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Category: ModernismoConteúdo sindicalizado

A condenação do Modernismo por São Pio X

 

Apesar dos inevitáveis males que acompanham toda crise, o modernismo foi benéfico ao mostrar-nos um santo e um Papa em ação como nunca se tinha visto na história já maravilhosa da Igreja. São Pio X não só era um santo, mas um Papa santo, algo que o mundo não via há quatro séculos. Embora não ostentasse os títulos nobiliárquicos ou a consumada diplomacia de Leão XIII, São Pio X nada tinha de pequeno cura de aldeia obscurantista, como seus detratores tanto apreciavam descrevê-lo. Em um pontificado de pouco mais de dez anos, em meio às mais perigosas crises que a Igreja atravessava, esse veneziano conduzirá a barca de Pedro com mão de mestre. Será qualificado de retrógrado por ter feito ouvidos moucos às sereias modernistas que preconizavam o «Evangelho puro» e profetizavam que a Igreja deveria mudar ou morrer. E, não obstante, poucos pontífices terão merecido como ele o título de reformador, pelos enormes progressos que fez em campos tão diversos como os estudos eclesiásticos, o direito canônico, a Sagrada Bíblia e a liturgia. 

O Concílio do Papa João

 

Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica 

O CONCÍLIO DO PAPA JOÃO

    

Ângelo Giuseppe Roncalli: o futuro João XXIII

No conclave após a morte de Pio XII, o cardeal Ângelo Giuseppe Roncalli, patriarca de Veneza, foi eleito Soberano Pontífice e tomou o nome de João XXIII. O novo Papa tinha antecedentes bastante inquietantes.

Na época de seus estudos eclesiásticos, o jovem Ângelo Giuseppe Roncalli tinha se tornado amigo de certos condiscípulos já ligados ao modernismo e que deviam depois se tornar seus célebres representantes: Dom Ernesto Buonaiuti, Dom Alfonso Manaresi e Dom Giulio Belvederi, que ele encontrava todas as noites na igreja do Gesú em Roma para a visita ao Santíssimo Sacramento, mas também para inflamadas discussões “progressistas”.

A condenação oficial da nova teologia

Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica

A CONDENAÇÃO OFICIAL DA NOVA TEOLOGlA

  

O Papa Pio XII condena a nova teologia 

O cardeal Eugenio Pacelli, eleito Soberano Pontífice em 1939 com o nome de Pio XII, perfeitamente consciente das consequências letais de uma tomada de poder na Igreja pelos novos teólogos, interveio resolutamente para condenar em nome da Igreja a nova teologia e seus propagadores.

Num discurso pronunciado em 17 de setembro de 1946 no Capítulo Geral dos Jesuítas, o Papa já tinha alertado os Padres capitulares contra uma "nova teologia que evolui juntamente com a evolução de todas as coisas, semper itura, numquam perventura, "sempre a caminho (para a verdade) sem nunca atingi-la", acrescentando estas palavras proféticas: "Se tal opinião for abraçada, o que será da imutabilidade dos dogmas, o que seria da unidade e da estabilidade da fé?[1]”.

Os novos modernistas da nova teologia

 

Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica

Os novos modernistas da Nova teologia[1]

 

Henri de Lubac e os “novos teólogos”

Nos anos 30 e 40, uma nova geração de modernistas entrou em cena. Seus nomes serão muito conhecidos mais tarde, como os dominicanos Marie-Dominique Chenu e Yves Congar, os jesuítas Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar e, em seguida, Karl Rahner, formuladores de uma “nova teologia”, cujas raízes estão fincadas no velho modernismo.

Assim como os “velhos” modernistas, os novos teólogos estavam, eles também, fortemente impregnados de imanentismo, subjetivismo e relativismo, com todas as consequências imagináveis no domínio da dogmática e da moral.

O Padre Henri de Lubac, por exemplo, líder da Nova Teologia e, por isso mesmo, tido como “pai” do Concílio Vaticano II e da nova Igreja conciliar, tinha ele também, assim como seus mestres modernistas, uma noção muito elástica da verdade.

Teilhard de Chardin, o profeta do Cristo cósmico

[Capítulo XV do livro Cent ans de modernisme. Généalogie du Concile Vatican II (Editions Clovis, 2003) do padre Dominique Bourmaud, FSSPX.]

Falando estritamente, uma síntese de Teilhard parece fora de propósito numa recensão genealógica dos princípios modernistas, porque nosso protagonista não é filósofo, nem exegeta, nem propriamente teólogo. Porém, fazer o álbum da família neomodernista sem incluir Teilhard de Chardin seria expor-se a subestimar a popularidade do movimento nos círculos profanos. Se, no período das primeiras publicações teilhardianas, em 1927, o modernismo não passava de uma sombra, trinta anos depois, quando da morte de Teilhard, o vírus conquistara todos os níveis hierárquicos e infectara aos pensadores mais sutis, antes de ganhar Roma. O fenômeno teilhardiano age como um termômetro. É o ponto de referência, o critério definitivo que permite distinguir entre modernistas e católicos fiéis. Depois de um esboço do profeta e da sua visão, será preciso abordar as razões profundas de sua celebridade, de ordem científica e mística, para concluir com sua influência póstuma.  Leia mais

Infiltração do Modernismo na Igreja

Na conferência que leremos agora, Mgr. Marcel Lefebvre nos dá alguns detalhes do árduo combate que ocupou os últimos anos de sua vida para conseguir manter a Tradição,  no que toca seu relacionamento com Roma. É claro que muitos anos já se passaram desde que ele deu esta conferência que data de meados da década de 80. Houve o encontro de Assis e diversos atos do Papa João Paul II que empurraram o Vaticano cada vez mais adentro no ecumenismo e no progressismo. A crise se agravou. Mas os princípios católicos que o lúcido bispo apresenta permanecem os mesmos.

Publicada na Revista Fideliter, da Fraternidade São Pio X. Foi conservado o estilo falado.

 

A INFILTRAÇÃO DO MODERNISMO NA IGREJA

Breve História

Fico contente em constatar que no mundo inteiro, no mundo católico, em todo lugar, pessoas corajosas se reúnem em torno de padres fiéis à fé católica e à Igreja Católica, para manter a tradição que é a fortaleza de nossa fé.

Se existe um movimento tão geral é porque a situação da Igreja é verdadeiramente grave. Pois, para que padres, fiéis católicos, aceitem ser tratados de rebeldes, de dissidentes, de desobedientes, mesmo se tratando de bons padres, alguns dos quais já serviram em paróquias durante trinta anos com grande satisfação de seus paroquianos, é para manter a fé católica. Eles o fazem conscientemente no espírito dos mártires.

Ser perseguido por seus irmãos ou pelos inimigos da Igreja, qualquer que seja a mão que bata, por vista que seja contra a manutenção da fé, é sofrer um martírio. Esses padres, esses fiéis, são testemunhas da fé católica. Eles preferem ser considerados como rebeldes e dissidentes a perder a fé.

Nós assistimos, no mundo inteiro, a uma situação trágica, inacreditável, que parece não se ter jamais produzido na história da Igreja. É preciso então tentar explicar esse fenômeno extraordinário. Como podem bons fiéis, bons padres, se esforçarem por manter a fé católica num mundo católico que está em plena dissolução? Foi o Papa Paulo VI, ele mesmo, que falou de autodemolição da Igreja. O que significa esse termo de autodemolição senão que a Igreja se destrói, ela mesma, por ela mesma, por seus próprios membros? É isso o que já dizia o Papa São Pio X na sua primeira encíclica, quando escrevia: «Hoje, o inimigo da Igreja não está mais no exterior da Igreja, está no interior». E o Papa não hesitava em designar os lugares aonde ele se encontrava: «O inimigo se encontra nos seminários». Por conseqüência, já no início do século, o Santo Papa Pio X, na sua primeira encíclica, denunciava a presença de inimigos da Igreja nos seminários.

E é evidente que esses seminaristas que estavam imbuídos do modernismo, do Sillonismo e do progressismo se tornaram padres. Alguns deles se tornaram bispos e entre eles cardeais. Poderia-se citar os nomes daqueles que fizeram seu seminário no início do século, que morreram agora, mas cujo espírito era modernista e progressista.

Assim, já o Papa Pio X denunciava essa divisão na Igreja, uma certa ruptura no interior mesmo da Igreja e do Clero.

Eu não sou mais jovem e já tive ocasiões, ao longo de minha vida de seminarista, de minha vida sacerdotal e de minha vida episcopal, de constatar essa divisão, e isso já no seminário francês de Roma, onde eu fazia meus estudos, pela graça do Bom Deus. Confesso que não estava muito entusiasmado pelos estudos feitos em Roma. Eu pessoalmente preferia estar, como os seminaristas de minha diocese, no seminário de Lille e me tornar um pequeno vigário e em seguida um simples cura numa paróquia do campo.

Manter a fé numa paróquia: eu me via um pouco pai espiritual de uma população a qual nos apegamos, para lhe inculcar a fé e os modos cristãos. Era o meu ideal. Mas, aconteceu que meu irmão estava já, depois da Guerra de 1914-1918, em Roma, porque ele tinha se separado da família por circunstâncias da guerra no norte da França e, por conseqüência, meus pais insistiram para que eu fosse reencontrar meu irmão. «Como seu irmão já está em Roma, no seminário francês, vá então encontrá-lo e fazer seus estudos com ele». E eu parti para Roma. Fiz meus estudos na Universidade gregoriana, de 1923 a 1930. Fui ordenado em 1929 e fiquei como padre no seminário durante um ano.

As primeiras vítimas do Modernismo

Ora, durante esses anos no seminário, passaram-se coisas trágicas que me lembram exatamente tudo o que eu vi depois do Concílio. Estou praticamente na mesma situação em que estava nosso superior do seminário francês naquele momento: o padre Le Floch, que foi o superior do seminário francês de Roma durante trinta anos. Era um homem muito digno, um Bretão, forte e firme na sua fé como o granito da Bretanha. Ele nos ensinava as encíclicas dos papas e o que era o modernismo condenado por S. Pio X, os erros modernos condenados por Leão XIII, o que era o liberalismo condenado por Pio IX. E nós amávamos nosso padre Le Floch. Nós éramos muito apegados a ele.

Mas sua firmeza na doutrina, na tradição, desgostava aos modernistas, evidentemente. Já existiam progressistas naquela época, pois os papas os condenavam. Ele desagradava não somente aos progressistas, mas também ao governo francês. O governo francês tinha medo que, por intermédio do Pe. Le Floch, por essa formação dada aos seminaristas, os bispos tradicionalistas viessem se implantar na França e dessem à Igreja da França um clima tradicional e evidentemente antiliberal. Ora, o governo francês era maçônico e por conseqüência, fundamentalmente liberal e não podia nem pensar que bispos não liberais pudessem tomar os postos mais importantes. Pressões foram exercidas sobre o papa para eliminar o Pe. Le Floch. Foi Francisque Gay, futuro líder do M.R.P., o encarregado dessa operação. Ele desceu a Roma e fez pressão sobre o Papa Pio XI, denunciando o Pe. Le Floch como sendo, por assim dizer, da Action Française, e um homem político ensinando aos seminaristas a serem membros da Action Française.

Tudo isso era mentira. Durante três anos eu escutei o Pe. Le Floch nas suas conferências espirituais. Nunca ele nos falou da Action Française. Hoje eles me dizem: «Você foi naquele tempo membro da Action Française». Eu nunca fui membro da Action Française.

Evidentemente, dizem que somos membros da Action Française, nazistas, fascistas, tudo o que se pode nos rotular como etiquetas pejorativas, porque nós somos anti-revolucionários e antiliberais.

Então uma pesquisa foi feita: o cardeal arcebispo de Milão foi enviado ao local. Não era o menor dos cardeais. Beneditino, homem de uma grande santidade e de uma grande inteligência, foi designado pelo Papa Pio XI para pesquisar no seminário francês para ver se o que dizia Francisque Gay era exato ou não. A pesquisa foi feita. O resultado foi: o seminário francês funciona perfeitamente bem sob a direção do Pe. Le Floch. Não temos absolutamente nada a reprovar ao superior do seminário.

Bem, isto não foi o suficiente. Três meses depois, nova pesquisa, dessa vez com a ordem de acabar com o Pe. Le Floch. A nova pesquisa foi feita por um membro das Congregações Romanas que concluiu, com efeito, que o Pe. Le Floch era amigo da Action Française, que ele era perigoso para o seminário e que era preciso pedir sua demissão. O que foi feito. Em 1926, a Santa Sé pediu ao Pe. Le Floch para deixar a direção do seminário francês. Nós ficamos estarrecidos. O Pe. Le Floch nunca foi um homem político. Era um homem tradicional, apegado à doutrina da Igreja, aos papas, grande amigo do Papa Pio X, que tinha uma grande confiança nele. E, precisamente, porque ele era um amigo do Papa Pio X, então ele era inimigo dos progressistas.

E depois, nessa época em que eu estava no seminário francês, não somente o Pe. Le Floch foi atacado, mas também o Cardeal Billot, teólogo de primeiro valor, hoje ainda reputado e estudado nos nossos seminários. Monseigneur Billot, cardeal da Santa Igreja, foi deposto. Tiraram-lhe a púrpura e enviaram-lhe, como penitência, para perto de Albano, Castelgandolfo, na casa dos Jesuítas, proibido de sair, sob o pretexto de que ele tinha ligações com o Action Française. De fato, o Cardeal Billot não era da Action Française, mas ele estimava a pessoa de Maurras e o citava em seu livro de teologia. Por exemplo, no segundo livro da Igreja, «De Ecclesia», o Cardeal Billot fez um magnífico estudo sobre o liberalismo, onde, em notas, fez algumas citações de Maurras. Era um pecado mortal!Eles acharam isso para depor o Cardeal Billot. Isto não é pouca coisa, um dos maiores teólogos de sua época deposto como cardeal, reduzido ao estado de simples padre, pois ele não era bispo (naquele tempo ainda havia cardeais diáconos). Já era a perseguição.

O Papa Pio XI sofreu influência dos progressistas

O Papa Pio XI sofreu influência dos progressistas que se achavam já em Roma. Nós vemos aí precisamente, uma certa diferença entre os papas que se sucederam e portanto nessa época o Papa Pio XI fez encíclicas magníficas. Não era um liberal. Sua encíclica contra o comunismo Divini Redemptoris, sua encíclica sobre o Cristo-Rei, instaurando a festa do Cristo Rei , logo, o reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo é magnífico. Sua encíclica sobre educação cristã é absolutamente admirável e permanece hoje um documento fundamental para aqueles que querem defender a escola católica.

Então, no plano da doutrina, o Papa Pio XI foi um homem admirável, mas fraco no domínio da ação prática. Ele era influenciável. Foi assim que ele foi muito influenciado na guerra do México (1926-1929) e que ele deu ordem aos Cristeros, àqueles que defendiam a religião católica e combatiam pelo Cristo-Rei, de confiar no governo e entregar as armas. Desde que entregaram as armas, foram todos massacrados. Ainda se lembram, no México, desse massacre horrível. O Papa Pio XI confiou no governo, que o enganou. Depois do que se passou, ele mostrou-se desolado. Ele não imaginava que um governo que lhe prometera tratar com honra àqueles que defendiam sua fé iria em seguida massacrá-los. Foram, com efeito, milhares de mexicanos que foram massacrados por causa de sua fé.

Já no início do século certas situações anunciam uma divisão na Igreja. E chegamos lentamente, mas seguramente, às vésperas do Concílio.

