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Do cientificismo às sociétés de pensée

O Cientificismo
Com o objetivo de apontar, na bacia hidrográfica a que nos referimos atrás, os principais afluentes que convergem todos na caudalosa Revolução que faz de nosso século um estuário de contestações e recusas, comecemos por este “ismo” que, no livro anteriormente citado (Dois Amores, Duas Cidades, Agir, 1967), foi apontado como uma das primeiras conseqüências da poluição nominalista. Cremos que vale a pena transcrever algumas linhas dessa obra:

“Como atrás já dissemos, o termo cientificismo não designa o maior incremento de pesquisas nem o maior ardor de estudo nos domínios das ciências naturais. Tudo isto, em si, é bom. O que não é bom é o estado de espírito que coloca a ciência da natureza na presidência de uma civilização, depois da expulsão da Sabedoria.
 
“Uma vez que a inteligência não alcança as coisas superiores — diz o homem moderno — apliquemo-la no trabalho de apalpar o fenômeno para dele tirar uma nova confiança em nós mesmos, e para ordenar a nosso gosto a imensa mãe telúrica, brutal, que às vezes, no seu sono pesado, mata os próprios filhos.

“Esse estado de espírito nos primeiros tempos produzirá grande euforia. A humanidade, depois de descobrir a pólvora, o movimento dos astros, a força do vapor, o poder mágico da eletricidade, terá, como teve nos séculos XVII, XVIII, XIX, momentos de inebriado otimismo.
 
“A cândida idéia que logo ocorrerá nos espíritos fracos é a de que, na continuação dos tempos, a Ciência do fenômeno polirá todas as arestas do Velho Homem, iluminará todas as trevas, resolverá todas as dificuldades. Ora essa idéia, comicamente falsa, extravagante, delirantemente falsa, foi difundida e tornou-se o ar que respiramos e a água que bebemos, e isto aconteceu porque a Civilização Ocidental moderna já não tinha à sua presidência os dados da antiga Sabedoria. Se os tivesse, ouviria a censura clara [...]: a ciência dos elementos exteriores dilata o campo do domínio do homem sobre as coisas exteriores e inferiores, mas nada acrescenta ao domínio do homem sobre si mesmo. Uma civilização [...] não pode ser governada pelas ciências da natureza, que é cega, surda e conseqüentemente muda para os problemas mais comuns e mais profundos de nossa vida. Como já disse em outra obra1, a ciência pode-nos dizer que nossos pulmões estão anormais e devem ser tratados desta ou daquela maneira, mas é inteira­mente incapaz de nos dizer, de nos sugerir o que podemos ou devemos fazer de nossos pulmões normais.”
 
Hoje eu não diria que o cientificismo, isto é, a falsíssima idéia que espera da ciência inferior a solução para os problemas superiores, difundiu-se depois da desmoralização e do destronar da Sabedoria; antes diria que essa tentação foi um dos fatores que contribuiu para a rejeição da Sabedoria. E, assim dizendo, estarei apontando o “cientificismo” (e não a legítima glória das ciências) como um dos fatores do revolucionarismo evacuador da civilização.
 
O Cientificismo e o Senso Comum
 Para entender bem o processo demolidor da subversão cientificista, é preciso compreender a imensa significação que teve nesse drama a desmoralização do “senso comum” promovida pelos “intelectuais” a partir do século XVIII, sempre em nome da “Ciência”. Todo o drama cultural que no século XVIII capitaliza explosivos para a Revolução Francesa começou pelo repúdio do senso comum, que eu chamaria de petite sagesse e que foi a primeira vítima da torrente nominalista que inundou os tempos modernos. E para compreender bem a gravidade e a infinita conseqüência desse processo precisa­mos saber o que não é e o que é o “senso comum” neste contexto. Poderia remeter o leitor à citada obra (Dois Amores, Duas Cidades, Agir, 1967, vol. II pp. 57 e seg.) ou recomendar o profundo estudo de R. Garrigou-Lagrange, Le Sens commun (Desclée de Brouwer, Paris, 1936); mas cremos prestar bom serviço avivando e condensando aqui as noções principais.
 
De início lembremos que todo homem já nasce com todos estes dons de sua natureza racional:
 
a) a alma espiritual ou forma específica pela qual o homem é homem;
b) as potências da alma: a inteligência e a vontade racionais;
 

c) as inclinações inatas determinadas pelo condicionamento (incluindo o corpóreo e o sensível), que favorecerá ou desfavorecerá a sorte ulterior dos “hábitos” adquiridos;

d) os primeiros princípios, que são dons da natureza.
 
A partir desse núcleo essencial começa a história das aquisições intelectuais e morais. O senso comum se situa na zona dos primeiros acervos da razão especulativa e da razão prática, é uma primeira metafísica rudimentar, e uma primeira filosofia moral. Situado entre a cercadura dos primeiros princípios e a cercadura maior e mais confusa do consabido cultural de cada época, ouso dizer que o senso comum, de importância vital para todo o desenvolvimento ulterior do homem, está muito mais próximo dos primeiros princípios do que do firmamento das coisas sabidas por todos num momento histórico, e portanto participa mais da perenidade da metafísica (digo da reta metafísica) do que da fluência e da mobilidade do consabido, que anos atrás ignorava totalmente os raios laser, o código genético, a existência de um planeta transnetuniano e outras coisas desse tipo.
 
O senso comum é um acervo das primeiras elaborações dos primeiros princípios e poderá ser enriquecido ou deformado pelo envoltório cultural.
 
Gostaria de me estender longamente sobre a transcendental importância do senso comum tanto na vida temporal, particular ou pública, como na vida da Fé, que se torna dificilmente praticável numa sociedade que perde a docilidade ao real, e o instinto racional quase espontâneo, que levaria a razão a bem considerar as coisas se não houvesse perturbações culturais trazidas pela enxurrada da história. Sem o senso comum sadiamente começado e alargado sem estorvos, dificilmente pode o homem começar a fazer filosofia e teologia, dificilmente pode ser vivida a sabedoria. Este é o drama dos tempos modernos, desde a Renascença e a Reforma, que na obra anteriormente citada chamei “civilização do homem exterior”. E nesta “civilização”, mal nascida de imensos dramas intelectuais, morais e religiosos de toda a Cristandade, e marcada com sinais genéticos do nominalismo, um dos fatores mais nocivos para o senso comum, e portanto para todo o edifício da civilização e de seu relacionamento com a Igreja, foi o cientificismo. Torno a dizer: não foi em si o progresso da ciência das coisas exteriores e inferiores — a física, a astronomia etc. — que é razoável e constitui uma glória para o homem, e sim o preço filosófico e religioso que custou esse progresso, por ter sido orgulhosamente armado em forma de rejeição de mais altos graus de saber, isto é, em forma de revolução.
 
