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A atual decadência da língua literária

Se é certo que ainda há muito escritor cuidadoso e cioso da boa linguagem, também é tristemente certo que há hoje em dia, mormente na nova geração, um descaso completo pela língua literária, uma lamentável ignorância do que seja escrever bem. Talvez por isso mesmo tenha sido aceita com tanta facilidade, em certos meios, a idéia de “língua brasileira”.

Sim: é preciso que se tenha coragem de dizer a verdade, que é aquela mesma tão luminosamente definida pelo velho Rui, que, depois de um eclipse, volta hoje à cena mais vivo do que nunca. Para muitos a tal “língua brasileira” seria aquele “surrão amplo, onde cabem à larga, desde que o inventaram para sossego dos que não sabem a sua língua, todas as escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto, rótulo americano daquilo que o grande escritor lusitano tratara por um nome angolês. Lá encontrará o ouvido vernáculo todos os estigmas dessa degeneração, em estado coliquativo, do idioma em que escreveram no Brasil Gonçalves Dias, Francisco Lisboa e Machado de Assis”. (Réplica. Imprensa Nacional, Rio, 1904, n° 22, págs. 45-46).

É preciso que se diga a verdade. E aqui estou para dize-la, arrostando embora a pecha de ridículo, de carranca, de purista hors siècle, de gramaticóide.

Os que me conhecem, e principalmente os meus alunos, sabem que sou fundamentalmente antipurista, antigramático. Sabem que mantenho, nos limites das minhas fracas possibilidades, uma luta sem tréguas contra a “gramatiquice”, as “pífias regrinhas gramaticais” o falso conhecimento da língua. E acho mesmo, como logo adiante se verá, que grande parte da decadência da língua literária entre nós se deve à ação ruinosa dos maus gramáticos, dos charlatães, dos pseudo-sabedores da língua, dos filólogos das Arábias.

Mas propugno pelo cultivo da boa linguagem. Pela renovação dos métodos de estudo da gramática. Pela lição dos textos. Pelo atento e amoroso exame dos bons modelos.

E é por isso que, embora fugindo um pouco do meu assunto, vou aqui deter-me um instante a analisar algumas das causas da decadência da língua literária, e a apontar aquilo que me parece remédio para o mal.

 

2. Tenho para mim que à ação conjugada de quatro fatores se deve a atual e principalmente a atualíssima decadência da língua literária em nosso meio.

Já salientei que entre os jovens é que mais alarmante se mostra a situação. Realmente, é por parte dos moços mal saídos da adolescência que se vai encontrar um absoluto desinteresse pelas coisas da linguagem e uma gravíssima deficiência no conhecimento da língua literária.

Pois bem; para esse estado de coisas concorrem, como acabamos de dizer, quatro grandes causas: A) O clima espiritual da época; B) A decadência do ensino secundário; C) Métodos defeituosos empregados no ensino da língua nacional; D) A influência das más leituras.

 

A) O CLIMA ESPIRITUAL DA ÉPOCA

3. O ambiente espiritual do nosso tempo é, em geral, de horror ao esforço, de imediatismo, de falta de sólida e madura preparação para a vida. A grande arma de vitória é a improvisação e a grande virtude, a audácia.

Uma perigosa filosofia do êxito fácil, conjugada com a filosofia do conforto, insinuou-se profundamente entre a nossa mocidade, alterando a concepção geral da vida, pela subestima dos valores éticos e privativamente humanos. Daí aquele horror ao esforço, a fuga à reflexão, a ausência de formação longa e fecunda. Daí uma atitude de espírito excessivamente independente, desrespeitadora dos valores morais essenciais e das autoridades naturais ou constituídas. Daí um obscurecimento da noção profunda de “dever”, entendido como uma necessidade moral, como uma fidelidade do homem a si mesmo, um corolário da sua Personalidade. Substituiu-se esse conceito verdadeiro pela idéia de “dever” imposição exterior, a que se satisfaz por atos externos, superficiais, formais, faltos de toda substância moral, pois eles serão sonegados, falsificados ou defraudados quando falte o olho policial. É o espírito farisaico que se generaliza, a ética de aparências. Donde decorre e se alastra com pavorosa rapidez uma mentalidade de “sabotagem”. Há uma forte tendência para desumanizar o trabalho, procurando cada qual tirar, na atividade que exerce, o máximo de proveitos, lícitos ou ilícitos (aliás é esta uma distinção que se vai esmaecendo!), e dar o menos possível de sua pessoa. Nada de trabalho entendido como dever moral e muito menos como obra de arte, em que o homem é pessoa cônscia de sua dignidade, e artista cioso de sua criação.

