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Estudo sobre Santa Catarina de Sena

PRIMEIRA PARTE: OS PARADOXOS DA SANTIDADE
 
I — O AMOR E O ODIO.
No dia da festa de Santa Catarina de Sena, ouvimos no intróito da missa estas palavras que convêm à nossa santa de modo admirável: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem.

Todos nós sabemos que o bem deve ser procurado e o mal evitado; e que este fundamental discernimento, estandarte dos santos, é o mesmo que carregamos em nossas pobres pelejas cheios de tropeços e vacilações. Todos nós procuramos, sinceramente, fugir ao pecado mortal; mas muitas vezes — ai de nós! — permitimos que o seu gosto e a sua saudade se insinuem em nossos corações.
 
São Francisco de Salles1, descrevendo muito bem as fraquezas dessas incompletas purgações, comparou-as aos Israelitas que Moisés libertara do Egito. Tinham todos deixado para trás o exílio e o trabalho servil nas olarias, mas nem todos se haviam despojado inteiramente da afeição pelo jugo, e por isso, nos dias mais difíceis do deserto, lamentavam-se relembrando, como vantagens da escravidão, as carnes saborosas do Egito e as cebolas fartas. Assim também — acrescenta o santo Doutor — são os penitentes que se abstém do pecado a conselho do confessor, como os doentes se abstém do melão a conselho do médico.
 
O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, é que não basta traçar na areia uma tênue linha que separe o bem do mal; e que é preciso, resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio, e cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa moça de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de Sena, é que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo amor.
 
É grande o mistério da santidade. Muito mal apreenderemos o palpitante funcionamento do organismo espiritual, habitado pela graça, se nos deixarmos levar pela ilusão de uma semelhança entre a santidade e bondade natural que também, de certo modo, nos afasta de atos reprováveis. A diferença é maior do que a semelhança. É enorme. Mesmo sem tentar a exploração mais profunda da misteriosa conversação entre uma alma e seu Criador, já poderemos apreciar, pelas manifestações exteriores e visíveis, pelas fisionomias, pelos gestos, a imensa distância que existe entre um quadro de virtudes naturais e a estrutura da alma dos perfeitos.
 
Nós que não somos santos, ai de nós, construímos e cultivamos nossas pequenas virtudes de um modo mesquinho, como o homem que, desejando agasalhar-se em pouco pano, encolhe-se nas dobras exíguas e trata de não fazer gestos muito amplos. Quando tentamos alargar esta ou aquela virtude de nossa maior afeição, não temos outro remédio senão furtar, às escondidas de nós mesmos, alguns metros das outras. Cultivada a mansidão, fica desfalcada a coragem; exercitada a obediência, empobrece-se o espírito de iniciativa e, às vezes, o gosto pela veracidade. Tentando evitar os desequilíbrios mais fortes o que nos resta é sofrear cautelosamente os desejos. Foge-se assim às tentações abafando as aspirações. E vai-se pela vida afora, devagar, como o sujeito que anda às apalpadelas, no escuro, com medo das cadeiras.
 
Este pequeno equilíbrio moral, que nos impede de assassinar os parentes mais incômodos, e de esgueirar a mão no casaco do amigo em busca de sua carteira, caracteriza-se por uma retração, um encolhimento, uma aproximação dos extremos. E neste acanhado conjunto é às vezes um defeito que nos protege de um vício. Por timidez, livramo-nos de certas audácias. Das más, sem dúvida; mas das boas também.
 
É nesse sentido que se costuma dizer, com acerto, que temos os defeitos de nossas qualidades. Diz-se, por exemplo, que o brasileiro é geralmente bondoso e paciente, e pouco vingativo, porque é displicente na justiça. Perdoa com facilidade, inclusive os homicidas, e principalmente os delapidadores do patrimônio comum. A mole e simpática resultante desse quadro de virtudes encolhidas não suporta a dilatação sem que um trágico desequilíbrio se evidencie. Crescendo o edifício, logo aparece o aleijão, e não é preciso esperar muito tempo pelas catastróficas conseqüências.
 
O homem honesto, simplesmente honesto, vai assim trilhando seu caminho, e conseguindo evitar os principais, ou mais visíveis pecados, sem ter nas costas a cruz do santo ódio. A menor detestação do mal equilibra-se com a menor dileção do bem.  
 
Na santidade, ao contrário, o que logo se vê, com fulgurante evidência, é a dilatação da alma e o alargamento dos extremos. A mansidão se vê acompanhada da coragem; a temperança de um santo como Bento Labre, que passa a vida inteira dizendo: pouco... pouco... , completa-se com um infinito desejo de posse; a misericórdia se abraça com um ardente sentimento de justiça 2. As virtudes, que no homem ainda sujeito às leis dos sentidos, ou mal libertado desse jugo, eram meras disposições facilmente abaláveis (faciles mobiles), e sem conexão orgânica, tornam-se, pela infusão da Caridade e pelo acréscimo dos dons, virtudes reais, forças verdadeiras, dificilmente abaláveis (difficiles mobiles) organicamente e harmoniosamente conexas. E, em lugar do tíbio e claudicante indivíduo que apenas consegue fazer algumas coisas boas, à custa de compromissos, demissões e pusilanimidades, vê-se então esta alma vivificada pela graça abrir as grandes asas das virtudes que nos pareciam opostas e paradoxais, erguer-se sem medo no largo vôo dos albatrozes3.
 
Ora, é esse prodigioso alargamento dos extremos, essa riqueza de paradoxos, esse vôo poderoso de asas bem abertas, que dá à fisionomia de Santa Catarina de Sena um realce singular. Desta, pode-se dizer como a Igreja o diz no intróito de sua missa: ela amou o bem e odiou a iniqüidade. Nela, desde o hábito preto e branco de mantellata (Terceira Dominicana), tudo eram contrastes.
 
Tendo atingido aos vinte anos os mais altos vértices da perfeita contemplação, torna-se a mais diligente personagem de sua época; sendo filha de gente humilde e obscura, torna-se a primeira pessoa de quem o Papa Urbano VI se lembra, e manda chamar, nos dias em que a Igreja sofria a injúria do grande cisma. E é fácil prever que esta alma de ódio e amor não ficará hesitante entre os dois partidos que dilaceram a unidade do papado; e ainda é mais fácil adivinhar que esta moça corajosa (e humilde) não vai procurar o meio termo, o falso apaziguamento, a tíbia conciliação, com receio que a pedra angular não suporte o peso de palavras e atitudes verídicas. Nem partiria dela, nunca, a mais esdrúxula idéia que pode ocorrer a alguém diante de um cisma: a solução do tertius. Mais tarde, já depois de sua morte, esta insensata solução foi de fato alvitrada, e elegeram um terceiro papa. E então — diz Bossuet sem a sombra de um sorriso — o problema ficou mais intricado e insolúvel do que nunca... Pudera!
 
Catarina tomou logo partido. Empenhou-se a fundo. E com a faca que separa os nervos, os ossos, as junturas, reconheceu em Urbano o dolce Cristo na terra; e em Clemente e seus pérfidos cardeais ela denunciou a impostura chamando-os de demônios encarnados. Podia ter-se enganado, como São Vicente Ferrer enganou-se, e como alguns historiadores pretendem que ela mesma se tenha enganado em matéria de julgamento político, anos antes, quando fora buscar em Avignon o papa Gregório XI, para trazê-lo, por cima do corpo de seu velho pai, quase de rastros, para as terras de Itália. A apreciação da carreira política de Santa Catarina, como lucidamente expõe Noële M. Denis-Boulet4, pode revelar apreciáveis erros, servindo isto para nos acautelar contra a hagiografia convencional que, insensivelmente, tende a desumanizar a santa, dotando-a de uma infalível e contínua inspiração. O que nos interessa agora, porém, não é o acerto ou desacerto, e sim a nitidez e a violência com que Catarina se empenhou na questão.
 
