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A sabedoria do oratório - trechos selecionados do Pe. Manuel Bernardes

HIPOCRISIA
 
É hipócrita o mercador que dê esmolas em público e leva usuras em oculto; é hipócrita a viúva que sai mui sisuda no gesto e no hábito, e dentro em casa vive como ela quer e Deus não quer; é hipócrita o sacerdote que, sendo pontual e miúdo nos ritos e cerimônias, é devasso nos costumes; é hipócrita o julgador que onde falta a esperança do interesse é rígido observador do direito; é hipócrita o prelado que diz que faz o seu ofício por zelo da honra e glória de Deus, não sendo senão pela honra e glória própria. Hipócrita é o que não emenda em si o que repreende nos outros; o que cala como humilde, não calando senão como ignorante;o que dá como liberal, não dando senão como avarento solicitador das suas pretensões; o que jejua como abstinente, não se abstendo senão como miserável.

Assim é. Porém não cuide alguém que, à conta deste desengano, lhe é lícito contrair a doutrina a pessoas ou ações determinadas, dizendo ou julgando que fulano é hipócrita ou esta esmola deu por vanglória. Estes juízos são reservados a quem vê os corações que é só Deus, onde podemos chegar sem pecado e com prudência. É não nos fiar levemente do que aparece e onde podemos assentar com singeleza e sem prejuízo; é entender que todos são bons, conforme a graça de Deus se lhes comunicar.
Nova Floresta
 
 
DEUS E AS PAREDES
 
Caminhando São Policarpo, bispo e mártir, com um seu diácono, por nome Camério, agasalhou-se em certa estalagem, e já alta noite o seu anjo o acordou, avisando-o que se saísse logo, porque a casa havia de cair. Acordou ele também ao companheiro; porém, este, como estava cansado do trabalho da jornada, recusava deixar o sono, e lhe disse:
 
— Padre, creio em Deus que, enquanto vós aqui estais, não há de cair a casa; deixemo-nos estar.
 
Respondeu o santo:
— Também eu creio em Deus; mas não creio nestas paredes. Saiamo-nos depressa.
 
Apenas tinham posto o pé fora, quando o edifício se veio abaixo.
Nova Floresta
 
INSUFICIÊNCIA DA ESMOLA
 
Grandes elogios da esmola pregoam as Escrituras Sagradas e Santos Padres. No livro de Tobias se diz que livra de todo o pecado, e da morte eterna, e que não consentirá que a alma se despenhe nas trevas do inferno. No Eclesiástico se diz que assim como a água apaga o fogo ardente, assim a esmola resiste aos pecados. No Evangelho diz o mesmo Cristo, falando aos Fariseus, e havendo-os severamente repreendido: “Sem embargo de vossas maldades e hipocrisias, daí esmolas, que é o remédio que vos resta, e vos tornareis limpos”.
 
Sucede pois que algumas pessoas, ouvindo ler ou pregar estes louvores da esmola, lhes parece terem achado um meio certo por onde se não desapeguem de seus vícios, privando-se dos gostos deste mundo, nem venham a parar nas penas eternas que temem; e assim abrem a bolsa ao pobre, porém não abrem o coração a Deus; socorrem a miséria alheia temporal, e não socorrem a espiritual própria: ministram pão ao pobre, e elas vão comendo o veneno que comiam: não despedem da sua porta o necessitado,  porém dentro fica a ocasião da ofensa de Deus.
 
Protestamos a estes tais que a sua confiança é ilusão do demônio. Porque os auxílios que Deus dá a intuito de esmola, para que o pecador se converta, não derrogam a sua liberdade, com que pode resistir-lhes, e não aceita-los. Além de que estas caridades temporais, que não procedem do verdadeiro amor de Deus, costuma o Senhor remunera-las com outros bens e felicidades temporais, como são a boa fama, descendência copiosa, êxito feliz nas pretensões e negócios, felicidade dos servos, etc. E quando entrar em contas com o pecados, lhe poderá dizer:
 
— Do que vos devia em nome dos meus pobres já estais pago na mão de outras criaturas. Pagai-me agora o que deveis à minha honra gravemente ofendida.
Luz e Calor
   