Até hoje a pestilência do cientificismo continua a produzir seus frutos, como se vê no prazer sádico com que Bertrand Russell, sob pretexto de filosofia matemática, tentou desmoralizar o senso comum, e como se vê no próprio nível vulgar da estupidez moderna, que é, toda ela, tecida de pedante e asmático cientificismo.
 
Creio poder afirmar que um dos grandes pioneiros desse espúrio sub­produto das ciências foi Galileu — ou, mais exatamente, o “affaire Galileu”, em que o próprio foi um dos agentes, mas não o único. É pena que Jacques Maritain não tenha introduzido este d’Artagnan entre os Três Mosqueteiros da Revolução (Trois Réformateurs), que na verdade foram quatro. Para maior aflição nossa, o grande tomista teve a infelicidade de abordar o caso Galileu pela outra ponta, o que só vem servir os interesses da grande Rejeição. No seu livro recente De l’Église du Christ (Desclée de Brouwer, 1970), Maritain aborda o caso mais explorado dos últimos quatro séculos como se estivessem em jogo os direitos da Ciência feridos pelo Santo Ofício, e não como efetivamente estava em jogo a pretensão do “cientificismo” e a injúria feita ao senso comum em nome do “progresso da Ciência” 2.
 
Em vista do papel de destaque que esse caso desempenhou no afluente revolucionário que nos trouxe a este estuário de erros, não resisto à idéia de inserir, com a maior condensação possível, algumas considerações que, de início, têm o picante do desafio, porque levam a mostrar que, no caso, certo estava o Santo Ofício e errado Galileu. E antes que clamores de asneiras escandalizadas cheguem ao meu tugúrio, apresso-me a explicar o problema em termos de exemplar moderação. E desde logo observo que só entenderá alguma coisa do imbroglio quem tiver, razoavelmente claras, meia dúzia de noções.
 
Entre essas noções dou lugar de destaque ao senso comum, que é, por assim dizer, uma primeira trincheira onde temos de defender o humano. Forçado pelo espaço, contento-me com o que disse no tópico anterior, e com a leitura a que remeto de Garrigou-Lagrange (Le Sens commun), passo a ocupar-me da segunda, que diz respeito à estrutura e aos métodos das ciências da natureza: física, química, biologia, astronomia etc.
 
O “Depósito Observado” e as “Teorias”
Desde a Idade Média, e principalmente desde Santo Tomás, sabemos que convém distinguir, no cabedal científico a que damos vários nomes, conforme seus objetos materiais, duas coisas:
 
a) O acervo dos dados observados e trazidos por observações e experimentações à prova da evidência sensível. Demos a este principal patrimônio, e principal critério das ciências, o nome de “dado fenomênico” ou de “fenômenos observados”, ou ainda lembremos o nome que davam os escolásticos: “apparentia sensibilia”, onde o termo “apparentia” não quer dizer “o que parece ser” nem, muito menos, “o que parece ser mas não é”, e sim “o que é evidente para o conhecimento sensível”.
 
b) A segunda coisa é a síntese interpretativa feita de teorias destinadas a propor uma explicação conexa aos vários elementos dispersos do dado observado.
 
E aqui cabe um reparo importante: a teoria interpretativa, apesar de seu talhe imponente, é cientificamente sujeita ao observado, aos fenômenos, e só se mantém enquanto suas articulações e a costura de seu tecido de hipóteses explicativas conseguem dar conta dos dados observados. Santo Tomás, na questão relativa à possibilidade de prova metafísica da Trindade (S. T. Prima, Qu. 32), chega à conclusão de que seria possível sem a Revelação adivinhar, propor a idéia de um Deus Trino refletido em todas as coisas, mas não é possível prová-lo como provamos a existência de um Ato Puro ou de um Ser A-se. E então, para o ilustrar genialmente com um exemplo astronômico, Santo Tomás diz que é evidentemente provado o movimento dos astros, que naquele tempo se enquadravam para cálculos de eclipses etc., na teoria dos epiciclos que viera do Almagest de Ptolomeu e durante quatorze séculos conseguira enquadrar os “dados observados”; mas logo o Doutor Angélico acrescenta com o mais lúcido discernimento científico (além dos outros, mais altos) que isto não provava a teoria dos epiciclos, e que amanhã ou depois outra teoria interpretativa poderia dar uma explicação mais simples. O que importava era a salvaguarda do “depósito observado”. Digamos como os escolásticos: “opportet salvare apparentia sensibilia”.
 
Dois Exemplos de Ruptura de uma Teoria Interpretativa
Há nos tempos modernos dois exemplos curiosos e curiosamente cercados de circunstâncias e ressonâncias diversas. Comecemos pelo segundo: a saturação e os primeiros estalos de uma das teorias interpretativas mais gloriosas da ciência moderna: a síntese newtoniana. Durante mais de dois séculos o mundo ocidental viveu tão solidamente agarrado à gravitação universal formulada por Newton, que muitos, mesmo nos grêmios mais científicos, chegaram a esquecer a essencial distinção, isto é, chegaram a esquecer que a teoria interpretativa pode ter as costuras rompidas pelo advento de um fenômeno observado que nela não consiga encontrar explicação cabal. Tal era a convicção, mais cientificista do que científica, que milhões de pessoas não hesitariam em dizer que estava matematicamente provado que os corpos se atraíam na razão direta das massas etc. etc.
 
Ora, essa afirmativa era errônea (filosoficamente), porque nada se pode demonstrar matematicamente de coisas físicas. Pode-se observar, pode-se me­dir, mas essa não é uma operação matemática, e sim física.
 
Hoje sabemos que a grande síntese newtoniana não dava boa conta, por exemplo, do movimento do periélio de Mercúrio, nem conseguia enquadrar bem o eletromagnetismo depois de Maxwell. Por essas e outras, e sobretudo depois de Plank e Einstein, operou-se uma transformação do sistema de síntese explicativa para cumprir o preceito escolástico: salvaguardar o depósito observado. Não se trata pois de reformar, de revolucionar, e sim de procurar novos meios de sistematização que continuem o acervo adquirido e crescido. Não creio que tenha passado no espírito de Einstein ou de Plank que Newton fosse um trevoso medieval deixado para trás a babar na gravata, ou na gargantilha, que era o que se usava naquele tempo em que também se usava a ação à distância como vitória sobre o aristotelismo.
 
Aliás, convém lembrar que Netuno, descoberto com cálculos de Lavoisier do mais ortodoxo newtonismo, até a 6a. ou 7a. casa decimal do logaritmo, não tornou a mergulhar no ignoto, nem os eclipses, que ainda se calculam na mesma honrada mecânica celeste, que tão bons serviços prestou, deixam de comparecer, com a prevista pontualidade. Mas o fato incontestável é que a Física newtoniana, assim chamada por seu lado hipotético-explicativo, cedeu lugar a outra Física, que ainda se debate perdida numa excessiva soma de dados que andam à procura de nova roupagem.
 