Essa filha de gente obscura, virgem humilde e dócil, torna-se conselheira de papas e de reis; essa contemplativa, passa a ser um ativo personagem que todos procuram, repetindo assim em moça, quase menina, a movimentadíssima história do contemplativo Bernardo que interrompia seu comentário do Cântico dos Cânticos para cuidar dos problemas políticos. Ignorante, não sabendo escrever, e mal sabendo ler, essa moça, quase menina, ensinava os doutores, passava horas a ditar cartas, três ou quatro ao mesmo tempo, às vezes; e comparecia diante de um consistório de teólogos dominicanos que aprovam sua doutrina e se declaram subjugados pela retidão e pelo ardor de sua palavra. Virgem, tornou-se mãe de numerosíssimos filhos, incluindo papas, monges, doutores, poetas e freiras; e sua maternidade continua fecunda até hoje, contando-se entre seus mais ilustres filhos os teólogos modernos, como Garrigou-Lagrange, Lemonnyer, Petitot, Cardeil, Clérissac, etc., que não se cansam de buscar nas palavras da dolce mamma Caterina as genuínas lições de vida espiritual.
 
Sua própria mãe, a boa e turbulenta Monna Lapa, que tantos obstáculos pusera às suas penitências, completou o paradoxo tornando-se sua filha e vindo finalmente alistar-se entre os doidos que andavam em torno dessa irresistível moça, quase menina. Seu confessor, Fr. Raimundo Cápua, dirigia-a e era dirigido por ela, recebendo às vezes, da filha obediente e da mãe exigente, cartas que abriam com este preâmbulo: Caríssimo e dolcissimo padre, e negligente e ingrato figliuolo in Cristo dolce Gesú5
 
Mas, de todos os contrastes, o mais vivo na alma da santa é sem dúvida aquele de que nos fala hoje o intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem. O pecado, para Catarina, não é coisa que se evite cautelosamente, como um poste pintado de fresco: é um objeto de ódio. Sentia-o fisicamente; e odiava-o fisicamente. Pela ciência do valor do sangue de Cristo, pelo amor desse sangue, que é o “leit-motif” principal de suas cartas, ela odiava o mal, como mulher, com a força de mulher que ama e que se bate por seu amor: ela odiava o mal com os dentes.
 
Tomando um exemplo entre muitos, eis o que disse ela por carta a Fr. Raimundo Cápua quando teve notícia de seu esmorecimento em certa empresa a que ela o enviara, e de seu recuo diante dos ferozes adeptos de Clemente VII, o falso papa. Depois de algumas exprobrações, alternativamente maternais e filiais, como só ela sabia fazer, terminava assim a carta6:
 
 “Ó meu pobre pai, como tua alma e a minha estariam felizes se, com teu próprio sangue, tivesses cimentado uma pedra a mais nos muros da Igreja! Choremos, pensando que por nossa falta de coragem deixamos de merecer tamanho bem. E agora, deixemos os nossos dentes de leite; e exercitemos os de adultos: os fortes dentes do ódio e do amor. Revistamo-nos com a couraça da Caridade e empunhemos o escudo da santa Fé. Como homens feitos, corramos ao combate, e agüentemos os golpes, firmes com uma cruz ao peito, e uma cruz às costas... E para que Deus nos conceda esta graça, a ti, a mim, aos outros, comecemos desde já a oferecer-lhe nossas lágrimas, e nosso desejo muito doce, mas muito amargo por causa de nossas falhas que nos privaram de tão grande bem. Eia pois, filho, afoga-te no sangue do Cristo crucificado; banha-te no sangue; sacia-te no sangue; inebria-te no sangue; protege-te, alegra-te e chora por ti mesmo, no sangue; cresce e fortifica-te, no sangue; deixa a tua tibieza e tua cegueira no sangue do Cordeiro imolado: e iluminado enfim, corre, corre, meu viril cavalheiro, no encalço da honra de Deus, do bem da Igreja, e da salvação das almas — no sangue.”
 
E termina esta carta com sua fórmula habitual: Altro non ti dico. Permane nella santa e dolce dilezione di Dio. Gesú dolce, Gesú amore.
 
Um outro belo exemplo de seu ódio físico ao pecado pode ser encontrado na expressão que usa, no Diálogo, e em algumas cartas, para caracterizar as almas tíbias que se detém em meio do caminho, na Ponte da Salvação, e acabam voltando ao antigo pecado. Fiel à genuína tradição, que vem dos Padres, e do Evangelho, Catarina sabe muito bem que, na vida espiritual, deter-se é regredir. Quem não avança, recua, porque — diz ela repetindo Santo Agostinho — a alma não pode viver sem amor. E como o amor é ímpeto e busca, e portanto o contrário de rotina e repetição uniforme, quando esmorece o amor pelo sangue que nos valeu a redenção, prevalece logo o amor próprio, fonte e princípio de todos os pecados. E quem não avançar, deixando para trás, resolutamente, os despojos do homem velho, então recua; e recua, diz a santa, como o cão que, depois de ter vomitado e seguido seu caminho, volta para comer seu próprio vômito.
 
Para Catarina, como para Luiz de França, a volta ao pecado, a recaída no amor desregrado de si mesmo, a ofensa ao sangue do Cordeiro, tinham repugnância maior que um vômito de cão; para ela, como para o santo rei, era preferível acordar coberta de lepra do que ofender a Deus. Esse horror instintivo que nós temos pela carne esfarinhada, intumescida e purulenta, esse medo que se esconde em nossos subterrâneos e vem povoar nossos piores pesadelos, dá uma idéia ainda imperfeita do horror da santa pelo pecado. Por um dom especial, ela sentia-lhe o mau cheiro: o amor próprio, o orgulho, a concupiscência, eram para ela tão sufocantes como as maiores podridões físicas. Sentia-os com intenso sofrimento, chegando ao desmaio.
 
Em Avignon, onde fora persuadir o papa Gregório XI a voltar para Roma, Catarina mal podia respirar no ambiente da corte pontifícia onde as emanações da soberba e da inveja disputavam a primazia ao mau cheiro da luxúria. A julgar pelas crônicas, certas damas já não faziam questão de guardar decoro mesmo diante do altar. Uma destas, um dia, vendo Catarina em êxtase, depois da comunhão, teve a idéia de verificar se o fenômeno era simulado, e não achou meio mais delicado do que furar o pé da santa com um estilete. Quando voltou a si Catarina mal se podia ter em pé, tão profundo fora o golpe; mas foi assim mesmo, dolorida e claudicante, que trouxe o papa, o dolce babbo, para a Itália.
 
Mais tarde, já em Roma, conversando com o mesmo Gregório XI, por intermédio de seu confessor, pois o papa não entendia o italiano vulgar nem Catarina sabia o latim, lamentava-se a virgem que, na corte romana, que deveria ser um paraíso de virtuosas delícias, reinasse tamanha podridão de vícios infernais. O papa, ouvindo isto, perguntou-lhe quando chegara ela em Roma, e ouvindo dizer que na véspera, tornou a perguntar, entre ofendido e admirado: “Como pudeste em tão pouco tempo examinar os costumes da corte romana?”. E então — conta Fr. Raimundo Cápua na sua Leggenda7 — mudando ela a atitude curvada e humilde, ergueu-se vivamente, revestida de uma espécie de majestade, que eu mesmo vi com meus próprios olhos, e disse estas palavras: “Para honra e Glória de Deus Todo Poderoso, ouso dizer que sinto e vejo melhor a podridão dos pecados que se cometem continuamente na corte de Roma, sendo recém-chegada da cidade em que nasci, do que esses mesmos que os cometem.” Ouvindo essas palavras, calou-se o soberano Pontífice. “E eu — acrescentava Fr. Raimundo — estupefato considerava comigo mesmo todas essas coisas, e observava a autoridade com que ela dizia tais palavras a tão grande Pontífice.”
 