SABER E SABER
 
A ciência incha (diz o S. Paulo) e a caridade edifica. E ainda que o compor livros da qualidade que são os deste pio e erudito padre também edifica muito aos outros, todavia possível é que edifique pouco ao seu autor. Porque, como disse S. Bernardo, há uns que querem saber só para saber, e é curiosidade; e há outros que querem saber para serem conhecidos por sábios, e é vaidade; e há outros que querem saber para vender o que sabem, e é interesse; e há outros que querem saber para edificar os próximos, e é caridade; e, finalmente, há outros que querem saber para edificar-se a si mesmos, e é prudência.
Nova Floresta
 
PALAVRA E AÇÃO
 
Os monges e habitadores do deserto, como eram tão contínuos na lição da escritura santa, usavam, no modo de dar doutrina, acompanhar as palavras com ações. Assim o fez o que saiu em presença dos mais com uns alforges no pescoço: o que pendia para as costas cheio de areia, e o que pendia para os peitos quase vazio; e logo disse:
 
— Os meus pecados e defeitos que são muitos lanço para trás das costas, porque me esqueço deles; os do próximo que são poucos ou nenhum, trago diante dos olhos...
 
* * *
 
Assim também outro ancião, que, para aceitar um discípulo, lhe mandou primeiro que dissesse muitas afrontas a uma coluna, e depois que lhe desse muitos louvores. Obedecendo a tudo o pretendente, perguntou-lhe o velho se se indignara a coluna com as ofensas, ou se se abalara com os louvores.
 
Respondeu ele que não, pois era uma pedra. Tornou o velho:
 
— Pois, se te atreves a ser como esta pedra, eu te aceito por discípulo.
Nova Floresta
 
O APÓLOGO DAS COTOVIAS
 
A este ponto serve o apólogo que se conta das cotovias que tinham seus ninhos entre as searas.
 
Dissera o dono do campo a seus criados que tratassem de meter a foice, se vissem estar o trigo já sazonado; e ouvindo este recado uma delas, foi pelos ares avisar as outras que mudassem de sítio, porque logo vinham os segadores. Porém outra mais velha as aquietou do susto, dizendo:
 
— Deixemo-nos estar, que de mandar ele os criados a fazer-se a obra vai ainda muito tempo.
 
Dali a alguns dias ouviram que o amo se agastava com os criados, porque não tinham feito o que lhes encomendara; e que mandava selar a égua para ele mesmo ir ver o que convinha.
 
— Agora sim, disse então aquela cotovia astuta. Agora sim, irmãs. Levantemos o vôo e mudemos a casa, que vem quem lhe dói a fazenda.
Nova Floresta
 
INVEJA
 
Depois de haver feito proezas memoráveis o famoso capitão Belisário, e alcançado de muitas nações bárbaras insignes vitórias, lhe mandou o imperador Justiniano, mal informado, tirar os olhos. E ele, posto em uma choupaninha ao longo da estrada, pedia esmola aos passageiros, dizendo:
 
— Caminhante! Real e meio a Belisário, a quem o valor expôs aos olhos de muitos, e a inveja o privou dos seus...
 
*
 
A inveja é o carcoma das fortunas grandes. Aristóteles, perguntado que coisa era a inveja, disse:
 
— Antagonista da prosperidade.
 
*
 
Os mordidos da serpente chamada Andrio padecem vertigens e vômitos de cólera fetidíssima, e outros movimentos desordenados; e o lugar onde mordeu gasta-se, como que o roeram. Assim os miseráveis, em cujo coração se embrenha a serpente da inveja, o mesmo coração se  lhes desfaz e consome, porque o bem alheio tem por mal próprio.
 
*
 
Falando-se diante del-rei Frederico que coisas serviam para aguçar a vista, e respondendo vários várias coisas, disse Áccio sincero:
 
— A inveja.
 
Brevíssima sentença, mas não menos verdadeira do que breve. Porque os olhos do invejoso, ainda não podendo olhar direitos, nada lhes escapa, nem do bem nem do mal da pessoa invejada: do bem para detraírem, do mal para se alegrarem.
 
Nova Floresta
 
 
 
DESPREZO DE SI PRÓPRIO
 
 
Caminhando S. Francisco de Borja por Serra Morena, em uma estalagem aonde se aposentou buscou um aposentozinho, onde se pôs a orar de joelhos. Estavam ali as malas de um passageiro, o qual, presumindo que lhas queria revolver para furtar alguma coisa, o ameaçou, dizendo que o moeria com um pau. Mas, conhecendo depois com quem falava, lhe pediu perdão. Respondeu o santo:
 
— Eu vos perdôo o agastamento, tirando aquilo do pau, que não acho aqui que perdoar; porque por meus pecados se me deve e o tenho bem merecido.
 