O Papa Pio XII foi um grande papa. Tão bom nos seus escritos quanto na sua maneira de conduzir a Igreja. E no tempo de Pio XII a fé foi firmemente mantida e, naturalmente, os progressistas não gostavam dele, porque ele lembrava os princípios fundamentais da teologia e da verdade.

Então veio João XXIII, ele que não tinha o temperamento de Pio XII. João XXIII era um homem muito simples, muito familiar. Ele não via problemas em lugar nenhum.

Quando ele quis fazer um sínodo em Roma, lhe disseram: «Mas, Santo Padre, um sínodo tem que ser preparado, é preciso ao menos um ano, talvez dois, para preparar tal reunião, afim de que os frutos sejam numerosos e que as reformas possam ser verdadeiramente estudadas e em seguida aplicadas para que Vossa diocese de Roma tire proveito. Isto não pode se fazer assim, no espaço de dois ou três meses e depois quinze dias de reuniões, e tudo irá bem. Não é possível !».

«Ah, sim, sim, eu conheço, eu sei, vamos fazer um pequeno sínodo, vamos preparar isso em alguns meses e tudo irá bem».

Preparou-se o sínodo rapidamente: comissões em Roma, todo mundo trabalhando. Quinze dias de sínodo e depois tudo acabou. O Papa João XXIII estava contente, seu pequeno sínodo foi feito; resultado: nenhum. Nada mudou na diocese de Roma. A situação ficou exatamente a mesma.

À deriva com o Concílio

A mesma coisa para o Concílio. «Tenho a intenção de fazer um Concílio». Já o Papa Pio XII tinha sido solicitado por certos cardeais para reunir um Concílio. Mas ele recusou, estimando que isso seria impossível. Não se pode, dizia ele, na nossa época, fazer um Concílio com 2.500 bispos. As pressões que se pode sofrer do fato dos meios de comunicação social são muito perigosas para que se possa reunir um Concílio. Corre-se o risco de perder o controle. E ele não fez o Concílio.

Mas o Papa João XXIII disse: não se pode ser pessimista; é preciso ver as coisas com confiança. Vamos nos reunir durante três meses, com todos os bispos do mundo inteiro. Começamos em 13 de outubro e entre 8 de dezembro e 25 de janeiro, tudo terminado, todo mundo vai embora e volta para suas casas e acaba-se o Concílio.

E o papa lançou o Concílio! Era preciso prepará-lo. Não se faz um Concílio como um sínodo. Foi preciso prepará-lo dois anos antes. Fui nomeado pessoalmente membro da Comissão Central Preparatória, sendo arcebispo de Dakar e presidente da Conferência Episcopal do Oeste Africano. Eu vim, então, a Roma, durante dois anos, ao menos umas dez vezes, para participar das reuniões dessa Comissão Central Preparatória que era, de fato, muito importante porque para ela todos os documentos das comissões secundárias eram enviados, para serem estudados e submetidos ao Concílio. Havia nessa comissão setenta cardeais e uns vinte arcebispos e bispos, além dos peritos. Mas estes não eram membros da comissão. Estavam lá somente para serem eventualmente consultados pelos membros.

A aparição da divisão

Ora, durante esses dois anos, as reuniões se sucederam e apareceu claramente, para todos os membros que estavam presentes, que havia uma divisão profunda no interior da Igreja. Uma divisão profunda, não acidental ou superficial, mas uma divisão profunda mais ainda entre os cardeais que entre os arcebispos e bispos. Na ocasião dos votos que foram feitos vimos os cardeais conservadores votarem de uma maneira e os cardeais progressistas de outra. E todos os votos eram sempre mais ou menos no mesmo sentido. Está claro que havia uma divisão real entre os cardeais.

Relatei em um de meus livros, Un Evêque Parle, um pequeno incidente que sempre lembro porque caracteriza verdadeiramente o fim dessa Comissão Central e o início do Concílio. Foi durante a última sessão; nós tínhamos recebido dois documentos sobre o mesmo tema. O Cardeal Bea tinha preparado um texto De Libertate Religiosa,“Da Liberdade Religiosa”. O Cardeal Ottaviani tinha preparado um outro: De Tolerantia Religiosa, “Da Tolerância Religiosa”.

Tratando do mesmo assunto, já os dois títulos eram significativos de duas concepções diferentes. O Cardeal Bea falava da liberdade de todos as religiões e o Cardeal Ottaviani da liberdade da religião católica e da tolerância do erro, tolerância das falsas religiões. Como isso poderia se arrumar em comissão ?

E desde o começo o Cardeal Ottaviani apontou o dedo sobre o Cardeal Bea e lhe disse: «Eminência, não tens o direito de fazer esse documento». O Cardeal Bea respondeu: «Perdão, como presidente da Comissão de Unidade eu tinha perfeitamente o direito de fazer esse documento. Logo, eu fiz esse documento cientemente. E, aliás, eu sou radicalmente opositor de vossa tese.

Assim, dois cardeais dos mais eminentes, o Cardeal Ottaviani, prefeito do Santo Ofício, e o Cardeal Bea, confessor do Papa Pio XII, jesuíta, tendo uma grande influência sobre todos os cardeais, que era bem conhecido no Instituto Bíblico, que fez estudos bíblicos muito superiores. Ou seja, duas personalidades eminentes que se opõem sobre uma tese fundamental na Igreja. Outra coisa é a liberdade de todas as religiões, isto é, por-se sobre o mesmo pé a liberdade e o erro e depois, de outro lado, a liberdade da religião católica e a tolerância dos erros.

É totalmente diferente. Tradicionalmente a Igreja foi sempre pela tese do Cardeal Ottaviani e não por aquela do Cardeal Bea, que é totalmente liberal.

Então, o Cardeal Ruffini, de Palermo, se levantou e disse: «Nós estamos na presença de dois confrades que se opõem um ao outro sobre uma questão muito importante na Igreja. Nós vamos ser obrigados a apelar à autoridade suprema».

Com freqüência, o papa vinha presidir nossas reuniões. Mas ele não estava nessa última. Então os cardeais pediram para votar: «Nós não queremos esperar ir ver o Santo Padre, nós vamos votar». Fizeram um voto. A metade dos cardeais, mais ou menos, votou pela tese do Cardeal Bea e a outra pela do Cardeal Ottaviani. Ora, todos os que votaram pelo Cardeal Bea eram os cardeais da Holanda, da Alemanha, da França, da Áustria, todos, em geral, da Europa e da América do Norte. Quanto aos cardeais tradicionais, eles eram da Cúria romana, da América do Sul e em geral os de língua espanhola.

Era uma verdadeira ruptura na Igreja. E desde esse momento eu me perguntei como o Concílio iria se passar, com oposições parecidas sobre teses também importantes. Quem vai prevalecer? É o Cardeal Ottaviani com os cardeais de língua espanhola e de língua latina, ou os cardeais europeus e os da América do Norte?

E, com efeito, a luta começou imediatamente no interior do Concílio desde os primeiros dias. O Cardeal Ottaviani apresentou a lista dos membros que faziam parte das comissões preparatórias, dando plena liberdade a cada um de escolher o que queria. Porque era evidente que nós não nos conhecíamos. Nós chegáramos, cada um de sua diocese, como conhecer os 2.500 bispos do mundo ?

Pede-se para votar para designar os membros das comissões do Concílio. Quem escolher?  Nós não conhecíamos os bispos da América do Sul, da África do Sul, da Índia.

Então o Cardeal Ottaviani pensou: Roma já fez uma escolha para todas as Comissões Preparatórias, isso poderia ser uma indicação para ajudar os padres do Concílio a escolher. Era perfeitamente normal.

O Cardeal Lienart se levantou e disse: «Nós não aceitamos esse procedimento. Pedimos 48 horas de reflexão afim de melhor conhecer aqueles que poderiam fazer parte de diferentes comissões. É uma pressão que é exercida sobre o julgamento dos padres. Nós não o aceitamos».

O Concílio tinha começado há dois dias e já era um afrontamento entre os cardeais. O que aconteceu?

Durante essas duas horas os cardeais liberais tinham já preparado listas variadas de todos os países do mundo e eles distribuíram nas caixas de correio de todos os padres do Concílio. Nós todos recebemos então uma lista propondo: membros de tal comissão, este, aquele... de diferentes países. Muitos disseram: – enfim, porque não?  Eu não os conheço. Como a lista já está pronta, só temos que nos servir. Quarenta e oito horas depois foi a lista dos liberais que veio em primeiro lugar. Mas ela não passou com dois terços de votos, como previa o regulamento do Concílio.

Então, o que faria o Papa? O Papa João XXIII iria fazer uma exceção ao regulamento do Concílio ou aplicá-lo ? Evidentemente os cardeais liberais tiveram medo e se precipitaram em busca do Papa e disseram: «Escute, temos mais da metade das vozes, quase 60%. O senhor não pode recusar isso. Não se vai ainda refazer uma eleição, não se sairá mais disso. Isto representa bem a maioria do Concílio, só podemos aceitar isso». E o Papa João XXIII aceitou. E desde o começo todos os membros da Comissão do Concílio foram nomeados pela fração liberal. Pode-se calcular que influência enorme isso iria ter no Concílio.

Estou certo que o Papa João XXIII morreu prematuramente do que ele viu e anteviu do Concílio. Ele que pensava que no fim de alguns meses tudo teria acabado. Um Concílio de três meses. Todos se abraçam e voltam para casa, felizes e contentes de ter estado em Roma e de ter feito uma boa reuniãozinha.

Ele descobriu que o Concílio era um mundo e um lugar onde haveria disputas. Nenhum texto saiu da primeira sessão do Concílio. O Papa João XXIII ficou desconcertado e eu acho que isso acelerou sua morte. Disseram mesmo que sobre seu leito de morte ele disse: «Pare o Concílio, pare o Concílio».

Paulo VI dá seu apoio aos liberais

Veio o Papa VI. E é evidente que ele deu seu apoio à facção liberal. Como assim?

Desde o começo de seu pontificado, na Segunda sessão do Concílio, ele nomeou imediatamente quatro moderadores. Mas já havia os dez presidentes que durante a primeira sessão presidiram os trabalhos do Concílio. Cada um dentre eles presidia uma sessão, depois o segundo, depois o terceiro. Eles estavam numa mesa mais elevada que os outros. Eles dirigiam o Concílio.

O Papa Paulo VI nomeou imediatamente esses quatro moderadores, e os presidentes se tornaram os presidentes de honra. Os quatros moderadores tornaram-se os verdadeiros presidentes do Concílio.

Ora, quem eram esses moderadores? O Cardeal Döpfner, de Munich, muito progressista, muito ecumênico. O Cardeal Suenens, que todo mundo conhece como mais carismático e que fez conferências em favor do casamento dos padres. O Cardeal Lercaro, conhecido por seu filo-comunismo e que tinha um vigário geral inscrito no partido comunista. E, enfim, o Cardeal Agagionian. Ele representava um pouco a facção tradicional, pode-se dizer. Era um homem discreto, sério, que por conseqüência não teve verdadeira influência sobre o Concílio. Mas os três outros conduziram a tarefa com o vento em popa. Eles reuniam constantemente os cardeais liberais, o que deu uma força considerável à facção liberal do Concílio.

Evidentemente os cardeais e os bispos tradicionalistas se acharam, desde então, como postos de lado, desprezados.

Quando o pobre cardeal Ottaviani, cego, pedia a palavra, se ele não terminasse no fim dos dez minutos que lhe era dado, escutava-se murmúrios entre os jovens bispos para lhe fazer calar, lhe fazer compreender que se estava satisfeito de lhe ouvir. Que já bastava. Foi horrível. Esse venerável cardeal, venerado por toda Roma, que teve uma influência enorme na Santa Igreja, prefeito do Santo Ofício, não é uma função qualquer. Era escandaloso ver como eram tratados aqueles que eram tradicionalistas.

Monsenhor Stoffa (nomeado cardeal mais tarde) muito ativo, recebeu da presidência do Concílio pedido que se calasse. Coisas inimagináveis.

A Revolução na Igreja

Assim se passou o Concílio. É evidente que todos as teses, todos os textos do Concílio foram influenciados pelos cardeais liberais e as comissões liberais. Não devemos nos espantar que tenhamos tido textos ambíguos, favoráveis a mudanças, a uma verdadeira revolução na Igreja.

Será que nós poderíamos ter feito alguma coisa, nós que representávamos a facção tradicional dos bispos e cardeais? Pouca coisa, em definitivo. Éramos duzentos e cinqüenta favoráveis à permanência da Tradição e desfavoráveis a mudanças de vulto na Igreja: falsa renovação, falso ecumenismo, falsa colegialidade. Nós éramos opostos a essas coisas. Esses duzentos e cinqüenta bispos, evidentemente, tiveram algum peso e, em certas ocasiões, os textos foram modificados. O mal foi um pouco limitado. Mas nós não conseguimos impedir certas teses de passar, particularmente a da liberdade religiosa, cujo texto foi refeito cinco vezes. Cinco vezes a mesma tese voltava. Nós nos opusemos sempre. Havia sempre duzentos e cinqüenta vozes contra. Então o Papa Paulo VI fez adicionar duas pequenas frases no texto, dizendo: «não há nada nesse texto que seja contrário à doutrina tradicional da Igreja» e «a Igreja permanece sempre a verdadeira e única Igreja de Cristo».

Então, os bispos espanhóis, em particular, disseram: «bem, já que o Papa adicionou isso, agora não há mais problema, já que não há nada contra a tradição». Se as coisas são contraditórias, essa pequena frase contradiz tudo o que está no interior do texto. É um esquema contraditório. Não se pode aceitar isso. Então sobraram somente, se eu me lembro bem, setenta e quatro bispos que permaneceram contra. É o único esquema que encontrou uma tal oposição: 74 sobre 2.500, é pouca coisa !

Então terminou o Concílio, não podemos nos espantar com as reformas que foram feitas. Depois de toda a história do liberalismo, os liberais saindo vitoriosos no interior do Concílio, exigiram do Papa Paulo VI lugares nas Congregações romanas. E, de fato, os lugares importantes foram dados aos progressistas. Quando morria um Cardeal, ou numa ocasião qualquer que permitisse ao Papa Paulo VI afastar um cardeal tradicionalista, ele colocava imediatamente um cardeal liberal no seu lugar.

Foi assim que Roma achou-se ocupada pelos liberais. É um fato que não se pode mais negar, nem que as reformas do Concílio foram reformas que respiram esse espírito de ecumenismo, um espírito protestante, nem mais nem menos.

A Reforma Litúrgica

O mais grave foi a reforma litúrgica. Ela foi operada, sabe-se, por um padre bem conhecido, Bugnini, que tinha preparado isso muito tempo antes.

Já em 1955, o Padre Bugnini fez traduzir os textos protestantes por Mons. Pintonello, Capelão Geral do exército italiano, que tinha passado muito tempo na Alemanha durante a ocupação, pois ele próprio não conhecia alemão. Foi Mons. Pintonello que disse a mim mesmo que ele tinha traduzido os livros litúrgicos protestantes para o Padre Bugnini, que naquele momento era um membro menor de uma comissão litúrgica. Ele não era nada. Depois foi professor de liturgia no Latrão. O Papa João XXIII lhe mandou embora por causa de seu modernismo, de seu progressismo. Pois bem, ele tornou-se presidente da Comissão da Reforma da Liturgia. É inacreditável. Eu tive ocasião de constatar eu mesmo a influência do Padre Bugnini. Como isso pôde acontecer em Roma.

Eu era, naquele tempo, logo depois do Concílio, superior geral da Congregação dos Padres do Espírito Santo e nós tínhamos, em Roma, uma Associação de superiores gerais.