Não quero exemplificar para não ferir suscetibilidades, mas não se terá dificuldade em colher amostras.

Há dias, no interior, visitava eu a oficina de um velho marceneiro siciliano, habilíssimo no seu ofício, em que atingiu invejável perfeição. E, admirando a finura do lavor e o impecável acabamento de um guarda-roupa, lamentei que tão belo espécime se destinasse a pessoa da roça. Respondeu-me o artífice, na sua meia-língua: “Mas a obra é muito mais minha do que do freguês”.

Estranhei e me alegrei de encontrar num homem rude tão bela concepção do trabalho, concepção essa que vai ficando anacrônica, mas que precisa de reviver a todo preço. No caso citado, a mentalidade corrente aplicaria o aforisma “para quem é bacalhau basta”.

Pois bem: é essa falsa mentalidade, que se vai generalizando a ponto de constituir a “atmosfera” da nossa época a primeira responsável pela decadência da língua literária.

Alguém poderia achar quixotesca esta última sentença. Mas não o é. Tal decadência é apenas um sintoma, ou, se quiserem, um dos muitos efeitos daquela grande causa. Escrever bem exige observação atenta, meticulosa, estudo, reflexão, planejamento, e, depois, retoque, polimento. Tudo isso briga com o espírito da época.

 

B) A DECADÊNCIA DO ENSINO SECUNDÁRIO

4. A decadência do ensino secundário é em parte uma das conseqüências do mal que acabamos de denunciar e, ao mesmo tempo, uma das causas eficientes do descalabro da língua literária.

Realmente, o nosso ensino secundário está em nível muito baixo. Eu diria mesmo que todas as deficiências da nossa cultura se prendem diretamente a essa fonte.

A nossa educação secundária de há muito vem faltando à sua verdadeira finalidade, qual seja o desenvolvimento harmônico das faculdades, a cultura geral básica, a formação humanística.

O fato é que os alunos passam pelo ginásio e dele saem quase sempre apenas com um leve verniz, a reminiscência de alguns nomes menos comuns, que eles não sabem bem para que servem; saem intelectualmente “inocentes”. Não tiveram interesse de aprender, de assimilar conhecimento, e realmente não aprenderam.

Está claro que fato em tese e de um modo geral, havendo, para consolo, honrosas exceções.

O problema é extremamente complexo e não cabe aqui analisa-lo. Basta dizer que sua solução depende: do Governo, dos diretores de estabelecimentos, dos professores, dos pais, e dos alunos.

5. Do Governo, por meio de uma legislação adequada.

Felizmente foi posta por terra a lei Campos, que pretendeu fazer do curso secundário um bazar enciclopédico, e se implantou no lugar a Reforma Capanema, a lei orgânica do ensino secundário, código modelar, enformado nos melhores princípios, sadio, equilibrado. Muito se pode esperar dessa benéfica reforma, que veio recolocar o ensino secundário no seu verdadeiro lugar; mas tudo depende da execução.

É necessário que não se lhe traía o espírito, que não se cumpra apenas nas formalidades exteriores, que ela não seja vítima do farisaísmo e daquela “sabotagem” de que atrás falávamos. Quid lege sine moribus? Ainda que seja perfeita a lei, de nada servirá, se a defraudam.

Portanto, o primeiro passo está dado, mas isso pode não significar coisa nenhuma. Ademais, a reforma é muito recente e ainda não se poderiam apreciar seus frutos.

6. Não é raro encontrarem-se diretores de estabelecimentos para quem o ginásio ou o colégio é apenas uma indústria rendosa, uma fábrica de bacharéis ou licenciados, onde a aprovação no fim do ano é garantida. Falta-lhes a esses diretores aquele idealismo, aquela consciência da imensa responsabilidade que lhes pesa sobre os ombros, o devotamento sacerdotal e paterno à causa da educação e do ensino.

