. Na França atual, todas as noéticas tomistas só logram a alcunha de intelectualistas e tomistas se perpetram o esforço de remeter à inteligência os privilégios de que Bérgson cumulou a intuição”.

A luz simples do intelecto é o laço misterioso entre Deus e a alma humana. Sem a fé, essa luz permanece sempre um mistério, aguilhoando até ao final dos tempos os espíritos racionais que desejam controlar a verdade... Mas aí estão os fatos: todos os criadores sabem-se devedores de uma inspiração, seja a fé, sejam as idéias que dirigem suas ações ou sua vida. O termo intuição, empregado pelos filósofos, quer dizer visão. Ela é uma imagem captada de modo a construir, excluindo a sucessão, uma representação; a dedução racional implica a sucessão. A inspiração é uma visão aparentemente instantânea, embora prolongue-se e se desenvolva. Os agraciados sabem em que se apegar. Eu penso que todos a recebem. Pessoas bem simples, não necessariamente cristãs, comprometeram toda sua vida em virtude de uma inspiração que nunca souberam distinguir com clareza ou que nunca confessaram. Muitos indivíduos que negam a inspiração, em aparência inteligentíssimos, no mais das vezes ficam inchados devido à acumulação de conhecimentos intelectuais adquiridos, dos quais são incapazes de se libertar. Eis o risco da instrução generalizada nas civilizações antigas. O número de espíritos superiores não aumentara em relação às civilizações primitivas, mas o crescimento do número de instruídos obstava a ação daqueles. Assim é que se originam as decadências.

Passemos agora aos exemplos fáticos do que tentamos destacar. A ação de Deus, como veremos, diz respeito a todas as ações humanas, e entre essas, às premissas da Revelação.

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Santo Agostinho diz nas Retratações (1.13): “O que hoje chamamos de a religião cristã já o era outrora; desde o começo do gênero humano, ela jamais deixou de ser”. A vontade de Deus sempre foi salvar os homens; Ele os criara à Sua imagem e semelhança. Diz S. Bernardo: “A imagem é o livre arbítrio, a semelhança as virtudes teologais; as virtudes teologais ou a semelhança perdem-se com o pecado, mas a imagem ou livre arbítrio permanece”. Os homens sempre puderam dizer SIM OU NÃO. Temos, entre exemplos históricos nem tão longínquos, os trágicos gregos.

O pecado original obsedava esses grandes homens; chamavam-no de Fatalidade. Os pecados sucedem-se uns aos outros, e ninguém pode se libertar deles sozinho, senão pela graça de Deus. Se se está na ignorância desta necessidade, a sucessão dos pecados parece fatal, em nós e entre nós.

Vejam aqui a inspiração de Ésquilo: na sua Trilogia, Agamêmnon sacrificara a filha Ifigênia, para obter ventos favoráveis e atingir a cidade de Tróia, a ser conquistada. Após dez anos, venceu. Sua esposa, contudo, não perdoando o marido, tomou para si nesse ínterim um amante. Agamêmnon deixou de existir. É a primeira peça. Na segunda, o filho de Agamêmnon, Orestes, tornando-se adulto, quis vingar seu pai e retomar o controle da cidade. É encorajado pela irmã, tratada como doméstica na casa dele. Orestes mata o intruso e a mãe. Eis a sucessão de crimes. As Fúrias, chamadas por Ésquilo de “velhos deuses”, perseguem Orestes e exigem-lhe o sangue.

A solução encontra-se na terceira peça. Ésquilo, cuja juventude era coeva à batalha de Maratona, mescla amiúde a seus mais profundos dramas testemunhos de amor à pátria, de que Atenas era a deusa tutelar. Acreditava-se que Atenas era filha de Zeus, pai dos “novos deuses” segundo Ésquilo;ela é o pensamento divino; nascera da cabeça do pai completamente armada. A deusa havia constituído um novo tribunal, o Areópago, para julgar o argivo Orestes, sobrevivente a várias tentativas de assassinato. Se as pelotas brancas e pretas se equivalessem em número, Orestes seria absolvido. Era um costume ateniense, bastante piedoso. Ésquilo considerava-o de origem divina. Os juízes votam, e também Atenas; ela põe na urna uma pelota branca e depois começa a contagem... As pelotas brancas e negras se equivalem! Mesmo sendo culpado, a bola branca do pensamento divino absolve Orestes! Apagada a culpa, escapa à fatalidade.

Pertencer à Igreja é, em essência, crer na salvação que vem de Deus; o “gigantesco Ésquilo”, como diz Péguy, é quase um profeta.

Vamos agora a Sófocles, que no Édipo Rei exibe outro aspecto da fatalidade. O rei é inocente, apesar dos vários crimes contra a natureza, visto que os cometeu sem o saber. Ele matou o pai e desposou a mãe. O rei de Tebas, o pai, predissera-o, por isso deu seu filho a um pastor montanhês para que este se livrasse da criança. O pastor, atemorizado e comovido por semelhante tarefa, simplesmente educou a criança como um filho de pastores, escondendo sua origem. Aos vinte anos, o jovem vigoroso e inteligente deseja conhecer o país.  Encontra-se em um desfiladeiro estreito com o pai, que por um gesto ríspido ordena-lhe o recuo. Altercação! Uma bastonada! Eis o rei morto. Édipo vai de encontro ao monstro que aterroriza o país, e o mata. Libertada de seus temores, Tebas declara-o rei; desposa a rainha. O drama vai se desenrolando em um crescendo até Édipo descobrir que é assassino do pai e marido da mãe! A mãe entrega-se a morte, Édipo fura os olhos. Que tipo de culpa tem a fatalidade?

Essa é a inspiração que leva Sófocles a escolher o drama. O sentir de Sófocles não se engana, pois que na peça seguinte Édipo – cego, perseguido pelos filhos, conduzido por sua filha Antígona – foge da cidade de Tebas; ele adentra um bosque sagrado, em Colônia, no território de Atenas, e ali morre, depois de predizer que sua tumba seria uma proteção à cidade que a acolhesse. Teseu, o rei de Atenas, em meio à espessura do bosque sagrado, é o único a testemunhar a morte misteriosa. Revela-se aos filhos de Édipo, dizendo: “Jovens mancebos, secai vossas lágrimas! Não se deve lastimar aqueles cuja morte constitui a mercê de todos”.  

O coro canta: “Após tantas desventuras imerecidas, que o Deus justo compadeça-se de ti”.E Teseu, no momento da morte de Édipo, “prosterna-se e adora a Terra e o Olimpo divino”. A morte desse homem de dores é um bem para Atenas.

Sófocles considera Édipo uma vítima inocente, expiação do mistério da fatalidade; a posse de sua tumba é glória e proteção.

Quase todos os autores dos grandes poemas épicos ou trágicos remetiam a um tempo diferente do seu, para evitar as futilidades contemporâneas e os pensamentos em voga que estragam a inspiração profunda3. O desastre da retirada de Carlos Magno nos Pirineus, originando a canção de Rolando, deu-se cerca de três séculos antes que o poeta escrevesse o conhecido poema. Os átridas da trilogia de Ésquilo viveram, muito provável, ao tempo de Moisés. Encontraram suas tumbas em Micenas. Seus costumes, por bárbaros que eram, provocaram os acontecimentos que permaneceram na memória dos povos. Homero, o cantor da guerra de Tróia, surgiu trezentos anos depois de Agamêmnon; o poeta era contemporâneo de Salmanassar, rei da Assíria, e do profeta Amós.

Ésquilo e Sófocles todavia não podiam expor suas idéias no teatro sem submeter-se às concepções religiosas da época, de que talvez eles mesmos partilhassem, já que era hábito grego a fantasia mítica. Platão e Aristóteles são bem mais influentes que nossos pretensos pensadores. Não obstante os dramaturgos versaram sobre os grandes problemas da humanidade muito antes, levados pela inspiração; esses problemas se resolveram definitivamente quatrocentos anos depois, com o advento de Jesus Cristo. Os artistas inspirados, não os filósofos, propuseram as questões por meio de parábolas, como Nosso Senhor, e vislumbraram a solução. Os filósofos por sua parte abandonaram o caminho percorrido pelos dramaturgos.

Aristóteles nasceu quando da morte de Sófocles, e escreveu sobre a tragédia, não vendo nela senão a imitação dos conflitos morais com a finalidade de “purgar as paixões”. Corneille, em seu Second discours sur la tragédie, em que estuda com honestidade e boa-fé todos os conselhos do Estagirita e faz a delícia dos pedantes, diz sobre esse assunto: “Essa compaixão... nos comove (fala d’O Cid e de Ximena) mas não sei se nos dá o temor, nem se o purga (pelo excesso de amor); temo que o raciocínio de Aristóteles seja aqui tão-somente uma bela idéia, cujos efeitos não se dêem de verdade (...) Um dos intérpretes de Aristóteles quer que ele tenha falado da purgação das paixões pela tragédia, pois que escrevia depois que Platão banira os poetas trágicos de sua República, dado que estes os perturbassem profundamente. Como o Filósofo escrevia para contradizê-lo e demonstrar a desnecessidade de os banir dos Estados bem vigiados, quis encontrar-lhes nas agitações da alma essa utilidade, tornando-os recomendáveis pela razão mesma que o outro fundamentara-se para bani-los.”

Corneille considera a admiração como a finalidade de sua arte. No próprio Cid, o amor é honra e a honra amante do amor. Ele alça assim a arte ao seu legítimo lugar, a contemplar as maravilhas da Criação, da graça e do soberano bem. Esclarece:

“A exclusão das personagens virtuosas e desgraçadas baniu os mártires do teatro. Polyeucte triunfara sobre essa máxima. Heraclius e Nicomedes também, apesar de só nos inspirarem a piedade; eles não nos proporcionam o temor, nem a purgação das paixões, pois que vemo-los oprimidos e dispostos a morrer sem terem cometido nenhuma falta de que possamos tirar exemplo para nossa correção.”