Nós pedimos ao Pe. Bugnini para nos explicar o que era sua nova missa, porque enfim, não era um pequeno acontecimento. Depois do Concílio, logo depois, ouviu-se falar de Missa normativa, Missa nova, novus ordo, o que é isso tudo? Não se falou disso no Concílio. O que está acontecendo? Então nós pedimos ao Pe. Bugnini para explicar ele mesmo aos 84 superiores gerais que se reuniram, entre os quais eu me encontrava.

O Padre Bugnini, com muito boa vontade, nos explicou o que era a Missa normativa: vai-se mudar isso, vai-se mudar aquilo, vamos pôr um outro ofertório, poderemos escolher os Canons, poderemos reduzir as orações da Comunhão, poderemos ter muitos esquemas para o final da Missa. Poderemos dizer a Missa em língua vernácula. Nós nos olhávamos dizendo: não é possível!

Ele falava exatamente como se nunca tivesse tido uma Missa antes dele. Falava de sua Missa normativa como de uma invenção nova.

Pessoalmente, fiquei atônito e mudo, quando, habitualmente, eu tomo com facilidade a palavra para me opor àqueles com os quais não estou de acordo. Não conseguia dizer uma palavra. Não é possível que seja a esse homem que está aí diante de mim que foi confiada toda a reforma da Liturgia Católica, do Santo Sacrifício da Missa, dos Sacramentos, do Breviário, de todas as nossas orações. Aonde vamos nós? Aonde vai a Igreja?

Dois superiores gerais tiveram a coragem de se levantar. E um deles questionou o Padre Bugnini: «É uma participação ativa, é uma participação corporal, isto é, orações vocais, ou é a participação espiritual? Em todo caso, o senhor falou tanto da participação dos fiéis, que parece que não se justifica mais a Missa sem fiéis, porque toda a sua Missa foi feita em função da participação dos fiéis. Nós beneditinos, celebramos nossas Missas sem fiéis. Então, devemos continuar a dizer nossas Missas privadas, visto que não temos fiéis que aí participem?»

Eu vos repito exatamente o que disse o Pe. Bugnini, eu tenho ainda nos meus ouvidos tanto isso me chocou: «Para falar a verdade, não se pensou nisso», disse ele!

Depois um outro se levantou e disse: «Reverendo Padre, o senhor disse: vamos suprimir isso aqui, suprimir aquilo lá, substituir isso por aquilo, e sempre orações mais curtas, eu tenho a impressão que a sua nova Missa vai ser dita em dez, doze minutos, um pequeno quarto de hora, não é razoável, não é respeitoso para um tal ato da Igreja». E ele lhe respondeu isso: «Poder-se-á sempre adicionar qualquer coisa». É sério? Eu ouvi com os meus ouvidos. Se fosse qualquer um que me tivesse contado eu teria quase duvidado, mas eu escutei eu mesmo.

Depois, no momento em que essa Missa normativa começou a se realizar, eu estava tão horrorizado que nós fizemos uma pequena reunião com alguns padres, alguns teólogos, de onde saiu o “Breve exame crítico” que foi levado ao Cardeal Ottaviani. Eu presidia essa pequena reunião. Foi dito: «É preciso ir aos cardeais. Não se pode deixar fazer isso sem reagir.»

Então fui procurar eu mesmo o secretário de Estado, o Cardeal Cicognani e lhe disse:  «Vossa Eminência deixará passar isto?  Não é possível. O que é essa nova Missa? É uma revolução na Igreja, uma revolução na liturgia

O Cardeal Cicognani, que era o Secretário de Estado de Paulo VI, pôs a cabeça entre as mãos e disse-me: «Oh, Monsenhor, eu bem sei: Eu estou de acordo com o senhor, mas o que eu posso fazer ?  O Pe. Bugnini pode entrar no escritório do Santo Padre e lhe fazer assinar o que ele quer.» Foi o Cardeal Secretário de Estado que me disse isso! Então, o Secretário de Estado, a personalidade número dois da Igreja depois do Papa, foi posta em estado de inferioridade em relação ao Pe. Bugnini. Ele podia entrar nos aposentos do Papa quando ele queria e lhe fazer assinar o que ele quisesse.

Isso pode explicar, então, porque o Papa Paulo VI teria assinado textos que ele não tinha lido. Ele disse isso ao Cardeal Journet, que era um homem muito ponderado, professor na Universidade de Friburgo, na Suiça, um grande teólogo. Quando o cardeal viu essa definição da Missa na Instrução que precede o novo “Ordo”, ele disse: não se pode aceitar essa definição da Missa; é preciso que eu vá a Roma ver o Papa. Ele foi e disse: «Santo Padre, não podeis deixar essa definição, ela é herética. Não podeis continuar a deixar vossa assinatura numa coisa como essa». E o Santo Padre lhe respondeu (o Cardeal Jounet não me disse a mim mesmo, mas a alguém que me repetiu): «Bem, realmente, eu não a li. Eu assinei sem ler.» Evidentemente, se o Pe. Bugnini tinha uma tal influência sobre ele, é possível. Ele dizia ao Santo Padre: «Podeis assinar» «Mas o senhor prestou bem atenção?» — «Sim, vós podeis assinar.»E ele assinou.

E isso não passou pelo Santo Ofício. Eu o sei, pois o Cardeal Seper ele mesmo me disse que estava ausente quando o Novo Ordo foi editado e que isso não passou pelo Santo Ofício. Então, foi realmente o Pe. Bugnini que obteve essa assinatura, que contrariou talvez o Papa, nós não sabemos, mas que tinha, sem dúvida alguma, uma influência extraordinária sobre o Santo Padre.

Terceiro fato do qual eu fui testemunha a propósito do Pe. Bugnini:  na ocasião da permissão que estava sendo dada para a comunhão na mão (mais uma coisa horrível!) eu achei que não podia deixar passar isso. É preciso que eu vá ver o Cardeal Guth – um suiço – que era prefeito da Congregação do Culto. Eu fui então a Roma, onde o Cardeal Guth me recebeu muito amavelmente, e imediatamente me disse:  «Eu vou fazer entrar o meu segundo, o Arcebispo Antonini, afim de que ele possa ouvir o que o senhor diz.»  E nós conversamos. Eu disse:  «Escute, o senhor que é responsável pela Congregação do Culto, não pode deixar publicar esse decreto autorizando a comunhão na mão. Imagine todos os sacrilégios que isso vai representar. Imagine a falta de respeito pela Santa Eucaristia que vai se espalhar em toda a Igreja. É inadmissível, o senhor não pode deixar fazer algo assim. Já os padres começam a dar a comunhão dessa maneira. É preciso parar isso imediatamente. E com essa nova missa eles pegam sempre o pequeno cânon, o segundo, que é muito breve». A esse propósito, o Cardeal Guth disse a Mons. Antonini:  «Veja, eu disse que isso aconteceria, que os padres pegariam o cânon mais curto, para ir mais rápido, para acabar mais rápido com a Missa».

Depois o Cardeal Guth me disse: – «Monsenhor, se pedissem minha opinião (quando ele dizia "pedissem", era ao Papa que ele se referia, porque só o Papa era seu superior), mas eu não estou certo que vão me pedir (ele que era Prefeito da Congregação do Culto, encarregado de tudo que era ligado ao culto e a liturgia!), eu me poria de joelhos, Monsenhor, diante do Papa e lhe diria: Santo Padre, não faça isso, não assine esse decreto!  Eu me poria de joelhos, Monsenhor. Mas eu não sei se me interrogarão pois não sou eu que mando aqui». Isso eu ouvi com meus ouvidos. Ele fazia alusão a Bugnini, que era o terceiro na Congregação do Culto. Havia o Cardeal Guth, o Arcebispo Antonini e o Pde. Bugnini, presidente da Comissão de Liturgia. É preciso ter escutado isso!  É preciso compreender também minha atitude quando me dizem:  o senhor é um dissidente, um desobediente, um rebelde.

Infiltrados na Igreja para destruí-la

Sim, eu sou um rebelde. Sim, eu sou um dissidente. Sim, eu sou um desobediente dessa gente, dos Bugnini. Porque são eles que se infiltraram na Igreja para destruí-la. Não é possível fazer de outro modo.

Então, vamos contribuir para a destruição da Igreja? Vamos dizer: sim, sim, amém, mesmo se é o inimigo que penetrou até junto do Santo Padre e que pode fazê-lo assinar o que ele quer? Sob quais pressões? Não sabemos. Existem coisas escondidas que nos escapam, evidentemente. Alguns dizem que é a maçonaria. É possível, eu não sei. Em todo caso, há um mistério. Como um padre que não é cardeal nem mesmo bispo, um padre ainda jovem naquela época, que subiu contra a vontade do Papa João XXIII, que o tinha expulsado da Universidade do Latrão, que subiu, subiu e que chegou ao topo que se ri do Cardeal Secretário de Estado, que se ri do Cardeal Prefeito da Congregação do Culto, que vai diretamente ao Santo Padre e lhe faz assinar o que ele quer. Nunca se viu nada de parecido na Santa Igreja. Tudo passa sempre pelas autoridades. Faz-se Comissões. Estuda-se os documentos. Mas esse rapaz era todo poderoso!

Foi ele que trouxe esses pastores protestantes para mudar nossa Missa. Não foi o Cardeal Guth. Não foi o Cardeal Secretário de Estado, talvez nem mesmo o Papa. Foi ele. Que tipo de homem era esse Bugnini?

Um dia o Abade de São Paulo fora dos Muros, beneditino que precedeu Bugnini na Comissão de Liturgia, me disse: «Monsenhor, não me fale do Pe. Bugnini; eu sei muito sobre ele. Não me pergunte quem ele é». Eu retomei: «Mas diga-me, porque é necessário que as pessoas saibam, é necessário que as coisas apareçam» «Eu não posso lhe falar do Pe. Bugnini». Logo, ele o conhecia bem. É provável que tenha sido ele que tenha pedido a João XXIII de sair da Universidade do Latrão.

Este conjunto de coisas nos mostra que o inimigo penetrou no interior da Igreja, como já dizia São Pio X; ele está no mais alto cume, como anunciou Nossa Senhora de La Salette, e como está, sem dúvida, no terceiro segredo de Fátima.

Mas, se o inimigo está realmente dentro da Igreja, deve-se lhe obedecer? Ah! sim, ele representa o Papa... Antes de tudo, não se sabe de nada, não se sabe o que pensa o Papa.

É bem verdade que eu tenho provas pessoais de que o Papa Paulo VI era muito influenciado pelo Cardeal Villot. Diziam que o Cardeal Villot era maçom. Não sei. Aconteceram coisas. Fotocopiaram cartas de maçons endereçadas ao Cardeal Villot. Não tenho as provas. Mas, de qualquer forma, o Cardeal Villot tinha grande influência sobre o Papa. Ele reuniu em suas mãos todos os poderes em Roma. Tornou-se o mestre, muito mais do que o Papa. Tudo passava por suas mãos. Isso eu sei. Um dia, fui ver o Cardeal Wright, sobre o catecismo canadense. Eu lhe disse: «Veja esse catecismo. O senhor conhece estes livretos intitulados Ruptura? São abomináveis. Eles ensinam às crianças a romper: romper com a família, com a sociedade, com a Tradição...são os catecismos que se ensina às crianças no Canadá, com Imprimatur de Mgr. Courdec. O senhor é encarregado dos catecismos no mundo inteiro, o senhor está de acordo com este catecismo?» «Não, não - me disse ele - este catecismo não é católico» «Ele não é católico? Diga isso imediatamente à Conferência Episcopal do Canadá. Diga-lhes para parar, de joga-lo no fogo e retomar verdadeiros catecismos». «Como quer o senhor que eu me oponha a uma Conferência Episcopal?»

Eu disse então: acabou-se. Não há mais autoridade dentro da Igreja. Terminado! Se Roma não pode dizer mais nada a uma Conferência Episcopal, mesmo se ela esta destruindo a Fé das crianças, então é o fim da Igreja.

Esta é a situação: Roma tem medo das Conferências Episcopais. Estas Conferências são abomináveis. Na França, existe uma campanha patrocinada pelos bispos em favor da contracepção. Acho que eles foram convencidos pelo governo socialista que passa constantemente na televisão este slogantome a pílula para impedir o aborto. Eles não acharam nada melhor do que isso e fazem uma campanha irracional em favor da pílula. Elas são subvencionadas para meninas de doze anos, para evitar o aborto! E os bispos aprovam! No boletim da diocese de Tulle, que continuo a receber porque é a minha antiga diocese, havia documentos oficiais em favor da contracepção, firmados pelo bispo, Mgr. Bruneau, um antigo superior geral dos padres de Saint Sulpice, um dos melhores bispos da França. É assim!

Porque eu não obedeço

O que devemos fazer? Eles dizem: o senhor deve obedecer, o senhor é desobediente, não tem o direito de continuar o que está fazendo, está dividindo a Igreja.

O que é uma lei? O que é um decreto? O que nos obriga à obediência? Uma lei, diz Leão XIII, é uma ordenação da razão para o bem comum, nunca para o mal comum – é para o bem. Isso é tão evidente que, se for para o mal, deixa de ser uma lei. Leão XIII dizia isso explicitamente na Encíclica Libertas. Uma lei que não é para o bem comum não é mais uma lei e não deve ser obedecida.

Muitos canonistas, em Roma, dizem que a Missa de Bugnini não é uma lei. Não houve lei para a Nova Missa. Admitamos que tenha até havido uma lei, vinda de Roma, uma ordenação da razão para o bem comum e não para o mal comum. Ora, a Nova Missa está destruindo a Igreja, destruindo a Fé. É evidente. O Arcebispo de Montreal (Canadá), Mgr. Grégoire, numa carta publicada, foi muito corajoso. É um dos raros bispos a ter ousado escrever uma carta denunciando os males que sofre a Igreja em Montreal. «Ficamos assustados de ver o abandono das paróquias por grande número de fiéis. Atribuímos isso, em grande parte, à reforma da Liturgia». Ele teve a coragem de falar assim.

Estamos diante de uma verdadeira conjuração dentro da Igreja, da parte dos atuais cardeais, como o Cardeal Nox, que fez essa famosa pesquisa sobre a Missa de S. Pio V no mundo inteiro. É uma mentira clara e evidente para influenciar o Papa João Paulo II, para que ele dissesse: se é só esse pequeno número que quer a Tradição, isso vai acabar sozinho, não vale nada. Na verdade, o Papa, quando me recebeu em audiência, em Roma, em novembro d e1978, queria assinar um ato, pelo qual os padres pudessem rezar a Missa de sua escolha. Ele estava inclinado a fazer isso.

Mas existe em Roma um grupo de cardeais que é radicalmente contra a Tradição. O Cardeal Casaroli, prefeito da Congregação dos Religiosos; o Cardeal Baggio, prefeito da Congregação dos Bispos, posto muito importante que cuida da nomeação dos bispos. E o famoso Virgínio Lévi, segundo da Congregação do Culto, talvez pior do que Bugnini. O Cardeal Hamer, arcebispo belga, segundo do Santo Ofício, nascido na região de Louvain, formado com todas as idéias modernistas de Louvain. Estes são radicalmente contra a Tradição; não querem nem ouvir falar. Creio que se pudessem me esganar eles o fariam.