É claro que uma pessoa assim, que arvorava com tamanho denodo o duplo estandarte do ódio e do amor, não podia colher onde passasse, senão amor ou ódio. Diante dela era impossível a neutralidade. Era impossível tentar essa conciliação do preto com o branco que tanto se invoca nos tempos de indiscernimento e pusilanimidade. Aquela moça de vinte e poucos anos, vestida de mantellata, acompanhada de uma heterogênea dúzia de filhos, um dos quais era seu pai no espírito, e outra sua própria mãe no sangue, onde passasse deixava um sulco e provocava uma opção. Quem não estivesse com ela estava contra ela.      
 
O mistério maior da santidade consiste em tão perfeita e amorosa impregnação do espírito do Esposo que esta alma, sem querer, quase inconscientemente, imitando o Bem Amado, provoca nos outros a imitação dos que o seguiram, e a imitação dos que o crucificaram. Foram muitos os que seguiram as pegadas do Cristo nos passos dessa moça impetuosa que mal comia, vivendo longos dias da sagrada eucaristia, e mal se aquietava no afã de converter. Um de seus mais fiéis discípulos, Stefano Maconi, deixa mãe, irmãos, irmãs, riquezas, conforto, para a felicidade de gozar a presença virginal e a familiaridade da dolce mamma Caterina. Foi seu inseparável secretário, e muitas noites cabeceava de sono ouvindo a infatigável Catarina a ditar suas cartas de sangue e fogo para os grandes do tempo. Depois da morte da santa, e por ordem dela, tornou-se frade cartuxo e morreu como um santo. Está, como Fr. Raimundo Cápua, inscrito no catálogo dos bem-aventurados.
 
Tão volumosa tornou-se com o tempo a onda dos convertidos que foi preciso obter uma bula de Gregório XI designando três confessores dominicanos para atender aos penitentes da escola de Catarina. E às vezes esses confessores não davam vazão, permanecendo noite e dia no confessionário.
 
Mas foram também numerosos os que a perseguiram e difamaram. O exemplo mais chocante é o da irmã de hábito, a velha Andréa, que fora atingida por uma horrível enfermidade. Tinha ela no peito — diz-nos Fr. Raimundo Cápua — esta ferida que no vocabulário dos médicos se chama câncer, e que corrói as carnes, aumentando sem cessar. O peito da criatura já estava todo tomado, e da ferida exalava-se tão forte mau cheiro que ninguém podia aproximar-se.
 
Catarina, ouvindo contar a miséria e o abandono da pobre Andréa, correu a cuidar dela. Mas a doente, amargurada pelo sofrimento e tentada pelo demônio, deixou-se tomar por um sentimento de inveja e ciúme, que em poucos dias avulta com labaredas de ódio mortal. Murmurava todo o tempo, e quando Catarina a deixava por algumas horas, a velha punha-se a gritar, conseguindo sempre atrair muitas pessoas a quem, se repugnava o pus do câncer, apetecia o da maledicência. E Andréa espalhou assim a notícia dos desregramentos daquela falsa virgem que se fazia de paciente e santa para melhor disfarçar sua devassidão.
 
Uma tarde, chegando a moça inesperadamente, achou-se cercada de pessoas que a consideravam com desconfiança; e ouviu de repente da velha doente, levada ao paroxismo do ódio, uma estridente acusação pública. Catarina, preparando os panos para pensar as horríveis feridas, respondia-lhe com brandura e paciência: “Em verdade, minha mãe e minhas irmãs, pela graça de Jesus Cristo, eu sou virgem”.
 
Foi nesse tempo que o Cristo apareceu-lhe um dia propondo-lhe que escolhesse entre as duas coroas que tinha nas mãos: uma de pedras preciosas, e outra de espinhos. Catarina respondeu-lhe: “Meu Senhor, há muito tempo renunciei à minha própria vontade e escolhi a Tua. Não me compete, pois, escolher coisa alguma; mas já que assim o exiges, digo-te que quero sempre nesta vida a conformidade com tua bendita paixão, e que escolho para minha consolação e pelo amor que Te tenho, a coroa da dor”. E, ditas essas palavras, tomou com as duas mãos a coroa de espinhos, e com tal força enfiou-a na cabeça que as pontas rasgaram-lhe a fronte, produzindo uma vivíssima dor que persistiu todo o tempo que duraram aquelas calúnias e difamações.
 
Dias depois, porém, ela iria ainda acrescentar uma prova concreta, física, horrorosa, de seu ódio ao pecado e de seu amor à bendita paixão do Cristo Jesus; e foi a própria Andréa, já arrependida, já convertida, quem transmitiu o fato aos diversos cronistas que, com pequenas variantes, no-lo deixaram narrado.
 
É comum na história dos santos o caso da paciência heróica diante da ingratidão. Santa Terezinha do Menino Jesus teve sua doente difícil, que era preciso conduzir à capela, empurrando um carrinho, nem muito devagar, nem muito depressa, e que era preciso atender sempre de um certo modo, com especialíssimas gradações de gestos, porque assim era demais, e assim era de menos, sendo quase impossível acertar a ideal justa medida ao agrado da doente. Santa Terezinha venceu o amargor da pobre irmã com as poderosas armas da humildade e com os recursos de seus mais mansos e belos sorrisos8.
 
Mas os tempos em que viveu Catarina eram mais duros, mais violentos, e a mesma santa paciência se manifestará de um modo diferente. Um dia, quando mais acresceram as recriminações e mais nauseabundas as enormes chagas purulentas, Catarina sentiu que o tentador lhe inculcava pensamentos de desânimo e irritação; e então, não tendo tempo a perder com recursos mais delicados, possuída de um santo ódio por si mesma, por seu egoísmo, por suas vacilações, colheu num vaso o sangue e o fétido pus da cancerosa, e consumou, diante da pobre enferma, por amor à bendita paixão do Senhor, o que o Pe. Gardeil chamará um magnifique repas9.
 
II — DIFICULDADES
É muito difícil, com setecentos anos de intervalo, separar, na lenda de um santo, o falso do verídico, e sobretudo apreender os verdadeiros traços de sua fisionomia. A devoção dos cronistas às vezes amplifica, outras vezes mutila o que lhes parece desdouro humano demais. Um milagre a mais, ou um defeito a menos, pouco pesam para quem está pessoalmente convencido, sobejamente convencido, da santidade desse santo; e assim, nesses piedosos deslizes sofre a veracidade; e nós, que não estamos vendo o santo viver, ficamos muitas vezes reduzidos a contemplar o inexpressivo espetáculo da santidade de convenção. A lenda de Santa Catarina de Sena, conforme nos diz Noële M. Denis-Boulet, passou por uma séria crise poucos anos atrás. Enquanto os eruditos italianos, Mme. Fiorilli e o Pe. Taurisano, trabalhavam em silêncio, estourou como uma bomba nos meios catarineanos o trabalho do professor Robert Fawtier10, que vinha lançar suspeição sobre a Lenda Maior de Fr. Raimundo Cápua, confessor, diretor e principal biógrafo da santa, e que vinha denunciar francamente, como grosseiras falsificações, o Suplemento ou Lenda Menor de Tomaz Cafferini, outro discípulo da santa.
 
Para Fawtier, esse Suplementum, bem como o opúsculo Miracula, não têm nenhum valor histórico. Cafferini é tratado com extremo rigor pela crítica que chega a lhe atribuir a invenção dos estigmas, a que esse dominicano teria sido levado pela rivalidade, que naquele tempo era áspera e crua, entre a sua ordem e a dos franciscanos. Chegou-se também a provar, a custa de um pedaço de pergaminho achado em Sena e datado de 1352, que Catarina Benincasa já era terceira dominicana numa época em que, segundo a cronologia de Fr. Raimundo Cápua, ela teria cinco anos. O cientista conclui então, um pouco apressadamente, que o confessor remoçara a santa de dez anos, pelo menos, afim de fazê-la morrer com a idade de Cristo.  
 