É certíssimo dizer que em regra os filósofos não compreendem as artes – sobretudo as musicais e as plásticas, que se fazem entender sem tradução – não obstante considerem-se como que especialistas do universal. Pascal confessa sua inaptidão frente às artes plásticas quando diz: “Quão soberba é a pintura, admirada por ser semelhante a objetos que não admiramos!” Perscrutava facilmente as parábolas da Santa Escritura e não compreendia as da pintura. O perfeito equilíbrio das formas; a qualidade do desenho e sua tensão interna, tensão esta que é a causa da existência; a perfeita harmonia do caso concreto – tudo isso vislumbrado nos contornos de uma bilha e de um molho de alho-porro: eis toda a filosofia.

Sócrates não se saia melhor ao falar de arte. Ele preparava as lições (vejam o terceiro livro da Memorabília) e depois dizia aos discípulos: vamos a Parrasius. Com Parrasius, aprendiam o que era a pintura, e com Cliton como agia o escultor ou como planejava o arquiteto. O artista, esmagado por aquela lógica, devia de dar com ombros tão logo a porta se fechasse após os visitantes. Sócrates concebia a arte como uma psicofisiologia, quando em verdade a grande arte é uma metafísica – parabólica, sem dúvida – da linguagem. Sócrates conduzia suas questões como um mero sofista. Os artistas o detestam e o conhecem somente por suas afirmações mais ousadas ou pela opinião comum. Aristófanes é um bom exemplo disso. N’As Nuvens, sua primeira peça, esse jovem desejoso em combater as falsas idéias dos sofistas tomou Sócrates como seu judas. Sua descrição de Sócrates é inteiramente fantástica e contrária a seu modelo, que só era sofista quando falava do que não conhecia (como ai! cada um de nós, naquilo que não conhecemos). O erro de Aristófanes explica a crescente opinião que redundou então na condenação do sábio – em verdade, por uma pequena maioria de trinta votos entre quinhentos juízes. Talvez houvesse muitos preconceitos políticos por trás disso. Xenofonte, na Memorabília, nos diz: “Mas, por Júpiter – vociferava o acusador – ele excitava o desprezo às leis estabelecidas, dizia ser loucura a escolha dos magistrados através das favas, sob o argumento de que ninguém gostaria de lançar à sorte a escolha de um piloto, de um arquiteto, de um tangedor de flautas, enfim, de homens que não governam a República e cujos erros são bem menos perniciosos.”  Conheciam-no como entusiasta das constituições de Esparta e de Creta. Os nove arcontes que deviam governar Atenas eram eleitos ao acaso. Assim também os quinhentos membros do tribunal que julgaram Sócrates, entre os cidadãos com mais de trinta anos de idade. O pensamento socrático não era democrata.

Nas escolas apresentam Sócrates como o primeiro grande racionalista. Ora, isso é falso, pois que terminou sua vida vítima de uma inspiração divina, de que dão fé todos os textos autênticos. A juventude está sendo enganada: Sócrates sem dúvida era um homem sábio, inimigo dos excessos, e também piedosíssimo como era de estilo. Ele mandou Xenofonte consultar o oráculo de Delfos quando este mancebo quisera participar da expedição de Ciro contra o irmão. “Eis – diz Xenofonte – como usava com seus amigos: incitava-os a realizar da melhor maneira possível tudo quanto chegasse a um bom termo; mas, se a empresa lhe parecia duvidosa, remetia-os à divinação (...)”Racionalismo singular. Dizia ainda: “O que planta um pomar e o que erige com destreza uma morada ignoram quem habitará essa morada, quem colherá os frutos desse pomar. Chamava de insensatos os que não vislumbravam nesse conhecimento algo de divino, e insensatos os que consultavam os deuses sobre conhecimentos de nossa própria incumbência”. Sócrates cria na Providência e desfrutava da conversação divina que, como veremos, fez a sua grandeza.  Assim fala Xenofonte no início da Memorabília: “Ele dizia e insistia por todo lugar que um gênio vinha-o inspirar; eis a razão por que o acusaram de introduzir novos deuses.” Quem não se comove ao imaginar que naquela mesma cidade, quatro séculos depois e a dois passos dali, S. Paulo tentava anunciar aos atenienses o Deus Desconhecido!

Sócrates falava segundo seu espírito, dizendo-se inspirado por um gênio. Que vocês acham que poderia ser, minha gente? Não é claro! era simplesmente seu anjo da guarda. Todos os homens possuem o seu, desde o animista das florestas impenetráveis do Equador, o pagão, até o cristão. Como a Revelação não estava consumada – “o tempo ainda não era chegado” –, o anjo limitava-se a impedi-lo no que poderia prejudicar sua missão. Xenofonte explica: “Conforme os sinais de seu gênio, alertava amiúde os discípulos sobre algo a se fazer ou a se abster; quem o acreditava, lucrava; quem o desprezava, lamentava”.

Ora, o anjo levou Sócrates a sacrificar a vida.

Sócrates pudera escapar sem problemas, antes do processo e durante o mês que se passara entre a condenação e a execução. Os senhores de Atenas quiçá o desejassem, mas ele não o queria de modo algum.

Xenofonte, n’A Apologia, dá-nos a notícia de que Hermógenes censurava Sócrates por não preparar sua defesa diante do tribunal: “Pois bem – replicou Sócrates – juro-to, já por duas vezes tentei preparar um discurso para minha defesa, e por duas vezes se me opôs o gênio”. E diante do tribunal:“Seria isso introduzir novos deuses, ou dizer que a voz dos deuses me prescreve o que devo fazer? (...) A esses sinais dão o nome de augúrios, vozes, prodígios. Eu os nomeio de inspirações de um gênio ou de um espírito divino (...) Apesar de muitas vezes anunciar a meus amigos suas ordens e vontades, nunca me ocorreu de os fatos desmentirem minhas palavras”.

Platão, que também assistiu ao julgamento, escrevia três ou quatro anos depois a sua Apologia de Sócrates, o melhor documento do processo. Sócrates declara aos seus quinhentos juízes: “Donde vem que eu não ousava dar os conselhos meus perante o povo e toda a cidade? Eu os tirava, como vós amiúde escutáreis por toda a parte, da manifestação de um deus ou espírito divino que se produzia em mim (...) Essa voz é algo que me acompanha desde a infância, quando se dera a escutar, desviando-me sempre que ia fazer alguma coisa, mas nunca incitando-me a agir. Eis o que me impede de me imiscuir em política.”

Essa voz, que o impediu de preparar a defesa antes do processo, é a mesma que, pela boca de Jesus, ordenava aos setenta e dois discípulos: “Envio-vos como cordeiros em meio aos lobos. Quando vos encontrardes frente aos magistrados e autoridades, não vos inquieteis de como vos defendereis nem o que direis, pois que o Espírito Santo vos ensinará na hora mesma em que for necessário dizer” (Lc. 12, 11). Deus, com toda razão, desconfia da razão humana, logo, que eles se deixem inspirar pelo Espírito Santo.

Ora, Sócrates afirma ter uma missão e possuir uma ciência, a ciência do homem:

“Não te envergonhas de cuidar da tua fortuna para aumentá-la até ao limite, nem da tua reputação, nem das tuas honras, mas se se trata da tua razão, da verdade, do aprimoramento contínuo da tua alma, não te preocupas nem te incomodas.

“Mas a mim a divindade mos prescreveu como dever, através dos oráculos, dos sonhos e de meios que até hoje nenhuma potestade divina se valera para prescrever algo a um homem. (Apologia 33 c.)

“Assim sendo, não é a mim que defendo, como poderíeis crer, já que temo que, ao me condenar, vos tornareis culpados de depreciar o dom da divindade.

“Refleti: se me matardes, não encontrareis facilmente outro homem, ligado a vós pela vontade dos deuses, para vos animar (...).  Creio que o Deus me fizera estar nessa cidade para exercer esse ofício, por isso não cesso de vos animar, de vos exortar, de morigerar a cada um de vós, obsedando-os por todo lugar desde a manhã até à noite”. (Apologia 33 c.)

A releitura atenta das declarações de Sócrates, noticiadas por Platão, desperta-nos para sua semelhança com a visão de Pascal. Sócrates também deslumbrava a vaidade das pesquisas científicas e mundanas. Acerca disso, Xenofonte (Memór. 1, 1):

“Diferente da maioria dos filósofos, ele não amava a arenga sobre a universalidade dos existentes, nem a busca da origem daquilo que os sofistas chamavam de mundo, nem o estudo das leis dos fenômenos celestes; provou ser loucura o entregar-se a tais especulações. Antes, considerava se eles haviam aprofundado o bastante os conhecimentos humanos para que se dedicassem a tais matérias, ou se criam legítima a renúncia do que é do homem para tratar do que pertence aos deuses”.

Agora, Pascal:

“Dediquei muito tempo ao estudo das ciências abstratas, e desgostou-me imenso as poucas respostas que se pode obter delas. Quando comecei o estudo do homem, percebi que as ciências abstratas não são próprias ao homem, e que mais me admirava o conhecimento da minha condição que a ignorância alheia dessa mesma condição: perdoei-lhes o seu curto entendimento. Acreditei não obstante ter encontrado companheiros nesse estudo, o único propriamente humano. Mas enganei-me, pois que até o estudo da geometria possui mais adeptos. Não é por carência de saber que só se busca o não humano”.

Sócrates e Pascal são atualíssimos, ainda que poucos se dêem conta, pois que é provável nunca tenhamos visto tamanho abandono na busca do que é verdadeiramente o homem. A pesquisa orienta-se ao que nos une aos animais, ao mesmo tempo que toda a admiração volta-se às ciências naturais; o homem vangloria-se das suas descobertas a ponto de esquecer suas misérias. Essas ciências estão sempre a se corrigir, a se aperfeiçoar, e a cada aperfeiçoamento abre-se um novo abismo de mistério. Sempre será assim, porque não se conhece Tudo, porque o Criador é Trino eUno; querem submeter Sua obra à uma invenção própria da alma humana, à matemática, sistema lógico da quantidade. O número não está na natureza, esquiva à quantidade; não há duas folhas semelhantes em uma mesma árvore, uma vez que em seu seio existe uma como consciência de homem, inexplicável e imensurável. Valem-se do número em combinações cada vez mais requintadas para se aproximarem mais dos fenômenos, com a finalidade de agir sobre a natureza: até aí, tudo bem. Deus deu esse poder em primeiro lugar aos cristãos como herança, e antes de tudo como permissão para se deslocarem facilmente pelo tempo e espaço, e evangelizarem o mundo inteiro. Mas o esquecimento do estudo do homem incapacita-os ao correto uso dessas invenções engenhosíssimas e agradáveis ao espírito.