O segundo exemplo de mudança de teoria interpretativa para a mantença do “depósito observado” foi cronologicamente anterior à transmutação Newton-Einstein e ocorreu num clima de euforia já revolucionária. Refiro-me ao “caso Copérnico”, que merece um tópico especial, mais por seu alarido do que por seu valor epistemológico.
 
A “Revolução” Copernicana
A contribuição de Copérnico, por causa do ponto histórico em que ocorreu, produziu no mundo um ataque de estupidez que dura até hoje. Até então o sistema de Ptolomeu permitia prever a posição dos astros e o comparecimento dos eclipses, com uma precisão que só dependia do aperfeiçoamento dos aparelhos de medida (isto é, do instrumental de observação física), e todo ele se firmava em referenciais que estavam na Terra e eram tidos por imóveis. Da escolha desse sistema referencial fixado no observador terrestre resultavam os famosos epiciclos para a adequada, e tão rigorosa quanto possível, previsão do movimento dos astros. Durante quatorze séculos esse majestoso sistema deu conta dos “dados observados”, ou salvou os fenômenos, co­mo dizia Santo Tomás. Copérnico fez a experiência placidamente prevista por Santo Tomás; imaginou outra escolha de eixos coordenados com o centro no Sol e viu que toda a geometria do movimento se simplificava se colocasse o Sol no centro do sistema planetário e se partisse do puro postulado (sem nenhuma base na observação) de serem circulares os movimentos dos planetas em torno do Sol.
 
É inegável a intuição que teve Copérnico nessa escolha de novos referenciais, mas há um colossal exagero no valor que passa o mundo inteiro a atribuir-lhe. Na verdade, esse cientista na possuía sequer o instrumental matemático; este lhe foi dado por um matemático alemão, Georg Rheticus (1514-1516), que, ouvindo falar em sua teoria, veio trabalhar dois anos com ele. Com os dados observados retomados no século XV por George Burlach (1423-1461), da Universidade de Viena, e sobretudo por seu discípulo Johannes Müller (1436-1476), que haviam estudado na Itália as versões gregas do original de Ptolomeu, pude­ram ambos elaborar a obra principal que Copérnico publica: De revolutionibus orbium coelestium. Morre poucos anos depois (1543) sem ser incomodado por ninguém e talvez sem imaginar que lançava outra “revolução”, diferente do giro circular dos planetas. A chamada revolução copernicana é realmente uma revolução no sentido que hoje dou a este termo. Sem culpa nenhuma do autor, a mudança de eixos de uma cinemática trouxe fortes abalos culturais, e muita gente sentiu efetivamente um abalo no nível do senso comum, e até hoje as vítimas do cientificismo exageram o feito, ignoram as controvérsias, ignoram que a estrepitosa “revolução copernicana” nada descobriu na natureza física dos astros, mas pouco mais fez do que rearrumar os eixos de uma geometria do movimento, isto é, de uma cinemática. E sobretudo ignoram que, facilitando embora os cálculos astronômicos de previsão da ascensão reta e da declinação dos planetas, e das datas dos eclipses, o sistema de Copérnico “não trazia melhor aproximação do que os cálculos feitos com os epiciclos de Ptolomeu”, e até de certo modo se arriscava a trazer erros maiores, porque, enquanto os astrônomos tradicionais se apegavam aos dados observa­dos que extrapolavam, Copérnico apegava-se a priori, e sem base física, à idéia antiqüíssima, pitagórica, de órbitas circulares.
 
Há, assim, na festejada novidade um divertido anacronismo que vem precisamente do fato de ser mais imaginoso do que cientista o autor de De revolutionibus..., e do fato de não ter sido dócil ao observado como ensinava Santo Tomás: “opportet salvare apparentia sensibilia”. É curioso notar que o conhecido autor da revolução copernicana, além de apriorista em matéria de física, era rigidamente tradicionalista quando censurava Ptolomeu por ter-se afastado demasiadamente de Pitágoras. E eis aqui um divertido paradoxo, resultante da mistura do cientificismo com uma espécie de mística, ou de “gnose”, com que Copérnico é ao mesmo tempo abridor de portas do século XVI e o fiel pitagórico de vinte e dois séculos atrás. Kepler (1571-1630), quando descobrir a forma elíptica das órbitas planetárias e as famosas três leis do movimento planetário, dirá que Copérnico não soube aproveitar a riqueza que tinha nas mãos. Cumpre porém notar que, mesmo depois do apuro trazido pelas leis de Kepler ao movimento dos planetas, se aplica à astronomia do tempo a mesma queixa formulada por Francis Bacon contra Galileu e Copérnico.
 
“Adversário do método elaborado por Galileu, que consiste em isolar os fenômenos do contexto natural, para estudar somente os aspectos mensuráveis, e para desenvolver depois vastas teorias matemáticas sobre a base dos resultados, Bacon reclama a consideração dos fatos que tenham relação com a matéria tratada: em astronomia, por exemplo, a natureza física dos corpos celestes, que Copérnico desprezava, e a resistência do ar na queda dos corpos, desprezada por Galileu...”3.
 
Na verdade, a astronomia até Kepler, e antes de Newton, reduz-se a uma cinemática baseada em medidas de ângulos: era uma trigonometria esférica em movimento, com duas dimensões angulares, e uma 3a. dimensão de duração t. Exagerei dizendo em outro lugar4 que se reduzia a uma cinemática coloca­da no 2º grau da abstração matemática. Onde há medida experimentalmente feita, com régua e transferidor, por exemplo, já há uma espécie de topografia do espaço físico. O que se pode dizer, sem exagero, é que aquela astronomia era de uma magreza física esquelética, que não tinha o direito de passar dos entes de razão, ou da teoria interpretativa para a matrícula no acervo fenomênico, a não ser com prova física, isto é, reduzida experimentalmente a uma evidência sensível, e uma “apparentia sensibilia”.
 
Mesmo depois de Newton (1642-1727) é ainda prematuro dizer que está fisicamente provado o movimento de rotação da Terra, e fisicamente justificada a escolha do centro do sistema planetário no astro que condensa a maior massa. É somente depois da medida da constante g de gravitação, realizada em laboratório por Cavendish (1731-1816), que a chamada lei da gravitação universal pode ser provada, medida, e assim enquadrada no acervo fenomênico. Mas ainda é cedo para dizer que está cientificamente provado que o Sol atrai os planetas na razão direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias, porque o verbo atrair implica toda uma teoria interpretativa. Na física moderna ainda não se solidificou uma tranqüila teoria da gravitação, mas a tendência parece ser a de procurá-la mais numa “forma” do espaço-tempo em torno de uma massa do que numa ação à distância.
 
Ainda depois de Kepler, Newton e Cavendish é prematuro falar em prova física do movimento diurno da Terra, que só ingressa no patrimônio do “dado observado” com as experiências do pêndulo de Foucault, na cúpula do Panthéon de Paris, em 1850.  
 