Que eles nos deixem ao menos a liberdade

Eles se unem contra mim assim que sabem que eu faço um esforço junto ao Santo Padre para tentar obter a liberdade para a Tradição. Que eles nos deixem em paz; que nos deixem rezar como se rezou durante séculos; que nos deixem continuar o que nós aprendemos no seminário; que eles nos deixem continuar o que aprendemos quando éramos moços, que é procurar a melhor maneira de se santificar. É isso que nos ensinaram no seminário. Pratiquei isso quando me tornei padre; quando me tornei bispo, ensinei isso aos meus padres e a todos os meus seminaristas: eis o que é preciso fazer para tornar-se santo. Amar o Santo Sacrifício da Missa, a que nos é dada pela Igreja; os sacramentos, o catecismo. Principalmente, não mudem nada, preservem a Tradição que dura há vinte séculos. É isso que nos santifica, foi isso que santificou os santos. Agora eles querem mudar tudo. Não é possível. Que eles nos deixem, ao menos, a liberdade!

Ora, quando eles ouvem isso, imediatamente eles vão ao Santo Padre e dizem: nada para Mgr. Lefebvre, nada para a Tradição. Não volte atrás!

Como são cardeais muito importantes, o Cardeal Casaroli, Secretário de Estado, e outros, o Papa não ousa. Há alguns cardeais que aceitariam uma norma favorável, como o Cardeal Ratzinger. Ele substituiu o Cardeal Seper, que morreu no Natal de 1981. E olha que o Cardeal Ratzinger era muito liberal na época do Concílio. Foi amigo de Rahner, de Hans Kung, de Schillebeeckx. Mas por causa de sua nominação como arcebispo de Munich ele abriu um pouco os olhos. Ele está, certamente, mais consciente do perigo das reformas e mais desejoso de voltar às normas tradicionais, junto com o Cardeal Palazzini, da Congregação das beatificações, e do Cardeal Oddi, da Congregação do clero. Esses três cardeais estariam dispostos a nos deixar a liberdade. Mas os demais têm ainda muita influência sobre o Santo Padre...

Fui a Roma, há cinco semanas, para ver o Cardeal Ratzinger, que foi nomeado pelo Papa para substituir o Cardeal Seper junto à Fraternidade São Pio X, junto a mim. O Cardeal Seper tinha sido nomeado quando da audiência que o Papa João Paulo II me tinha concedido. Ele chamou o Cardeal Seper e lhe disse: «Eminência, o senhor manterá as relações entre Mgr. Lefebvre e eu. O senhor será o intermediário». Agora ele nomeou o Cardeal Ratzinger.

Fui vê-lo e conversamos durante quase duas horas. Certamente o Cardeal Ratzinger parece mais positivo e mais capaz de alcançar uma boa solução. A única dificuldade que permanece séria é a questão da Missa. No fundo, sempre foi a Missa, desde o início. Pois eles sabem muito bem que eu não sou contra o Concílio. Há coisas que eu não aceito no Concílio. Não assinei o texto da liberdade religiosa; não assinei o texto da Igreja no mundo. Não se pode dizer que eu sou contra o Concílio, mas há coisas que não se pode aceitar, que são contrárias à Tradição. Isso não deveria lhes importar tanto, pois o próprio Papa disse que se deve analisar o Concílio à luz da Tradição. Se fosse visto o Concílio à luz da Tradição, isso não me incomodaria em nada. Eu assinaria esta frase, pois tudo o que é contrário à Tradição seria, evidentemente, rejeitado. Durante uma audiência que o Papa me concedeu, ele me perguntou: «O senhor estaria disposto a assinar esta fórmula?» Eu respondi: «Foi o senhor mesmo que a utilizou e eu estaria disposto a assina-la». «Então, disse ele, não há dificuldade dogmática entre nós». E eu disse: «Assim eu espero» «O que sobra, então? O senhor aceita o Papa?» «É claro que nós reconhecemos o Papa e rezamos pelo Papa nos nossos seminários. Nós somos, talvez, os únicos seminários do mundo onde se reza pelo Papa. E respeitamos muito o Papa. Quando o Papa me pediu para vir, eu sempre vim. Mas há a questão da liturgia, disse eu, que é realmente muito difícil. A liturgia está demolindo a Igreja, demolindo os seminários. É uma questão muito grave». «Não, não, é uma questão disciplinar, não é grave. Se só existe isso, penso que chegaremos a uma solução».

Em seguida o Papa chamou o Cardeal Seper que veio imediatamente. Se ele não tivesse vindo, penso que o Papa teria assinado um acordo. O Cardeal Seper chegou e o Papa lhe disse: «Acho que as coisas não são difíceis de se acertar com Mgr. Lefebvre; creio que poderíamos chegar a uma solução, há apenas a questão da liturgia que é um pouco difícil» E o Cardeal respondeu: «Ah! não dê nada a Mgr. Lefebvre. Eles fazem da Missa de S. Pio V uma bandeira». E a mim de intervir: «Uma bandeira, claro, a bandeira de nossa Fé, a Santa Missa, Misterium Fidei, é o grande mistério de nossa Fé. É claro, é nossa bandeira, é a expressão de nossa Fé».

Mas isso impressionou muito ao Santo Padre, que pareceu mudar imediatamente. Para mim, isso mostrou que o Papa não é um homem forte. Se ele tivesse sido forte, ele teria dito: sou eu que vou ver isso. Vamos resolver isso. Mas não. De repente ele teve como um medo, tornou-se temeroso e, no momento em que deixava seu escritório ele disse ao Cardeal Seper: «O senhor poderia conversar já agora. Poderia tentar acertar as coisas com Mgr. Lefebvre. Fiquem aqui, eu tenho que ir ver o Cardeal Baggio. Ele tem muitos dossiers para ver comigo sobre os bispos. Eu tenho de ir». E ao sair ele me disse: «Pare, Monsenhor, pare». Ele estava transformado. Em poucos minutos ele tinha mudado completamente. Foi nesta audiência que eu lhe mostrei uma carta que tinha recebido de um bispo polonês.

Ele me tinha escrito um ano antes, para me dizer que ele me felicitava pela obra que eu tinha fundado em Écône, dos padres que eu formava. Ele queria que eu mantivesse a Missa antiga em toda sua Tradição, e acrescentava: não sou o único. Somos vários bispos que vos admiram, que admiram seu seminário e a formação que o senhor dá aos padres e a Tradição que o senhor mantém dentro da Igreja, porque nós, nos obrigam a tomar a nova Liturgia para arrancar a fé dos nossos fiéis.

Isso dizia este bispo polonês. Então eu levei esta carta no meu bolso quando fui ver o Santo Padre, pois eu pensava: ele vai certamente me falar da Polônia. E não me enganei. Ele me disse: «O senhor sabe, na Polônia tudo vai muito bem. Porque o senhor não aceita as reformas? Na Polônia não há problemas. Só se sente falta do latim, nós éramos muito ligados ao latim, pois isso nos unia a Roma, e nós somos muito romanos. É pena, mas o que o senhor quer que eu faça, não há mais latim nos seminários, nem no Breviário, nem na Missa. Não tem mais latim. É uma infelicidade, mas é assim. O senhor vê, na Polônia aceitou-se as reformas, não há nenhum problema: nossos seminários estão cheios, nossas igrejas estão cheias».

Eu respondi ao Santo Padre: «O senhor me permite mostrar uma carta que recebi da Polônia?» E mostrei a carta. Quando ele leu o nome do bispo disse: «Oh! é o pior inimigo dos comunistas...ah! é uma boa referência.». E o Papa leu atentamente a carta. Eu olhava seu rosto para ver sua reação diante dessas palavras ditas duas vezes na carta: nos obrigam a tomar a reforma litúrgica para arrancar a fé dos nossos fiéis. Evidentemente era difícil de engolir. No final ele me disse: «O senhor recebeu esta carta assim?» - «Sim, é uma fotocópia que eu trouxe para o senhor». - «Oh! deve ser falsa».

O que eu podia dizer? Não havia nada mais a responder. O Papa me disse: «O senhor sabe, os comunistas são muito hábeis para tentar provocar divisões nos episcopados». Ou seja, segundo ele, seria uma carta fabricada pelos comunistas que me teria sido enviada. Mas eu duvido muito, pois esta carta foi postada na Áustria e eu suponho que seu autor tenha tido medo do extravio da carta pelos comunistas e que ela não chegasse. Por isso ela foi postada na Áustria. Eu respondi a este bispo, porém não recebi mais nada dele. É para mostrar que há, eu penso, também na Polônia, divisões profundas. Aliás, sempre houve, entre os padres da Pax e os que querem manter a Tradição. Isso foi trágico atrás da cortina de ferro.

A influência dos comunistas em Roma

É preciso ler o livro Moscou e o Vaticano, do padre jesuíta Lepidi. É extraordinário. Ele mostra a influência que têm os comunistas em Roma e como eles chegam a fazer nomear bispos e até dois cardeais: o Cardeal Lekaï e o Cardeal Tomaseck. O primeiro, sucessor do Cardeal Mindszenty. O segundo, sucessor do Cardeal Beran, que foram heróis e mártires da Fé. Em seus lugares puseram os padres da Pax, ou seja, pessoas decididas, antes de mais nada, a se entenderem com os governos comunistas e que perseguem os padres tradicionais. Os padres que vão secretamente batizar alguém no interior ou fazer o catecismo escondido para continuar sua obra de pastores da Igreja Católica, são perseguidos por estes bispos que lhes diz: vocês não têm o direito de não respeitar as ordens dos governos comunistas. Vocês nos atrapalham agindo assim.

Esses padres estão prontos a dar suas vidas para preservar a fé de seus filhos, para preservar a fé das famílias, para dar os sacramentos aos que têm necessidade. É claro que nestes países é preciso sempre pedir autorizações, quando vão levar o Santíssimo Sacramento nos hospitais ou para qualquer outra coisa. Se eles saem de suas sacristias têm de perguntar ao P.C. se lhes autoriza. É impossível. As pessoas morrem sem sacramentos; as crianças não são mais educadas de modo cristão. Por isso eles fazem escondido. E quando eles são presos, são os próprios bispos que os perseguem. É assustador.

Não seriam o Cardeal Wyszynski, nem o Cardeal Slipyi, nem o Cardeal Mindszenty, nem o Cardeal Béran que fariam algo parecido. Eles, ao contrário, empurravam seus bons padres dizendo: vamos, partam. Se forem para a prisão terão feito seu dever de padre. Se for para serem mártires, sejam mártires.

Isso mostra a influência exercida sobre Roma e que temos dificuldade de imaginar. É difícil de acreditar.

Quanto a mim, nunca estive contra o Papa. Nunca disse que o Papa não era papa. Sou inteiramente pelo Papa, pelo sucessor de Pedro. Não quero me separar de Roma. Mas sou contra o Modernismo, contra o progressismo, contra toda esta influência má, nefasta, do protestantismo nas reformas, e contra todas as reformas que nos envenenam e envenenam a vida dos fiéis. Eles dizem: o senhor é contra o Papa. Ao contrário, eu venho socorrer o Papa, pois o Papa não pode ser modernista e progressista, é uma fraqueza ele deixar acontecer. Isso pode acontecer. São Pedro foi fraco também diante de S. Paulo, quanto aos judeus. E São Paulo o repreendeu duramente: «Não andas segundo o Evangelho», disse São Paulo a São Pedro. São Pedro era Papa e São Paulo o repreendeu. Ele disse com vigor: «Repreendi o chefe da Igreja que não andava segundo a lei do Evangelho» Era grave dizer isso ao Papa. E Santa Catarina de Sena, também fez críticas veementes aos Papas. Nós temos a mesma atitude ao dizer: Santíssimo Padre, o senhor não está cumprindo seu dever. É preciso voltar à Tradição se deseja que a Igreja refloresça. Se o senhor permite que esses cardeais, que esses bispos, persigam a Tradição, estará realizando a ruína da Igreja.

Tenho certeza que, no seu coração o Papa tem uma profunda inquietação e que ele procura um meio de renovar a Igreja, e eu espero que com nossas orações, com nossos sacrifícios, com as orações de todos os que amam a Igreja, todos que amam o Papa, tenho certeza que conseguiremos.

E principalmente com a devoção à Santíssima Virgem. Se nós rezarmos à Santíssima Virgem, ela não pode abandonar seu Filho, ela não pode abandonar a Igreja que seu Filho fundou, a esposa mística de seu Filho. Vai ser difícil, vai ser um milagre, mas nós vamos conseguir.

Mas para mim, não quero que me façam dizer que a Nova Missa é boa, que ela é simplesmente menos boa que a outra, mas que é boa. Não posso dizer isso. Não posso dizer que estes sacramentos são bons. Eles foram feitos pelos protestantes, eles foram feitos por Bugnini. E o próprio Bugnini disse, como podemos ler no Observatório Romano e na Documentation Catholique, que traduziram o discurso de Bugnini, de 19 de março de 1965, ou seja, antes de todas as reformas:

«Devemos tirar das nossas orações católicas e da liturgia católica tudo que possa ser sombra de choque para nossos irmãos separados, quero dizer, para os protestantes».

Será possível que se tenha de ir perguntar aos protestantes, sobre o Santo Sacrifício da Missa, dos sacramentos, de nossas orações, do nosso catecismo: em que vocês não estão de acordo? Vocês não gostam disso ou daquilo? Bom, vamos suprimir.

Não é possível. Talvez não nos tornemos heréticos, mas a fé católica será diminuída. É assim que não se acredita mais no limbo, no purgatório, no inferno. Não se acredita mais no pecado original, nem nos anjos. Não se acredita mais na graça, não se fala mais do sobrenatural. É o fim da nossa fé.

Então devemos manter inteiramente nossa fé e rezar à Santíssima Virgem porque, por nós mesmos... é um trabalho de gigantes que nós queremos realizar, e sem o socorro do Bom Deus não conseguiremos. Dou-me conta da minha fraqueza, do meu isolamento. O que posso fazer sozinho diante do Papa? Diante dos cardeais? Não sei. Vou como um peregrino, com meu cajado de peregrino. Vou dizer: guardem a fé, guardem a fé. Sejam mártires mas não abandonem a fé. É preciso manter os sacramentos e o Santo Sacrifício da Missa.

Não podemos dizer: ah! você sabe, se mudou não faz mal. Eu tenho a fé bem enraizada e não corro o risco de perder a fé.

Percebemos que os que estão habituados a freqüentar a nova missa e os novos sacramentos, pouco a pouco mudam de mentalidade. Alguns anos mais tarde, conversando com alguém que vai nessa nova missa, nessa missa ecumênica, percebemos que adotou o espírito ecumênico. Termina-se colocando todas as religiões no mesmo plano. Podemos perguntar-lhe: pode-se salvar pelo protestantismo, pelo budismo, pelo islamismo? Ele responderá: mas claro, todas as religiões são boas. E pronto! Tornou-se um liberal, protestante. Não é mais católico.

Só existe uma religião, não há duas. Se Nosso Senhor é Deus e se Deus fundou uma religião, a religião Católica, não pode haver outras religiões, não é possível. As outras religiões são falsas. É por isso que o Cardeal Ottaviani disse: «Da tolerância religiosa». Tolera-se os erros porque não se pode impedir que eles se espalhem. Mas não se os coloca em pé de igualdade com a Verdade. Ou então se acaba com o espírito missionário. Se todas essas falsas religiões salvam, então porque sair em missão, para quê? Deixem-nos em suas religiões e eles vão se salvar...Não é possível. O que fez a Igreja durante vinte séculos? Porque todos esses mártires? Porque todos os que foram massacrados nas missões? Os missionários perderam seu tempo, perderam seu sangue, perderam suas vidas! Não podemos aceitar isso.

Precisamos permanecer católicos e é muito perigoso escorregar no ecumenismo e embarcar numa religião que não é mais católica.