A sociedade rebaixa-se à pura animalidade, ao passo que adquire um poder imenso sobre a natureza. A corrupção da juventude, entregue à libertinagem como cães (estes, pelo menos, possuem um instinto que os excitam apenas em certas épocas do ano), e a corrupção dos adultos, ávidos pela liberação do aborto, testemunham esse momento. Tais crimes culminam na morte das civilizações que a praticaram.

Eis a que leva o orgulho e o esquecimento da lei natural, cuja extensão e caráter todas as sociedades buscaram conhecer por meio de seus melhores espíritos. A razão pura consegue alcançar essa lei, conquanto a graça seja necessária para completar aquela e iluminar o homem de qual seja seu fim último. Sócrates conheceu a lei natural tão-somente pela razão. Intuía o que seu bom anjo transmitia. A Igreja reconhece que Deus operou milagres no mundo pagão para conservar a crença em Deus.

A ciência de que muitos se gabam, apesar de incapazes de praticá-la (em geral, os cientistas são mais humildes), é mais das vezes ilusória. Aterrissamos na lua guiados pelas leis de Newton. Mas não raro não sabemos o que é a gravitação. Conviria à alma abarcar Tudo para compreender isso. O mundo é finito ou infinito? O infinito não é uma noção positiva, mas a negação do finito. Não podemos compreendê-lo. As leis de Newton são adequadas, como todas as leis científicas, para um mundo artificial e posto à parte. Newton acreditava em estrelas fixas, e possuía uma tabela de referência para os cálculos; mas poderiam notar que as estrelas se movem, que o sol está mais próximo de um outra estrela. Não existem mais tabelas de referências fixas. Um jovenzinho de 24 anos, Einstein, quis resolver o problema, e a resolução era a lei da relatividade. Se no céu nada é fixo, todos os movimentos são relativos uns aos outros. Vá atrás deles, pois!

Mas Einstein não era apenas grande cientista, mas também um espírito superior, pois que escrevera (no final de sua carreira, sem dúvida):

“As proposições da matemática não são exatas, na medida em que se relacionam com a realidade; elas são exatas, na medida em que não se relacionam com a realidade. A perfeita inteligência desse assunto só se tornou lugar comum graças à tendência conhecida sob o nome de axiomática.”

Traduzindo, considera-se que o sentido das noções primitivas, dos axiomas e dos postulados usados em matemática são puras convenções para estreitar ao máximo os limites dos fenômenos naturais. Estes escapam à nossa ciência, a qual é um meio astuciosíssimo para se valer daqueles fenômenos; tais fenômenos possuem um não-sei-quê de indeterminado, cuja origem é o Seu autor, a Santíssima Trindade, e que escapa à razão. Por isso a analogia é um desejo de unidade na semelhança, que não é similitude completa, nem igualdade numérica ou identidade.

Os matemáticos pertencem, segundo Pascal, ao espírito de geometria, em oposição ao espírito de fineza, a que pertence a metafísica e todas as suas nuances. O novo e atual ensino das matemáticas foi concebido para eliminar da inteligência da juventude toda inclinação ao espírito de fineza. O antigo ensino da aritmética primária, da regra de três, propiciava a formação lógica em matérias em que o erro é impossível ou fácil de se resolver. Era excelente para treinar o uso rigoroso da razão no espírito de fineza. O novo ensino não pode senão brutalizar as crianças. O autor dessa reforma não tem a menor idéia das suas conseqüências pedagógicas, tanto é assim que quer todas as crianças usando calculadoras de bolso!

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*  *

A antiguidade transmite-nos exemplos grandes e memoráveis da inspiração dos artistas e pensadores. O papel de Sócrates é ímpar, mas, em comparação aos autores trágicos, não se aproximou tanto da questão essencial, qual seja, como o homem se libertará do pecado. Não era sua missão anunciar uma salvação. Não obstante não se recusou a dar a vida como prova de fidelidade ao gênio bom que o aconselhara desde a infância. Estava bem próximo à verdade quando disse que uma pessoa maligna é um ignorante. Mas ignorante de quê? Do conhecimento natural ligado a só razão? Sim, sem dúvidas, mas também das verdades da Revelação, pressentidas pelos trágicos.

O tempo, o público e o lugar forçavam Ésquilo e Sófocles a apresentar suas inspirações religiosas revestidas dos mitos pagãos. Sócrates, que sentia os mitos como nós os sentimos, deixou-nos não uma obra, mas sua morte por exemplo. Não poderia duvidar da ação de uma influência exterior, uma vez que ela o impedia amiúde de fazer sua vontade e o preparava para o que desse e viesse. Todos os grandes espíritos daquele tempo admitiam isso, e admiravam-se do seu sacrifício e grandeza d’alma. Xenofonte é uma fonte segura, mas era homem de ação. É possível que Sócrates não lhe deixasse transparecer seu pensamento sobre a religião do tempo. Talvez Platão fosse seu confidente, mas o que ele atribui a seu mestre nos diálogos posteriores à morte deste ultrapassa em muito o que talvez se dissera; como os fiéis testemunhos de Xenofonte confirmam, Platão acrescenta [às palavras do mestre] sua dialética insuportável, imitando o próprio Sócrates (conforme o costume da época); contudo, vale-se muito mais dos sofismas: esconde a mudança de sentido das palavras, elimina as conclusões esperadas, o que é bem visível desde o primeiro diálogo, o Eutifron.

Péguy dizia quase isso: os gregos não tinham os deuses que mereciam. Tudo bem, mas aí havia uma intenção divina, qual seja, a inacreditável mediocridade de sua mitologia cambiante pesava à sua elite e preparava a aceitação da verdadeira fé. Foi o que fizeram. O Novo Testamento se escreveu na sua língua, e os primeiros Padres da Igreja eram gregos. Além disso, os gregos separaram deliberadamente a religião e as artes mágicas. Não era impossível que ainda existissem algumas dessas artes em mistérios como os de Elêusis, mas o ignoro, e penso que o que se sabe não é grande coisa. Houve entre eles uma evolução religiosa, em que os deuses das populações mais antigas (os pelasgos, por exemplo) com os quais estavam em contato, aos poucos deram lugar aos dos gregos recém-chegados. A absolvição de Orestes, segundo Ésquilo, é a vitória dos novos deuses sobre os antigos. Estes eram deuses subterrâneos ou deuses de vingança  ou da terra nutrícia. O estranhoPrometeu, de Ésquilo, chega a anunciar a queda desses novos deuses.

Os gregos também desligaram a arte e a magia. Os escultores egípcios não eram inferiores aos melhores gregos; chegamos mesmo a preferi-los em muitos pontos: eram menos naturalistas. Contudo suas obras, tão logo prontas, ficavam à sanha dos sacerdotes, que praticavam neles os ritos da abertura mágica das orelhas, dos olhos etc.. para que a efígie se transformasse no “duplo” da personagem representada.

Os hebreus por isso rejeitavam toda representação plástica. Os gregos tornaram viável a arte cristã libertando-a daquelas práticas.

Temos provas de que os autores dos desenhos encontrados na gruta de Vézère praticavam a magia. Podemos concluir dessa curiosa aventura que os artistas possuíam uma situação privilegiada nessa sociedade, por causa de sua aptidão em desenhar os objetos desejados. A magia é o começo inocente da ciência. Ela é uma tentativa de, através de instrumentos humanos, agir sobre a natureza, fazendo a chuva cair ou controlando a caça. Os espíritos maus, de que estão cheias as Escrituras, logo fizeram o renome desses instrumentos mistificadores, e deformaram a oração em magia, cuja eficácia apresentou-se como mais efetiva. Sempre se soube que até em Paris praticara-se a magia.

Existem em nossas grutas, guarnecidas de milhares de pinturas e gravuras, verdadeiras obras de arte que honrariam qualquer grande artista. Na gruta de Font-de-Gaume existe um rinoceronte de cerca de 70 cm de comprimento, uma perfeição artística. Um dia não o vi mais, e perguntei onde ele estava. Sacaram uma chave e abriram a grade: ele estava protegido dentro de um cubículo estreito, pois que se apagaria sem essa proteção. Considera-se que sua origem remonta aos mais antigos habitantes, da época aurinhacence.

Percebi que a mulher que nos introduzia nessas passagens estreitas era apaixonada por aqueles pintores de 40 séculos atrás. Pobre, maltratada pela vida, recebera instrução daquele tempo e daquela obra. Ela estava muito mais próxima da verdade que os arqueólogos que desrespeitavam as ossadas dos antigos homens. Estes possuíam uma alma capaz de idéias semelhantes às de Ésquilo e Sócrates, e ela não duvidava disso!

As verdadeiras obras-primas são sempre raras. O autor do rinoceronte de Font-de-Gaume talvez só se sentisse destro com o pincel à mão. Mas Pascal e Platão já deram provas de que não compreenderiam nada dessa pintura. O artista antigo fornecera-nos a prova da existência, naquela época, de espíritos superiores... tão limitados quanto nós somos, seja à maneira de Sócrates, seja à de Pascal, seja à nossa.

Mas quão mais resplandecente se torna o amor de Deus aos homens se se constata que Jesus quis nascer numa gruta em tudo semelhante aos abrigos primitivos de nossos longínquos ancestrais! A Sagrada Família se protegia do frio rigoroso do mal tempo junto com seus animais. Maria poderia talvez abster-se da viagem a Belém, se pensarmos que o jovem casal vinha de Jerusalém, ou permanecer em Nazaré, no seio de sua família. José não estava obrigado a levar sua família por ocasião do recenseamento. Parece que Maria sentira a iminência do nascimento de seu primeiro filho, e lembrara-se da profecia de Miquéias sobre Belém. Nada melhor, em meio à multidão transbordante, que encontrar um asilo calmoso e retirado para dar ao mundo, sem testemunho da virgindade, o mais belo filho dos homens.