Reflexões sobre Ciência Autônoma e Heterônoma
Apesar do título rebarbativo, o que queremos dizer neste tópico é simples e relevante: sendo as ciências empíricas (a astronomia, a física, a biologia etc.) compostas de duas partes, um acervo fenomênico ou um “dado observado” de um lado, e uma “teoria interpretativa” de outro, é fácil adivinhar a soma de equívocos que advirá quando tomarmos uma coisa pela outra. E aqui cumpre notar que, embora não pareça, a primeira parte é muito mais inacessível e impopular do que a segunda, porque são poucos os que entram em confronto direto e fraterno com o irmão-fenômeno, e muitos são os que lêem as notícias das sínteses teóricas, quase sempre em formas vulgarizadas e brutalizadas.
 
Tomemos por exemplo o movimento diurno da Terra.
 
Muito poucos são os que fizeram ou refizeram a experiência de Foucault, e os que, com o olho colado à ocular do círculo meridiano, puderam verificar com aproximação cada vez maior a uniformidade do movimento angular dos “pontos no infinito” que cruzam os fios do retículo. Todos os outros que falam da rotação da Terra, de oitiva falam. De ouvir dizer e não de coisa vista ou diretamente ouvida. Essa grande e respeitabilíssima maioria dos não-astrônomos o pouco que sabem de astronomia não o sabem com ciência adequada e autônoma, sabem-no por informação, por fé humana, ou por ciência pobre, inadequada e heterônoma. A mais lúcida inteligência do mundo, digamos por exemplo Jacques Maritain, fala com toda a simplicidade do acerto de Galileu, da mancada do Santo Ofício, sem se dar conta de que a verdade “científica” do movimento da Terra só é por ele conhecida em nível colegial de ciência heterônoma, colada por informação.
 
Arma-se aqui um problema filosófico interessante e indispensável à compreensão dos equívocos tecidos em torno do “caso Galileu”. Será hoje o movimento diurno da Terra um simples dado do consabido, uma ciência real­mente heterônoma de pura informação, ou será hoje um dado do senso comum e, portanto, sob certo título, uma ciência muito mais densa do que uma simples informação?
 
Respondeo dicendum” que, nos tempos de Galileu e Copérnico, a rotação da Terra era um dado da teoria interpretativa, sem prova física para os próprios autores e defensores da idéia, que abusavam de seus dons intuitivos, divinatórios, ou de suas faculdades oníricas quando a apresentavam co­mo fisicamente provada. Galileu chegou a dizer, sem direito de fazê-lo, que o sentia (ao movimento da Terra) como se o tocasse com as mãos. O glorioso florentino, nesse passo, abusava de seus talentos e cometia fraude epistemológica. E aqui não me venham dizer — pelo amor de Deus e das verdades menores — que o futuro deu razão a Galileu e provou que era verdade o que afirmava, porque a honra e dignidade do cientista não consiste em ter intuições de que outros mais tarde darão a prova adequada a esse grau de saber. Não, mil vezes não. A honra e dignidade da ciência não consiste em “acertar” como na loteria (que só mais tarde comprova o acerto), consiste essencialmente em dar as razões do que assevera, ao demonstrar o que diz com os recursos adequados a esse grau de saber.
 
Foucault poderia dizer, metafisicamente, que sentia o movimento diurno da Terra como se o pegasse, mas Galileu, sem fraude ou abuso, não podia. Mas não é ainda aí que se situa o nó da questão para o qual abrimos este “respondeo dicendum”, é na posição do problema em relação ao senso comum. Perguntávamos se hoje o movimento da Terra é um simples dado do consabido, ou do dilúvio de informações, ou se já ganhou lugar no senso comum. E agora respondo dizendo que “hoje” o movimento da Terra se incorporou aos dados periféricos do senso comum, por­que entre os dados mais nucleares da petite sagesse está a confiança no que se tornou opinião universal e incontrovertida apesar da minguada mino­ria dos astrônomos.
 
Diferente era a situação no tempo de Galileu: a influência do consabido da época no senso comum tornava-o pouco acolhedor de uma transposição de eixos que colocasse o observador no Sol, a menos que se atribuísse ao Sol uma imutabilidade e outros atributos cientificamente desnecessários para salvaguardar o “depósito observado”, mas psicologicamente necessários para amolecer as resistências do senso comum e predispô-lo a novidades fantásticas de caráter gnóstico em que se misturavam dados de ciência e de religião, entremeados.
 
O Heliocentrismo e o Culto do “Deus-Sol”
A História é sempre composta de uma face clara, consciente, superficial, onde se demarcam as datas, se travam as batalhas e se mudam os regimes, e de outra, subterrânea, por onde correm os vasos capilares do mistério, ir­racionalismo e perpétua conspiração que os homens inventam nas profundezas da alma com a ilusão de conjurar assim as variadas aflições da vida.
 
O claro e estridente século da Renascença e da Reforma, com toda a sua presunção cientificista, ou por causa dela, não escapou à regra geral e até se pode dizer que a confirmou com certo exagero. Assim é que, no próprio do­mínio da ciência que produzirá o cartesianismo e o culto das idéias claras, se vê o lado sombra formado pelo culto religioso do Sol, que vigorava na era das pirâmides, no Egito e na Mesopotâmia.
 
Num recente artigo5 Lewis Mumford assinala a estranha composição do “progressismo” do século XVI, metade mecanicista, metade gnóstica, sendo de notar que a parte gnóstica, esotérica ou mágico-supersticiosa não era trazida pelas classes mais ignorantes, mas pelos mesmíssimos “filósofos” que enaltecem a ciência e que no século seguinte começarão a preparar a revolução. Vale a penas inserir aqui algumas passagens de Mumford:
 
“Se algum ponto da História pode ser assinalado como o início da moderna concepção do mundo, concepção mecânica, expressão de uma nova religião e base de um novo sistema de poder, esse ponto está na quinta década do século XVI. Nesse tempo não foi apenas o sensacional De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico, que veio a lume; foram também o tratado de anatomia De Humani Corporis Fabrica, de Vesalius (1543), a Ars Magna, álgebra de Jerônimo Cardano (1545), e a teoria da bacteriologia patogênica por Fracastor em De Contagine et Contagionis Morbis (1546). Cientificamente pode-se dizer que foi a década das décadas.
 
“A maneira usual de interpretar a chamada revolução copernicana é a que considera como principal efeito a ruptura de uma teológica e assentada concepção, pela qual Deus colocara a Terra no centro do universo, e fizera do homem o objeto último de sua atenção. Se o Sol é efetivamente o centro do universo, então toda a estrutura da teologia dogmática cristã — com seu único ato de criação e a alma humana tida como interesse central de Deus, e a provação moral do homem neste mundo como preparação para a vida eterna em conformidade com a vontade de Deus — toda essa estrutura está ameaçada de colapso.”
 