7. O professorado constitui outro problema sério. Carecem os mestres muita vez da necessária formação intelectual, da vocação magisterial e de consciência moral esclarecida.

Muitos professores se improvisam. Tomam a disciplina que lecionam como um “bico” e por isso, às vezes, ensinam qualquer matéria. Não são especialistas. Autodidatas, apressados, falece-lhes a sólida formação cultural, que lhes dará segurança e profundeza de conhecimentos e orientação didática. É verdade que esse mal depende 95% da ausência, que tivemos até bem pouco, de um instituto superior de cultura desinteressada, especializado na formação de professores. São as Faculdades de Filosofia e Letras, que só neste último decênio começaram a aparecer, sendo que o estabelecimento-padrão, a Faculdade Nacional de Filosofia, entrou a funcionar em 1939. e já vão produzindo seus bons frutos esses estabelecimentos, que cumpre multiplicar pelo Brasil afora, mas sem se desvirtuarem. É preciso que essas Faculdades nunca percam a noção de importância transcendente de sua missão no Brasil.

Porém, não é somente a formação intelectual e a especialização científica que faltam a muitos professores. Falta-lhes ainda a vocação magisterial, o que é fruto daquela improvisação e daquele tomar o magistério como “bico”. O professor não se interessa, não tem a necessária atitude paternal para com os alunos, não se integra na sua profissão. É também professor. E daí a ausência de consciência moral: aulas não preparadas, aulas “matadas”, provas e trabalhos escolares corrigidos a trouxe-mouxe, aprovação sistemática dos alunos. O menos trabalho possível.

Sei de um professor de Português que, após a realização das provas parciais de sua matéria, passou pela secretaria do colégio e levou as provas para casa, para corrigi-las. Mais de cem. No seu gabinete abre os envelopes e vai lançando as notas: 9 e 10 alternadamente. Pronto o serviço, recolheu de novo as provas aos respectivos invólucros e foi almoçar. Eis se não quando lhe telefonam do colégio, dizendo que lhe deram por engano as provas de História da Civilização.

— Ah! é?, diz o nosso homem. Eu não reparei bem... Agora já dei as notas.

Mas se há essas deficiências por parte de certos elementos do professorado, é força reconhecer que esse professorado também tem sido vítima.

Salários baixos, vida cara, não podem os professores só com o magistério ou só com uma disciplina atender às suas responsabilidades econômicas. Daí a multiplicação de atividades, ou a sobrecarga das aulas, que impede uma execução perfeita da função magisterial. É certo que já veio a lei da remuneração condigna, mas toda lei pode ser fraudada e, de qualquer modo, muita coisa ainda se deve fazer em benefício da classe professoral.

8. Os pais, por sua vez, têm não raro larga culpa no cartório. Querem que os filhos passem. De qualquer maneira. Há muitos que exigem, nesse sentido, “garantia” por parte do estabelecimento. Se os filhos logram más notas ou são reprovados, esses cidadãos se enfurecem contra os professores e às vezes os ameaçam de pancada. Ou tentam o suborno, quando têm a nobreza do dinheiro. Se algum professor me lê, que diga dos seus momentos difíceis diante de pais furiosos com a “injúria”, com a “perseguição” que sofreram seus filhos.

9. Finalmente, os alunos são vítimas de todo esse estado de coisas, mas também são bastante culpados. O adolescente de hoje não tem em geral o mínimo interesse de aprender, a fome de saber. Sua preocupação máxima, e quase sempre única, na aula é descobrir e “gozar” o ridículo do professor. Pôr-lhe um apelido azado. Atucanar- lhe a paciência com mil diabruras e insolências, reduzi-lo à condição de Polícia Especial ou, antes, de domador de feras. Realmente é dificílimo ensinar a uma classe onde 80% dos alunos não prestam a mínima atenção, olham atrevidos para o mísero professor, vozeiam, molequeiam, distraem a atenção dos outros 20% que escutariam o mestre!

