Gustavo Corção
Uma das características da camada exterior que desfigura a Igreja em nossos dias, e que se propõe ao mundo como figura verdadeira, modernizada, da Igreja de Cristo, é o impudente exibicionismo que faz dessa falsa Igreja uma “notícia” e quase sempre um escândalo; outro traço não menos deplorável da dita camada exterior é a incontinência verbal, é a tagarelice que se manifesta todos os dias em pronunciamentos, notícias, protestos; o terceiro traço desse make-up que desfigura a Igreja de Cristo é a infinita multiplicação de grupos quase microscópicos que falam engrossando a voz, num plural majestático, como faz agora a subentidade CIEC surgida em São Paulo nas chocadeiras da arquidiocese.
Nós, que conhecemos a Igreja sem essa hedionda desfiguração, que a conhecemos no tempo em que se podiam bem discernir as lições da Mãe e Mestra, mestra do valor da Palavra e mestra do valor do Silêncio, dificilmente podemos suportar sem gemidos de dor ou sem gritos de cólera o que fazem hoje os inimigos da Igreja, ou os amigos desses inimigos.
Não suponha o leitor que eu esteja aqui, romanticamente, imaginando alguma época em que a Igreja aparecia a nossos olhos transfigurada como um dia com a graça de Deus a veremos na Pátria verdadeira. Não julgue o leitor que eu ignore tão completamente não apenas a história da Igreja como também o mistério de sua paixão, e o mistério de nossa mediocridade que não deixa ver, senão na obscuridade da fé, o brilho de sua santidade interior. Nossa Mãe, nos mais gloriosos dias, teve sempre seu mato manchado por nossas faltas, e até rasgado pelas urzes dos caminhos que andou trilhando e por onde correu atrás das ovelhas tresmalhadas, sempre foi Rainha andrajosa por ser Pastora diligente, Mãe eternamente moça e eternamente afatigada.
Discorrendo sobre o Dom do Temor, que apesar do áspero e severo nome é o mais seguro amigo da doce e transluminosa Esperança, Santo Tomás ensina que o temor filial permanece no Céu, e cita estas admiráveis palavras de São Gregório: “Os próprios anjos do Céu, que sem cessar contemplam Deus, estremecem nessa contemplação, não de um tremor de medo ou pena, mas de um tremor de admiração”.
Analogamente eu diria que mesmo no céu a Igreja triunfante guardará o estremecimento de suas entranhas, que aqui na terra é de inquietação e de luta constante, mas lá, na Pátria, será o estremecimento de solicitude infinitamente agradecida e pacificada.
Mas aqui na terra a Igreja tem contra ela, não apenas o peso dos filhos ingratos, dos inúteis servidores, dos filhos pecadores, mas também INIMIGOS. Outro dia, deu-me vontade de escrever, se para tanto a vida sobejasse, um livro inteiro para glosar três linhas do Catecismo de Trento que hoje um cristianismo emasculado gostaria de ver apagadas, raspadas, recobertas de vaselina ou de talco, a fim de não arranhar as peles finas dos pacifistas que estão capitalizando omissões, capitulações, agachamentos, até que esse paiol exploda numa imaginária hecatombe em que as insânias de todos os intelectuais se multipliquem pela insuperável crueldade dos covardes.
Contra esse amolecimento geral vale a pena lembrar as três linhas do Catecismo de Trento: “A Igreja na terra se chama Militante porque está obrigada a sustentar uma guerra incessante contra os mais cruéis inimigos: o mundo, a carne e Satã.” Estava eu nessa disposição de espírito quando recebi a visita de um velho padre lituano que, por causa de um artigo que escrevi sobre a grande paixão do bom povo lituano, trazia-me de presente três pequenos devocionários com orações escritas nas várias línguas da Igreja martirizada pelo comunismo. Ora, logo à primeira página está o Sinal da Cruz que aprendi há mais de setenta anos com a mãozinha de três ou quatro anos guiada pela mão de minha mãe. E hoje, depois de tanta leitura, de tanto estudar e de tantos passos “vãmente derramados”, vejo no antigo e luminosíssimo sinal da evidência de uma figura de espada e escudo. Quem faz o “pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos” arma-se cavaleiro de Cristo e apronta-se para o bom combate.
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Desviei-me da intenção primeira deste artigo, que visava a criticar uns editoriais de um protozoário eclesiástico chamado CIEC. Antes disso convém firmar algumas noções, ou pelo menos encaminhar nosso pensamento para uma clareira de são doutrina. Quando digo, com a Igreja, que temos de combater três cruéis inimigos, não se deve concluir que temos como inimigos da Igreja todos aqueles que combatemos. Descontados os claros e inequívocos casos que constituem no mundo de hoje anti-Igrejas, o fenômeno que combatemos quase todos os dias é o de uma entidade que quer ser Igreja, que quer ser neutra, que quer ser intermediária e que quer estar em excelentes termos com os inimigos declarados da Igreja.
Uma das tremendas dificuldades de nosso tempo reside precisamente nesta falta de nitidez, e na facilidade parva com que pessoas vagamente bem intencionadas passam a servir ao inimigo. Um dos mais brutais exemplos de nossos dias é o da complacência de uma parte tresloucada do clero com o comunismo ou o revolucionarismo, e a complacência do episcopado que, sem ser declaradamente inimigo da Igreja, acoberta esses inimigos e lança a confusão e descrédito em toda a Igreja.
E isto no s devolve à intenção primeira desta artigo, que era o de denunciar uma estupidez crassa que a tal entidade paulistana CIEC atribui à Igreja. Mas vejo que cheguei ao limite do papel, e deixo para sábado a supracitada denúncia. Nesse meio tempo o CIEC poderá fazer uma autocrítica.
(O Globo, 18/3/71)