Observo eu que não é a Sagrada Congregação do Santo Ofício que está dizendo essas coisas em Roma nos idos de 1616, é o atualíssimo e muito lúcido autor de The History of Utopies que nos descreve o impacto cultural, o impacto teológico e, conseqüentemente, o impacto na fé católica trazido pelo “heliocentrismo”, e nos prepara o espírito para a divertida surpresa de ver o refluxo desse impacto sobre os próprios autores das descobertas, invenções, utopias ou sonhos. Continua Mumford:
 
“Visto através das novas lentes da ciência, o homem encolheu. Em termos de escala astronômica, o gênero humano totaliza pouco mais do que um efêmero e inquieto mofo deste planeta. A ciência, que realizou esta impressionante descoberta pelo simples exercício das naturais faculdades humanas e não pela divina revelação, tornou-se a única fonte de autêntico conhecimento digno de crédito. Tudo isto, porém, embora nos pareça hoje tão claro, não foi imediatamente reconhecido por aqueles que estavam mais profundamente cativados pela nova religião...”
 
Cabe aqui um reparo: esse encolhimento do homem não ocorreu logo no século XVI, após a formulação do heliocentrismo por Copérnico, porque a “escala astronômica” só ganhou divulgação depois da medida da distância do Sol, a qual, não podendo ser feita por método puramente trigonométrico com ba­se na Terra como a distância da Lua, foi efetivada pelo astrônomo Halley em 1631 por um processo mais indireto, que envolvia a observação de uma passagem de Vênus sobre o disco solar observada por dois astrônomos muito afastados. Essa distância, que orça por 149.000.000 quilômetros, passou a ser o metro da nova escala astronômica, que somente no século XIX (1840), quando Bessel mediu a primeira paralaxe da estrela 61a. do Cisne, ganhou as dimensões de anos-luz, que logo passaram de 4,3 (da estrela mais próxima, Alfa do Centauro) para milhares, milhões e bilhões de anos-luz com os sucessivos progressos da espectroscopia, da fotometria e da atual radioastronomia. Co­mo porém, tudo isto foi descoberto pelo simples exercício natural das faculdades humanas, segundo observa Lewis Mumford, o conseqüente encolhimento do homem esmagado pela escala astronômica foi alternativamente seguido de momentos de narcisismo idolátrico: o próprio homem, em vez de passar de pulga a Napoleão, como na cabeça de Raskalnikoff, oscilava vertiginosamente entre Deus e Nada. Nunca chegara a tão delirante amplitude a oscilação psicológica a que Oliver Brachfeld6 denominou “complexo de Guliver”. E nunca se descurou tanto do conselho de Pascal: não é bom falar na glória humana sem evocar sua miséria, mas também não é bom demorar-se em sua miséria sem lembrar sua glória.
 
Outro reparo: Mumford diz que todas as exorbitâncias do cientificismo, que hoje nos parecem claras, não foram imediatamente percebidas por aqueles que estavam profundamente cativados pela nova religião. Ora, isto que parece tão claro hoje a um dos mais argutos observadores da atualidade continua obscuro para os “progressistas” da nova religião, e o que disse ele ter passado despercebido aos “progressistas” da nova religião do século XVI não passou despercebido ao Santo Ofício, cujos juízes no caso de Galileu sentiram, no nível do senso comum vivificado pela Fé, ou graças aos dons do Espírito Santo, não apenas uma tese ousada e mal fundada, mas todo um intrincado processo de cientificismo e de gnose que divinizava o Sol, no século XVI, como nos mostra Lewis Mumford, que mais adiante escreve:
 
“O efeito imediato da nova teologia foi o de reviver concepções que datavam do tempo das pirâmides no Egito e na Mesopotâmia.”
 
Alongando-se, no referido artigo, em considerações que merecem ser li­das e meditadas, em certa altura Mumford cita Battersfield, que diz: “Copérnico se torna lírico e chega quase à adoração do Sol quando escreve a respeito de sua natureza monárquica e da posição central que ocupa”. Tyllyard assinala que o Sol, na era elisabetana, era geralmente considerado como contraparte material de Deus.
 
 
O Caso Galileu
Creio que agora temos, na condensação que nos foi possível, as várias noções e os vários dados que permitem uma abordagem do caso Galileu que permitirá, assim o espero, desanuviar mais uma das tantas histórias mal contadas com que se tece a história.
 
Eis os termos em que o Santo Ofício, sob o pontificado de Paulo V, foi consultado em Fevereiro de 1616. Duas proposições foram apresentadas:
 
1a.) O Sol é o centro do mundo e por conseqüência imóvel de movimento local.

2a.) A Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas move-se ela toda por um movimento diurno.
 
Poucos dias depois a resposta é dada:
 
“a) A primeira proposição é insensata e absurda em filosofia e formalmente herética, por contradizer expressamente muitas passagens da Sagrada Escritura, conforme a propriedade dos termos, segundo a interpretação comum e o sentido dos santos padres e dos doutores da teologia.
 
b) Quanto à segunda proposição, ela merece a mesma censura filosófica, e em relação à verdade teológica é pelo menos errônea na fé.”7
 
Dois dias depois, o comissário do Santo Ofício notifica a Galileu a censura lavrada contra a opinião segundo a qual o Sol está no centro imóvel do universo, e a Terra se move. Essa opinião não deve ser sustentada nem defendida. Galileu é advertido das penas a que se expõe e promete obedecer.
 
Aqui termina a primeira parte do caso Galileu, e desde já se escandalizam os que vêem em tais condenações do Santo Ofício um crime de lesa-majestade contra a Ciência. Ora, por incrível que isto pareça aos que se deixaram conscientizar pelo culto da “libre-pensée” (que na verdade, como veremos, é um culto da pensée vide), ouso dizer que essa reação é errônea. O próprio Maritain [..] diz mais adiante8 que: “Se os juízes do Santo Ofício se enganaram tão gravemente foi porque, por um errôneo princípio ainda mais perigoso (por ser de alcance geral), julgaram que a ciência dos fenômenos estivesse sob a jurisdição da teologia e de uma interpretação geral da Sagrada Escritura. Pode ser — digo eu a título de hipótese — que os juízes do Santo Ofício acreditassem nesse falso juízo epistemológico, mas o que é certo, e duvido que algum filósofo ou teólogo possa contestar-me, é que, se a teologia e o Magistério da Igreja não podem julgar as ciências dos fenômenos nos seus processos intrínsecos e próprios, podem e devem julgar o uso que o cientista faz das intuições e teorias interpretativas do fenômeno. Não ignoro que essa jurisdição da Igreja é hoje negada e recusada em todo o nosso bravo novo mundo gloriosamente pluralista. Mas é preciso lembrar que, no tempo de Galileu, a Igreja e o Santo Ofício ainda se sentiam responsáveis por todos os passos em que a prudência pastoralmente recomendava moderação nos domínios da ficção e do sonho científico. Além disso, explica-se certa brutalidade na sumária condenação do Santo Ofício, que parece efetivamente colo­cada em termos dogmáticos, pela consciência que tinha de representar ainda a paternal proteção de uma civilização cristã.”
 