Mas este não é o momento de contemplar o grande acontecimento, cantado em uma infinitude de canções por todas as nações cristãs (contudo, proibidas nas escolas francesas). Demonstramos, por exemplos claros, o papel da inspiração no mundo antigo, e até mesmo o que poderíamos chamar de seu papel profético. Encontra-se ela em Ésquilo, Sófocles e Sócrates, [divulgando] os paternais influxos de Deus sobre a humanidade e sobre a Revelação próxima de Sua insondabilíssima Trindade.

Mas de qual meio se vale Deus para comunicar as revelações, e até mesmo as graças, para que o homem, [antes do Reino da Graça], soubesse tão rapidamente que recebeu luzes exteriores? Ele fá-lo senão por meios naturais, obrando na natureza humana. Ainda que o indivíduo tenha consciência de não haver jamais pensado no que acabara de subitamente concluir, ou mesmo que sempre haja pensado ao contrário [da luz recebida], a inspiração realiza-se em meio às faculdades naturais, apesar de seu objeto e sua força terem a natureza preclara dos dons. A inspiração pode ser natural somente. Os egípcios honravam o arquiteto Imotep como a um deus. Ele fora o primeiro-ministro de um dos faraós do Antigo Império, construíra as pirâmides e provavelmente inventara os sistemas de proporção, utilizados até que a suposta Renascença deixaram-nos de lado4. Via-se nele inspirações de ordem natural, mas de natureza metafísica. A metafísica manifesta-se, nesse arquiteto, através daUnidade na diversidade, além de se articularem em todos os seres da criação.

A aventura de Imotep repete-se em Descartes, posto que Descartes não tenha sido tão feliz, por querer fazer demonstrações além do razoável. La Fontaine, um espírito superior, apesar de ser um homem limitado, deu-se ao trabalho de escrever uma fábula para combatê-lo:

Descartes, o mortal feito deus soberano

Entre pagãos, e que tem o arcano

Do homem e da alma, é p’ra nosso povo

O recheio da ostra, não vale um ovo...

Gostaria que meus leitores relessem o Discours à Madame de la Sablière (Fábula 188). Eles dizem respeito ao exame das coisas mais humildes a partir das mais excelsas:

A alma é o que nos torna ativos;

Eu ignoro porquê, mas somos vivos;

Só de Deus nós tiramos tal lição;

Mas se for p’ra falar de coração,

Descartes não saiu dos livros.

Descartes não ignorava que a dociliade à inspiração era o grande instrumento dos poetas; vemos inclusive em seu próprio exemplo um meio de continuar nosso empreendimento, qual seja, demonstrar que a Santíssima Trindade inspira nos homens, obrando na natureza e para além da razão, pensamentos cheios de instrução, utilidade e governo, conforme suas profissões e meios de expressão.

Ignora-se amiúde, e às vezes parece que querem escondê-lo, que a carreira de Descartes começa por uma noite de sonhos. Contava então 23 anos. Recebera a inspiração da unidade da ciência, a qual ambicionava provar pela veracidade divina. Jacques Chevalier resume sagaz e inteligentemente essa idéia. Descartes relata esses sonhos em seu escrito Olympica (termo que significava as coisas divinas), hoje perdido, mas consultado e resumido por um de seus mais antigos biógrafos. Começava por uma data, 10 de novembro de 1619, com as seguintes palavras: Cum plenus forem enthousiasmo et mirabilis scientiae fundamenta reperirem – “Estava possuído de entusiasmo para descobrir os fundamentos de uma ciência admirável...”.

Logo depois, descreve o primeiro dos três sonhos que tivera àquela noite e a interpretação que lhe dera (p. 42 da relação juntada por Jacques Chevalier). Depois, adormece, tendo refletido durante duas horas a respeito dos bens e dos males desse mundo. Teve um segundo sonho, no qual cria haver escutado o ruído agudo e estrondoso de um raio. Segundo ele, o susto que tomara significava os remorsos da consciência pelos pecados, e o raio a intervenção divina do Espírito da verdade.

Indo dormir com essa idéia na cabeça, tivera um terceiro sonho, em que lhe apareceu dois livros: primeiro, um Dicionário que, segundo ele, “queria significar tão-somente o conjunto de todas as ciências”; em seguida, um Corpus poetarum que “acentuava em especial, de maneira singular, a união entre a filosofia e a sabedoria”. Temos aqui a tradução do texto de Descartes: “Não acreditava ser nada demais, nem motivo para espantos, que alguns poetas, inclusive os mais pândegos, fossem autores de ditos sentenciosos mais razoáveis e claros que os vistos nas obras dos filósofos. Atribuia tal maravilha à divindade do entusiasmo e à força da imaginação, que faz brotar as sementes da sabedoria (encontradiças na alma de todos os homens, como as fagulhas nas pedras) com agilidade e brilho muito superiores aos dos filósofos”.

Em agradecimento às luzes recebidas, Descartes “fez o voto de ir em peregrinação à pé até Nossa Senhora de Loreto; se lhe faltassem forças para submeter-se a essa fadiga, comportar-se-ia ao menos com a maior devoção e humildade possíveis, bastantes à satisfação da promessa” 5.

Nesse florilégio de poetas que em sonho se lhe mostrou, Descartes lera um poema de Ausone, em que se encontravam estas palavras:

Quod vitae sctabor iter?

Est et non.

Que caminho da vida seguirei?

O que é, o que não é.

Os versos o encorajam a só seguir a verdade. Podemos crer que a inspiração lhe revelou a unidade da metafísica e da ciência. O divórcio entre a ciência e a metafísica estava em processo naquele tempo. Descartes era muito piedoso, como o demonstram os fatos precedentes; também era muito dado às matemáticas. Vislumbrou na inspiração o laço entre Deus e a ciência natural. Soube ele interpretar o primeiro sonho a contento? Duvidamos. Eis o letra da Olympica:

“Ele se via andando pela rua, forçado à inclinar-se para o lado esquerdo a fim de manter o equilíbrio, quando um vento impetuoso, num repente, arrastou-o violentamente à igreja do colégio, onde costumava ir para fazer suas preces... Voltou sua atenção sobre essa imagem, e sentiu na mesma hora uma dor pungente, a qual fê-lo temer a intervenção de um gênio maligno que talvez quisesse seduzi-lo e se dedicasse a arrojá-lo por força para um lugar onde seu desejo naturalmente o conduziria. Nesse instante, inclina-se para o lado direito e dirige uma prece a Deus, O qual não permitira – pensava ele – fosse ele arrastado, ainda que para um lugar santo, por um espírito que Ele não enviara”. (J. Chevalier, p.42).

Não é certo que meditasse desde então o cogito, ergo sum, contudo necessitava em muito de que o poder de Deus o empurrasse para a Igreja, antes mesmo que pudesse se valer – por ocasião dessa dúvida generalizada – dos grandes espíritos que a Igreja dera ao mundo.

Não sabemos qual era o seu pensamento exato, pois que nos deparamos ainda no mesmo tratado (Olympica) com uma nota marginal de Descartes, datada de 11 de novembro de 1620, 365 dias depois de seus famosos sonhos. Disse: Coepi intelligere fundamentum inventi mirabilis. “Começo por compreender o fundamento dessa invenção admirável”.

Durante todo aquele ano, diligenciara por concretizar a inspiração recebida, para encontrar um método de dar ao pensamento filosófico e científico uma certeza absoluta. Tem-no os matemáticos, mas por que deduzem de principios puramente racionais. Era esse então o método que Descartes quisera impor à filosofia. Contudo, Deus é amor, diz S. João. O amor não se mede nem se deduz, tampouco a consciência humana e a criação. O ponto de partida é a “existência”, não o pensamento. Ele se desorientou ao destruir por sua dúvida o laço entre o pensamento e a extensão.

Não é segredo que a “ciência admirável” de Descartes resultava da união entre a metafísica e as ciências naturais. Comprova-se isso do modo como quer deduzir o princípio físico da inércia: “Primeira lei da natureza: cada coisa permanece em seu estado presente enquanto nada a modifique”. Pois (como diz) Deus não é sujeito à mudança e sempre opera de forma igual.

Segunda lei: que todo corpo que se move tende a continuar o movimento em linha reta. “Essa regra como a precedente depende da imutabilitade de Deus”.

Infelizmente, pode-se dizer que o cogito, ergo sum, erigido em base de sua filosofia e de sua física, é interpretado às avessas. Como razoar o “penso, logo existo” sem verbo mental, sem lembrar das palavras em latim ou em português. As palavras são formadas de sons. Os sons têm duração. O mundo inteiro revela-se nelas, assim como o pensamento. Não há meio de escapar ao realismo, tanto quanto Marfurius, o filósofo cético de Molière, não pode escapar à vara de Sganarelle (O Casamento Forçado).

O erro que se seguiu, origem do idealismo, deu à luz a ciência moderna e permitiu que a extensão fosse entregue inescrupulosamente à matemática pura, relegando o que era alheio à quantidade – a alma e o pensamento. Embora útil, a imagem de mundo dada pela ciência é sem dúvida falsa.

A inspiração segundo Descartes seria pois falsa? Não era, mas Descartes afobou-se para o lado que o levava suas quailidades de matemático. Deus inspirava os métodos da ciência a um cristão para ofertar o mundo aos cristãos para evangelizá-lo.

Hoje em dia, não cremos mais na matemática à moda de Descartes. Prova-o o modo como a entende Einstein, o qual citamos mais acima. Deve-se pensar tudo novamente, mas partindo da certeza de que a Santíssima Trindade é autora de um mundo estranho e rebelde às medidas quantitativas.

Ele é tão rebelde que fora mister inventar novas geometrias, novas matemáticas para se lhe aproximar.