 
Este glorioso santo fora no século duque de Gândia e vice-rei de Catalunha; e responder tão pacato que nem a culpa do ofensor nomeia por juízo temerário, nem por arrojo ou demasia, senão só por agastamento, e, em cima, se desquita do honorífico de perdoar, por entender que merece a pena!
 
 
E, porque não pareça que o santo não sabia aproveitar as ocasiões de ser injuriado, quando chegavam a efeito, não parando só em ameaça, ajunto o seguinte caso:
 
Uma vez, na pousada, o companheiro, que era asmático, esteve cuspindo ao santo no rosto, imaginando que cuspia para outra parte; ele se calava e o chuveiro de salivas continuou grande parte da noite. Quando amanheceu e viu o companheiro sua desatenção, ficou mui envergonhado; e o santo lhe disse:
 
— Padre, não tenha pena, que lhe certifico não haver no aposento lugar mais próprio para cuspir do que eu.
 
 
Este mesmo glorioso santo levou uma vez um porco às costas para a cozinha. A alguns que nisto repararam disse:
 
— Que muito é levar um porco outro?
 
*
 
Quando o venerável padre Ambrósio Mariano veio a este Reino, para nele fundar a primeira casa dos Carmelos Descalços (chamados por isso entre nós os Marianos), a buscar lenha e a trazia às costas pela cidade.
 
Perguntando-lhe por que tomava exercício tão vil e trabalhoso, respondeu:
 
— Por que deste modo me aquenta a lenha duas vezes.
 
*
 
Do grande cardeal Roberto Belarmino costumava dizer um judeu que, se todos os cristãos fossem como Belarmino, todos os infiéis seriam cristãos. Quase o mesmo dizia também um herege. E, chegando esta notícia aos ouvidos do cardeal, disse, como quem se alvoroça e alegra:
 
— Todavia já para ser canonizado tenho duas boas testemunhas: um judeu e um herege; falta-me agora um turco...
 
*
 
Vivia o venerável padre D. Frei Agostinho da Cruz no célebre deserto da Arrábida. Aqui lhe enviou de mimo uns figos o duque de Aveiro. Ele o pôs a secar sobre o teto da sua celinha, que era mui baixa; e veio um corvo e levou-lhos. Disse então o servo de Deus:
 
Se Agostinho fora Paulo,
O corvo, quando viera,
Não levara, mas trouxera...
 
 
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AVAREZA
 
 
Certo homem nobre e rico tinha dado a um seu filho, por várias vezes, boas quantidades de moeda, para que corresse com os gastos e administração da casa, como mais ativo que era e desocupado. Mas ele, encurtando a mão quanto podia, ia enterrando o mais em lugar oculto.
 
Sucedeu ser necessário a este avarento fazer jornada longe. Entretanto o pai, que já presumia o mal, buscando-o por vestígios, veio a dar com o tesouro; e dele pagou logo salários de criados, reformou os móveis da casa e repartiu esmolas; e depois, enchendo os mesmos sacos de areia, os repôs no seu lugar.
 
Recolhendo-se da jornada, o filho foi logo fazer estação e visita ao seu depósito, porque lá tinha o coração; mas, não achando mais que areia, à primeira vista ficou pasmado e quase esmorecido; e depois toda a casa confundia com gritos, queixas e desesperações.
 
Acudiu então o pai, dizendo mui fleumático:
 
— De que te amofinas, filho meu, ou por que te enfureces? Não tens mais que imaginar que ainda lá está o dinheiro; porque se os sacos, e o volume, e o lugar, e o préstimo, ou o uso, sempre é o mesmo , que mais monta ter ouro que ter areia?
 
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VONTADE E VELEIDADE
 
Vontade é determinação eficaz de procurar algum bem desejado ou fugir d’algum mal que se tem, e explica-se pela palavra Quero.
 
Veleidade é um princípio de querer com frieza e ineficácia, e explica-se pela palavra Quisera.
 
O sinal para conhecermos em nós se queremos, ou se somente quiséramos algum bem, é ver se abraçamos, ou não , os meios necessários para o alcançar. Se o enfermo se põe nas mãos do médico perito, quer saúde; se o pretendente lida, agencia, insiste, mete pedreiras (1), fez despesas: este quer o bom despacho. Se o estudante madruga, revolve os livros, poupa as horas, pergunta as dúvidas e continua as suas tarefas e disputas literárias, este quer ciência. Mas, se nenhum deles aplicar os sobreditos meios, nenhum deles quer, de verdade, os sobreditos fins.
 