Podemos admitir que os assessores e juízes do Santo Ofício, não sendo todos geniais e santos com Santo Tomás, tenham confundido a censura pastoral que as proposições de Galileu bem mereciam com a censura dogmática que só mereciam efetivamente os erros formalmente contrários à Revelação e à Fé; mas não podemos deixar de assinalar que tais proposições, lançadas num contexto cultural despreparado, em que os próprios astrônomos, como Tycho Brahé, reclamavam provas convincentes, afligiriam a cristandade nos costumes intelectuais, no nível do senso comum, que, além da Fé e dos costumes, também está sob a salvaguarda da Igreja. Além disso, notemos que a Igreja seria impraticável, e que a Civilização Cristã seria impraticável, se os juízes do Santo Ofício devessem todos ter a estatura de Santo Tomás. O próprio Maritain (na página 357 da mesma obra citada) diz encolerizado que:
 
“[...] se era verdade — e é efetivamente verdade — que (como diz o Cardeal Journet) todos os contemporâneos tinham como evidente ‘que es­sa condenação doutrinal atingia matéria revogável por uma autoridade falível’, eles, os juízes, eram certamente os primeiros a saber que poderiam estar enganados.”
 
É o caso de perguntarmos: E daí? Se os juízes do Santo Ofício podiam proibir e censurar infalivelmente, concluo eu que o erro não está no personnel mas na Personne da Igreja, que tanto tempo admitiu a possibilidade de governar, que necessariamente inclui a possibilidade de decisões gravíssimas em matéria revogável, e fora do domínio estrito da infalibilidade. Se o Santo Ofício além de uma grave mancada (bourde) cometeu um “abuso de poder”, então concluímos que é impraticável o governo da Igreja, já que o exercício da infalibilidade deve ser poupado preciosamente para as questões extraordinárias, e diretamente contrárias à Fé, e já que o governo exige medidas pastorais em todas as matérias ordinárias.
 
E volto a dizer, com a consciência de estar afrontando de um lado um himalaia de opiniões amontoadas durante quatro séculos, e de outro um autor que em filosofia sempre tive por mestre, que o pronunciamento do Santo Ofício quis dizer que aquelas proposições eram perigosas contra a fé, nocivas à fé no nível do senso comum, que é uma sabedoria (rústica embora), e como tal superior e mais merecedora de cuidado do que as ciências das coisas exteriores e inferiores, que nada perderiam por esperar um pouco o sinal verde nos cruzamentos da história, e que põem em risco toda a civilização se querem ser elas as infalíveis.
 
Além disso, nunca é demasiado insistir neste ponto: o erro do genial Galileu, no seu próprio campo científico, foi mais grave e mais petulante do que o excesso de formulação dogmática com que o Santo Ofício o advertiu. A idéia de um Sol imóvel no centro do mundo é mais grotesca, mais fantástica, mais insensata do que a tradicional idéia que colocava o centro na Terra em que surgiu o homem e se encarnou o Verbo de Deus. O Santo Ofício, sem o saber, sem sequer fazer questão de provar as sucessivas revoluções da Física, dizendo que o “heliocentrismo” era insensato e absurdo “filosoficamente”, diz o mesmo que diriam os físicos modernos: a proposição que diz estar o Sol imóvel no centro do universo é meaningless para um físico, “e mesmo para um não-físico”, como disse Einstein em situações semelhantes. Mais acertada é a proposição filosófica ou teológica que coloca o centro do mundo onde está o observador capaz de medir paralaxes e anos-luz, ou onde es­teve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em sua condição carnal.
 
Sim, em 1611 como em 1971, e como em 2611 e até o fim do mundo, só terá sentido a noção de centro do universo na ordem do conhecimento e do amor. O Sol será, se quiserem, centro imaginário (ente de razão matemática) da órbita percorrida pelos centros de gravidade dos planetas, circular pa­ra Galileu, elíptica para Kepler, e complicadamente helicoidal quando se descobriu, depois que a análise espectral revelou, o deslocamento de certas raias K na direção do vermelho ou na oposta conforme se observavam estrelas nas cercanias da constelação de Hércules, ou na oposta. Desde essa observação ficou sabido que “messer frate il sole”, longe da majestática imobilidade que lhe atribuíram Copérnico e Galileu, é um globo incandescente caindo, ou melhor, errando no espaço, mais erradiamente do que Parsifal sem elmo nem lança. Desmanchou-se num novelo caprichosamente desenrolado o pomposo “heliocentrismo”, que sempre foi uma pobre verdade de fraca compleição, como dizia Ibsen, porque já no tempo de Kepler o Sol passou do centro do círculo para o foco da elipse, e hoje não passa de um dos trepidantes e incertos grãos de nosso “restless Universe”, como diz Maz Born.
 
Na verdade, a proposição apresentada ao Santo Ofício por Galileu, ligada à presunção de uma prova física de que lhe parecia “evidente como se a tocasse com as mãos”, constitui um monstro epistemológico, onde se misturam os graus de abstração e onde a hipótese explicativa se transforma em dado observado, ligado a uma fraude pelo empenho com que tentou, na divulgação, inculcar a idéia de uma “prova científica”.
 
Parece-me indubitável que nesse episódio Galileu, como cientista, errou mais gravemente na formulação de sua comunicação do que os juízes do Santo Ofício erraram como teólogos; porque para defender cabalmente o enunciado da condenação nos basta colocá-lo no plano pastoral de defesa do senso comum barbaramente agredido, não pelas pesquisas e observações dos satélites de Júpiter, não pelas teorias explicativas apresentadas prudentemente com caráter de hipóteses, mas pela fraude com que se pretendia inculcar como provado o que teria de esperar muito estudo para ganhar direito a um enunciado decentemente científico. E aqui me parece especialmente in­feliz a nota (a) de Maritain (op.cit., p. 393):
 
“Que Galileu não tenha realmente demonstrado o movimento da Terra nada tem que ver aqui. Realmente foi somente depois de Newton que o heliocentrismo se impôs a todos os homens de ciência. As provas invocadas por Galileu não eram demonstrativas e pouco valiam. Mas, antes de mostrar e sem estar ainda em condições de fazê-lo, há no espírito do grande sábio uma percepção intuitiva que basta [grifo nosso] para lhe dar uma convicção de que — certo ou errado [grifo nosso], isto é outro assunto, que diz respeito ao progresso da ciência — ele absoluta­mente não duvida. Tal foi o caso para o gênio intuitivo de Galileu.”
 
Nesta nota infelicíssima, onde se evidencia o empenho de glorificar um dos motoristas do progresso da ciência, em detrimento do obscurantista Santo Ofício, não reconhecemos o autor de Théonas, de Antimoderne, de Trois Réformateurs, de Reflexions sur l’Intelligence et sa vie propre, não reconhecemos o severo e exigente filósofo que nos ensinou, entre mil coisas, esta lição que já escrevi atrás e agora repito: a honra e dignidade do cientista não consiste em ter acertado (ou quase acertado) a proposição que outros demonstrarão, e que ele mesmo, dizendo que a sente co­mo se a tocasse, não sabe provar; não, mil vezes não: a honra do cientista, do filósofo e do teólogo não é de natureza esportiva ou lotérica, não consiste em acertar à tort ou à raison, mas consiste essencialmente em dar as razões de sua proposição.
 