Desejo vivamente que todos sejam testemunhas de Nosso Senhor, da Igreja Católica, testemunhas do Papa, da Catolicidade, mesmo se devemos ser desprezados, insultados nos jornais, nas paróquias, nas igrejas. E daí! Somos as testemunhas da Igreja Católica, os verdadeiros filhos da Igreja Católica e os verdadeiros filhos da Santíssima Virgem Maria.

Encíclica Humani Generis

Sobre algumas doutrinas errôneas

Encíclica Humani Generis

12 de Agosto de 1950

Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários Locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica: Sobre algumas falsas opiniões que ameaçam destruir os fundamentos da Doutrina Católica.

Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica.

Introdução

1. As discórdias e os erros do gênero humano, em matéria de religião e de moral, foram sempre para todos os bons, e principalmente os fiéis e sinceros filhos da Igreja, causa de profundo pesar, mas são-no hoje de modo especial, quando vemos atacados por todas  as partes os princípios mesmos da civilização cristã.

2. Não é de estranhar que fora do redil de Jesus Cristo tenham sempre existido tais dissensões e erros. Pois, embora a razão humana, absolutamente falando, possa chegar com suas forças e lume naturais ao conhecimento verdadeiro e certo de um Deus pessoal, que governa e protege o mundo com sua Providência, bem como chegar ao conhecimento da lei natural impressa pelo Criador em nossas almas, contudo, de fato, muitos são os obstáculos que impedem a mesma razão de usar eficazmente e com resultado desta sua natural capacidade. As verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus são verdades que transcendem completamente a ordem das coisas sensíveis e quando estas verdades atingem a vida prática e a regem, requerem sacrifício e abnegação. A inteligência humana, na aquisição dessas verdades, encontra dificuldades tanto por parte dos sentidos e da imaginação como por parte das más inclinações provenientes do pecado original. Donde vemos que os homens em tais questões facilmente procuram persuadir-se de que seja falso ou ao menos duvidoso aquilo que não desejam que seja verdadeiro.

3. Por tais motivos se deve dizer que a Revelação divina é moralmente necessária para que aquelas verdades que em matéria de religião e moral, mesmo na presente condição do gênero humano, não são de sua natureza inacessíveis à razão, possam ser por todos conhecidas com facilidade, com firme certeza, sem mistura alguma de erro. (Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.2, De revelatione).

4. Mais ainda, a mente humana pode até, às vezes, encontrar dificuldade em formar um juízo certo sobre a “credibilidade” da fé católica, apesar de serem tantos e tão admiráveis os sinais e argumentos externos, concedidos por Deus em seu favor, a tal ponto que ainda somente com o lume da razão natural se pode provar com certeza a origem divina da religião cristã. É que o homem, movido por preconceitos ou instigado pelas paixões e pela vontade pervertida, não só pode rejeitar a evidência dos sinais e argumentos externos que se lhe apresentam, como também resistir às celestes inspirações que Deus lhe infunde na alma.

5. Quem quer que lance os olhos sobre aqueles que vivem fora do redil de Cristo, facilmente poderá distinguir os principais caminhos por onde enveredaram muitos dos homens que se dizem cultos e doutos. Há-os que, sem a devida prudência e discernimento, admitem e propugnam como extensivo à origem de todos os seres o sistema evolucionista, que nem mesmo no campo das ciências naturais está indiscutivelmente demonstrado, e com ousadia temerária se entregam à hipótese monista e panteísta de um universo sujeito às leis de uma contínua evolução. Desta hipótese logo se aproveitam os fautores do comunismo para propugnar e exaltar com mais eficácia o seu “materialismo dialético” e arrancar das mentes toda a idéia de Deus.

6. As falsas afirmações de tal evolucionismo, no qual se repudia tudo o que é absoluto, firme e imutável, prepararam o caminho às aberrações de uma nova filosofia, que, fazendo concorrência ao idealismo, ao imanentismo e ao pragmatismo, tomou o nome de existencialismo, porque, rejeitando as essências imutáveis das coisas, só se preocupa com a existênciade cada indivíduo.

7.  A essas correntes se vem juntar um falso historicismo que se atém somente aos acontecimentos da vida humana e subverte os fundamentos de toda e qualquer verdade ou lei absoluta, seja no campo da filosofia, seja no dos dogmas do cristianismo.

8. Em meio de tão grande confusão de idéias algum conforto nos traz ver o bom número daqueles que, imbuídos outrora dos postulados do racionalismo, desejam agora voltar às fontes da verdade revelada por Deus e proclamam a palavra de Deus conservada na Sagrada Escritura como fundamento da ciência sagrada. Mas é ao mesmo tempo doloroso verificar que não poucos dentre esses mesmos, quanto mais firmemente aderem à palavra de Deus, tanto mais deprimem a capacidade da razão humana, e quanto mais de boa vontade exaltam a autoridade de Deus Revelador, com tanto maior acrimônia desprezam o Magistério da Igreja, instituído por Cristo Nosso Senhor para guardar e interpretar as verdades reveladas. Tal desprezo não só está em contradição aberta com as Sagradas Letras, mas até mesmo pela experiência se tem mostrado errado. Quanta vez os próprios dissidentes, que se separaram da verdadeira Igreja, são os primeiros a lamentar publicamente a confusão e discórdia que entre eles reina no campo dogmático, reconhecendo assim, embora a seu pesar, a necessidade de um Magistério vivo!

A Igreja Católica face aos erros modernos

1- O papel dos teólogos e dos filósofos

9. Pois bem, essas tendências que  mais ou menos se desviam do reto caminho da verdade, não podem ser ignoradas ou deixadas de lado pelos teólogos e filósofos católicos, aos quais incumbe a grave missão de defender as verdades divinas e humanas e difundi-las entre os homens. Mas ainda, é preciso que conheçam bem tais sistemas, já pela razão de que as doenças não se podem curar se não forem primeiro bem conhecidas, já porque nessas falsas teorias muitas vezes está latente alguma parcela de verdade, já finalmente porque esses mesmos erros incitam a inteligência a perscrutar e a examinar certas verdades filosóficas e religiosas com maior atenção e agudeza.

10. Se os nossos filósofos e teólogos procurassem somente colher de tais doutrinas, cautelosamente assim estudadas, esses frutos que acabamos de mencionar, não haveria suficiente motivo para uma intervenção do Magistério da Igreja. Mas, embora estejamos cientes que em geral os professores e estudiosos católicos se guardam de tais erros, consta-Nos outrossim que não falta também hoje, como nos tempos apostólicos, quem, aliciado mais do que convém pela novidades, ou temendo por ventura ser tido por ignorante das descobertas da ciência nesta época de progresso, procure subtrair-se à submissão devida ao Sagrado Magistério da Igreja, correndo o perigo de se afastar insensivelmente da mesma verdade revelada por Deus e arrastar consigo outros ao erro.

11. Há, além disso, outro perigo ainda maior, porquanto vai mais encoberto sob a aparência de virtude. São muitos os que, deplorando a discórdia a que chegou o gênero humano e a confusão de idéias que hoje reina, levados de um zelo imprudente, se sentem impelidos vigorosamente por um desejo ardente de destruir as barreiras que separam entre si a tantos homens retos e honestos. E abraçam, em conseqüência, um gênero de irenismo, que, pondo de lado as questões que dividem os homens, pretendem não só obter uma união de forças para repelir a avalanche avassaladora de ateísmo, mas chegam a querer conciliar as oposições que existem no próprio campo dogmático. E assim como em tempos passados houve quem perguntasse se a apologética tradicional da Igreja não era um obstáculo, mais que um auxílio, para ganhar almas a Cristo, assim hoje não falta quem chegue ao ponto de levantar a questão: se a teologia e os métodos que se usam com aprovação da autoridade eclesiástica no ensino hodierno, não devem  ser, não já aperfeiçoados, mas completamente reformados, para que o reino de Cristo possa ser propagado com mais eficácia no mundo inteiro, entre os homens de qualquer cultura e de qualquer opinião religiosa.

12. Se esses tais não tivessem em mira senão introduzir algumas inovações para adaptar com mais acerto o ensinamento eclesiástico e os seus métodos às condições e necessidades hodiernas, quase não haveria razão para temer; mas arrebatados desse imprudente irenismo, alguns chegam a julgar como óbices, para se restaurar a união fraterna, aquelas mesmas instituições que se baseiam nas leis e princípios promulgados pelo próprio Jesus Cristo, bem como quanto constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé. Se isto se abate, tudo será unificado, sim, mas  nos escombros de uma ruína geral. 

13. Essas novas opiniões, nascidas quer de uma deplorável ânsia de novidades quer mesmo de louváveis intenções, nem sempre são propostas com a mesma intensidade, com a mesma clareza, ou com os mesmos termos. Nem sempre  os seus propugnadores estão em perfeito acordo entre si. O que hoje está sendo ensinado veladamente por alguns, com cautelas e distinções, amanhã será proposto publicamente e sem rebuços por outros mais audazes, com escândalo de muitos, especialmente de jovens sacerdotes, e com detrimento da autoridade eclesiástica. E se geralmente se usa mais cautela nos livros que se publicam, o mesmo assunto é tratado com mais liberdade em folhetos distribuídos em particular, em lições datilografadas, em reuniões. E não só entre os membros do clero secular e regular, nos seminários e institutos religiosos vão sendo divulgadas tais opiniões, mas até entre os leigos, especialmente entre os que se dedicam à educação e instrução da juventude.

2. Os perigos do relativismo dogmático

14. No que se refere à teologia, alguns pretendem reduzir, quanto podem, o significado do dogma e libertar este do modo de exprimir-se, já desde muito usado na Igreja, e dos conceitos filosóficos em vigor entre os doutores católicos, para voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões da Sagrada Escritura e dos Santos Padres. Assim esperam eles que o dogma, despojado dos elementos que dizem extrínsecos à revelação divina, possa ser proveitosamente comparado com as opiniões dogmáticas daqueles que se separam da Igreja e deste modo se possa chegar pouco a pouco à assimilação mútua do dogma católico e das opiniões dos dissidentes. Além disso, reduzida a estes termos a doutrina católica, pensam eles que desembaraçam o caminho para, com a satisfação dada às necessidades do mundo hodierno, poder exprimir o dogma com as categorias da filosofia de nosso tempo, quer sejam do imanentismo, quer sejam do idealismo, quer sejam do existencialismo ou de qualquer outro sistema. E alguns mais audazes sustentam que isso se pode fazer e se deve fazer, porque os mistérios da fé, afirmam os tais, não se podem exprimir por meio de conceitos adequadamente verdadeiros, mas somente por meio de conceitos aproximativos e sempre mutáveis, através dos quais a verdade se manifesta, sim, mas ao mesmo tempo necessariamente se deforma. Daí que não crêem absurdo mas absolutamente necessário que a teologia, segundo as várias filosofias de que se sirva como de instrumentos no decurso dos tempos, substitua as noções antigas por outras novas e assim, de maneiras diversas, e até sob certos aspectos contrários, mas – como dizem – equivalentes, traduza em linguagem humana as mesmas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em apresentar as várias formas sucessivas de que se revestiu a verdade revelada, segundo as diversas doutrinas e opiniões que no volver dos séculos foram aparecendo.

15. É claro, do que dissemos, que essas tendências não somente levam ao relativismo dogmático, mas de fato já o contém. Relativismo esse que é por demais favorecido pelo desprezo que mostram para com a doutrina tradicional e para com os termos em que ele se exprime. Todos sabem que as expressões desses conceitos, usadas tanto no ensino das aulas como no mesmo Magistério da Igreja, podem ser melhoradas e aperfeiçoadas; é por outra parte bem sabido que a Igreja nem sempre usou constantemente determinadas expressões; é evidente também que a Igreja não pode estar ligada a um qualquer efêmero sistema filosófico; mas tais noções e tais expressões que com geral consenso foram através dos séculos encontrados e formuladas pelos doutores católicos para chegar a algum maior conhecimento e inteligência do dogma, sem dúvida que não se apóiam em um fundamento tão caduco. Apóiam-se, sim, em princípios e noções deduzidas de um verdadeiro conhecimento das coisas criadas; e na dedução de tais noções, a verdade, revelada como estrela, iluminou por meio da Igreja a inteligência humana. Portanto não é de maravilhar que algumas dessas noções tenham sido usadas em Concílios Ecumênicos, e que deles tenham recebido tal sanção que a ninguém é lícito afastar-se delas.

16. Por esses motivos, ter em pouco caso ou rejeitar ou privar do seu justo valor conceitos e expressões que foram encontradas e aperfeiçoadas para exprimir com exatidão as verdades da fé, por pessoas de inteligência e santidade nada vulgares, num trabalho muita vez plurissecular, sob  a vigilância do Magistério da Igreja, e não sem uma ilustração e direção do Espírito Santo, e querer agora substituí-las por noções hipotéticas e por certas expressões flutuantes e vagas da nova filosofia, que à semelhança da flor dos campos hoje verdeja e amanhã já secou, é por certo uma grandíssima imprudência. Seria reduzir o dogma à condição da cana agitada pelo vento. O desprezo dos termos e das noções usadas pelos teólogos escolásticos  por si mesmo conduz ao enfraquecimento da teologia denominada especulativa, que tais inovadores julgam, por se apoiar  em razões teológicas, desprovidas de verdadeira certeza.

3. O papel do Magistério da Igreja

17. Infelizmente esses amadores de novidades passam facilmente do desprezo da  teologia escolástica ao pouco caso e até ao desprezo do próprio Magistério da Igreja, que dá com sua autoridade tão notável aprovação a essa teologia. O Magistério Eclesiástico é apresentado por eles como um empecilho ao progresso e um estorvo para a ciência; ao mesmo tempo que é considerado por certos acatólicos como um freio já injusto para alguns teólogos mais cultos que procuram renovar a sua ciência. E embora este Sagrado Magistério deva ser para qualquer teólogo a norma próxima e universal de verdade em matéria de fé e de moral (pois Cristo Senhor Nosso lhe confiou todo o depósito da fé - Sagrada Escritura e tradição divina - para guardá-lo, defendê-lo, interpretá-lo), contudo por vezes é ignorado como se não existisse o dever que têm os fiéis de fugir também daqueles erros que em maior ou menor medida se aproximam da heresia, dever portanto de "observar as constituições e decretos com os quais essas falsas opiniões foram proscritas e proibidas  pela Santa Sé" (Código de Direito Can., cân. 1324; cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.4, De fide et ratione, depois dos cânones). O que as Encíclicas dos Sumos Pontífices expõem sobre o caráter e a constituição da Igreja é por alguns intencional e habitualmente deixado de parte com o intuito de fazer prevalecer um conceito vago, que eles dizem terem tomado dos antigos Padres, especialmente Gregos. Os Sumos Pontífices, dizem tais propugnadores, não tencionam dirimir as questões disputadas entre teólogos; é portanto necessário voltar às fontes primitivas e com os escritos dos antigos se devem explicar as posteriores constituições e decretos do Magistério Eclesiástico.

18. Tais afirmações, feitas muito embora com elegância de estilo, estão cheias de falácia. É verdade que geralmente os Sumos Pontífices deixam livres os teólogos naquelas questões em que os melhores doutores se acham divididos entre várias posições, mas a história mostra como muitas questões que em certa época eram objeto de livre discussão, posteriormente já não o puderam ser.