Felizmente, há sempre mais de um erudito no mundo. Os trabalhos subseqüentes do Pe. Mandonet e de M. Jordan demonstraram que a data se referia, evidentemente, a abertura da lista, e que não havia nenhum motivo sério, e realmente científico para afirmar que Fr. Raimundo Cápua, inscrito hoje entre os bem-aventurados, tenha falsificado a idade da santa. Aliás, o próprio Roberto Fawtier, num segundo trabalho publicado em 1930, vê-se obrigado a retificar uma série de asserções contidas no primeiro e dá um belo exemplo de probidade científica, tomando para seu caso uma palavra da própria Catarina: “Umana cosa é il peccare, ma la perseverantia nel peccado é cosa di dimonio”.
 
De todo esse debate que durante algum tempo assustou alguns timoratos devotos da virgem senense, que não viam com bons olhos aquela avidez dos homens de ciência pela veracidade dos fatos, resultou num incontestável lucro que se traduziu numa maior nitidez da fisionomia humana da santa. Para começar, a atuação política de Catarina, sem se tornar insignificante como pretende Fawtier, perde o caráter de iluminada infalibilidade que lhe empresta a hagiografia convencional. E descobrem-se importantes mutilações nas suas cartas.
 
O fato é que, para 381 cartas atribuídas à santa, existem somente oito originais de autenticidade incontestável. Ninguém ainda pretendeu provar, seriamente, que as outras cartas não são de Catarina, ou que Catarina não existiu; mas é incontestável que as cartas sofreram mutilações. O original de uma carta dirigida a Néri de Landocio (outro discípulo da santa, que será um de seus secretários na elaboração do Diálogo) prova que foi cortado, depois da expressão habitual “altro non ti dico”, com que a santa geralmente encerrava suas exortações, um texto duas vezes mais extenso do que a carta até então conhecida. No trecho cortado Catarina falava de vinte e quatro carlinos enviados por alguns benfeitores de Nápoles (aos quais Néri deveria agradecer por ela), de um projeto de viagem, de notícias recebidas dos amigos, e do aluguel de uma casa em Roma.
 
Observa Noële M. Denis-Boulet que esses negócios terrestres interessam muito aos historiadores, que são gente extremamente curiosa e ávida de detalhes, e conta o caso ainda mais curioso da Carta de outra Santa Catarina, de Ricci, em que a santa, depois de contar um êxtase, transmitia às suas irmãs uma receita de doce. As boas religiosas que se sucederam no priorato de Prato, entretanto, só consentiram na divulgação das cartas depois de refundi-las e truncá-las. A receita de doce foi severamente cortada e só veio a reaparecer muito mais tarde graças às pesquisas científicas.
 
A meu ver, porém, a sagaz historiadora errou no modo de colocar sua justíssima reclamação contra as piedosas mutilações das cartas da santa. Não é somente aos historiadores que tal procedimento molesta; é principalmente aos devotos. O documento truncado não fica somente com seu valor histórico diminuído, mas também, e sobretudo, com seu valor espiritual prejudicado. A idéia de deixar somente as passagens edificantes, as frases sublimes, os trechos dos evangelhos, é baseada numa falsa espiritualidade, pois o culto dos santos e o arrimo que suas vidas exemplares nos pode trazer, exigem, como nota essencial, a humanidade.
 
O mistério da santidade, e principalmente da santidade reconhecida oficialmente pela Igreja, e proposta à devoção dos fiéis, não pode dispensar, sem se desfazer num vazio simbolismo, esse calor de humanidade que nos mostre, mais próximo de nós, multiplicado, diversificado, atribuído a todas as raças e temperamentos, o mistério central da Encarnação. Se tudo o que nos maravilha no santo é obra de Deus, e está em Cristo de modo perfeito, nem por isso é menos real e menos humana a carne, o sangue e os ossos desses santos; e seria também falsa a espiritualidade que abandonasse essas dádivas de Deus ao longo do tempo, desde os apóstolos até Santa Teresinha ou Santa Gema Gulgani, para involuir, sob o fácil pretexto da sublimidade e da totalidade, para o mistério único do Cristo em sua encarnação, saltando por cima desse pluriforme e adorável mistério dos santos.
 
A ciência verídica do historiador Fawtier é, a meu ver, mais espiritual do que o zelo das prioras que tinham receio de manchar a memória de sua santa com uma receita de compota. E é mais espiritual justamente porque é mais verídica. E, também, é mais espiritual porque é mais escarnada. Para mim, a notícia daquelas moedas recebidas de Nápoles, os recados, o aluguel da casa em Roma, tudo isso veio aquecer o texto das cartas edificantes de Santa Catarina tornando-as mais edificantes.
 
Os evangelhos, apesar da extraordinária concisão, estão cheios de detalhes que nos falam da humanidade do Salvador e de suas testemunhas. No dia do nascimento de Jesus os anjos de céu vêm comunicar a boa nova aos pastores, e dão um sinal de reconhecimento: achareis um recém nascido enfaixado em panos e deitado na palha. No dia de sua ressurreição, como um sinal, reaparecem esses panos no fundo do sepulcro vazio.
 
Pedro tem o primeiro sinal da vitória do Cristo nesses panos que vê quando se debruça na borda do sepulcro; os peregrinos de Emaús crêem quando o Senhor abençoa o pão; São Tomé reconhece o Cristo pelas chagas, vendo-as e pondo-lhes em cima o dedo. E foi bom. Esse traço de incredulidade do apóstolo, que se tornou proverbial, foi bom para nós, por dois excelentes motivos. Primeiro porque nos ensinou a reconhecer a presença de Deus em nossa alma pelo toque das chagas, esse bendito sinal; segundo, porque nos legou uma bem-aventurança especialmente nossa, muito nossa, e de que a própria Virgem Santíssima está excluída: bem-aventurados os que crerem sem ter visto...
 
Mas é em São Paulo que encontramos um sinal de humanidade mais parecido com aquelas moedas e alugueis suprimidos das cartas de Santa Catarina. Na segunda epístola a Timóteo, depois de lavrar seu testamento, o apóstolo pede que tragam o saco que ficou em Troas, em casa de Carpus, e lembra também que não esqueçam os rolos de manuscritos, e os pergaminhos. Não houve, felizmente, um prior zeloso que riscasse na epístola esse bendito saco, esses rolos benditos, que nos fazem bater mais depressa o coração, e sem os quais estaria incompleta a palavra de Deus. É por esses pequenos sinais, aqueles panos, aquele pão, aqueles rolos, que ficamos sabendo, de fato, experimentalmente, cordialmente, no sangue, que essa comprida história cheia dos mais prodigiosos personagens, é, afinal de contas, a nossa própria história.  
 
III FISIONOMIA
Procurando entrever, através das piedosas deformações, a verdadeira fisionomia de Santa Catarina de Sena, ficamos deveras embaraçados. O que se vê é mais um clarão do que um rosto; é mais um fogo que passa do que uma moça de vinte anos, filha do tintureiro, cercada de seus discípulos. Os fortes dentes do ódio e do amor, através dos quais passaram as palavras ditadas a reis e papas, esses mesmos dentes que Stefano Maconi vira um dia a brilhar no mais belo sorriso, incitando-o a deixar mãe, irmãos, conforto, riqueza, para seguir a paixão do Cristo Jesus, esses dentes são o pouco que nos resta dela estando até hoje guardados, à espera da ressurreição, na igreja de Santa Maria supra Minerva, em Roma.
 
Os cronistas raramente nos dão um traço vivo de sua fisionomia. Aqui e acolá quase se entrevê um rosto magro, abrasado nas horas de êxtases, e alagado de suor nas horas de mais perfeita imitação das dores da cruz. Depois, é um vulto que se ergue repentinamente, com majestade nunca vista, diante do papa Gregório XI.
 