Esqueçamos todavia aquilo que não se pode medir. A razão é bem um instrumento excelente à disposição da inteligência, mas que só funciona a contento a partir de princípios seguros. A Revelação as confere [ao homem] e a inspiração apresenta suas implicações à inteligência.

Descartes viveu há três séculos. Pode-se medir no estado atual das almas a influência desastrosa que seu pensamento teve na história. Certamente ele abriu os portais à ciência moderna, e nisso bem obedecia à sua inspiração. Mas a fornada de filósofos dogmáticos acendrados no seu método dispensaram-lhe a metafísica para se dedicarem, uns à ciência e à razão, outros à dúvida sistemática: a glória da humanidade! Aprendi no liceu que Descartes renovara a questão filosófica a um ponto que a filosofia antiga jamais imaginara. Não posso dizer que acreditava nisso, pois que sempre amei história da Idade Média, em que se expunha numa espécie de impaciência indiferente a filosofía da época. A busca do sentido dos conceitos interessava muito meu espírito virgem aos 13 ou 14 anos. Aprendi ali a pensar no pensamento das grandes almas. Não poderia desprezar o saber daquela época, cuja arquitetura por sua vez manifestava tamanha grandeza de pensamento e invenção. Desta feita, com dezessete anos, fiquei chocado ao ler no Discurso do Método a leviandade com que Descartes trata de problemas de metafísica, e esse desgosto marcou tanto que nunca mais me preocupei em ler o seu verdadeiro pensamnto, menos ainda os seus grandes sucessores. Acreditava que não partiam do real. Eis um sinal dessas reflexões: eu tinha um professor de filosofia egresso de uma distante faculdade provinciana, que pediu ingresso no ensino secundário de Paris; ele amava música, mas fonógrafo ainda não existia. Estava privado de música; para que a pudesse ouvir, pediu transferência e a obteve para uma vaga em um liceu de Paris. De quinze em quinze dias, ele tratava de alguns interesses no bairro em que eu morava, e me pedia para acompanhá-lo. Percorríamos o caminho tranquilamente em ¾ de hora, falando de música ou de outra coisa. Um dia, eu lhe disse: “Senhor, eu encontrei o motivo dos erros dos filósofos!” Escutei a voz um tanto irônica e condescendente de sempre: “Ah!” (eh, ih) “Pois bem, é que em vez de partir das coisas, partem de seu pensamento”. Ele parou de repente e me respondeu vivaz: “Mas eles não seriam filósofos se não partissem do pensamento deles!” Fiquei espantado da minha burrice. Constatei que eu era um completo imbecil, visto que já havia observado aquilo nas ciências naturais. Na época o éter era o grande recurso, mas para mim não passava de uma perna de pau. Nunca entendi como os corpos celestes pudessem atrairem-se uns aos outros através do Nada; que as forças agissem em meio ao Nada. O professor, todos os meus colegas achavam aquilo tudo muito natural. Logo eu era um imbecil. E eis que em filosofia era a mesma coisa. Tentei compreender e me tornei kantiano. Levei depois uns dez anos para me livrar disso.

Isso comprova como um erro pode se apoderar de uma alma e permanecer por longo tempo; nossos contemporâneos se afligirão de muitas dificuldades para se livrarem dessa influência.

Eu é que estava certo! Conto essa historinha para mostrar como o erro de uma ou duas almas pode se impor durante séculos e séculos a muitas inteligências – não superiores, mas boas, doces, que nunca tiveram inspirações ou que as negaram no nascedouro, como eu tentei fazê-lo depois da resposta de meu professor.

É dificil conseguir sair disso. A sociedade como um todo se ressente dessa dúvida fundamental, que torna nossos contemporâneos estranhamente impotentes para enxergar os princípios fundamentais de toda a sociedade, da natureza humana – levando-os mesmo a destruir a família.

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Quão espantoso é assistir aos filósofos católicos sustentarem que a intuição sensível dos objetos exteriores não é de modo algum equivalente à certeza intelectual da realidade de sua existência!

Uma jovem vai dentro em pouco pôr uma criança no mundo. Ela o sente repuxar dentro nela. Ela e ele são ambos o mesmo sujeito. Ele nasce e separam-no dela, pois que até então era o mesmo sangue que os alimentava, mãe e criança. Esta chora com maior ou menor força, franqueando desta feita pela primeira vez o ar para seus pulmões virgens.

Pois bem! Sua mãe permanecendo sujeito, o bebê torna-se objeto. Duvidará ela da existênia desse objeto exterior? Esse objeto pode ser tão-somente um “simples fenômeno físico”? Carece ela de um silogismo para crer em sua existência? O leite brotante oprime a mãe; ela experimenta esse fenômeno físico e oferece o seio ao filho. A criança não se amofina ao ver-se em contato com um novo objeto. Mama no seio da mãe e reclama-o de novo.

Essa criança é individualista? Não parece. Sem dificuldades toma o seio. Ele é partícipe em uma sociedade misteriosa e necessária, fundada no amor, na concepção da criança – o nascimento, o porvir. Amam-no com candura, e é certo que os métodos científicos não possuem meios de dar conta disso.

O que está em causa nisso tudo é a concepção de alma. Se ela é, conforme ensina a Igreja, a formado corpo, existe desde o momento da concepção. Talvez seja uma alma forte e sensivel em um corpo cheio de obscuras e longinquas taras familiares, ou uma alma fraca e molenga em um corpo são, o qual deve conduzir. Mas é ela que anima a sensibilidade, a percepção e também a inteligência. S. Tomás repondia a isso – penso eu – quando disse: “Propriamente falando, nem o sentido nem a inteligência conhecem, mas sim o homem através de um e de outra”. (De. Ver., citado por P. Sertillange.)

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Certamente ainda há abundância de mistérios. Como os homens podem ser tão cegos, a ponto de não se darem conta do quão pouco sabem? Seria mister saber Tudo para compreender a menor das coisas; há-de se ter muito orgulho para ignorar que nunca saberemos tudo. Na outra vida não faremos caso de não sabermos tudo, já que permaneceremos unidos ao Criador conforme nossas possibilidades.

A vida ainda é um mistério: os fatos se dão no corpo como se de nada soubéssemos. Alimentamos o corpo de forma consciente: nossa alma é ainda o que governa, pois que a origem dos excessos e o controle da saúde vem dela. Mas a digestão – o funcionamento harmonioso do conjunto – resolve-se sem nós.

É bem verdade que todas as almas que informaram esses corpos no correr das gerações tem suas responsabilidades pelas taras apresentadas. Só há uma abertura nesses mistérios: a que se vê na doutrina do pecado original. Não é uma doutrina isolada que se transmitiu de um clã semítico para a religião cristã. Lemos em uma obra acerca de esculturas africanas: “Os Balouba vieram do sudeste, provavelmente do Zambéze Central no início do séc. XVI... Balouba quer dizer “povo de Louba”. Louba é o pai fundador do grande império legendário da África; seu nome significa doente, falta, erro”. Eis então um povo conhecido há menos de cem anos e que se chama a si “povo da falta, ou do erro, ou da doença”.

Hesíodo, um contemporâneo de Jeremias e dos últimos dias da Assíria, tinha o hábito de contar pela Grécia o mito de Pandora, a mulher dada ao homem para perdê-lo – isso duzentos anos antes de Sócrates. Ela abriu por curiosidade a caixa onde Zeus trancara todos o males e a morte. Quando Pandora fechou a caixa novamente, só restava ali a esperança. Essa é uma tradição antiqüíssima e não circunscrita a nenhum território.

Os honoráveis pagãos gregos viram mui bem o problema e deram-se conta de que tão-somente a divindade poderia nos arrancar à fatalidade da falta. Sócrates julgou (por obra da graça) a necessidade de oferecer a vida para confirmar sua missão – a de despertar seus concidadãos do sono dos prazeres, dos negócios e das riquezas, sono este em que nossos coevos também estão mergulhados, visto que os filósofos retiraram por meio de suas fantasias toda trincheira, todo limite, toda direção.

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Voltemos a Descartes. Ele só pode duvidar do mundo exterior depois de estar bem seguro em seu “casulo” e, ao fazer isso, desorientou o pensamento moderno. Mas era um espírito poderoso, e ainda que se protegendo, duvidasse de seu “casulo”, nunca duvidara de sua inspiração, ou melhor, de inspirações. Não é possível negá-las os que tiveram-nas a sério. Vejam o que ele escreveu ao marquês de Newcastle em 1648:

“O conhecimento intuitivo é uma ilustração da alma pela qual se vê à luz de Deus os objetos que a Ele apraz revelar por meio de uma impressão direta da claridade divina sobre nosso entendimento, o qual aí não se considera como agente, mas só como paciente dos raios da Divindade... Poderíeis duvidar de que nossa alma, quando desapegada do corpo ou junto a ele glorioso e imarcescível, não possa receber tais ilustrações e conhecimentos diretos, já que nesse corpo os sentidos lhe comunicam os objetos corporais e sensíveis e a nossa alma já goza da benevolência do Criador, e que sem sentidos e sem alma seria o corpo incapaz de raciocinar? Acredito que a mistura presente no corpo obscurece a ambos, mas apesar disso eles nos dão um conhecimento primitivo, gratuito, certo e que goza de maior confiança de nosso espírito que de nossos olhos. Vós não me afiançaríeis pois estar menos seguro da presença dos objetos visíveis que da verdade dessa máxima: penso, logo existo? Ora, esse conhecimento não é obra do vosso raciocínio, nem instrução dada pelos vossos mestres: vossa alma vê-la, sente-a e manipula-a e, apesar de vossa imaginação dimimuir-lhe a claridade por mesclar-se importunamente em vossos pensamentos, ela vos é todavia prova da capacidade de nossas almas receber de Deus conhecimento intuitivo”.