Esses rapazes (com meninas e coisa em geral vai melhor) não só não ouvem as aulas como não estudam nada. Chegam absolutamente crus ao exame. Já me aconteceu, examinando Latim num quarto ano, encontrar alunos que não sabiam o número das declinações.

E na Faculdade Nacional de Filosofia me aparecem provas onde se escreve intelequitual (intelectual), onde se diz que “comessem é particípio do verbo edere” (textual), onde se emprega a forma corrobóem por corroboram, onde se grafa cearence com “c”, onde se comete toda a sorte de solecismos, e principalmente, onde se redigem frases sem sentido. Nas provas orais aparecem alunos que, argüidos de propósito a esse respeito, se mostram incapazes de conjugar verbos, que não distinguem um advérbio de uma preposição, etc. e isso nos cursos de Letras!

Reproduzo, aqui, para documentar, a resposta a uma questão dada em trabalho de estágio da primeira série de Letras Clássicas. Era a questão: “Explicar brevemente o desaparecimento dos casos no Latim Vulgar hispânico”. E a resposta: “O Latim era uma língua muito sintética por isso que se caracterizava pelo seu analitismo. A 5a declinação absorveu a 2a e a 4a absorveu a 1a: fructus, us, dies, ei.”

Aí está! Com pessoas que saem do ginásio ou do colégio nessas condições, o que é que se pode fazer? O que é que deles se pode esperar? E em que estado se há de encontrar a língua literária na cabeça e na pena de tais cidadãos?

Não é natural que, tendo-lhes chegado aos ouvidos que se deve escrever como se fala, que é preciso proclamar a independência da “língua brasileira”, não é natural que aceitem eles sem restrições e sem mais exame idéia tão grata?

C) OS MÉTODOS DEFEITUOSOS NO ENSINO DA LÍNGUA NACIONAL

10. Entre as causas da decadência, que vimos analisando, da língua literária se há de dar o devido lugar aos métodos viciosos que se têm empregado no ensino da mesma.

Refiro-me sobretudo à “gramatiquice”. O Brasil foi durante muito tempo o paraíso dos gramáticos e por aí afora pulularam as brigas por questiúnculas gramaticais.

Herdamos e desenvolvemos a concepção do dogmatismo gramatical e mantivemos a tradição do “purismo” caturra do século XVIII.

A “gramática” era entendida como um conjunto de “preceitos” mais ou menos apriorísticos, decretados pela autoridade suprema dos gramáticos, os “grilos da língua”, como espirituosamente lhes chamou Monteiro Lobato.

E estes senhores eram no geral o que há de mais intransigente e caprichoso. Suas preferências e gostos pessoais é que decidiam o que está certo e o que está errado. Principalmente o que está errado. Porque a gramática, no fundo, era para eles a ciência e a arte de encontrar “erros” nos escritores, de classe ou não.

Assim sendo, erigiram um monumento gramatical feito principalmente de proibições, manietando e sufocando a grande liberdade de construção e de formas da língua portuguesa.

Destarte se criou um ambiente altamente propício às “brigas de gramáticos”, de todas as castas e valores. Desde os maiorais até os pequenos grandes sabedores de arrabalde e os “filólogos de Interior”, como os denomina um amigo meu. Uma vez que o argumento único em matéria de linguagem era o de autoridade, nada mais fácil do que levantar e manter uma polêmica de gramatiquice.

Um plumitivo qualquer empregava uma forma ou construção x. por exemplo, colocava “errado” um pronome. Outro plumitivo, às vezes da política local contrária, lançava-lhe em rosto publicamente a falta. Punha-se então a campo, para defender-se, o nosso homem. Citava os autores x, y e z que achavam que podia dizer daquela maneira. E aproveitava a oportunidade para descobrir e apontar três erros no artigo-libelo do adversário. Defesa deste, de envolta com novos ataques e caçada de novos “gatos”: tudo baseado na autoridade dos gramáticos. E assim por diante, até aquilo descair em pura ofensa pessoal.

