Gustavo Corção
Amanhã, 3 de dezembro, a Igreja comemora a festa de São Francisco Xavier, o admirável companheiro de Santo Inácio de Loyola, que levou ao grau heroico o cumprimento do preceito de Jesus: “Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20).
No século XVI quando o medievo compacto, côncavo e mediterrâneo, se expandia e se abria, convexo e atlântico para a conquista do orbe, e a descoberta do Novo Mundo do Ocidente e do antiquíssimo e oculto mundo do Oriente, a Igreja viveu um estranho e dilacerante paradoxo: perdia sua força de critério supremo sobre toda uma civilização mais do que milenar, em favor de um novo humanismo ainda cristão, mas já arrogante e inebriado com suas conquistas. Por outro lado, entretanto, nos mesmos dias em que perdia sua substância em torno de Roma, o Cristianismo era levado ao mundo inteiro, diluído, mas também dilatado, às vezes mais humano do que divino, mais épico do que evangélico, mais cobiçoso do que caridoso. Mas nesse mesmo processo de enfraquecimento e de difusão com perda de densidade, surgiu na história da Igreja, um dos mais belos aspectos de santo heroísmo — o dos missionários que terão não somente a função de difundir o Evangelho, como também a complementar função de contrariar, de certo modo, o expansionismo dos brutais conquistadores. E não há de ser mero acaso esta a palavra de Jesus que primeiro vulnerou e converteu o coração de Francisco Xavier: “De que vale ao homem ganhar o universo se perde a sua alma?”.
Ardendo de zelo pela conversão das almas, Francisco Xavier cruza este santo empenho com aquele outro que leva seus contemporâneos à conquista do mundo com a finalidade de espalhar por toda a parte os sinais da Salvação.
Séculos atrás, num paradoxo semelhante, coube às ordens religiosas, isto é, aos homens enclausurados, aos homens com votos de estabilidade, a tarefa aventurosa de cristianizar os bárbaros e dilatar as terras da Cristandade.
Agora, ao século XVI caberá aos missionários pagar com heroica dedicação, com zelo de santa caridade, o preço do arrogante humanismo que o “velho de aspecto venerando” tão severamente estigmatizou:
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama! ”
São Francisco Xavier deu-se todo à obra de evangelizar na Índia e no Japão, e de suas humildes e obscuras conquistas pode-se dizer, com mais seguro fundamento:
“(que) entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram”
Pio X declarou São Francisco Xavier padroeiro principal das Missões. Outra padroeira de todas as missões é Santa Teresinha do Menino Jesus, que nunca saiu do Carmelo de Lisieux, mas logo depois de morta fez inúmeros milagres no mesmo Japão onde também abundantemente os semeou o companheiro de Santo Inácio. A Igreja é toda ela estruturada com paradoxo, que são verdades crucificadas.
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Seria o caso de nos determos aqui a refletir longamente, pausadamente, sobre o que, em verdade, em verdade, quis dizer Jesus em Mateus (28, 19-20). À primeira vista parece dirigir-se mais a Vasco da Gama do que a Santa Teresinha e mesmo a São Francisco. Há no versículo um inevitável preceito de difusão; mas é mister observar que não há nenhum anúncio de bom sucesso para o empreendimento. E se houvesse aí estaria a história para desmentir Jesus. O mundo inteiro está salpicado de sinais de Cristianismo, está marcado, mas não está conquistado, não está ocupado pelos soldados de Cristo. Longe disso. E até se pode dizer que os missionários fazem uma obra de antemão condenada ao fracasso, ao naufrágio, à imersão no espesso mundo das coisas materiais. Enganou-se então Jesus quando nos propôs empreendimento tão acima de nossas forças? Na verdade, parece-me que, desde aquele santo instante em que pronunciou o preceito, Jesus já sabia que, sendo tudo desproporcionado na história da salvação, desproporcionado seria o cumprimento de tal preceito. E efetivamente desproporcionadíssimo tem sido.
Muitos estão e estarão sempre a dever muitíssimo a tão poucos. Hoje lembremo-nos do ardente jesuíta que bem sabia o valor da salvação de uma só alma, e adivinhava que a cada uma que no imenso Oriente ganhava para Deus, correspondiam milhares e milhões de outras que em torno das paróquias tranquilas deixavam de cair no nadir dos infernos. Lembremo-nos hoje de São Francisco Xavier como quem se apega a um dos poucos que ouviu e entendeu totalmente a palavra de Deus. E roguemos ao Bom Jesus que vincule ao nosso espesso, pesado e ingrato corpo a uma esquírola de osso da tíbia que está em Roma, ou de alguma costela que está enterrada em Goa; e assim, no dia da Ressurreição nossa inércia, nossa resistência, nossa ingratidão, será elevada e nós mesmos seremos imantados e incompreensivelmente arrebatados. Sabemos que não somos dignos, mas se disserdes uma só palavra Senhor, nossa alma se salvará. Mas é preciso que alguém ouça com a devida atenção essa palavra que nós mal ouvimos; e foi para isso que anteontem tivemos Santa Teresinha, e ontem tivemos São Francisco Xavier a trabalhar por nós.
No dia de trevas em que Ele viveu toda uma infinita solidão entre os homens, Jesus disse que estaria conosco até o fim do mundo. De vários modos cumpre dia a dia sua promessa. E um desses modos é a presença exemplar com que Ele escalona nossos caminhos. Hoje tomou o nome e os traços de São Francisco Xavier que no século completou com sua parte a Paixão de Cristo nas Índias, no Japão, e no céu continua a função missionária na Terra, ao lado de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face. Apeguemo-nos a eles. Santos missionários, orai por nós.
(O Globo, 02/12/1971)