Contam que ela era faladeira, como qualquer boa italiana. Se era capaz de passar dias no mais completo silêncio, era também capaz de passar a noite inteira, entre os seus discípulos, sentada no chão, falando, falando, falando. E zangava-se quando um deles cabeceava de sono. Nas horas mais impróprias ditava à rainha de Nápoles e ao rei de França cartas tão utópicas e tão ineficazes como as cartas que o dr. Sobral Pinto dita para os nossos ministros de estado.
 
Apesar dos rigorosos jejuns, era certamente uma bonita moça, alta, pronta nos gestos, rápida no andar; e era por força alegre, mesmo porque, segundo São Francisco de Salles, “um saint triste est um triste saint”.
 
Mas o que mais vivamente nos impressiona em Catarina, a ponto de nos desorientar a imaginação na tentativa de apreender sua fisionomia e suas atitudes é o paradoxo de sua perfeita humildade aliada a um dinamismo, a uma tenacidade, a um vigor da vontade que somente se encontram nas figuras dos grandes guerreiros. Obediente e voluntariosa, dócil e imperiosa, suave e impetuosa, essa virgem nos proporciona um dos melhores exemplos do organismo espiritual plenamente desenvolvido e harmonicamente armado das virtudes antinômicas a que nos referimos atrás. Até aqui, o que dela dissemos, evidencia sua força de alma.
 
Vejamos agora um quadro diferente em que a doce virgem Catarina, aos dezessete anos, passeia nos jardins, em volta de sua ermida, conversando com o Senhor Jesus e Maria Madalena enquanto o sino de San Ansano toca o ângelus. Vejamo-la depois, noutra tarde feliz, cantando hinos com seu noivo celeste, à sombra dos olivais. E paremos um instante para admirar um dos mais belos momentos dessa vida espantosa: estava ela a ler seu breviário no adro da igreja... O pouco que sabia ler era todo para a Sagrada Escritura e para o breviário. Saboreava os salmos, vivia com os salmos na boca e no coração, morreu a repetir dezenas de vezes os salmos de penitência. Estava, pois, a ler seu breviário no adro da Igreja, quando percebeu que já não estava só, e que alguém andava a seu lado, lentamente, suavemente, recitando os salmos também. E então, quando chegava ao Gloria Patre, Catarina detinha seus passos no meio do adro, fazia uma reverência sorrindo, como uma louca suave que estivesse a sonhar e a dançar em plena luz do dia, e, obrigada pela força das circunstâncias modificava um pouco as palavras do versículo dizendo: Gloria Patri et Tibi et Spiritui sancti... E Ele então, sorrindo também, entoava em clara voz o salmo seguinte11.
 
Essa figura, eu diria quase essa estampa de livro de lendas, ou essa iluminura de Livro de Horas, que nos lembra as mais adamantinas e transparentes atitudes de uma Santa Gertrudes, aparece agora, páginas adiante, num clarão de batalha, com a magnanimidade de uma Santa Joana D’Arc.
 
E observem um traço singular dessa mulher singular: o modo como dizia eu quero, o acento que punha neste o mais feminino dos verbos. A cada instante, em carta a papas e reis, ela dizia: eu quero. Io voglio. Ou então: “essa é a vontade de Deus, e a minha”.
 
Sua alma era um navio. Se o leme estava atrás na popa da obediência, e o timão entregue a quem de direito, então, sem hesitações e sem medo, o esporão de proa podia avançar impetuosamente. E o seu grito de guerra, Io voglio!, com sua formidável sonoridade não era outra coisa senão o estuário caudaloso do rio nascido em fonte humilde entre sussurros de virgem, de noiva junto de sua ermida, à sombra dos olivais.
 
A obediência está escondida nas águas, como o leme; o vigor da vontade avança então apaixonado e agressivo. Esse contraste vem das regras do amor. Não tinha ela feito sempre a vontade de seu bem amado? Então agora, pelas eternas regras do amor, Ele também fará a sua vontade.
 
Permitam que lhes conte, como puder, uma pequena e belíssima história em que essa virgem diz: “eu quero”, em circunstâncias deveras extraordinárias. Mas como essa história passou-se junto a um cadafalso, deixem-me abrir aqui um parêntese.
 
IV O COLÓQUIO DAS CRUZES
Há certos episódios que reaparecem, com a insistência de um “leit-motiv”, nas lendas dos santos. Um destes é a conversão de um criminoso obtida pelas preces do santo, às vezes, no derradeiro instante, junto ao cadafalso.
 
Santa Terezinha do Menino Jesus teve o seu grande criminoso, um tal Pravini, autor de espantosos homicídios, feroz impenitente, e condenado à morte. A menina de quatorze anos, que já sonhava entrar no Carmelo, pede ao Senhor Jesus um sinal e, com a magnanimidade própria dos santos, começa assim o seu apostolado implorando a contrição de uma fera. Dias depois ela lê num jornal a notícia da execução: Prazini subira ao cadafalso sem os sacramentos, e os carrascos já o arrastavam para a guilhotina quando, de repente, voltando-se para um padre que estava atrás dele, o criminoso segura o crucifixo e beija três vezes, chorando, as santas chagas. Mais tarde, quando recebia algum donativo, Tereza encomendava missa por esse primeiro filho de suas lágrimas, alegando a sorrir que ele certamente precisava desses sufrágios em vista dos mauvais tours que por aqui andara fazendo12.
 
Santa Gema Galgani, no próprio dia da chegada do Pe. Germano Estanislau, que viera de longe para examinar o caso dessa extraordinária estigmatizada, foi vista em êxtase a disputar diante de Deus uma alma de grande pecador. Depois de um vivo debate entre a extática e o seu Senhor, o padre ouviu, em certa altura, as palavras com que a santa repreendia o Senhor Jesus, valendo-se de seu privilégio de esposa: “Não, não me faleis assim! Na boca de quem é a própria misericórdia essa palavra: “Eu o abandono”. Não fica bem. Não deveis pronunciá-la. Derramastes sem medir o vosso sangue pelos pecadores, e quereis agora medir a quantidade de nossos pecados? Não me ouvis?...” 13  
 
Depois de uma pausa, volta-se então para a Virgem Santíssima e apelando para a sua onipotência suplicante consegue deter o braço de seu filho. E nesta mesma tarde o padre Germano foi procurado por um desconhecido que, de joelhos e chorando, confessava seus horríveis pecados.
 
O caso de Santa Maria Goreli, recentemente canonizada, é ainda mais convincente: converteu seu próprio assassino que chegou a assistir, velhinho, e já sacerdote, a primeira missa pontifical em honra da nova santa.
 
E, se deixarmos os nossos tempos, volvendo os olhos para os primeiros séculos de nossa era, a dificuldade está na escolha, tão abundantes são os casos de conversões instantâneas em torno do cadafalso.
 
Diante de todos esses exemplos, eu imagino que Nosso Senhor deseja nos mostrar, como aliás já o fez na parábola do publicano, que os ladrões, as prostitutas e os assassinos, estão muitas vezes mais próximos de Sua misericórdia do que o honesto cidadão que é saudado nas praças com respeito.
 
Além disso, dir-se-ia que corre nos céus um frêmito de recordações misteriosas cada vez que a pobre justiça humana arma no mundo a carpintaria de seu pronunciamento final.
 
Que estrado é este em que o martelo bate e o serrote canta, fora dos muros da cidade? Que poste é este, de forma tão esquisita, que estão firmando no chão?
 
A justiça humana é legítima; sua severidade é boa, é uma perfeição; porque a sociedade deve realizar seu próprio bem. Contudo, dir-se-ia que o simples fato de se armar um patíbulo produz no céu um alvoroço de anjos. Não era assim mesmo que o martelo batia e que o serrote cantava, naquele dia?
 
O próprio Senhor Jesus, sentado à direita do Pai, há de lembrar-se daquela noite única, quando vê um de seus irmãos acercar-se do patíbulo.
 