Pensamos que o marquês de Newcastle tinha convicção da presença dos objetos que se lhe apresentavam aos olhos (assim como nós e também Descartes), pois ao início dessa mesma carta, fala como um realista. Como interpretar de outro modo: “Visto que neste corpo os sentidos lhe oferecem os objetos corporais e sensíveis”? Como poderiam eles fazê-lo sem a alma inteligente que Descartes insiste em isolar – recorrendo ao Cogito mal delimitado, quando o poderia bem delimitá-lo. Descartes todavia estava mais concentrado em poder aplicar o método científico a todo o extenso, e por isso em isolar o extenso do que não o fosse – o pensamento, a alma e Deus. Esse projeto revela-se desde o início do Discurso: “Regozijo-me sobretudo nas matemáticas, devido a certeza e evidência de seus raciocínios, mas não percebera ainda sua verdadeira aplicação e, pensando que elas só serviriam às artes mecânicas, surpreendi-me de que, tendo fundamentos tão firmes e sólidos, não se houvesse erigido sobre eles nada de maior excelência”.

A inspiração era pois concepção da geometria analítica e seu emprego generalizado em toda ciência para explicar o Universo. Algo de real valor. Ele deu-lhe as bases no final da segunda parte do Discurso: “Prometi a mim aplicar também com proveito (o método científico) às dificuldades das outras ciências, a exemplo do que fiz com as da álgebra (...) Mas percebedo que os princípios (das demais ciências) tomar-se-iam de uma filosofia em que eu nada via de seguro, pensei antes do mais estabelecer um novo fundamento, e isso seria a tarefa mais importante do mundo, mas como o maior risco estaria na precipitação e na prevenção, não deveria eu pretender lográ-la senão a uma idade mais madura do que aqueles meus 23 anos de então, e senão quando houvesse antes de tudo empregado tempo bastante para preparar-me para tal missão (...), exercitando-me com afinco no método que me prescrevi com o fim de me firmar nele mais e mais”.

Logo, tem-se a certeza de que o Cogito não faz parte da famosa inspiração, mas tão-somente a astúcia decisiva que lhe permitiu deduzir a metafísica como se deduz as propriedades do triângulo. Mas o método torna-se inútil fora do domínio da quantidade. Outra passagem do Discurso confirma essa afirmação. Descartes diz: “Esses noves anos se passaram antes que eu houvesse começado a buscar os fundamentos de uma outra filosofia mais segura que a vulgar...”.

A intervenção do cardeal de Bérulle fê-lo finalmente decidir-se. Durante uma reunião na casa do núncio em Paris, em novembro de 1628, Descarte foi convidado a refutar algumas afirmações filosóficas temerárias. Ele dizia que “não acreditava na impossibilidade de estabelecer na filosofia princípios mais claros e seguros, pelos quais seria mais cômodo descobrir a causa de todos os efeitos da Natureza”. Nessas palavras, citadas por seu primeiro biógrafo – o padre Baillet – vemos a que ponto lhe tomava a mente a confusão dos métodos, ou antes o desejo de unificá-los.

Bérulle sentiu-se na presença de um verdadeiro pensador; pediu-lhe que fosse vê-lo e obrigou-o em consciência a trabalhar naquele projeto. Vejam como Descartes decidiu-se em fixar suas idéias filosóficas para escrever o Discurso do Método. Retirou-se em Holanda para ficar tranqüilo – e o Discurso apareceu em Leyde em 1637.

O método científico de Descarte conquistou – e com razão – o universo. Esperava explicá-lo, mas como se poderia esperar o mistério permaneceu. Sua filosofia caiu rapidamente em desuso, dexando após si um grande vazio. Os filósofos que lhe sucederam tentaram preencher esse vácuo com fantasias sem bases objetivas, as quais constituiram-se em desgraça da humanidade.

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Possuímos outro exemplo confesso de inspiração, tomadado entre cientistas, a exemplo de Descartes: Claude Bernard, o fundador da fisiologia moderna, é outro a descrever seu método e pôr à luz o papel da inspiração.

Seu livro “Introduction à l’étude de la médicine expérimentale” é bastante conhecido, mas não a coleção de notas reunidas sob o nome de Philosophie; ao contrário, busca-se até mesmo escondê-la um pouco, como se faz com o sonho de Descartes.

Claudes Bernard nasceu em 1813 nos vinhedos de Beaujolais, numa família modestíssima. Amava a sua terra natal, e morreu na casa em que nascera. Ele tornou-se aos 16 anos empregado de um farmacêutico em Lyon, onde começaram as dúvidas sobre a terapêutica em voga. Compôs um vaudeville, que se encenou. O sucesso deu-lhe coragem para escrever um drama em cinco atos e um canto: Arthur de Bretagne.

Dirigiu-se a Paris para apresentá-lo a St-Marc-Girardin, que o aconselhou a continuar seus estudos e “fazer medicina”, pois que sua inclinação o conduzia para lá. Ele se convenceu disso – era o início de sua carreira científica.

Todos os jovens com idéias precipitam-se a correr atrás delas, negligenciando o resto. Claude Bernard não foi exceção. Em um escrito de juventude, diz: “Suportar a ignorância é a minha filosofia, tenho a tranqüilidade da ignorância e a fé da ciência (...) Eu sou paciente (...) Busco conhecer as relações”.

Vê-se claramente que ele perdera a fé e possuía uma idéia exata da ciência na qual militava com audácia juvenil. Ele foi nomeado membro da Academia de Ciências em 1854, logo após descobrir a função glicogênica do fígado. Contava 41 anos. Só conhecemos os princípios da formulação de seu pensamento por seus escritos posteriores – quando teve tempo de escrever. A doença lho deu. Ele adoeceu por ocasião de uma pequena epidemia de cólera (1865), levando 18 meses para se recuperar um pouco. Durante os dois anos passados em seu Beaujolais natal que ele escreveu o livro célebre “Introduction à l’étude de la médicine expérimentale”, e um caderno de notas intitulado Philosophie, descoberto e publicado muito tempo após sua morte por Jacques Chevalier6.

As notas nasceram da leitura de uma história da filosofia seguida da primeira lição de filosofia positiva de Augusto Comte. Ambas completam e apuram o que se diz na “Introdução”. O progresso espiritual é evidente. Devemos contudo dar uma visão geral de seu pensamento, para melhor compreender o que diz sobre a inspiração. Ele nunca deixou de ser um cientísta escrupuloso e apegado aos métodos da ciência experimental, que por força é determinista. Eis seu pensamento:

(fragmento 9): “A matéria não existe, a força não existe; o que existe é a relação da matéria para com o fenômeno, no sentido de que a relação é um determinado em absoluto. A ciência reduz-se ao determinismo da relação da matéria para com o fenômeno, i. é, da condição de existância do fenômeno. A idéia de força logo não passa de aparência, de uma personificação do fenômeno”. (...) O absoluto encontra-se pois na relação.

Eis o pensamento profundo de um homem de quem não escaparam os limites da ciência, e que por si mesmo fê-la dar grandes passos por um método explicado em todos os detalhes. Compreendeu o papel da lingua, quando a maioria dos filósofos ignoravam tal necessidade. Acontece o mesmo em todas as ciências: as palavras, figurando os conceitos, têm a tendência de personificar como uma força os fenômenos que descrevem e mensuram. Os corpos em queda revelam-nos velocidades cada vez maiores. Medimos o tempo na longuidão do caminho percorrido pela agulha de um relógio. Constatamos e mensuramos diferenças de velocidades em uma progressão regular. E a ciência vos diz: “a aceleração é constante”. As diferenças de velocidade tornam-se uma presução: “a aceleração”felizmente é constante. É essa a tendência em reencontrar a unidade na diversidade? A tradução de uma simples fórmula algébrica? Não sou capaz de sabê-lo. Tais reflexões apenas visam pôr em evidência a profundidade dos pensamenos de Claude Bernard.

Vejam suas idéias sobre o método da ciência (1ª parte da introdução, cap. VII):

“Disso que foi dito, resulta que, se o fenômeno se apresentasse em uma experiência com aparência contraditória, se não se ligasse de modo necessário às condições de existência determinadas, a razão deveria repelir o fato como não científico. Dever-se-ia então aguardar ou buscar por meio de experiencias diretas qual a causa do erro que se intrometeu na observação. Houve aí certamente erro ou insufuciência na observação; a admissão de um fato sem causa, i. é, indeterminável em suas condições de existência, é pura e simplesmente a negação da ciência. Deste modo, na presença de tal fato, um cientista não deve nunca hesitar, mas acreditar na ciência e duvidar dos meios de observação, buscando por seus esforços sair da escuridão; nunca contudo lhe deve ocorrer a idéia de negar o determinismo absoluto dos fenômenos, pois que é precisamente o sentimento desse determinismo absoluto que caracteriza o verdadeiro cientista”.

A precião da linguagem e do pensamento de Claude Bernard é tão grande que poderiam apodar-lhe de “Indeterminado”, o que é justo, mas a ciência talvez determine um dia o que ainda não o é. Assim, não faz mais de 10 anos que Keryran pode provar a transmutação dos elementos químicos por meio de quantidades ínfimas de energia nos corpos dos animais. Não há traço de calcário no interior de um ovo de galinha. A casca fica intacta, até a saída do pintinho – e o pintinho sai munido de todos os seus ossos. Esse é um daqueles fatos indeterminados do tempo de Claude Bernard. Todavia, o cientista inglês Prout em 1812 publicava suas pesquisas sobre ovos em incubadora, e constatava neles a presença do quádruplo da quantidade de calcário, se comparados à época que estavam fora da incubadora. Ora a casca permanecia intacta. O cientista inglês concluiu que o calcário obtinha-se na transmutação de um ou vários elementos. Ele tinha razão, mas para Claude Bernard era um fato sem causa e indeterminável. Parece que ignorava os trabalhos de Prout. Como não ser determinista em ciência, em que se estuda apenas as causas materiais mensuráveis?

Por trás do “determinável” de C. Bernard havia a teoria química de Lavoisier sobre os elementos e as massas, tomada como um princípio imutável. Mas ela era mutável... Contudo, Claude Bernard conhecia muito bem os limites da ciência, já que dizia: “Quando concebemos uma teoria geral em ciência, só estamos certos de que todas elas são falsas, se as consideramos de modo absoluto. São apenas verificações parciais e provisórias”.

