Skip to content

O Sagrado Coração de Jesus

Gustavo Corção

 

Como vimos no artigo anterior, todas as fontes visíveis da salvação para a vida eterna nasceram do Coração vulnerado de Jesus. E agora é no coração do Coração de Jesus que todos nós, tão sobrecarregados, devemos procurar alívio, paz e doutrina que nos norteie para a Casa do Pai.

A consciência mais viva do culto do Coração de Jesus nos aparece com a manifestação revelada a Lutgarda d’Aywières, que esperava sentada o moço com quem iniciara um namoro quando de repente viu diante de si a figura de Jesus a lhe mostrar o peito vulnerado e o sangue fresco e a lhe dizer: “Não procures mais os agrados de um vão amor. Olha, vê, contempla para sempre o que deves amar e porque deves amá-lo”. “Hic jugiter contemplare quid diligas, et cur diligis”.

A jovem Lutgada tornou-se monja beneditina e hoje, embora esquecida, permanece na galeria dos santos canonizados que a Igreja nos propõe como primeiros degraus da imitação de Cristo. Santa Lutgarda, ora por nós.

Um século mais tarde é no mosteiro beneditino de Helfta, em Saxe, que uma grande e sábia abadessa chamada Gertrude de Hackeborn (1231-1292) teve perto dela uma irmã Matilde, e foi nesse mosteiro tão santamente preparado que ambas tiveram a alegria de receber outra Matilde e outra Gertrude que se tornaram grandes santas, famosas pela intimidade que tiveram com o Coração de Jesus.

No fim de sua vida, Matilde, que não tinha a educação apurada das monjas, e só escrevia, e mal, em baixo-alemão, deixou esta página de um diálogo que teve com o Senhor Jesus:

— Dize-me o que me trazes tu, minha rainha.

— Senhor, trago-vos uma joia maior do que as montanhas, mais vasta que o mundo, mais profunda que o mar, mais alta do que as nuvens e mais bela do que o Sol, mais rica do que todas as estrelas, e mais pesada do que a terra inteira.

— E como se chama essa joia, ó filha, imagem de minha divindade, honrada por minha humanidade, ornada pelo Espirito Santo? Que joia me trazes?

— Senhor, a joia que vos ofereço se chama: alegria de meu coração. Arranquei-a do mundo, guardei-a comigo recusada a todas as criaturas, mas agora já não aguento carrega-la. Onde devo depositá-la Senhor?

— A alegria de teu coração não pode pousar senão no meu Coração divino que bate em peito de homem. Somente aí serás consolada e abrasada por meu Espírito.

Gertrude recebeu os mesmos favores do céu, e deixou-os consignados no Arauto do Amor divino, que foi um registro de toda a vida espiritual do mosteiro, mais do que história de sua própria alma. E vemos brilhar, no mais belo dos séculos, essa casa religiosa que o Coração de Jesus visitou com tanta intimidade.

Na família franciscana encontramos, ainda no século XIII, Margarida de Cortone e Ângela de Foligno que viveram a fundo a devoção da chaga aberta sobre o Coração de Jesus.

No século XIV, tão agitado e perturbado, arrefece a lembrança do Coração de Jesus, mas no meio das tormentas do Cisma vê-se passar a figura inflamada de Catarina de Sena, e ouve-se sua voz inesquecível a gritar que segue um rastro de Sangue. Ao seu próprio confessor ela escreve dizendo seu ardente “desejo de vê-lo sufocado, afogado no doce Sangue do Filho de Deus” e acrescentando: “Quero vê-lo inserido no flanco aberto do Filho de Deus, esse flanco que é um jarro aberto cheio de odor e até capaz de perfumar o pecado. Ali repousa a doce esposa num leito de Sangue e Fogo. Ali se vê e se manifesta o segredo do Coração do Filho de Deus. Nesta botelha de tampa perfurada se dessedenta e se inebria todo desejo enamorado, e ela nos dá alegria, nos ilumina o entendimento, nos enche a memória que aí se satura, a tal ponto, que já não poderá mais reter, entender e amar outra coisa que não seja o doce e bom Jesus, sangue e fogo, amor sem preço”

Nos tempos modernos é João Eudes (1601-1680) que retoma a devoção do Coração de Jesus associando-o ao Coração de Maria. Mas é Margarida Maria Alacocque (1647-1690) quem dará ao mundo o que chamaríamos de “mensagem” do Sagrado Coração. De 27 de dezembro de 1673 a 21 de julho de 1675, Margarida Maria é cumulada de revelações e é incumbida da difusão universal dessa devoção, que deverá ter suas práticas mensais, e festa anual celebrada com solenidade litúrgica. As dificuldades dessa difusão eram enormes para uma religiosa enclausurada, mas é preciso que o mundo inteiro possa escutar os queixumes e os pedidos de reparação de um Coração divino vulnerado por nossas ofensas, e por nós apaixonado.

A Igreja, porém, é vagarosa; e é melhor que o seja porque, se aos seus missionários convém correr como escravos de Deus e dos pobres, à Igreja hierárquica convém o vagar majestoso dos reis.

Dois séculos passaram até que Pio IX, em 1856, estendesse o culto do Sagrado Coração à Igreja Universal. Gradativamente o culto atingiu os mais altos graus da solenidade ritual. Leão XIII, em 1899, por instigação da irmã Maria Droste zu Vischering, do Bom Pastor de Porto, consagrou o gênero humano ao Coração de Jesus, com uma bela fórmula que se recomendava à recitação pública. Pio XI, em 1928, inseriu a festa no ciclo do temporal e concedeu-lhe uma oitava privilegiada.

Associou-se ao culto do Sagrado Coração a prática da comunhão em cada primeira sexta-feira do mês. E assim se vê que a Igreja solicitamente multiplicou os modos de nos unirmos melhor ao Coração de Jesus. Santa Catarina de Sena fez a experiência mística da troca de corações. São João Evangelista, o discípulo tão amado, teve o privilégio de reclinar-se no peito de Jesus e ouvir o seu Coração. A Virgem Santíssima de cujo coração nascera Jesus, “guardava todas aquelas palavras no seu coração” e, portanto, abrira para todo o gênero humano o caminho de volta ao Paraíso, que é o Coração de Jesus.

E a sorte do mundo depende essencialmente da presença catalisadora da Igreja, e da presença, na Igreja, de um pequeno rebanho que seja o sal do mundo e que se mantenha unido, consciente e fervorosamente unido ao Coração de Jesus.

Sem isto o mundo conhecerá dias de crueldade e de degradação inimagináveis, ainda que os ativistas multipliquem seus programas sociológicos e seus pronunciamentos temporais. Nosso torturado e transviado mundo não precisa de padres e bispos que se ocupem de problemas temporais com esquecimento do “único necessário”; e por mais forte razão não precisa de padres e bispos que, nos problemas sociais e políticos, correm atrás das mais perversas soluções. Há muita gente cuidando da máquina do mundo, e por isso precisamos de uns poucos que deem o testemunho de outra ciência e outra sabedoria que transbordam do Coração de Jesus. “Cor Jesu, in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scienciae, miserere nobis”.

 

(O Globo, 26/06/71)

AdaptiveThemes