Os tomistas, e com toda a razão, costumam ficar irritados quando os franciscanos lhes dizem, ou melhor, lhes diziam com garbo que Duns Scotus acertara na questão da Imaculada Conceição da Virgem Santíssima, enquanto Santo Tomás perdera o ponto. Volvendo com saudades aos bons tempos em que dominicanos e franciscanos discutiam essas coisas, lembro-me de um O.P., não sei se Garrigou-Lagrange ou Gardeil, que chegava a asseverar que no encaminhamento da proclamação do dogma valeram mais os argumentos refutadores de Santo Tomás do que os surtos intuitivos com que Duns Scotus, à tort ou à raison, afirmava.
 
No caso Galileu, para terminar, direi que hoje, melhor do que nunca, estamos em condições de apreciar a real e profunda intuição com que o Santo Ofício sentiu a presença do monstro — o cientificismo e não a ciência — que arrombava as porteiras e se precipitava para devastar uma civilização. Mas nossa constatação não é triunfalista, porque são muito poucos os que participam dela; é antes melancólica, e tem todo o travo de uma batalha perdida.
 
A Inteligência em Perigo
Tomamos para este tópico o título de um belo livro de Marcel de Corte, em perspectiva em pouco diferente, para desenvolver um pouco mais a questão que atrás abordamos, e que agora se torna mais oportuna (estamos no século XVIII), porque, enquanto na superfície da história os amadores do nada, que o tomam pelo tudo, se entretêm em ler a letra F ou H da Enciclopédia nos salões de Madame Geoffrin, e a atualidade se enfeita com nomes de luz, iluminismo, enlightehment, aufklärung, nos subterrâneos do nada cavam os alicerces da civilização e preparam a Revolução.
 
Vimos atrás que as coisas de qualquer ciência podem ser possuídas com ciência própria e autônoma, adquirida e assimilada profundamente, ou com ciência heterônoma, ou informação transmitida e recebida apenas com fé humana. Na filosofia e na matemática só há real conhecimento quando o mestre ou o informante podem ser despedidos e o estudioso se apodera da verdade compreendida e demonstrada, que se torna sua, esposa de sua inteligência, sem nenhuma interposição. Nas ciências dos fenômenos, a rigor, também só possuem a certeza menor de suas correlações aqueles que observam e experimentam diretamente, e conduzem todas as suposições à certeza dos sentidos, vista, apalpada, medida. Mas esse acesso à experiência, à exaustiva prova experimental em que se consumiu parte da vida de Pasteur para desfazer a ilusão da geração espontânea da vida, ou o acesso ao círculo meridiano e ao espectroscópio sideral é difícil, e muito escassa será sempre a parte de um povo que lá chegará. A maioria saberá quase tudo de oitiva; e o mais assustador é que, crescendo o campo das coisas sabidas nesta espécie de saber, como começou a crescer vertiginosamente desde a Re­nascença, crescerá na mesma proporção o número de homens que falarão nessas coisas com grande entusiasmo, sem todavia as saberem com ciência própria e autônoma, mas apenas com fé humana ou por terem lido no jornal. E entre esses faladores da ciência, que só a possuem por uma espécie de “cola”, incluo os intelectuais que falam no movimento diurno da Terra sem nunca terem aplicado um olho à ocular de uma luneta de círculo meridiano.
 
Receando que o leitor não tenha ainda apreendido o perigo em toda a sua profundidade, sou forçado a entrar em considerações sobre a vida da inteligência e suas exigências próprias. Assim como o olho foi dado para ver a luz, e o ouvido para apreender o som, a inteligência nos foi dada pa­ra, de início, em sua primeira operação, apreender os inteligíveis, isto é, para ver por si mesma e não pelos outros o que as coisas são, e daí passar aos juízos que predicam alguma coisa de um sujeito, e aos raciocínios que tecem e tramam as conexões do saber. Tudo isto a inteligência quer fazer por si mesma, a partir dos inteligíveis vistos nas coisas sem nenhuma interposição. Esse relacionamento autônomo com o objeto constitui propriamente a liberdade da inteligência, e se separa por um abismo da chamada “liberdade de pensamento”, que consiste no suposto e arrogante direito de dizer que pensa o que quer, ou de pensar que pensa o que não chega a pensar.
 
A inteligência quer tornar-se o objeto conhecido numa união muito íntima, muito perfeita e muito casta, e sofre quando as regras da convivência lhe pedem que aceite como verdadeiro aquilo que como tal ela própria não pode ver. Sofre, mas compreende que a vida em sociedade é própria do homem, e que essa feição essencialmente política do homem acarreta uma divisão no trabalho e uma divisão no saber. As humilhações impostas à inteligência se transformam em cordialidade, em amizade cívica, em filia, e neste transpasse a alma se conforta e aprende a conformar-se com um grande número de saberes possuídos por fé humana. O perigo da inteligência se contorna e até se transforma em riqueza na ordem do amor enquanto a sociedade consegue manter a inflação do consabido controlada e submetida a uma sabedoria, e enquanto a sociedade consegue manter laços de amizade cívica. Quando se rompem os dois equilíbrios, quando a soma crescente de da­dos enciclopédicos sabidos por toda a humanidade se agigantam e se desprendem de qualquer sapiência mais alta, e quando se instila na Polis, em lugar da filia, a regra da competição ou a luta de classes, então a inteligência desvaria, se avilta, desespera, e passa a encher-se de gases, e indigestar-se de um milhão de nadas que, somados e multiplicados, dão noves fora nada. E os hospícios se povoam; e ao cabo de algum tempo o mundo se transformará no grotesco e sinistro conto de Edgar Poe em que os últimos sensatos estarão nas camisas-de-força, e os loucos na direção e administração do planeta.
 
Em palavras mais sóbrias, o cientificismo, e o conseqüente enciclopedismo, é uma violação, uma curra da inteligência, que não pode ser praticada em dimensões civilizacionais sem as conseqüências de uma inimaginável massificação do homem, porque cada vez mais a inteligência renunciará à sua vida própria, em favor da tirania do sabido pelo homem coletivo. No século XVIII os “escavadores do nada” começaram a difundir a “libre-pensée”, começaram a praticar com entusiasmo o regime de esvaziamento da inteligência: no glorioso século XX em que temos a honra de lacrimejar e de nos de­bater, já as conseqüências inimagináveis se vão tornando rotinas sem espanto nem nojo. E quem já está demasiado idoso para habituar-se a andar de quatro, sofrerá uma pungente nostalgia da posição ereta, mas em compensação sofrerá menos tempo e melhor aprenderá assim a desprender-se deste mundo, cujo ofício é ser vagamente absurdo, e passar.  
 