Mas, ao se falar das citações precedentes – desta última e de outras semelhantes – acreditaram, ou antes, quiseram erigir Claude Bernard em luzeiro do cientismo de seu tempo. Isso não é bem assim, como vamos observar. Ele já concebia o que Einstein escreveria um século mais tarde: “Nosso conhecimento é hoje em dia mais vasto e profundo que o do físico do séc. XIX, mas nossas dificuldades e dúvidas são também maiores”.

Ademais, no milagre quase instantâneo como o que curou em Lourdes a perna de um empregado da estrada de ferro acidentado, todos podem admitir o determinismo dos meios naturais empregados: 10 cm de osso faltante reconstituíram-se em um instante. A rapidez é o sinal da vontade exterior desconhecida. As células ósseas deveriam cumprir seu trabalho natural e habitual de elaboração e transmutação, mas com rapidez desacostumada e para nós vertiginosa.

Claude Bernard, em um artigo da Revue des Deux-Mondes, datada de 1º de setembro de 1864, mais de um ano antes de cair doente, escreveu:

“A natureza do homem leva-o a buscar as causas primeiras e finais (...) mas se devemos excluir da ciência a busca das causas primeiras e finais, isso não quer dizer que excluiremos o sentimento e a natureza humana. O lado sentimental é a parte fundamental do homem; isso nunca vai se acabar, felizmente. É o que chamamos de fé, de coração. Não podemos conceber nem o começo nem o fim. Só conseguimos captar o meio das coisas – eis aí é o domínio da ciência”.

Note-se que Claude Bernard lia Pascal; as expressões sentimento e coração vêm do vocabulário próprio de seu grande predecessor na ciência experimental.

O assunto é estudado sobretudo no cap. II da Introdução, cujo §1º tem por título: “Les vérités expérimentales sont objectives et extérieures”. Ali expõe sua oposição à matemática, a qual qualifica de “verdades subjetivas” que decorrem de princípios cujo espírito é “consciente e provocam o sentimento de uma certeza absoluta e necessária (...) daí resulta que os princípios ou relações uma vez encontrados são aceitos pela alma como verdades absolutas, i. é, independentes da realidade (...) Mas se em lugar das relações subjetivas cujas condições são criadas por sua própria alma, o homem quiser conhecer as relações objetivas da natureza que não criou, de imediato revela-se a carência do critério interior e consciente (...) Faltam-lhe condições para conhecer a natureza das relações. Deveria pois haver criado essas condições para lhe possuir o conhecimento e a concepção absoluta”.

De forma geral, é o pensamento desta grande alma, que quiseram comparar – para lhe aproveitar a glória – com os numerosos cientistas modernos. Citaremos agora mais um parágrafo, cujo título é: L´’Intuition ou le sentiment engendre l’ídée experimentale.

“Dissemos acima que o método experimental apoia-se sucessivamente sobre o sentimento, a razão e a experiência.

“O sentimento gera a idéia ou a hipótese experimental, i. é, a interpretação antecipada dos fenômenos da natureza. Toda iniciativa experimental mora na idéia, pois que esta é que provoca a experiência. A razão e o raciocínio só servem para deduzir as conseqüências da idéia e para submetê-las à experiência (...) A alma humana não pode conceber efeito sem causa, isso porque a visão de um fenômeno desperta-lhe sempre uma idéia de causalidade (...)

“Considerando uma certa observação, não há regras estabelecidas para o cérebro criar a partir dela uma idéia justa e fecunda que seja para o experimentador uma como espécie de antecipação intuitiva da alma em direção a uma pesquisa bem sucedida. Dada a idéia, pode-se apenas prescrever como se deve submetê-la aos preceitos definidos e às regras lógicas e precisas, dos quais todo experimentador está informado; contudo, seu aparecimento é espontâneo e sua natureza, individual. A idéia é um sentimento particular, um quid proprium que constitui a origininalidade, a invenção ou o gênio de cada um.

“...Há mesmo casos em que um fato ou observação permanece por muito tempo diante dos olhos do cientista sem inspirar-lhe; logo, como de golpe, vem-lhe uma réstia de luz e a alma interpreta o fato mui diferentemente de outrora, divisando nele relações inauditas. A idéia nova aparece com a rapidez do raio, uma como revelação súbita, provando que neste caso a descoberta mora em um sentimento pessoal, mas que é ao mesmo tempo relativo ao estado atual da alma”.

“O método experimental não vai dar idéias novas e fecundas àqueles que não as têm... O método em si não cria nada, sendo o erro de certos filósofos conferir poderes criativos exagerados ao método”.

Eis o pensamento de Claude Bernard sobre a inspiração. É a mesma idéia que os artistas fazem dela (os que as têm). Não haverá mais espanto se toparmos dentro de seu caderno de notas denominado Philosophie os seguintes pensamentos:

(fragmento 44) “O estado positivo não destruirá o estado teológico; serão apenas apartados um da outro, e isso é tudo. Mas todas a vezes que quisermos remontar às causas primeiras, dever-se-á recorrer ao estado teológico. Ora não acho que se possa suprimir essa tendência do pensamento humano, pois que sempre haverá o desconhecido. Nunca se conseguirá levar a humanidade à renúncia das idéias que a levam mais além (...)

“A Ciência detém-se nas causas próximas dos fenômenos; a busca pelas causas primeiras não é o seu domínio.

“Em um fenômeno vital, há uma causa primeira legislativa e diretriz que é permanente, de natureza físico-química, e cai no domínio da experiência. Ora o determinismo só se aplica às causas segundas”.

A prova de que ele vai até ao cerne da metafísica encontra-se nessa simples reflexão do caderno de notas Philosophie (fragmento 7): “O homem sente, crê e raciocína; mas sobretudo ele sabe que sente, crê e raciocína”.

(fragmento 14) “Tudo se resume a uma questão de sentimento: quem duvida, duvida contra a própria vontade; quem acredita, acredita contra a própria vontade. O raciocínio surge apenas como tentativa de provar o que se sente. Para isso, há-de se haver graça, i. é, sem ela o homem não é livre para mudar”.

É bem verdade que S. Bernardo acrescentaria: seu livre arbítrio esta em consentir ou não.

“No cientísta, a ciência desenvolve a inteligência e mata o coração, do mesmo modo que sufoca o senso teológico, ao fazer-lhe renunciar as causas primeiras”.

(fragmento 48) “De fato, o estado positivo como o compreende Comte é o reino do racionalismo puro, o reino do raciocínio e a morte do coração. Isso é impraticável. Homens assim afeitos à ciência são monstros morais. Atrofiaram o coração às custas da cabeça.

(fragmento 53) “O erro de Comte está em crer em tudo que há de positivo. Imagina banir a metafísica ao admitir generalidades científicas, as quais chama de positivas – de forma alguma. Todas as teorias científicas são abstrações metafísicas. Os fatos em si são abstrações (Chevreul)”7.

Podemos observar nas citações que, como Descartes, Claude Bernard reconheceu a realidade da inspiração involuntária, mas ele inteirou-se muito melhor da originalidade do método filosófico: este parte do ente, que compreende o espírito e a consciência; aquele parte da quantidade pura, cuja formulação é inteiramente subjetiva e conduzida por dedução.

Mas Claude Bernard era fisiologista, não matemático. Sabe-se que Descartes no Discours explicava a circulação do sangue pela diferença de temperatura.

Quando estávamos na aula de filosofia, um de nós se aproximava com um livro em mãos, e nós dávamos nossas impressões. Divertíamo-nos a valer por Descartes não ter encontrado um buraco no corpo humano para enfiar o termômetro. E perguntávamos: “Mas o termômetro já havia sido inventado?”. No dia seguinte, um colega nosso que era matemático, pronto a defender Descartes, aproximava-se e nos dizia com um ar sério: “Sim, Torricelli inventara o termômetro em...”, já não sei mais a data.

Poderia encerrar este estudo sobre a inspiração com as opiniões e idéias de um cientísta com razão admiradíssmo – Claude Bernard – pois que ele compreendeu o caráter da inspiração, distinguindo-a claramente dos métodos científicos, dos quais se valeu com grande acurácia. Criticava também os generalizadores de ofícios (ou de ciências, ou de artes) que não os praticam, e os autoproclamados “especialistas do universal”, que prodigalizavam elogios ao método de Bacon.

Diz (na primeira parte de seu livro): “Todavia, Bacon não era cientísta, não compreendendo o mecanismo do método experimental. Como prova, basta citar as tentativas que fez nesse campo. Bacon recomenda que se evite hipóteses e teorias; contudo, vimos que ambas são auxiliares do método, tão indispensáveis quanto andaimes na construção de uma casa (...) Não creio tampouco como J. de Maistre que ele haja dotado a inteligência humana de um novo instrumento, e junto com M. de Rémusat parece-me que a indução não difere em nada do silogismo. Ademais, creio que os grandes experimentadores apareceram antes dos preceitos do experimentalismo, assim como os grandes oradores precederam os tratados de retórica. Em conseqüência, não me acho autorizado a dizer – mesmo falando de Bacon – que ele inventou o método experimental, método que Torricelli e Galileu praticaram com destreza e de que Bacon nunca pode se servir”.

Péguy também dizia (Bergson: 1ª parte da Note conjointe): “As famosas regras de Bacon não foram proveitosas à história mundial. Não lhe devemos rigorosamente nada. Nem invenção, nem descoberta, nem progresso intelectual. Desde os primeiros balbucios do pensamento grego, todas as invenções, descobertas ou progressos surgiram indiferentes à aplicação das regras de Bacon. Todos eram antes de Bacon. Mas, desde Bacon, qualquer um que se levante bem cedo com o firme propósito de aplicar as regras baconianas, que se obstine nesse firme propósto, que só aplique esse firme propósito – não conseguirá fazer com isso invenção, descoberta ou progresso intelectual. Nunca vimos invenção, descoberta, progresso intelectual originar-se da contemplação das regras de Bacon. Eis aqui uma bela aplicação – e não a menos importante – das tábuas de presença e ausência, e das variações concomitantes”.