Era uma noite como não houve noite igual; uma noite metida à força, cunha de treva e de dor, na claridade do dia. A terra tremera e um crepe espesso caíra sobre o mundo. O Homem das Dores, náufrago das trevas, está suspenso no ar. Suspenso pelas chagas. Os discípulos fugiram; Pedro negara três vezes; e entre as sombras que se movem em baixo, esquivas e medrosas, mal se percebe o vulto ereto e imóvel da mãe dolorosa. O Homem das Dores está suspenso, puxado para cima, arrancado do chão, isolado, perdido no meio das trevas.
 
De repente ouve uma voz. Não vem do chão, pois os discípulos fugiram, a mãe dolorosa guarda o silêncio e os soldados de Roma murmuram palavras surdas que mal se distinguem. A voz que se ouve, isto é, que Ele ouve, vem do lado. Vem da mesma altura, da mesma treva, da mesma dor. E logo, do outro lado, outra voz. Entre a terra e o céu, começava o espantoso colóquio das cruzes.
 
Não é o Cristo? — dizia asperamente a primeira cruz — Salva-te então a ti mesmo e a nós.
 
Não tens o mesmo temor de Deus? — advertia a segunda cruz — Nós, é justo o que recebemos, e que merecemos por nossas faltas. Ele, porém, nada fez de mal.
 
E, depois de uma pausa, tornou a falar esta segunda cruz, dirigindo-se agora à do centro que ouvia em silêncio:
 
Lembrai-vos de mim Jesus, quando voltardes com toda a realeza!
 
E o Homem das Dores, no alto da cruz, entre o céu e a terra, náufrago da escuridão, ouvindo aquela voz de náufrago também, aquela voz de homem, de pecador, de penitente, de condenado, sentiu certamente — ouso imaginar — seu último frêmito de ternura humana lembrando-se dos outros, dos bons dias em que andara as estradas de Cesárea ouvindo vozes assim, de Pedro, de João, de André... Onde estão eles?...Naquele dia em que disputavam como crianças o melhor lugar no Reino dos Céus. E, naquele dia mais próximo em que Pedro jurara... Eram vozes assim, de homens, de irmãos, de filhos. E o Homem das Dores alegrou-se, certamente, ouvindo pela última vez, antes da ressurreição, no centro mesmo da sua paixão, a voz que na eternidade iria associar a idéia de cadafalso à lembrança dos curtos dias, dolorosos e felizes, em que a própria Sabedoria de Deus se deliciara de achar-se aqui, nesta terra, neste chão, brincando entre os filhos dos homens.
 
E ali mesmo, dentro da escuridão, no centro mesmo da dor, no alto da cruz, ex-cathedra, o Senhor Jesus canonizou em vida o bom ladrão:
 
Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso.
 
V IO VOGLIO
O episódio que lhes vou contar, da vida de Santa Catarina, está ligado ao drama das cruzes que falavam, e está associado também ao paradoxo que faz tantas vezes dizer Io voglio, quem tinha para sempre renunciado à sua própria vontade.
 
Narra ela mesma este episódio numa carta dirigida a Fr. Raimundo Cápua14, que começa assim:
 
“Em nome do Cristo Jesus crucificado e da doce Maria. Caríssimo e dulcíssimo pai, e querido filho no Cristo Jesus, eu Catarina, serva e escrava dos servidores de Jesus Cristo, escrevo-te no sangue precioso do Filho de Deus, com o desejo de te ver queimado e afogado neste doce sangue e impregnado do fogo de sua ardente caridade. Porque é isto mesmo que minh’alma deseja: ver-te, a ti, a Nanni e Tiago, viverem nesse sangue. Não vejo outra solução para o lucro das principais virtudes que nos são necessárias. Meu dulcíssimo pai, tua alma — que é o meu alimento, pois não se passa um minuto que eu não a saboreie na mesa do cordeiro que se fez degolar com tão ardente amor — tua alma, dizia eu, não alcançará a modesta virtude da humildade sincera, se não a afogares no sangue. Esta virtude brotará do ódio e esse ódio brotará do amor. E assim como o ferro sai puro da forja incandescente, tua alma renascerá com pureza perfeita. Eu quero pois que te abrigues no lado aberto do Filho de Deus. É um refúgio de tal modo saturado de delícias que o próprio pecado se torna um bálsamo. Ali a doce esposa se reclina num leito de fogo e sangue... Coragem, coragem meu bom pai. Não durmamos! Ouvi contar tais coisas que não quero mais saber de descanso e de conforto. Acabei de receber uma cabeça em minhas mãos, e ela foi para mim tão grata que o coração não pode considerar, nem a boca dizer, nem os olhos ver, nem os ouvidos escutar. A vontade de Deus ultrapassou todos os mistérios precedentes. Fui ontem visitar aquela pessoa que sabes...”.
 
Essa pessoa, era o jovem Nicolau Tuldo, de Perusia, preso e condenado à morte pelo crime de ter criticado publicamente os atos dos governantes de Sena que a si mesmos se intitulavam Magnifici Domini et Patres Domini Defensores Populis Civitatis Senarum. Esses soleníssimos, severíssimos e injustíssimos defensores da cidade de Sena não hesitaram em pronunciar um julgamento definitivo, com pena de morte, contra o jovem Tuldo que mais pelo vinho do que pelas convicções políticas deixara escapar alusões grosseiras a suas excelências.
 
Na prisão, o moço maldizia a sorte e blasfemava contra o Deus que consentia no mundo tamanha estupidez. Esquecendo suas outras culpas, ele via somente a imensa desproporção entre uma zombaria de ébrio e a condenação à morte.
 
E estava assim, no paroxismo do desespero e da revolta, perdido, esquecido de todos no fundo do cárcere, imaginando lá fora o ar, o céu azul de Itália, os ruídos da cidade, os sinos, o sol, a boa algazarra das tabernas — tudo perdido para ele, na flor da idade, tudo perdido... Quando se abre a porta da prisão e o moço vê dirigir-se ao seu encontro em passo rápido a figura esguia de uma mantellata, que se aproxima, faz o sinal da cruz, senta-se no chão e, voltando para ele um rosto abrasado, põe-se a falar depressa numa festa de núpcias, e num castelo onde a esposa feliz se reclina num leito de fogo e sangue.
 
Ao cabo de algum tempo, como um ferro dobrado em forja ardente, o moço inclina a cabeça no seio da doce mamma e grita-lhe com voz de menino pequeno que tem medo do escuro: “Fica aqui! Não me deixes e eu morrerei contente”. E a virgem, sentindo a alegria e o perfume do sangue do jovem Tuldo, e do seu próprio que de bom grado derramaria por seu esposo Jesus, falou-lhe assim: “Coragem meu doce irmão. Não tarda a festa. Tu irás banhado no sangue do Filho de Deus, com o doce nome de Jesus que eu não quero que esqueças um só instante. Coragem. Vou esperar-te no lugar da justiça”. E o moço perguntava admirado: “De onde me vem tamanha graça que a consolação de minh’alma me espere no santo lugar da justiça?” E Catarina, em sua carta a Raimundo Cápua dizia ainda mais admirada: “Vê o grau de luz a que ele chegou tão depressa para chamar de santo o lugar do suplício”.
 
Na hora da execução, Catarina já estava junto ao cadafalso esperando Tuldo. Passara a noite rezando incessantemente. Pedira à Mãe de Deus, e à virgem mártir Catarina a intercessão por alma de seu novo filho. E, enquanto não chegava o prisioneiro, ela subiu os degraus do patíbulo e ajoelhou-se junto ao tosco cepo, deitando a cabeça no lugar em que o machado da dura lei deixara a madeira retalhada e manchada de muitos sangues. E obteve ali uma promessa que deixou sua alma transbordante de alegria.
 
Chegou enfim o moço, escoltado pelos soldados, manso como um cordeiro. Sorrindo, logo que a avistou, pediu-lhe que traçasse em sua testa o sinal da cruz. “Abaixa-te filho, eis aqui a mesa do banquete nupcial. Meu doce irmão, ainda hoje terás a vida eterna.” Ele abaixou-se, deitou a cabeça no cepo e Catarina ajoelhou-se diante dele, com as mãos estendidas para colher o fruto maduro de seu amor.
 