 
As Sociétés de Pensée e a Revolução
Ninguém até hoje analisou melhor do que Augustin Cochin esse processo de esvaziamento da inteligência que se operou na ação capilar das sociétés de pensée do século XVIII, o qual, para os historiadores superficiais, continua a deter o campeonato do verniz.
 
“É no declínio do reino de Luís XV que o fenômeno se difunde na França. O Grande Oriente se constitui em 1773. As sociedades secretas e ordens diversas: Escoceses, Iluminados, Sweden-borgeanos, Martinistas, Egípcios, Amigos Reunidos, disputam adeptos e correspondentes. Vê-se enfim, de 1769 a 1780, sair da terra centenas de pequenas sociedades semidescobertas, autônomas em princípio, como as lojas, mas agindo em comum, como também as lojas constituídas à semelhança delas e animadas pelo mesmo espírito ‘patriota’ e ‘filósofo’, que escondia mil objetivos políticos semelhantes, sob pretexto oficial de ciência, beneficência ou divertimento [...]. O reino dos salões da maledicência espirituosa e elegante passou. Começa agora o das sociedades do livre pensamento.”9
 
E adiante Cochin nos apresenta com incisiva configuração o objeto, ou melhor, o não-objeto dessas academias:
 
“Elas não são apenas agência de notícias, mas sociedades de encorajamento ao patriotismo, tribunais de espírito público. Para atingir esse fim, criam uma república ideal à margem e à imagem da verdadeira, tendo sua constituição, seus magistrados, seu povo, suas honras e suas lutas. Ali se estudam os mesmos problemas políticos, econômicos etc. Ali se trata de agricultura, de arte, de moral, de direito. Debatem-se as questões do dia, julgam-se os homens eminentes. Em resumo. esse pequeno Estado é a imagem exata do grande, com uma só diferença: não é grande, não é real.
 
“Seus cidadãos não têm interesse direto nem responsabilidade engajada nos negócios de que falam. Seus decretos não passam de desejos ou votos, suas lutas são meras conversações, seus trabalhos são jogos. Nesta cidade das nuvens, faz-se a moral longe da ação, a política longe dos negócios: é a cidade do pensamento.”10
 
Augustin Cochin grifa o termo pensée, que melhor do que a tradução portuguesa exprime o vazio desse processo mental em que a inteligência se “libera” — se podemos empregar esse verbo ainda carregado de certa nobreza para exprimir tão degradante capitulação — do conhecimento real ou da re­flexão, para comprazer-se numa efervescência verbal que mal recobre a indigência do espírito que à exigente procura da verdade e do bem prefere essa liberdade que relativiza tudo exceto seu próprio vazio. O liberalismo, que na Inglaterra, com Locke, começa numa depravação do conhecimento que toda­via ainda se apega à experiência e ao conhecimento, no país que tem a vocação da inteligência haveria de começar e de se estender ainda mais baixo, desprendido da própria experiência e reduzido ao livre jogo de opinião, à doxia que não faz questão de ser ortho nem hetero, coroado ou paramentado este pouco ou quase nada com o termo mágico: “pensée, libre-pensée”.
 
“Há aí um fato geral que é preciso estudar em si mesmo se quiser­mos compreender os efeitos do início da Revolução. Todas essas Sociedades têm o mesmo caráter: são Sociedades ‘igualitárias’ de forma, e filosóficas de objeto, o que hoje chamaríamos Sociedades de ‘livre-pensamento’. Formavam o arcabouço material da ‘república da letras’ e deram à ‘filosofia’ uma consistência, um vigor, um império sobre a opinião sem exemplo até então.
 
“Com efeito, embora ideal, o novo Estado, a ‘república das letras’ ganhou, entre 1760 e a Revolução, uma prodigiosa extensão [...]. Ora, não está aí um fato capital, e desprezado por demais, no fim do século XVIII?
 
“Este estado de coisas, a própria existência das Sociedades de Pensamento, da casta de opinião que nelas se desenvolvia, das condições especiais em que punham os autores e o público, tudo isso teve efeitos muito graves sobre o movimento das idéias: porque impunha de início, e sem apelo, aos autores e ao público o ponto de vista ‘intelectual’, irreal.
 
“Nunca talvez a corrente geral das idéias, da literatura esteve tão afastada das realidades, do contato com as coisas, como nesse fim de século. Basta mencionar filósofos políticos como Rousseau e Mably, historiadores como Raynal, economistas como Turgot, Gocernay, e a escola do laisser-faire, homens de letras como La Harpe, Marmontel e Diderot.
 
“É assim que nasce o filosofismo. A prática da “libre-pensée” tem graves conseqüências, desde logo, para começar, na ordem intelectual. Os privilegiados esquecem seus princípios; poderíamos citar, do mesmo modo, o cientista a esquecer-se da experiência e o religioso a esquecer-se da fé. O fato da experiência, o dogma religioso, tais são com efeito as duas ordens de fato impostas brutalmente de fora à nossa inteligência, e dispostas a deter o impulso da ‘filosofia’, ou, como se diz hoje, do pensamento livre. A ‘filosofia’ (ou livre-pensamento) derrubará estes entraves à liberdade: a experiência, a tradição, a Fé.”11
 
Sem pretendermos reduzir a este veio todo o sistema fluvial de causas históricas, podemos talvez afiançar que Augustin Cochin, no que se refere à preparação da Revolução Francesa, nos dá a fortíssima impressão de estar acertando nos pontos mais feridos e doloridos de uma civilização em processo de niilização. E eu diria que é en creux que se prepara a Revolução. Os “horríveis trabalhadores” vistos por Rimbaud, numa espécie de retrovisor, não erigem, cavam. São os “escavadores do nada” vistos por Bloy. E a maior impostura da história, a ser ultrapassada pelo comunismo, não é uma explosão — é antes uma implosão.
 
 
(O Século do Nada,Rio de Janeiro, Record, pp. 119-138)

  1. 1. Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, AGIR.
  2. 2. Jacques Maritain, De l’Église du Christ, Desclée de Brouwer, 1970, pp. 345 e segs.
  3. 3. S. J. Mason, Histoire de la Science, Armand Colin, 1956, p. 10.
  4. 4. Revista Permanência, número 41, p. 22.
  5. 5. Lewis Mumford, The Megamachine, em The New Yorker, 10-17 de outubro de 1970.
  6. 6. Oliver Brachfeld, Los Sentimientos de Inferioridad, Luiz Mirade, Barcelona, 1959, pp. 24 e segs.
  7. 7. Jacques Maritain, op. cit.
  8. 8. Ibid.
  9. 9. Augustin Cochin, La Révolution et la Libre-Pensée, Plon, 1924, p. XXIX (“Introduction”).
  10. 10. Ibid., p. XXX.
  11. 11. Ibid., p. XXXIII.