Assim passa também no nosso caso. Os meios necessários para alcançar a salvação são a guarda dos Mandamentos.
 
Se o cristão aplica estes meios, quanto é da sua parte, com o favor divino, este quer salvar-se; se os não aplica, antes os lança em esquecimento, este não quer salvar-se, por mais que diga que, sim, quer; porque o seu quero não passa de quisera. Quisera, se não fora tão custoso para os seus maus costumes contrários; quisera, se por amor disso não houvesse de cortar por outros quereres; quisera, se, para comprar o campo onde está escondido o tesouro, não fosse necessário vender todas as suas coisas.
 
Enfim: quer como preguiçoso e descuidado, que o seu querer é não querer: Vult et non vult piger.
 
(1)   recomendações, empenhos
 
 
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ALUMIAR OS QUE ERRAM
 
A D. Fernando de Talavera, arcebispo de Granada, disse um criado seu palavras pesadas, descomedindo-se com ele com maior liberdade do que se podia esperar da dignidade de um ofício e de outro. O bom prelado esteve muito em si, sem responder-lhe; e, quando o viu partir colérico de sua presença, pegou do castiçal e foi alumiando diante pela escada abaixo.
 
— Que faz Vossa Senhoria? Onde vai? (disse o criado, assustado com aquela ação de humildade).
 
Respondeu o prelado:
 
— A fazer meu ofício, que é alumiar os que erram.
 
Ficou o criado confundido; e, prostrando-se a seus pés, lhe pediu perdão.
 
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LUTERO E A POMPA CATÓLICA
 
O espírito da avareza, no que toca ao culto dos altares e templos, aparenta-se com o de Judas Iscariotes, que chamava desperdício e reputava mal empregado em obséquio de Cristo o ungüento aromático, que avaliava em trezentos dinheiros; e não deixou de dizimar o preço pelo modo que ainda pôde, vendendo o mesmo Senhor por trinta.
 
Nenhuma magnificência e decoro é supérfluo no que toca tão proximamente seu corpo e sangue sacramentados e representa misticamente seu sepulcro, como diz Santo Tomás, falando do cálice, e a patena a campa dele, (1) como diz o padre Soares.
 
S. Gregório papa fez um cálice ornado de preciosa pedraria, o qual pesava trinta libras de ouro, e uma patena do mesmo, que pesava vinte oito e meia.
 
O padre Teófilo faz menção de outro cálice de ouro maciço, tão grande que um homem o não podia levantar. Não sei que uso pudesse ter, salvo para urna do Santíssimo em quinta-feira maior.
 
 
Lutero, ímpio desprezador de semelhantes cálices preciosos (no que procedia coerente com os outros seus erros, de que na Eucaristia ainda depois da consagração fica verdadeiro pão e vinho, e de que a missa não foi instituída por Cristo Senhor nosso, nem é sacrifício, nem ainda obra boa), por outra parte o seu copo, o qual era mais que arrazoado, e estava cingido com três coroas, umas mais acima das outras, como tiara papal: à primeira e superior o Padre nosso; a segunda o Credo; a ínfima os Mandamentos e a todo o copo o seu catecismo. E se algum convidado não chegava a beber mais que até a primeira coroa, dizia que não sabia mais que o Padre nosso; mas, se esgotava todo, dizia que sabia o catecismo inteiro.
 
Lá está já onde o seu cálice será eternamente aquele que disse David, também de três repartimentos: fogo, enxofre e demônios.
 
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DEMÔNIOS ARRIMADIÇOS
 
Algumas pessoas, que seguem o caminho da perfeição, padecem por particular disposição daquele supremo Senhor que é o ponderador dos espíritos, a vexação dos demônios que chamam arrimadiços, ou assistentes; os quais se arrimam, ou encostam a alguma parte do corpo, mais alta ou mais baixa; e ali como desde um castelo ou padrasto (1), dão contínua bateria à alma, e a têm de sítio (2) todo o tempo que lhes dura a licença de Deus, sem se apartarem de dia nem de noite, salvo por alguns breves intervalos, que se escondem, ou ausentam. A pessoa que os padece sente a sua presença ou na fantasia, ou pelo tato e ouvidos, ou talvez pela vista, que é o mais terrível trabalho.
 
(1) Altura que domina outro terreno;
(2) Cercam, sitiam
 
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