19. Nem se deve crer que os ensinamentos das Encíclicas não exijam per se o assentimento, sob o pretexto de que os Pontífices não exercem nelas o poder de seu Supremo Magistério. Tais ensinamentos fazem parte do magistério ordinário, para o qual também valem as palavras: "Quem vos ouve, a mim ouve" (Lc 10,16), além do que, quanto vem proposto e inculcado nas Encíclicas pertence já, o mais das vezes, por outros títulos, ao patrimônio da doutrina católica. Ademais, se os Sumos Pontífices no exercício do seu magistério emitem de caso pensado uma decisão em matéria até então controvertida, é evidente que tal questão, segundo a mente e a vontade dos mesmos Pontífices, não pode já constituir objeto de livre discussão entre os teólogos.

20. Também é verdade que os teólogos devem voltar sempre às fontes da revelação divina do Magistério vivo "se encontrem já explícita ou implicitamente" (Pius IX, Inter gravissimas, 28 Oct. 1870, Acta, vol. I, p. 260) na Sagrada Escritura ou na divina Tradição. Acresce que ambas as fontes da Revelação contém tais e tantos tesouros de verdade que se não poderão jamais, de fato, exaurir: As ciências sagradas com o estudo das fontes da revelação sempre  rejuvenescem; enquanto, pelo contrário, a especulação que negligencia um estudo mais profundo no depósito sagrado, consta pela experiência que se torna estéril. Mas por isso mesmo a teologia, mesmo a chamada  positiva, não pode ser equiparada a uma ciência meramente histórica. Juntamente com as sagradas fontes, Deus deu à sua Igreja um magistério  vivo para iluminar e pôr em relevo aquilo que no depósito da fé não se acha senão obscuramente e como que implícito. Este depósito, não foi a cada fiel nem mesmo aos teólogos, que o Divino Redentor o entregou para que o interpretassem autenticamente, - mas somente ao Magistério da Igreja. Se a Igreja desempenha este seu múnus, como o fez inúmeras vezes no decurso dos séculos, já com o extraordinário, é claro que é completamente falso o método de explicar as coisas claras pela obscuras: muito ao invés, o contrário é o que se impõe a todos. Pelo que o Nosso Predecessor de imortal memória, Pio IX, ao ensinar que é nobilíssima incumbência da teologia mostrar como a doutrina definida pela Igreja esteja contida nas sagradas fontes, acrescentou estas palavras "naquele mesmo sentido no qual foi definida pela Igreja".

4. A autoridade da Sagrada Escritura

21. Voltando, pois, às novas teorias, a que acima aludimos, por alguns vão sendo proferidas e ensinadas certas doutrinas que põem em perigo a autoridade da Sagrada Escritura. Alguns permitem-se a ousadia de deturpar o sentido da definição do Concílio Vaticano, a respeito do doutrina que diz ser Deus o autor da Sagrada Escritura e renovam a opinião, já várias vezes condenada, de que a imunidade de erro que compete às Sagradas Letras se estende somente ao que se refere a Deus e aos assuntos religiosos e morais. Mais; falam com pouco acerto de um sentido humano dos Livros Sagrados, sob a qual estaria latente um sentido divino, único que têm como infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não querem ter em conta a analogia da fé e a tradição da Igreja e sustentam que a doutrina dos Santos Padres e do Sagrado Magistério se deve regular pela Sagrada Escritura explicada pelos exegetas sob aspecto meramente humano, em vez de ser a Sagrada Escritura que deva ser exposta segundo a mente da Igreja constituída por Cristo Nosso Senhor guarda e intérprete de todo o depósito da verdade revelada.

22. Além disso, o sentido literal da Sagrada Escritura e sua exposição, elaborada, sob a vigilância da Igreja, por tantos e tão grandes exegetas, deve ceder o passo, segundo caprichosamente afirmam, à nova exegese, que chamam espiritual e simbólica, e pela qual a Sagrada Bíblia do Antigo Testamento, que, segundo eles, hoje na Igreja está como fonte selada, será finalmente aberta a todos. Desta forma, asseveram, desvanecer-se-ão todas as dificuldades, que não podem causar embaraço senão àqueles que se atêm ao sentido literal da Escritura.

23. Todos vêem como todas estas doutrinas se afastam dos princípios e das normas hermenêuticas justamente estabelecidas pelos Nossos Predecessores de feliz memória, Leão XIII na Encíclica Providentissimus e Bento XV na Encíclica Spiritus Paraclitus, como também por Nós na Encíclica Divino Afflante Spiritu.

 

II - Penetração dos erros modernos

1. No terreno da teologia

24. Não deve causar maravilha que tais inovações tenham produzido seus frutos envenenados em quase todas as partes da teologia. Põe-se em dúvida que a razão humana sem a ajuda da Revelação divina e da graça possa demonstrar, com argumentos  tirados das criaturas, a existência de um Deus pessoal: nega-se que o mundo tenha tido início e afirma-se que a criação do mundo é necessária, porque procede da necessária liberalidade do amor divino; como também se afirma que Deus não têm presciência eterna e infalível das ações livres do homem; opiniões todas contrárias às declarações do Concílio Vaticano (Cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c. I, De Deo rerum omnium creatore)

25. É posto em discussão por alguns se os anjos são pessoas e se existe uma diferença essencial entre matéria e espírito. Outros desnaturam o conceito da gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica. Nem basta ainda, pois deixando de lado as definições do Concílio de Trento, chegam a destruir o verdadeiro conceito de pecado original e juntamente o de pecado, em geral, como ofensa de Deus, bem assim o conceito da satisfação que Jesus Cristo deu por nós. Nem falta quem sustente que a doutrina da transubstanciação, porquanto fundada num conceito de substância já antiquado, deva ser corrigida, de modo que se reduza a presença real de Cristo na Eucaristia a um simbolismo, pelo qual as espécies consagradas não seriam outra coisa senão sinais eficazes de uma presença espiritual  de Cristo e da sua íntima união, no Corpo místico, com os membros fiéis.

26. Alguns não se julgam obrigados a professar a doutrina que expusemos numa das Nossas Encíclicas, fundada nas fontes da Revelação, segundo a qual o Corpo Místico de Cristo e a Igreja Católica Apostólica Romana são uma só e mesma coisa (Cf. Enc. Mystici Corporis Christi,  A.A. S. vol. XXXV, p. 193 s.). Alguns reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a salvação eterna! Outros, finalmente, não admitem o caráter racional dos sinais de credibilidade da fé cristã.

27. É sabido que esses erros e outros semelhantes se andam espalhando entre alguns de Nossos filhos, levados a engano por um zelo imprudente ou por uma ciência de falso cunho, e a esses filhos somos obrigados a repetir, com o coração dolorido, verdades conhecidíssimas e erros patentes, indicando-lhes com preocupação os perigos de tais erros.

2. No terreno da filosofia

28. Todos sabem quanto apreço dá a Igreja à razão humana no que concerne à sua capacidade de demonstrar com certeza a existência de um Deus pessoal, de provar iniludìvelmente pelos sinais divinos  os fundamentos da própria fé cristã, de exprimir com justeza a lei natural  que o Criador imprimiu na alma humana, de conseguir por fim uma inteligência limitada mas utilíssima dos mistérios (Cf.Conc. Vaticano I). Esta atribuição podê-la-á a razão desempenhar convenientemente e com segurança, se estiver nutrida daquela sã filosofia que constitui como que um patrimônio de família, herdado das precedentes gerações cristãs e que reveste uma autoridade superior, pois que o mesmo Magistério da Igreja confrontou com a própria verdade revelada os seus princípios e as suas principais asserções, precisadas e fixadas lentamente através dos séculos por homens de inegável talento. Esta mesma filosofia, confirmada e comumente admitida pela Igreja, defende o genuíno valor do conhecimento humano, os indestrutíveis princípios da metafísica - a saber: de razão suficiente, de causalidade, de finalidade - e propugna a capacidade da inteligência de atingir a verdade certa e imutável.

Devem-se respeitar as aquisições definitivas da filosofia

29. Nesta filosofia há certamente muitas coisas que não dizem respeito à fé e à moral, nem direta nem indiretamente e por isso a Igreja as deixa à livre discussão dos competentes na matéria; mas não existe a mesma liberdade com respeito a muitas outras questões, especialmente com respeito aos princípios e principais asserções de que acima falamos. Pode-se dar à filosofia, também nessas  questões essenciais, uma veste mais conveniente e mais rica; poder-se-á reforçar a mesma filosofia com expressões mais eficazes, despojá-la de certos meios escolásticos menos adequados, enriquecê-la ainda - com prudência porém - de certos elementos que são frutos do progressivo trabalho da inteligência humana. Não se deverá, porém, jamais subvertê-la com falsos princípios, nem estimá-la  só como um grandioso monumento de valor puramente arqueológico. Pois a verdade e toda a sua manifestação filosófica não pode estar sujeita a mudanças cotidianas, especialmente tratando-se dos princípios evidentemente e diretamente conhecidos como tais pela razão humana ou daquelas asserções, referenciadas já pela sabedoria dos séculos, já pela harmonia com os dados da Revelação divina. Qualquer  verdade que a razão humana por meio de uma pesquisa sincera for capaz de descobrir, não poderá jamais estar em contraste com uma verdade já anteriormente demonstrada; porque Deus, suma Verdade, criou e rege o intelecto humano, não para que às verdades já adquiridas ele contraponha cada dia outras novas, mas para que, removendo os erros que eventualmente se forem introduzindo, acrescente verdade a verdade, na mesma ordem e com a mesma harmonia, onde  a inteligência humana vai haurir a verdade. Por isso o cristão, seja filósofo ou teólogo, não abraça sem mais, com precipitação e leviandade, todas as novidades que aparecem, mas as deve examinar com a máxima diligência e as deve ponderar no seu justo peso, para não perder a verdade já adquirida ou corrompê-la, certamente com perigo e dano para a sua fé.

Devem-se respeitar o método e a doutrina de São Tomás de Aquino

30. Se se considera bem quanto acima está exposto, facilmente aparecerá claro o motivo por que a Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas ciências filosóficas "segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico (Direito Canônico, cân. 1366, 2) já que, como o sabemos pela experiência de vários séculos, o método do grande Aquino se distingue por singular superioridade tanto no ensino como na investigação; a sua doutrina harmoniza-se esplendidamente com a Revelação divina e é eficasíssima tanto para pôr a salvo os fundamentos da fé, como para colher com utilidade e segurança os frutos de um sadio progresso (A.  A. S. vol. XXXVIII, 1946, p. 387).

31. É deveras para deplorar que hoje a filosofia, confirmada e admitida pela Igreja, seja objeto de desprezo da parte de alguns, a ponto de, com imprudência, declará-la antiquada na forma racionalista pelo processo de pensamento. Vão espalhando que esta nossa filosofia defende erroneamente a opinião de que possa existir uma metafísica verdadeira de modo absoluto; quando pelo contrário eles sustentam que as verdades, especialmente as verdades transcendentes, não podem ser expressadas mais convenientemente que por meio de doutrinas divergentes que se completem entre si, ainda em certo modo entre si opostas. Daí que a filosofia escolástica com a sua clara exposição e solução das questões, com a sua exata determinação dos conceitos e suas claras distinções, pode ser útil - concedem os tais - como preparação para o estudo da teoria escolástica muito bem condizente com a mentalidade dos homens medievais; mas não pode dar-nos - acrescentam - um método e uma orientação filosófica que corresponda às necessidades da cultura moderna. Objetam demais que a filosofia perene não é senão a filosofia das essências imutáveis ao passo que uma mentalidade moderna se deve interessar pela existência de cada indivíduo e da vida sempre em devir. E enquanto de uma parte desprezam esta filosofia, de outra parte exaltam os demais sistemas, antigos e recentes, de povos orientais e de povos ocidentais, de modo que parece quererem insinuar que todas as filosofias ou teorias, com o retoque - se necessário - de alguma correção ou de algum complemento, se podem conciliar com o dogma católico. Mas nenhum católico pode pôr em dúvida quanto isto seja falso, especialmente tratando-se de sistemas como o imanentismo, o idealismo, o materialismo, seja histórico seja dialético, ou ainda como o existencialismo, quando professa o ateísmo ou quando nega o valor do raciocínio no campo da metafísica.

3. No terreno didático

32. Finalmente, à filosofia de nossas aulas levantam esta acusação: que ela no processo do conhecimento se ocupa somente da inteligência e faz caso omisso da função da vontade e do sentimento. Isto não corresponde à verdade: a filosofia cristã não negou nunca a utilidade e eficácia que provém das boas disposições da alma toda, para conhecer e abraçar as verdades religiosas e morais; pelo contrário, ela sempre ensinou que a falta de tais disposições pode ser a causa pela qual a inteligência, sob o influxo das paixões e da vontade transviada, se obscureça a tal ponto que já não consiga ver a verdade. Mais ainda, o Doutor Comum é de parecer que a inteligência pode em algum modo perceber os bens superiores da ordem moral, seja natural, seja sobrenatural, enquanto experimenta no seu íntimo uma certa co-naturalidade, seja na ordem natural seja como fruto da graça, com os ditos bens (Cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q. I, a. 4, ad 3; e q. 45, a. 2, in c.); e é manifesto quanto este conhecimento, embora subconsciente, ajude a razão nas suas investigações. Mas uma coisa é reconhecer o poder que têm a vontade e as disposições da alma para ajudar a razão a atingir um conhecimento mais certo e mais firme das verdades morais, outra coisa é quanto vão espalhando esses inovadores, a saber: que a vontade e o sentimento têm um certo poder intuitivo e que, não podendo o homem discernir com certeza aquilo que deve abraçar como verdadeiro, se serve da vontade, determinando por ela a sua livre escolha entre duas opiniões opostas, confundindo assim indevidamente conhecimento e ato de vontade.

33. Não é de admirar que com essas novas teorias corram perigo as duas ciências filosóficas, por sua mesma natureza intimamente relacionadas com os ensinamentos da fé: a teodicéia e a ética. Pretendem as novas teorias que o papel de ambas não é o de demonstrar certas verdades sobre Deus ou outro ser transcendente, mas o de mostrar como sejam coerentes com a necessidade da vida as verdades que a fé ensina sobre Deus, Ente pessoal, e sobre os seus mandamentos, e que devem ser admitidas por todos, para evitarem o desespero e alcançarem a salvação eterna. Todas essas opiniões e teorias estão em franca oposição com os documentos emanados pelos Nossos Predecessores Leão XIII e Pio X, e com os decretos do Concílio Vaticano I. Seria supérfluo deplorar essas várias aberrações, se todos, ainda mesmo no campo das doutrinas filosóficas, se mostrassem dóceis e reverentes, como de dever, para com o Magistério da Igreja, a qual por instituição divina recebeu a missão não só de guardar e interpretar o depósito da fé, mas ainda de vigiar o campo das disciplinas filosóficas, a fim de que o dogma católico não receba de opiniões menos sensatas nenhum dano.

 

III - A Fé e as ciências positivas

34. Resta agora falar daquelas questões, que, ainda que pertençam às ciências positivas, são mais ou menos relacionadas com as verdades reveladas da fé cristã. Não poucos são os que pedem insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta estas ciências, o que é sem dúvida coisa louvável, quando se trata da fatos realmente demonstrados. Mas é preciso ser muito cauto quando se trata de puras hipóteses, embora de algum modo fundadas cientificamente, e nas quais se toca a doutrina contida na S. Escritura ou na tradição. E se tais hipóteses vão direta ou indiretamente contra a doutrina revelada, então de modo nenhum se podem admitir.

1. Biologia e Antropologia

35. Por essas razões o Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com a atual estado das ciências e da teologia, sejam objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica preexistente (a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto, porém, deve ser feito de tal maneira, que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida, e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitares ao juízo da Igreja, à qual  Cristo confiou o oficio de interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé (Cf. Alocução Pontifícia aos membros da Academia das Ciências. 30 nov. 1941 A. A. S. vol. XXXIII p. 506). Mas alguns ultrapassam temerariamente esta liberdade de discussão procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena  que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios achados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e  isto como se nas fontes da revelação não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela.