Agora, imagine-se: um estudante aprendeu a sua gramática dogmaticamente e não raro pelo sistema do “decoreba”, como se diz na gíria escolar. Sim: muitos professores de Português passavam “para a próxima aula” um trecho da gramática, da página tal à pagina qual, para trazer de cor. Um aprendizado seco, material e brutal. Ninguém poderia saber a razão dos preceitos: é porque é. Ou, quando muito, porque o autor do livro diz que é.

Pois bem: esse conhecimento adquirido ficou estéril. Na melhor das hipóteses, o bom estudante ficou com a cabeça cheia de fórmulas vãs, um complicado código de proibições. Na maioria dos casos, aquele formulário “entrou por um ouvido, saiu pelo outro e acabou-se a história”. A menos que não pudesse sair porque o som não atravessa o vácuo...

Depois, cá fora, o ex-estudante, que já se tomou de forte antipatia pela gramática, lê ou tem notícia de várias brigas, em que os dois adversários provam que têm razão. Então, o homem passa-se da antipatia ao desdém: “Ora, que vão bugiar todos esses sujeitos. O melhor é escrever como me der na telha...”

11. Felizmente, já se vem processando há tempo no Brasil uma salutar e eficiente reação contra esse triste estado de coisas. A filologia científica fez auspiciosamente sua inauguração entre nós com João Ribeiro, com o grande Mário Barreto, com Silva Ramos, e continuou esplendida nas mãos de um Sousa da Silveira, de um Said Ali, de um Augusto Magne, de um Otoniel Mota, de um Cláudio Brandão, etc., brilhante geração essa que, para gáudio de todos nós, já suscitou outra representada pelos Serafim Silva Neto, Silvio Elia, Rocha Lima, Matoso Câmara Junior, Ismael Lima Coutinho, etc., “novos” de quem se pode esperar muita coisa.

Agora já se tem de gramática uma concepção justa e verdadeira, a só compatível com a orientação científica dos estudos lingüísticos. Hoje se entende que a gramática é a sistematização dos fatos da língua literária contemporânea. Assim sendo, a gramática não pode constituir-se em código de proibições. É uma apresentação dos fatos da língua, abonada sempre pela única autoridade respeitável, a dos bons escritores, esses homens que têm o senso e a intuição do gênio e da beleza da língua.

Surgiu então uma nova literatura gramatical, em que nos habituamos a ver uma exposição serena e agradável do estado atual e das tendências da língua, tudo ilustrado por farta documentação haurida nos bons modelos: Novos Estudos da Língua Portuguesa, de Mário Barreto, Lições de Português, de Sousa da Silveira, Dificuldades da Língua Portuguesa, de Said Ali, etc.

E daí uma renovação nos métodos de ensino. Gramática, sim, mas nos novos moldes, amena, obediente aos fatos, às realidades da língua, traçando normas onde elas têm lugar, denunciando “tendências” e mostrando liberdade de formas e de construções, onde for o caso. Mas, além da gramática, e de muito mais aplicação do que ela, os textos. Estudo e comentários de textos, onde se procura ressaltar e mostrar ao aluno a beleza e justeza da expressão e onde, a propósito de tal palavra, de tal forma ou de tal construção, se tecem considerações e se ministram ensinamentos relativos a fatos análogos. Interesse motivado. Aprendizagem vitalizada e assimilada. Gramática por partes. Português pelos textos.

12. Mas desgraçadamente, apesar dessa vitória da filologia sobre a gramatiquice, esta última, nos nossos dias, tenta uma contra- ofensiva, para usar a linguagem da época. Porque ela não tinha morrido, não tinha capitulado. Apenas tinha “encurtado as frentes’ e vinha sofrendo bombardeios na retaguarda e nas linhas de abastecimento, sendo que muitas de suas baterias tinham sido “reduzidas ao silêncio”.

Mais, eis que irrompeu agora num setor, com bastante potencial em homens e materiais. Refiro-me aos “textos para corrigir”, moderno processo de aprendizagem (?) da língua. O método só por si é condenável, e pior se tornou porque se fez dele quartel-general da gramatiquice.

13. Pretendo, em ocasião oportuna, examinar detidamente os inconvenientes pedagógicos do novo sistema. Mas não quero deixar de, a respeito, dizer duas palavrinhas.