Com certeza o inventor da roda não passaria do Politécnico.

Acrescento aqui dois exemplos, um dos quais veio de um cientísta que conheci, René Quinton. Vou expor suas idéias com brevidade, pois que eu só tinha vinte anos e ele, vinte anos a mais; limitei-me a escutar e, discretamente, interrogá-lo. Ele então preparava o livro “Eau de Mer milieu organique”(Masson 1904). Eu era colega de estudos e amigo de um primo chegado de Quinton – meus pais e os pais desse primo também eram colegas de estudos e amigos.

Ele era fisiologista por gosto, nunca preocupou-se em ter diploma, mas não era amador. Tinha um desejo e uma consciência científica realmente equilibrados.

O fato da elevação da temperatura interior no corpo dos animais o intrigara, por isso estudava o que se relacionava com o assunto; em particular analisava o sangue das diferentes espécies e suas respectivas temperaturas. As idéias correntes de evolução impelia-o a buscar que “progresso” poderia estar ligado ao aumento da temperatura nas espécies animais que apareciam sucessivamente sobre a terra.

Contemplava com tristeza esta escala zoológica ascendente, que vai para não se sabe onde, quando uma réstia de luz lhe veio à idéia: percebeu que os herbívoros que não consumiam alimentos salgados tinham quase tanto sal no sangue quanto os carnívoros. Vislumbrou a temperatura da terra e de seus oceanos em arrefecimento progressivo, e a composição do sangue dos animais marinhos, mais antigos que os demais, análoga à da água do mar, com a presença de oligoelementos. Vislumbrou, como por um raio, que a elevação da temperatura nas espécies mais recentes vinha da necessidade de conservar as condições ótimas da origem da vida.

Era certo que, naquele tempo (que dura até hoje), uma evolução para conservar parecia escandalosa às pessoas aferradas ao progresso indefinido. Há um progresso material e um progresso moral, todavia. Este último é o que tentamos obter ao formar a consciência de uma criança. Nossa época liga ao progresso material considerável o aviltamento dos costumes – prenúncio da ruina das cidades. Nossa cegueira conduz-nos à catástrofes.

A concepção de Quinton desagradou imenso às personagens dirigentes do ensino, como representando um perigo às suas teses. Bastava para tanto não se falar do livro, o que foi feito. A concepção de Quinton, tomada da natureza, é em tudo análoga à prática original da Igreja: mudar o que pode ser mudado, desde o formato dos altares até o direito canônico, para conservar intacta a Revelação Divina.

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Vamos encerrar com o outro exemplo, o de um contemporâneo de Claude Bernard, o Père Émmanuel. Ele é bem relevante, já que esse santo religioso resistiu com todas as suas forças à inspiração – temos aqui o seu próprio relato da resistência.

Jovem cura de 27 anos, ia a Roma para se ajoelhar aos pés do Papa e obter uma nova festa para sua pobre igreja (uma antiga capela dos Templários). Obtivera-a rapidamente, com grande estupor da cúria, nascendo dali uma oração: “Nossa Senhora da Santa Esperança, convertei-nos”. O padre André (père Emmanuel foi mais tarde seu nome de religioso) estimava não ser suficiente uma oração dita individualmente, mas convinha que ela fosse um laço religioso (e por conseguinte, social) entre todos os que a adotassem. a palavra Santa caracteriza com clareza a virtude teologal e não as símplices esperanças terrenas e mundanas. A grande obra da fé é abrir o coração e o espírito à esperança da vida eterna prometida por Jesus Cristo.

Que forma dar à oração para que ela fosse além disso um laço espiritual entre todos que lhe imprecassem o socorro. Ocorreu ao espírito do jovem cura compor litanias. Deixemo-lo falar:

“Alimentei em mim a necessidade de compor litanias nas quais, por todos os motivos imagináveis, solicitaríamos a Virgem Santíssima nossa conversão. Estava compondo as orações; buscava com diligência, mas parecia não encontrar solução. Encontrava-me na igreja, por volta da festa da Imaculada Conceição do ano de 1852, quando achei que finalmente me havia deparado com que tanto suspirava. Tinha as litanias diante dos olhos, as quais recitava comigo mesmo. Saí da igreja com o firme propósito de escrevê-las o quanto antes. Mal entrara em casa, e já havia esquecido tudo. Não pude escrever nada nesse dia. Mais tarde,  por duas ocasiões, aconteceu-me de esquecer enquanto estava a caminho de casa; e da igreja até lá são apenas alguns passos. Nada se escreveu.

Refletindo sobre o modo como as coisas se passaram, entendi que talvez o propósito dessas litanias não passasse de um devaneio da imaginação; renuncei à sua composição, mas ainda guardava o desejo de fazer algo.

Esse desejo ficou em mim sem nada produzir, mas guardava-o em mim sempre, não o deixava arrefecer. Tudo permanceu desse jeito até 26 de abril de 1853 (dia de Nossa Senhora do Bom Conselho).

“Eu me prepara para a missa na manhã desse dia, não pensava mais em meu desejo; de repente, e ainda assim docemente, tanto que não percebi, possuia o que desejara, a Oração Perpétua. Vislumbrei claramente a disposição da obra, tudo foi-me apresentado em um só momento, tudo foi-me dito sem discurso; todavia, nada me ocupava a imaginação; a minha alma era a única testemunha, atenta e calma, dessa espécie de criação que se dava nela, mas que lhe era perfeitamente alheia. Eram oito horas.

Rezei a missa; por todo aquele dia, refleti no plano com que me presentearam. Pensava ter encontrado ali incovenientes, incoerências; o pior de tudo – era uma idéa fixa de já muito tempo, um projeto irrevogável – não deveria se tornar uma confraria ou algo análogo à devoção de Nossa Senhora da Santa Esperança.  Não queria de nenhum modo que se assemelhasse à uma associação exclusiva para alguns de meus paroquianos. Desejara que a devoção fosse assunto de todos, e que ninguém se adiantasse ao restante da paróquia em honras a Nossa Senhora da Santa Esperança.

Tais opiniões, junto ao que eu acreditava ser a incoerência do plano que se me apresentara durante a manhã, levaram-me a trabalhar. Busquei refazê-lo e modificá-lo, mas sempre dava com os burros n’água; o plano primitivo permanecia em minha pobre alma sem que esta nada pudesse fazer senão esgotar-se na busca de modificá-la e talvez destruí-la.

Enfim, impelido por não sei quê movimento divino, renunciei às minhas opiniões pessoais que recusavam todo tipo de associação; renunciei aos meus projetos de modificação do plano primitivo; resolvi instituir a Oração Perpétua a Nossa Senhora da Santa Esperança, segundo um plano que deveras não era de minha lavra”.

Eis o plano: a oração se compõe da invocação “Nossa Senhora da Santa Esperança, convertei-nos”, seguida da Saudação Angélica, após a qual a invocação se repete.

Agrupam-se doze pessoas em uma série, e a cada uma delas designa-se uma hora do dia na qual deve dizer a oração. Cada série perpetua a cada hora do dia e da noite (quando se está acordado) a oração pela qual se implora a entrada, a conservação e o crescimento na vida sobrenatural, isso sem cessar e em todas as séries.

Essa oração é uma trama que envolve o mundo. O Sr. cura atual de Mesnil-Saint-Loup sempre recebe séries de associados, muitas vindas do Canadá.

Eis um contraponto escondido, sobrenatural aos erros e loucuras de um mundo cristão que se arroja às extravagâncias satânicas. É um fluxo contínuo da presença divina em meio ao trabalho cotidiano e às necessidades materiais.

Tal oração, já há 120 anos, tenta conservar na humildade cristãos que não se criam “adultos” o bastante em presença de Deus.

O père Emmanuel era um espírito superior e assaz clarividente. A narração da luta contra a inspiração – justo ele, um padre, cuja inspiração era religiosa – demonstra a que ponto o fato da inspiração é evidente, e também como é fácil a natureza ferida do pecado original resistir-lhe, negligenciá-la ou ignorá-la. Descarte, é certo, compreendeu mal seu primeiro sonho, conforme suas prevenções contra o ensino filosófico da Igreja.

Nossa intenção era expor a existência da inspiração, não apenas no domínio religioso, mas no saber natural próprio ao homem, pois que a Santíssima Trindade é autora também da natureza, em que inseriu o mistério.

 

(Publicado em Itinéraires. Tradução: Permanência)

  1. 1. Citado por E. GILSON, Philosophie et théologie, p. 69.
  2. 2. Ei-los: “Identité et Réalité”; “L’explication dans les sciences”; “La déduction relativiste”. Bastaria ler apenas este último, resumo das idéias expostas nos dois primeiros. O autor assim o introduz: “Estudaremos os conceitos do Sr. Einstein e de seus continuadores, sob um ponto de vista bem restrito, a saber, procurando retraçar os caminhos mentais percorridos por esses cientistas”. Tiramos daqui muitos exemplos científicos.
  3. 3. A comédia é justamente o contrário, pois que as futilidades acidentais fornecem um tesouro de imagens cômicas que no fundo revelam um pensamento sério.
  4. 4. Esse sistema renasceu no século XX, graças ao gênio de D. Paul Bellot.
  5. 5. Ele fez a peregrinaçao a N.S. de Loreto cinco anos depois, em 1624. Retornava de Veneza, onde assistira o dia da Ascensão por ocasião das bodas do Doge com o mar Adriático.
  6. 6. Boivin, Paris 1930.
  7. 7. O apelo às idéias de Chevreul desperta a atenção. Em nossa juventude, Chevreul era conhecido por ter atingido a idade de cem anos, e por sua propalada teoria das cores complementares – causa de muitos pintores menores terem cometido as maiores tolices. Com certeza ela é falsa, visto que uma das cores no arco-íris não se forma totalmente. Entendemos, como Claude Bernard entendia, o caráter das hipóteses científicas segundo o trecho citado. Contudo a nota supracitada de Claude Bernard deveria instigar algum jovem historiador a saber se Chevreul não tinha alguma idéia da qual nunca falara, por muito lhe desgostar.
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