E quando viu o carrasco firmar-se nas pernas hercúleas, levantando no ar o grosso machado, num gesto que lhe estalava as costuras do gibão; e quando ouviu o moço murmurar: Jesus, Catarina, não podendo esperar, e suplicar, e discutir, como Santa Terezinha, como Santa Gema Galgani; num relâmpago de oração ela atirou para frente sua alma de navio, com um grito de corsário que comanda a abordagem da misericórdia de Deus: Io voglio!
 
E recebeu nas mãos a cabeça, banhando-se no sangue daquela vítima.
 
VI O DESPREZO E O ZELO PELAS CRIATURAS
O paradoxo mais impressionante da vida mística é sem dúvida formado por esses dois termos: o desprezo total e o zelo ardente pelas criaturas. Na linguagem hiperbólica dos místicos, mais vital e afetiva mas menos precisa do que a dos teólogos, a criatura é um nada. Era pois de esperar que o místico se tornasse perfeitamente indiferente a tudo e a todos. Ora, é exatamente o contrário que acontece: o santo é na verdade abrasado de zelo apostólico pela salvação das almas. Haverá nisto uma contradição? Não, porque o nada da criatura a que se refere a linguagem mística não é o não ser do metafísico e sim o ser contingente, isto é, a criatura cuja existência é uma dádiva gratuita de Deus. E assim sendo é fácil concluir que o verdadeiro amor a Deus se traduzirá coerentemente num amor pela Sua obra. Mas para que a criatura não seja amada por ela mesma, a experiência mística começa por negá-la para depois voltar a ela incendiada do verdadeiro amor.
 
Em Santa Catarina de Sena esse contraste como os outros de que já falamos é vivíssimo. Sua vida pode ser dividida, como aliás o fez seu principal biógrafo, Fr. Raimundo Cápua, em duas partes distintas: a primeira em que a santa percorre rapidamente as três vias da perfeição, e que poderíamos chamar contemplativa; a segunda em que a santa manifesta ao mundo os dons que recebera no segredo de seu retiro, e que poderíamos chamar apostólica ou ativa.
 
A mesma Catarina que, no silêncio da contemplação ouvira do Senhor estas palavras: “Eu sou aquele que sou, e tu és aquela que não é”, diz agora ao seu confessor: “Ó meu pai, se vísseis a beleza de uma alma dotada de razão, não hesitarias, se isto fosse possível, em sofrer cem vezes a morte do corpo para a salvação de uma alma. Não existe nada no mundo visível que se possa comparar a esta beleza.”
 
Mas, a bem dizer, não há duas partes realmente distintas na vida da santa, nem é muito exato dizer, que ela foi ora contemplativa e ora ativa. Foi sempre ambas as coisas. Se nos atos, nos fatos e nos episódios há margem para se estabelecer tal distinção, no âmago mesmo do processo de santificação subsistem sempre os dois extremos do indispensável paradoxo. Não há santo sem vida de oração e sem vida de apostolado. O que pode acontecer é que um desses elementos seja menos manifesto, ou esteja escondido no mistério, parecendo que predomina, aqui a atividade como no caso de São Vicente de Paula, ali a contemplação como no caso de Santa Teresinha. A imitação de Cristo, essência da santidade, manifesta-se às vezes em atos aparentemente diversos e até contraditórios. São João da Cruz e Santa Tereza D’Ávila encontraram-se um dia diante de um pêssego. Era uma bela fruta, madura, perfumada, apetitosa. São João da Cruz absteve-se, por amor de Deus; Santa Tereza comeu-a, por amor de Deus. A mesma fruta no mesmo momento, pode ser objeto de mortificação para um, e um benedicite para outro.
 
Os verdadeiros místicos sempre souberam que a natureza é boa; mas como são teólogos práticos, que se interessam antes de tudo pelas situações concretas e pela experiência afetiva da vida em Deus, sua linguagem segue muitas vezes o variável contorno das circunstâncias variáveis. É preciso possuir um hábito, uma simpatia especial, para entender bem a linguagem dos místicos e sua perfeita conexão com as lições dos especulativos. Mas também é preciso possuir um senso especial, muito do agrado de Deus e de sua Igreja, para compreender que a linguagem precisa dos especulativos é palpitante de vida, impetuosamente comunicante com a experiência concreta.
 
De vez em quando assalta a humanidade um pensamento insensato de que existem uma inteligência fria que trata do Deus morto, e uma inteligência quente que trata do Deus vivo. No domínio da filosofia essa insensata dicotomia gera, por exemplo, o chamado existencialismo, que é uma pseudo tentativa de falsa mística natural. No domínio espiritual, o mesmo fenômeno aparece produzindo correntes, ora mais pra cá, ora mais para lá, quando a inteligência perde a coragem dos paradoxos, o senso do mistério e a capacidade da analogia. Como observa muito bem Garrigou Lagrange, os verdadeiros místicos sempre tiveram em alta conta os especulativos, não lhes passando na mente a triste idéia de que uma fórmula exata seja inimiga da vida, ou que a vida seja inimiga da inteligência.
 
Tenciono abordar, na segunda parte deste estudo, o problema do não ser da criatura, pedra angular da doutrina catarineana. Agora, o que nos interessa, neste primeiro esboço de sua fisionomia espiritual, é o singular contraste realizado em sua vida, que foi manifestamente contemplativa e manifestamente ativa. E cumpre notar que a transição assinalada por seu biógrafo foi simbolicamente marcada com a solenidade das bodas místicas. Ela passava assim de virgem à mãe, no espírito, tornando-se esposa.
 
“Estava-se — relata Fr. Raimundo15 — nos dias que precedem a quaresma, em que os fiéis celebram uma festa inteiramente mundana que se poderia chamar festa do ventre.”
 
Era dia de carnaval. Depois de combater corajosamente o tentador que a torturava como nunca, a amorosa virgem que jejuava e rezava, enquanto ouvia nas ruas os rumores da festa pagã, viu diante de si o Senhor Jesus que assim lhe falou: “Repeliste por minha causa todas as vaidades, e desprezando os deleites da carne puseste só em mim o afeto de teu coração. Eis porque agora, enquanto as outras pessoas estão entregues às alegrias dos banquetes, ocupando-se do próprio corpo, quis eu também celebrar solenemente contigo a festa das núpcias de tua alma. Como te prometi, quero esposar-te na Fé.”
 
Falava ainda o Senhor, quando apareceram, a Virgem Santíssima, o bem-aventurado João Evangelista, o glorioso apóstolo São Paulo, o santíssimo Domingos, a cuja ordem pertencia a noiva, e o profeta David trazendo consigo o harmonioso saltério.
 
Enquanto ressoava aquele instrumento sob os dedos do santo rei, com suavidade que mal se pode imaginar, a Virgem Mãe tomou a mão de Catarina, estendendo-a a seu Filho, e pedindo-lhe que a recebesse como esposa na Fé. O Filho Unigênito de Deus acercou-se, e com ternura apresentou-lhe um anel de incomparável beleza dizendo-lhe essas palavras: “Eu, teu Criador e Salvador, esposo-te na Fé, que conservarás intacta, até o dia em que celebrarás comigo, nos céus, as núpcias da eternidade. Coragem pois, ó filha, e cumpre doravante, ousadamente e sem nenhuma hesitação, as obras que em suas mãos puser a minha providência. Estás armada com a Fé, e triunfarás de todos os teus adversários.”
 
E depois destas palavras desapareceram todos, ficando Catarina sozinha em sua cela, enquanto lá fora, na cidade, o povo se divertia ruidosamente no carnaval.
 
Esta transição, ilustrada de tal modo, serve para nos mostrar que o mistério da santidade tem profundas semelhanças com o mistério da virgindade maternal da Igreja. A partir daquele dia, sendo sempre virgem, começava a história de sua maternidade; e não deixa de ser estranho que ninguém, homens, mulheres, moços e velhos, achasse impróprio o tratamento de mãe que todos davam, espontaneamente, àquela moça de vinte anos que começava um dos mais extraordinários apostolados que jamais existiu.
 