Como acentuei, o método em si me parece condenável, porquanto não será por meio de um processo negativo que se há de aprender a escrever. Depois de ler, estudar, examinar, bisbilhotar mil frases erradas, quais os bons modelos que terá na consciência e no subconsciente um cidadão? Poder-se-á esperar dele graça, leveza, independência, originalidade de estilo?

Em segundo lugar, porque os remanescentes da gramatiquice viram no novo método uma boa ocasião para se manifestarem, aí se instalaram com armas e bagagens. E então “correção de textos” passou a significar aplicação da bitola gramatical vieux style a trechos dados. E vai-se revivendo toda aquela série de preceitos arbitrários, de fantasias e invencionices, todo aquele código de supostos erros, que já devia, depois de tão luminosos estudos a propósito, estar posto de lado. Volta à cena: não se pode começar frase por porém, não se pode usar o quê interrogativamente, apiede- se é forma errada, que se deve corrigir para apiade-se, não se pode colocar o pronome aqui ou ali, porque tal ou qual palavra o atrai, não se pode empregar o gerúndio com função atributiva, é galicismo o emprego desnecessário de um indefinido, não se pode deixar o verbo no singular tendo por sujeito um dos que, não se deve empregar o sufixo eria, estão errados tais e tais usos do infinito pessoal, e sei eu lá quantos outros preceitos insustentáveis.

O resultado de tudo isso é que o discente, após ter sofrido durante algum tempo a aplicação do método, não só não toma conhecimento das belezas e riquezas da língua, como principalmente perde toda a segurança, toda a confiança no seu sentimento da linguagem. Fica com a obsessão do erro. Quer encontra-lo por toda a parte. Não sente firmeza em nada, em matéria de linguagem.

Já tenho feito dois tipos de experiência em indivíduos intoxicados pelo método. Ora entrego-lhes textos certos, mas sem brilho, frases chãs mas corretas. O sujeito da experiência então fica tateando hesitante na caça aos erros. Acaba descobrindo ressonâncias, cacófatos, hiatos, achando que tal palavra não está bem empregada, censurando a ordem dos termos, etc. outras vezes, dou aos envenenados frases de grandes autores: Camões, Herculano, Garret, Machado, Bilac, etc. Neste caso, é freqüente descobrirem-se erros, impropriedades, anfibologias, solecismos, etc. mas tudo feito às tontas, sem firmeza ou convicção: o cidadão denuncia um defeito aqui, desdiz-se imediatamente; vê outro ali, arrepende-se, volta atrás; adianta que lhe parece isso ou aquilo, não diz coisa com coisa. Percebe-se bem que há uma infinidade de “normas” e “tabus” a flutuar-lhe no espírito, chamados à cena pela memória.

Pelos frutos se conhece a árvore. Se tais são os frutos do método de “textos para corrigir”, penso que se deveria abandona-lo de vez.

14. A “gramatiquice” e os falsos métodos de ensino sacrificaram gerações e gerações de estudantes, que, entrados na vida, deram de mão à gramática e à língua literária, passando a escrever como melhor lhes soubesse e votando mesmo antipatia a tudo que lhes parecesse trabalho de estilo, forma cuidada, busca de expressão, — qualidades essas havidas por ridículas e vitandas.

D) A INFLUÊNCIA DAS MÁS LEITURAS

15. Fazendo conjunto com a série de causas que acabamos de analisar, concorrem finalmente para a atual decadência da língua literária entre nós as más leituras.

Os maus escritos, maus no sentido de mal redigidos, pululam, são livros, originais e principalmente traduzidos, são jornais, são revistas, que veiculam solecismos e barbarismo de toda a sorte, e pela reincidência continuada geram o “hábito”, formando neste e naquele ponto um falso sentimento de linguagem.

Como acima lembrávamos, são as boas leituras as melhores formadoras do senso lingüístico e, por isso mesmo, são as más leituras um dos mais poderosos elementos de deformação lingüística.

Diz-se que Machado de Assis jamais lera uma gramática, e no entanto foi aquele primoroso escritor. Porque leu muito os bons autores. E os leu bem, isto é, com inteligência, observação e critério.