36. Quanto, porém, à outra hipótese, isto é, ao poligenismo, os filhos da Igreja não gozam, de modo nenhum, da mesma liberdade, pois os fiéis não podem abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiriam nesta terra verdadeiros homens que não tiveram origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Ora, não se vê de modo algum como estas afirmações se possam conciliar com os que as fontes da revelação e os atos do Magistério da Igreja nos ensinam acerca do pecado original, que provém de um pecado verdadeiro cometido individualmente por Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio (Cf. Rom 5, 12-19; Conc. Triden., sess. V, cân. 1-4).

2. Ciências Históricas

37. Como nas ciências biológicas e antropológicas, também nas históricas há quem ousadamente ultrapasse os limites e as cautelas estabelecidas pela Igreja. De modo particular se deve deplorar certo sistema de interpretação demasiado livre dos livros históricos do Antigo Testamento; e os fautores desse sistema, para defender suas razões, apelam infundadamente para a carta não há muito enviada ao Arcebispo de Paris pela Pontifícia Comissão Bíblica (16 de janeiro de 1948: A. A S., vol. 40 pp. 45-48). Esta carta com efeito, faz notar que os 11 primeiros capítulos do Gênese, ainda que propriamente falando não concordem com o método histórico usado pelos melhores autores gregos e latinos e pelos bons historiadores do nosso tempo, pertencem contudo ao gênero histórico em verdadeiro sentido, mas que deve ser ainda mais estudado e determinado pelos exegetas: os mesmos capítulos, nota ainda a citada carta, com um modo de falar simples e figurado, adaptado à mentalidade de um povo de cultura elementar, ensinam as principais verdades que são fundamentais para a salvação eterna e contém além disso uma narração popular sobre a origem do gênero humano e do povo eleito.

38. Se alguma coisa os antigos hagiógrafos tomaram de outras narrações populares (o que pode ser concedido), é preciso não esquecer que eles o fizeram com o auxílio da inspiração divina, que na escolha e na valorização dos documentos os premunia contra todo e qualquer erro. Portanto as narrações populares inseridas na S. Escritura não podem de maneira alguma ser postas no mesmo plano das mitologias ou gêneros semelhantes, as quais são fruto mais de uma fantasia exaltada do que amor à verdade e à simplicidade. Este amor à verdade e esta nativa simplicidade ressalta de tal modo nos Livros Inspirados, inclusive nos do Antigo Testamento, que colocam os nossos hagiógrafos indiscutivelmente acima dos antigos escritores profanos.

Conclusão: Missão dos superiores eclesiásticos e dos professores das ciências religiosas

39. Sabemos em verdade que a maioria dos doutores católicos, de cujos valiosos estudos os Ateneus, Seminários, Colégios dos religiosos, tanto proveito recebem, estão longe de tais erros que aberta ou disfarçadamente vão sendo hoje divulgados, seja por mania de novidade, seja por desacertado zelo apostólico. Mas sabemos também que essas falsas opiniões poderão ilaquear os menos cautos. Preferimos por isso atalhar esses males logo de início, a ter que subministrar o remédio quando a doença já estiver adiantada.

40. Depois de madura reflexão e consideração, para não faltar ao Nosso sagrado dever, ordenamos aos Bispos e aos Superiores das Ordens e Congregações religiosas, impondo-lhes gravíssima obrigação de consciência, que cuidem diligentissimamente de que nem nas aulas nem em reuniões e conferências, nem em escritos, de qualquer gênero, sejam propaladas as falsas opiniões de qualquer maneira ensinadas aos seminaristas ou aos fiéis.

41. Os Professores dos Estabelecimentos Eclesiásticos saibam que não poderão exercer, com consciência tranqüila, o ofício de ensinar que lhes foi confiado, se não aceitarem religiosamente as normas que aqui estabelecemos e se as não observarem exatamente no ensino de suas matérias. Este acatamento e obediência que nos seu assíduo trabalho devem professar para com o Magistério da Igreja instilem-no também na mente e na alma dos seus alunos.

42. Procurem com todo o empenho e entusiasmo concorrer para o progresso das ciências que ensinam; mas abstenham-se também de ultrapassar os limites que, para a defesa da fé e da doutrina católica, lhes demarcamos. Às novas questões que o progresso moderno suscitou dêem a contribuição de suas diligentíssimas pesquisas, mas com conveniente prudência e cautela. Finalmente não julguem, levados por um falso irenismo, que se possa obter o suspirado retorno dos dissidentes e dos errantes ao seio da Igreja se não lhes ensina, sinceramente, sem nenhuma corrupção nem nenhuma diminuição, toda a verdade professada pela Igreja. 

43. Fundados nesta esperança, que será aumentada pela vossa solicitude pastoral, como auspício dos celestes dons e sinal da Nossa paterna Benevolência damos de todo o coração e cada um de Vós, bem como ao vosso clero e aos vossos fiéis, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto à Basílica de S. Pedro, aos 12 do mês de agosto do ano de 1950, duodécimo do Nosso Pontificado.

PIO PAPA XII

 

Encíclica Pascendi Dominici gregis

PASCENDI DOMINICI GREGIS

CARTA ENCÍCLICA DE SUA SANTIDADE 

PAPA SÃO PIO X

SOBRE AS DOUTRINAS MODERNISTAS

 

 

Pseudo-misticismo modernista

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Um padre nos escreve:

 

“Senhor Diretor,

 

"Obrigado, obrigado por sua defesa da verdade católica, obrigado por seus artigos documentados e precisos. Mas, se posso me permitir uma sugestão, porque não lança um olhar mais atento às numerosas publicações "religiosas" que, atrás do biombo do decreto da Congregação pela Doutrina da Fé, confirmado pelo Papa Paulo VI, não são mais submissas ao imprimatur e publicam o que querem? 1 Por exemplo, o que se deve pensar de certas publicações das Edizioni Dehoniane de Roma, que publicam livros como La vrai vie de Dieu de Vassula Ryden, páginas pretensamente escritas "sob o ditado de Jesus"? Ela é comparada a Santa Francisca Romana; "ela comunga tanto entre os católicos como entre os ortodoxos ou anglicanos" (segundo René Laurentin). Que podemos pensar das numerosas "mensagens" de Jesus, de Nossa Senhora, etc...? das profecias sobre o próximo fim do mundo (é assim que se explica o terceiro segredo de Fátima)? E o senhor conhece L´avenir avant l´an 2000 de Jean Stiegler (Edizioni Segno)? Aí encontramos Medjugorje, dom Gobbi e outros "místicos". O que devemos pensar? Como devemos acolher tais publicações, que alguns fiéis submetem a nosso julgamento..."

 

Carta assinada.

 

Caro amigo,

 

Em tempos normais nossa resposta teria sido breve e concisa: os filhos da igreja devem seguir o exemplo de sua santa Madre Igreja, que não exclui as pretensas revelações privadas, mas pede garantias para estar certa de que não se trata de ilusões privadas ou, ainda pior, de imposturas humanas ou de enganações diabólicas. A primeira garantia é que estas "revelações" estejam em harmonia com a Revelação de que a Igreja é depositária há dois mil anos.

São João da Cruz escreve: "Tão grande é a importância de nos servirmos da razão e doutrina evangélica que, mesmo no caso de recebermos algo por via sobrenatural  queiramos ou não  só devemos admiti-lo quando é conforme à razão e aos ensinamentos do Evangelhos" (A Subida do monte Carmelo, 1.2 c. 21 n. 4; ver também em Si Si No No, ed. francesa, de agosto de 1990: Brouillards du révélationnisme et lumière de la foi, pelo padre Calmel O.P.).

E, com esta regra fundamental, se faria justiça à imensa maioria das "revelações" atuais. Mas o atual pululamento de fenômenos pseudo-místicos é tão estreitamente ligado à crise neo-modernista que atormenta a Igreja, que se torne necessária uma explanação muito mais vasta.

 

Raízes protestantes

A Igreja Católica ensina de modo infalível que a fé é essencialmente um assentimento sobrenatural da inteligência à verdade revelada por Deus (Vaticano I, Dz. 1789). Certo, a inteligência é levada a este assentimento sob a ação da graça; certo, esse assentimento é acompanhado de humildade, de confiança, de abandono (o ato de fé não é um frio julgamento científico), mas o ato de fé é antes de tudo e essencialmente um ato da inteligência, a adesão do espírito a uma verdade, obscura em seus "porque" e no "como" e, no entanto, muito certa, porque revelada por Deus, que não se engana nem pode nos enganar.

O protestantismo, ao contrário, realizou uma verdadeira revolução coperniana: o ato de fé, para Lutero, não é um ato de conhecimento ou intelectual (a razão seria, em matéria de religião, inteiramente cega e a Igreja católica teria errado em lhe dar confiança demais), mas um simples ato efetivo ou emocional; não mais a adesão a todas as verdades reveladas (fé dogmática), mas simples sentimento de bem estar espiritual, confiança de ser perdoado e salvo. A revolução coperniana de Lutero achou sua sistematização filosófica no kantismo, que desvaloriza a razão (agnosticismo) e recorre à vontade ou "razão prática" para dar um fundamento à religião.

 

A revolução modernista

O modernismo hoje e o neomodernismo marcham sobre os traços do protestantismo ou do kantismo, mesmo se à oposição kantiana entre "razão pura" (inteligência) e "razão prática" (vontade) eles preferem a oposição entre razão e sentimento: "para os modernistas, escreve São Pio X, a revelação divina não pode ser crível por sinais exteriores, e [...] é somente pela experiência individual ou pela inspiração privada que os homens são movidos à fé" (Pascendi).

De fato, para o modernista, contrariamente às definições infalíveis do Concílio dogmático Vaticano I (De Fide, can. 3 e De Revel. can. 1), o homem não pode saber com a razão se Deus existe realmente nem se interveio realmente na história do gênero humano com uma Revelação exterior. E, no entanto, o modernista não faz profissão de ateísmo. Ao contrário, ele se declara fiel: Deus  afirma  existe realmente e tenho certeza. E de onde pode tirar tal certeza? Não da razão, não da Revelação divina, mas de sua "experiência religiosa". É esta experiência individual, subjetiva, interior, esta "intuição do coração" que, sozinha, para os modernistas, torna o homem certo da existência de Deus: aquele que não "sente" Deus em si não pode achá-lo em outro lugar; somente o sentimento e a experiência religiosa, manifestando Deus ao homem, fazem do homem um "crente" (ver São Pio X, Pascendi). De onde pode deduzir-se que toda atividade do modernista é voltada a fazer e a promover a "experiência" do divino, porque para ele e contra o Concílio dogmático Vaticano I, os homens devem ser levados à fé somente "pela experiência individual ou pela inspiração privada" (Conf. Pascendi e Vaticano I, De Fide can. 3). 

Ora, é verdade que a experiência religiosa, entendida como caminho da fé, traz maior luz e mais calor às verdades da fé, mas também é certo que a vida de fé nasce das verdades da fé e que sem verdades de fé não há vida de fé autêntica, porque neste domínio, igualmente, o conhecimento deve guiar e esclarecer a vontade, a sensibilidade e toda experiência do divino, seja ela qual for. Uma vez posta a doutrina de lado, nada assegura mais ao homem que ele não seja vítima de uma ilusão (ou de uma enganação diabólica) quando segue um convite ou uma atração interior. A pretensão de um contato sensível e imediato com o divino constitui arrogância culpável e é este o abismo pelo qual o falso misticismo se precipita nas ilusões, nas enganações diabólicas, e freqüentemente na lama. Quando esta procura de experiências místicas, mesmo extraordinárias, é acompanhada da recusa, mesmo tácita, da doutrina católica, o abandono da parte de Deus ao "espírito de vertigem" (Is 19, 4) é certo e as imposturas se multiplicam.

 

Desordem doutrinal

Antes de falar nisso é necessário lançar um olhar na desordem doutrinal radical, que no modernismo nasce da exaltação da "experiência religiosa"; desordem que não poupa nenhuma das verdades católicas fundamentais. O pseudo-misticismo, de fato, é somente a ponta de um iceberg diabólico no caminho da Igreja católica.

, já vimos, não é mais (no Modernismo) um assentimento sobrenatural do espírito à Revelação divina, mas um ato emocional muito natural. A Revelação não é mais um fato histórico, exterior ao fiel, fato que se fechou com a morte do último Apóstolo e que veio a nós pela tradição escrita e oral; mas é um fato atual, interior, destinado a renovar-se continuamente em cada indivíduo e para cada geração, é a tomada de consciência pelo homem de sua "experiência" do divino. A própria religião cristã só é o fruto da experiência do divino, realizada na consciência de Cristo, "homem de natureza excelente como nunca se viu nem nunca se verá" (mas somente homem), experiência destinada a se renovar em seus discípulos. Pode-se, entretanto, até se admitir uma "experiência religiosa" análoga igualmente em Maomé, Buda e todos os outros iniciadores de grandes religiões. Além do mais, pode-se admitir em Cristo um grau mais elevado de experiência e de consciência religiosa, mas do mesmo modo que se fala da revelação cristã, assim se pode e se deve falar (como hoje de fato se fala) de uma "revelação" maometana, budista, etc. etc. Isto resulta na abolição de toda diferença entre religião natural e religião sobrenatural revelada, entre verdadeira e falsas religiões: de um lado a religião cristão "do homem Cristo", não menos que nos outros fundadores de religiões positivas, é um "fruto inteiramente espontâneo da natureza" (naturalismo) e, de outro lado, todas as religiões são boas e reveladas por Deus (ecumenismo). Uma vez descartados os motivos da credibilidade do Cristianismo e toda referência doutrinal sólida, e posto no lugar este fundamento de "experiência religiosa— escrevia São Pio X —  "a doutrina da experiência juntamente com a outra do simbolismo, consagra como verdadeira toda religião, sem excetuar a religião pagã. Não encontramos experiências deste gênero em todas as religiões? Muitos o dizem. Ora, com qual direito os modernistas negariam a verdade às experiências religiosas que se fazem, por exemplo, na religião mahometana? E em virtude de que princípio atribuiriam eles, somente aos católicos, o monopólio das experiências verdadeiras? Eles se protegem bem dessas perguntas: uns escondidos, outros abertamente, tomam por verdadeiras todas as religiões" (Pascendi).

Tradição, portanto, não é mais a transmissão das verdades reveladas por Deus mas, sim, a transmissão de "experiências religiosas", que devem suscitar novas experiências (Tradição "viva"). A própria Sagrada Escritura, no antigo e novo Testamento, é somente um produto e uma colheita de "experiências religiosas", e a inspiração não é nada mais do que um impulso que expressa estas experiências.

dogma, enfim, é somente a formulação intelectual, segundo as concepções filosóficas dominantes, de uma experiência religiosa que, contudo, assim como toda experiência, fica individual e incomunicável. Os dogmas, então, não fixam de um modo estável uma verdade revelada, mas são a formulação provisória e sempre imprópria da experiência religiosa. Eles não têm valor cognitivo, mas somente prático. Por exemplo, quando me dizem que Deus me julgará, querem dizer somente: "Comporta-te como se Deus te fosse julgar". Se em seguida Deus me julgará realmente, é um fato que não sabemos e que nunca saberemos (agnosticismo). Um dogma é "verdadeiro" enquanto demonstre ser apto para alimentar a piedade ou a suscitar novas emoções religiosas; se não for mais útil para isto, será "falso" e deverá então ser mudado (evolucionismo dogmático).