Não caberia aqui uma relação, mesmo resumida, de seus feitos. Já vimos meia dúzia de episódios, escolhidos entre centenas, e talvez mal escolhidos. É quase certo que algum leitor nos escreverá perguntando porque não contamos o caso da leprosa, as curas milagrosas, a conversão de outros dois condenados, a morte mística, os espantosos jejuns, ou porque não nos alongamos um pouco mais no relato da poderosa influência que essa moça exerceu sobre dois papas, Gregório XI e Urbano VI.
 
Nosso objetivo, mais modesto, foi o de assinalar, nos seus traços principais, o claro escuro dessa impressionante figura, ilustrando a idéia do paradoxo da santidade. Aproximando-nos do fim de sua curta vida, vemos crescer, em contraste com os primeiros anos de recolhimento e silêncio, o zelo apostólico, cada vez mais intenso e extenso, por cada um de seus filhos e sobretudo pela Santa Igreja, a doce Esposa do Cristo.
 
Nos dias do grande cisma vamos encontrá-la a fazer seu testamento. Além das cartas dispersas, a iletrada Catarina vai deixar-nos um livro, o seu Livro, ditando em êxtases cerca de setecentas páginas em cinco ou seis dias.
 
Certa manhã, depois da missa, ela avisou aos secretários que estivessem prontos para escrever. A data provável é o dia 9 de outubro de 137816, o ambiente histórico é o mais perturbado possível. Mal terminada a querela entre a Santa Sé e a cidade de Florença, estoura o cisma com a eleição de Clemente VII a 20 de setembro, alegando os impostores que a eleição de Urbano fora viciada pela coação e pelo terror. Sufocado pelos acontecimentos, Urbano manda chamar Catarina. Desculpa-se ela, mandando dizer que não pode ir a Roma pois já não é pouca a maledicência que se espalha em Sena por causa de suas constantes viagens. Insiste o papa, chamando-a agora em nome da santa obediência. Catarina tem trinta anos como se tivesse vivido trezentos. Está exausta.  
 
Consumida pelo jejum quase total e pelo fogo devorante de seu amor. A boa Mona Lapa, sua mãe e sua filha, lamenta-se em altos gritos; os discípulos se entreolham e adivinham que está próximo o desenlace daquela incrível história.
 
É nessas circunstâncias que Catarina dita o seu Livro, que será mais tarde chamado “Diálogo”. Naquele sábado de manhã, depois da missa votiva a Nossa Senhora, ela põe-se a ditar em êxtases. São três os secretários que se revezam: Barduccio Caniggiani, Stefano Maconi e Neri Pagliaresi. A cena passa-se numa pequena ermida, próxima de Sena, no tempo das colheitas. Muita gente viera dos arredores, enchendo o pequeno recinto, acotovelando-se na porta, e é fácil adivinhar que, apesar do grande respeito pela vidente, os secretários não conseguiam obter silêncio desses irrequietos italianos. Dura horas cada sessão. Catarina, no centro da cela, mais sentada do que ajoelhada, com o corpo arqueado, o pescoço distendido para trás, as mãos crispadas, o rosto em brasa, as fontes alagadas de suor, ditava em voz rápida, monótona, às vezes alteada até se tornar um grito lancinante.
 
Esse livro é na verdade um Diálogo: a santa suplica e Deus, Deus Pai responde. Durou cerca de seis dias; no último Deus confirma o que prometeu a Catarina: “Eu farei misericórdia ao mundo, misericórdia à Igreja, porque, como já te ensinei, a misericórdia é o meu atributo distintivo e o que há de mais divino em Mim.”
 
O livro está chegando ao termo. A santa agora dirige à Santíssima Trindade uma longa oração de agradecimento que o bom Stefano Maconi, o secretário dessas últimas páginas, mal consegue acompanhar. Há um silêncio. Calou-se Catarina. Stefano, esfalfado, ia enrolar o pergaminho quando Catarina tornou a falar, e disse: Deo Gratias. Amen. Stefano Maconi tornou a abrir o pergaminho e escreveu: Deo Gratias. Amen. E vendo que a santa voltava a si, e que o livro chegara ao fim, teve a idéia de escrever alguma coisa sua na cauda do testamento de sua dolce mamma, e gravou furtivamente as palavras que ficaram até hoje presas ao livro, agarradas, por assim dizer, ao pé da santa: “Rezai por vosso inútil irmão pecador.”
 
Nós também, terminamos aqui. Sem fôlego para a acompanhar mais longe, até o dia em que ela pede a Deus que a esmague com o peso da Igreja, e até o dia em que entrou na vida eterna, aos 33 anos, deixando à Igreja o encargo de repetir no dia de sua festa, hoje, aquele intróito: “Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem”, nós também, no termo deste pequeno estudo, e aproveitando a oportunidade desta reunião, tivemos a idéia de imitar o bom e esperto Stefano Maconi, agarrando-nos ao pé do discípulo como ele mesmo agarrou-se ao santo pé de sua dolce mamma. E diremos, nós também: rezai, rezai por vosso inutilíssimo irmão pecador.
        
(Conferência pronunciada no Centro Dom Vital em 30 de Abril de 1948 e publicada n’A Ordem, em Agosto do mesmo ano. Infelizmente, a prometida segunda parte deste Estudo jamais foi concluída)

  1. 1. Saint François de Salles. Introduction à la Vie Devote.
  2. 2. Para o desenvolvimento desta idéia ler L. H. Petitot O. P., La Doctrine Ascetique et Mystique Integrale; e também Sainte Thérèse de Lisieux.
  3. 3. Para maior rigor e desenvolvimento, ler J. Maritain, Science et Sagesse, Deuxième Partie ( Eclaircissements sur la Philosophie Morale ) chap. II.
  4. 4. Nöele M. Denis-Boulet, La Carrière Politique de Sainte Catherine de Sienne, Les Iles, Desclée de Brower, Paris 1939.
  5. 5. Santa Caterina da Siena, Epistolário, a cura di Piero Miscitatelli, Ed. Marzocco, Firenze, 1939, vol. II. Lettera CIV. Lettres de Sainte Catherine de Sienne, trad. E Cartier, Edit. Poussielgue-Ruscend, Paris, 1858. Tome II, Letre CXXXVIII.
  6. 6. Op. Cit. Vol. V, lettera CCCXXXIII.
  7. 7. R. P. Taurisano O.P. — Les Fioretti de Sainte Catherine de Sienne, trad. de Madeleine Havard de la Montagne — Art-Catholique, Paris.
  8. 8. Soer Thérèse de l’Enfant-Jesus — Histoire d’une Ame.
  9. 9. A. Gardeil O. P., Le Saint-Esprit dans la Vie Chrétienne, Editions du Cerf, Paris.
  10. 10. Robert Fawtier, Sainte Catherine de Sienne, essai de critique des sources. Sources hagiographiques. 1921.
  11. 11. Johannes Joergensen. Santa Catarina de Sena. Trad. Maria Cecília de M. Duprat. Vozes de Petrópolis.
  12. 12. Soeur Thérèse de l’Enfant-Jesus — Histoire d’une Ame.
  13. 13. Pe. Germano Estanislau — Santa Gema Galgani. Trad. Pe. J. Oliveira Dias S.J., Porto, 1949.
  14. 14. Santa Caterina da Sena, Epistolário, Vol. IV, let. CCLXXII.
  15. 15. Bem. Raymundo de Cápua, Santa Catarina de Sena; trad. Lucia Furquim Lhameyer, Gráfica-Ypiranga, Rio, 1931.
  16. 16. Dialogue de Sainte Catherine de Sienne, trad. et preface pour le R. P. J. Hurtaud, O. P., edit. Lethielleux, Paris 1913.
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