Nos nossos dias já não se lêem os mestre do estilo, ou quando se lêem, será pelo enredo, não se lhes presta atenção à frase lapidar, à justeza de expressão, ao aprimoramento lingüístico. Lêem-se por cima, saltando-se páginas. Mas, ainda assim, são muito poucos os livros bem escritos que merecem a honra da leitura hoje em dia. O que se vê é uma extraordinária avidez pelos romances policiais e de aventuras e pelos romances de outros gêneros, sempre estrangeiros e quase sempre pessimamente traduzidos. Numa linguagem abaixo da crítica. Pejada de solecismos, peregrinismos e destampatórios de toda a ordem.

O nosso “Diário de Notícias”, jornal tão simpático, vem mantendo há bastante tempo uma seção muito útil e digna dos maiores aplausos: “À margem das traduções”. Aí se analisam, com a espontânea colaboração de muitos e atilados leitores, os disparates e tolices que enxameiam esse mundo de traduções feitas na perna, que andam por aí. Outro dia, um colaborador que se assina A.P.R. chamava a atenção, entre muitas coisas, para um que traduziu “general Staff”, isto é, Estado-Maior geral, por “General Staff”, como se se tratasse de um militar altamente graduado.

O fato é que essas traduções, no geral, exercem uma ação ruinosa no que diz ao cultivo da língua literária, não só com perpetrarem a cada passo as maiores barbaridades de linguagem, como também por serem vazadas, de ponta a ponta, num estilo pobre, terra-a-terra, cheio de expressões forçadas, com termos mal empregados, numa ordem monótona e invariavelmente direta.

Essa redação vai ficando no subconsciente e, pela falta de boas leituras, toda a vez que os indivíduos viciados por tais defeitos topam casualmente, em algum escrito, com construções apuradas ou com um vocabulário menos trivial, embora ajustado ao caso, não entendem, ou tacham de extravagante o autor, arcaizante, pernóstico e sei lá que mais.

Não me refiro a estilo rococó, que também eu acho detestável, mas a bom estilo, preciso, claro, elegante, harmonioso.

Os jornais, principalmente agora, com o noticiário de guerra transmitido para cá em Espanhol ou em Francês, os jornais, digo, estão pondo em curso uma série de espanholismos e galicismos ridículos. Assim, por exemplo, é curial ler-se, no serviço telegráfico, que “a aviação aliada seguiu bombardeando a retaguarda inimiga”, quando em Português se diz continuou bombardeando; tem-se notícia, de vez em quando, de que o Oitavo Exército, por ex., “desferiu um ataque desde um ponto situado a Noroeste de Ravena”, quando em Português se diz de. Outro dia li eu que no Quartel- General aliado em Paris “se descartava a hipótese de que os alemães tentassem resistir em tal parte”. A princípio estranhei; mas depois vi que se tratava de expressão écarter l’hypothèse, “afastar a hipótese”. E assim por diante.

16. As causas de decadência da língua, que vimos de analisar per summa capita, mais de uma vez se causam reciprocamente. Assim, as deficiências do curso secundário são frutos do ambiente geral de dissipação e amoralismo; os maus livros são frutos da própria decadência da língua e contribuem poderosamente, por seu turno, para agrava-la.

17. Procurei denunciar esse mal, com a só intenção de colaborar, com as minhas débeis forças, no seu combate.

Já se desenha no horizonte uma reação contra esse funesto descaso pela língua literária e é de esperar que ela produza seus frutos no seu tempo.

Tudo tem a sua hora.

 

(Constitui este artigo a III parte do capítulo VIII — “A Língua Literária” — do livro A Língua do Brasil (Português ou Brasileiro), que se acha no prelo. Na primeira parte, refutando a opinião dos que defendem a “língua brasileira” acenando para a existência de um bilingüismo entre nós, demonstramos, ser natural, em todo país civilizado, a dicotomia língua literária e língua popular, diversa uma da outra. Na segunda parte, assentado que a língua literária, culta, como tal aceita entre nós é a portuguesa, fazemos um histórico dessa língua literária no Brasil. Nesta terceira parte, estudam-se as causas da atual decadência da língua literária.

Coleção Brasileira de Divulgação, Série III Filologia n° 2, Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1946.)

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