Assim, tudo no modernismo é levado ao sentimento e à experiência religiosa e explicado em função destes elementos. A própria Apologética se reduz, para um modernista, a levar a incredulidade e a dúvida a "fazer a experiência" do Cristianismo.

 

A apostasia

Pelo caminho da "experiência religiosa" o modernismo chega também a uma "nova religião", que não é mais a religião fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma verdadeira apostasia vestida de razões mais ou menos especiosas, particularmente de uma falsa "caridade", porque é privada de seu fundamento que é a fé: a caridade "ecumênica".

 

Sob os véus de uma "mística" enganosa

O repúdio a uma verdade objetiva e imutável (que por si permite julgar pretensas "revelações") associada à procura de "experiências religiosas" mesmo extraordinárias (coisa que é severamente proibida pela verdadeira mística), faz do modernismo, como já fez do protestantismo, o terreno de cultura mais propício para ilusões místicas, fruto da fantasia e do sentimento, por imposturas humanas e mesmo por enganações diabólicas. São João da Cruz escreve: "O demônio se alegra muito quando uma alma facilmente admite revelações, e quando ele a vê inclinada a isto, porque então ele tem numerosas ocasiões e modos de insinuar erros e de derrogar a fé no que lhe é possível" (Subida do Monte Carmelo I, II c. X n. 10).

É um fato (explique quem puder...) que quase todos os "místicos" e os "carismáticos" atuais, sob o véu do convite à oração, ao jejum, etc, etc. (o demônio, como se sabe, está disposto a "perder um pouco para ganhar muito") difundem os dois erros mais perniciosos do modernismo: o indiferentismo religioso e o ecumenismo.

Tomemos o exemplo de Vassula Ryden, a quem nosso amigo leitor fez alusão. Tiramos nossas informações de Medjugorge - espírito e verdade, março de 1992 (pode-se notar que Vassula Ryden e Medjugorje se fazem publicidade recíproca).

Vassula, a "santa Francisca Romana de nosso tempo" (somente porque ela tem marido e filhos), não é nem mesmo católica, mas ortodoxa, e dá a volta ao mundo para pregar aos católicos, em nome do católico "Sagrado Coração" a... "caridade sem fé" dos modernistas (São Pio X). "A chave da unidade — diz ela — é o amor e a humildade [...] Muitos padres ortodoxos gregos pensam que a unidade virá quando os católicos se converterem para se tornarem ortodoxos gregos e muitos católicos pensam o inverso. Bem, as duas partes estão erradas" (pág. 82). "Então, tudo estará no nível do coração?" pergunta o jornalista. Resposta: "exatamente" (pág. 83). E então, afirma Vassula, não há "nenhuma razão para me fazer católica" (pág. 83), o que Jesus quer é "a unidade por meio do coração. A nova (sic!) Igreja que Ele quer unir é unida no coração" (ibid).

Evidentemente, o "Jesus" de Vassula pensa muito diferente do Jesus do Evangelho, que não quer unir nenhuma "nova Igreja", porque sua Igreja Ele já uniu, e não somente "no coração", mas na realidade, e isso há dois mil anos. Depois disso Ele a manteve unida até hoje, não obstante as defecções de numerosos batizados durante os séculos.

"Você nunca se perguntou — sugere a "mística" Vassula à seu entrevistador —  por que Jesus não escolheu um católico para transmitir esta mensagem, apesar de se apresentar como o Sagrado Coração? Ele quis tomar uma ortodoxa que não conhece nada. Ele a forma como quer em termos católicos, precisamente para mostrar que Ele não faz diferença. Sim, a unidade se fará no coração. A virgem disse isso também em Medjugorje" (ibid). Então "no domingo vou à Igreja ortodoxa... nos outros dias vou à católica. Não faço diferença... Jesus me guia e nunca fez objeções a este meu modo de agir." E assim, em nome de Jesus "místico", a "vidente" pretende fechar a boca daqueles que teriam ainda objeções a fazer em nome de Jesus do Evangelho. Não! Jesus — o verdadeiro —  não se contradiz. Não contradiz tampouco o que a sua Igreja ensina infalivelmente há dois mil anos. Na realidade, este "Jesus" de Vassula, sob alguns "termos católicos", leva a crer em uma doutrina não católica: a heresia do modernismo, que considera que todas as religiões são boas; faz que seja "deglutido" o indiferentismo religioso, a "unidade na diversidade" do protestante Cullmann e do cardeal Ratzinger (ver Sim Sim Não Não, julho de 1994, "Ratzinger, Prefeito ecumênico... pela "abolição" do papado...!?").

Esta "unidade no coração", sem unidade de fé, já foi condenada por Pio XI em Mortalium Animos e com palavras que podem parecer ter sido escritas para Vassula Ryden: "Estes "pan-cristãos", que procuram federar as Igrejas, parecem perseguir o nobilíssimo desejo de desenvolver a caridade entre todos os cristãos: mas como imaginar que este crescimento de caridade se faça em detrimento da fé? Ninguém ignora que o próprio São João, o Apóstolo da caridade, aquele que no seu Evangelho transmite de algum modo os segredos do Sagrado Coração de Jesus, aquele que não cessava de lembrar a seus fiéis o novo preceito: "Amai-vos uns aos outros" (1 Jo 4, 7-11), proibia de modo absoluto toda relação com aqueles que não professassem a doutrina de Cristo inteira e pura: "Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o receba em sua casa e nem mesmo o cumprimente" (2 Jo 10). (O Ecumenismo. Publicações Courrier de Rome, pág. 137).

Mas eis em nossos dias uma nova "apóstala da caridade", escolhida por Jesus entre os ortodoxos "precisamente para mostrar que Ele não faz diferença", que vem mostrar aos católicos que o Sagrado Coração de Jesus hoje... mudou de opinião e que pensa exatamente o contrário!

 

Um clero e uma hierarquia cúmplices

Que católico pode levar a sério tais "revelações"? As regras católicas para discernir se as pretensas "revelações" vêm de Deus ou de outras fontes (ilusão ou impostura do demônio) são claras: "Devemos considerar como falsa toda revelação privada oposta a uma verdade de fé" (A. Tanquerrey - Précis de théologie ascétique et mystique no. 1501 a). "Então, se [...] nos for revelada alguma coisa nova e diferente no domínio da fé, não devemos aceitar de modo nenhum, mesmo se estivermos certos que aquele que nos manifesta é um anjo do Céu. Assim afirma São Paulo... (Gl 1, 8)" (São João da Cruz - Subida do Monte Carmelo, livro 2, capítulo 27 número 3).

O que dizer então, se não se trata de um anjo que se afirma mensageiro do Céu, mas de uma ortodoxa que, não obstante seus contatos "místicos" com o "Sagrado Coração", proclama que quer ficar no cisma e na heresia.

E no entanto, constata-se (fato mais explicável!) que estes "místicos" e "carismáticos" encontram bom acolhimento pelos clérigos neomodernistas. Os Dehonianos (o falso da imprensa "católica" não conhece mais limites nem medidas), publicam os escritos de Vassula Ryden, enquanto que Laurentin, um dos mais nefastos teólogos do pós-concílio, que não crê na virgindade de Maria mas "crê" em Medjugorje, faz uma propaganda muito ativa da "mística" ecumênica Vassula 2. E Il Segno del soprannaturale (revista italiana que mistura ingenuamente revelações verdadeiras com outras falsas   para ser mais exato: mistura mais falsas do que verdadeiras) publicava há algum tempo a foto de Vassula Ryden recebida em audiência por... João Paulo II!

Aliás, sabe-se por muitas fontes que João Paulo II observa "com inquietude e alegria" os fatos de Mejugorje (cf. Mons. Hnilica em Il Segno del soprannaturale, maio de 1988; ver também Eco di Medjugorje no. 96, outubro de 1992, pág. 1). O cardeal Ratzinger, por sua vez, exprime assim seu "julgamento de fundo positivo" sobre o movimento "carismático": "Certamente, trata-se de uma esperança, de um sinal positivo dos tempos, de um dom de Deus à nossa época" (Conferências sobre a Fé, Cardeal Ratzinger, V. Messori, Fayard, 1985, pág. 186).

Devemos então contradizer estes fiéis, que exibindo pseudo-revelações de pseudo-místicos afirmam que estes são rejeitados pela Igreja oficial. Talvez alguns padres ou bispos, ainda conscientes de sua responsabilidade diante de Deus, se recusem a ser cúmplices de uma fraude tão grave e tão grosseira, mesmo se é orquestrada em escala mundial. É, por outro lado, um fato reconhecido que hoje os "místicos" e os "carismáticos" são favorecidos imprudentemente e sem discernimento, enquanto que os verdadeiros místicos (basta pensar no padre Pio) encontram não somente uma prudente reserva, mas mesmo certa hostilidade. Assim, para nos limitar aos nossos exemplos, o movimento "neo-pentecostal", não obstante suas heresias, denunciadas de muitos lados, conseguiu aprovação e apoio por parte de João Paulo II. Assim o cardeal Ratzinger enterrou habilmente a condenação de Medjugorje pelo bispo Zanic e o julgamento substancialmente negativo ("o caráter sobrenatural dos fatos não está estabelecido") da conferência episcopal iugoslava. Assim, o bispo "guerreiro" Mons. Milingo, que garantiu o falso ridículo da foto "milagrosa" de Jesus (conf. Sì Sì No No, 15 de abril de 1994, pág. 4), contestado por seus confrades africanos, achou proteção e hospitalidade no Vaticano. Como explicar então, esta derrogação à prudência tradicional da Igreja face aos fenômenos "carismáticos"? Porque a hierarquia católica, até o cume (é nosso dever dizer), é composta de numerosos modernistas e filomodernistas favoráveis, por motivos já explicados, às "experiências religiosas" de todo gênero. Basta aqui lembrar Urs von Balthasar, um dos "padres" do neo-modernismo, perdido atrás do falso "misticismo" de Adrienne von Speyr, nomeado cardeal por João Paulo II. O qual João Paulo II desejou e cobriu com sua própria autoridade um simpósio romano em honra de Adrienne von Speyr (v. Sim Sim Não Não de fevereiro de 1994. "Urs von Balthasar, o pai da apostasia ecumênica).

 

"Perder um pouco para ganhar muito"

Há, entretanto, outro motivo que pode explicar o favor mais ou menos tácito dado pelos membros modernistas da hierarquia ao "pseudo-misticismo". Quando o velho modernismo parecia morto, A. Loisy deu assim a razão: "Com menos razão e mais entusiasmo religioso, ele foi mais forte" (Choses passées, pág. 355). Na realidade, os modernistas, conquanto inimigos da razão, são intelectuais e seus sofismas e sua linguagem, se podem fascinar algumas "elites", mostram-se frios e incompreensíveis para a massa (o cardeal Ratzinger, em 30 dias, exprimiu há algum tempo um lamento substancialmente idêntico a respeito dos "novos" teólogos). Logo, não há nada mais adaptado do que os "místicos" ou os movimentos "carismáticos" para suscitar nos simples fiéis este "entusiasmo religioso" que o neomodernismo precisa para não ser, ele também, um "estado maior sem tropa" (J. Rivière) destinado, mais uma vez, à derrota. Mesmo Teilhard de Chardin, S. J., um dos "santos padres" do neomodernismo, queria que a "nova Fé para a Terra" se desenvolvesse no seio do velho cristianismo, "partindo da maravilhosa realidade de seu "Cristo Ressuscitado", não como uma entidade abstrata, mas como objeto de uma larga corrente mística extraordinariamente adaptável e vivaz" (carta a um dominicano apóstata que o convidava a sair oficialmente da Igreja - ver Courrier de Rome, junho de 1994, pág. 5).

Não é temerário supor que os atuais membros modernistas da hierarquia vejam nos movimentos "carismáticos" de toda sorte e em diversas "místicas" ecumênicas, o instrumento mais eficaz para difundir o modernismo no nível da massa, assim como para justificar pelo "Céu" o novo curso eclesiástico. E o povo cristão, duplamente enganado, nem mesmo imagina que é levado para a apostasia através das nuvens "místicas" e "carismáticas" do convite à caridade, à oração e à penitência (jejum inclusive). Tanto é verdade que o demônio "sabe que é preciso perder um pouco para ganhar muito" (bem-aventurada Acarie, fundadora do carmelo na França). E no caso presente, o lance no jogo é enorme e decisivo. Os Papas nos advertiram muitas vezes: "o fundamento sobre o qual [o movimento para promover a união entre os cristãos] se apóia, é de natureza a desorganizar totalmente a constituição divina da Igreja", escrevia Pio IX ao episcopado inglês em 16 de setembro de 1884; e Pio XI advertiu aos católicos, que aderindo ao movimento ecumênico ou o ajudando, eles "estariam atribuindo autoridade a uma religião falsa, inteiramente estranha à única Igreja de Cristo" (Mortalium animos). Não nos deveríamos espantar que Satanás, para sustentar o ecumenismo atual, gaste todas as suas baterias.

 

Como se salvar

Como se vê, caro amigo, a impostura dos "místicos" e dos "carismáticos" atuais de todo gênero (colocamos também nesta categoria aqueles chamados "movimentos eclesiásticos", todos mais ou menos "poluídos" de pietismo), é um fenômeno muito mais grave do que o dos falsos místicos contra os quais, periodicamente, a Igreja teve que defender-se.

Você compreende agora, também, porque nós combatemos de preferência no campo doutrinal; lutando contra os erros doutrinais do neo-modernismo, vamos também à raiz do pseudo-misticismo atual. Seja sobre o plano doutrinal, seja em face às pretensas "revelações", a atitude de um filho da Igreja é substancialmente idêntica: permanecer solidamente no que a Igreja ensina desde dois mil anos e que, no que concerne aos fenômenos místicos, é assim resumido por Tanquerrey:

"toda revelação contrária à fé ou aos bons costumes deve ser inexoravelmente rejeitada, como ensinam unanimemente os doutores apoiados sobre as palavras de São Paulo: "Quando nós mesmos ou um anjo vindo do Céu vos anunciar um evangelho contrário ao que vos anunciamos, que seja anátema". A. Tanquerrey, Précis de Théologie Ascétique et Mystique, no. 1501).

Isidorus

(Revista Sim Sim Não Não n°36, dezembro de 1995)

  1. 1. Paulo VI confirmou, em 14 de outubro de 1966, o decreto da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (Acta Apostolicae Sedis no. 58/16 de 29.12.1966) permitindo a publicação de escritos concernindo às manifestações sobrenaturais, mesmo se esses escritos não estão revestidos do "nihil obstat" das autoridades eclesiásticas.
  2. 2. Na França, um dos órgãos principais do pseudo-misticismo modernista é a publicação mensal Chrétien magazine, cujo editorialista é o padre Laurentin.

Oráculo dos deuses

Os estudiosos dos mitos explicam que uma das características dessas criações é a crença na realidade do mito, por mais bizarro e absurdo que seja. Todos os mitos têm um fundamento religioso, e realizam-se como uma ação sagrada, o que explica a adesão intensa dos espíritos às coisas assim produzidas.

O que pensar, por exemplo, da origem das castas tibetanas? O que pensar do ovo nascido dos cinco elementos e que dará origem a 18 ovos, um dos quais desenvolve membros, depois os cinco sentidos, e transforma-se, enfim, num jovem de grande beleza? Há nessa estranha trama algo ainda mais radical: os homens vão dando crédito a essas bruxarias porque lhes foram transmitidas ao longo do tempo, por tradição oral. Não possuindo a verdadeira Revelação, apegam-se ao que lhes foi transmitido pelos ancestrais.

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