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Necessidade e apetite

Pe. Manuel Bernardes

Perguntado S. Francisco de Assis porque se negava ao necessário para a sustentação da vida humana, respondeu:

— Dificultosa coisa é satisfazer à necessidade do corpo e não obedecer à lei dos apetites.

É muito dificultoso discernir quais são os precisos limites por onde confrontam estes dois vizinhos: necessidade e apetite; porque ambos se fundam na natureza, e o mesmo ramo que leva uns frutos bons ou indiferentes leva outros ruins e venenosos. Quem há de definir ao justo: “Até aqui é necessidade de comer, ou beber, ou dormir, ou conversar, daqui por diante já é vício”?

No Prado Espiritual se conta de um virtuoso monge a quem o seu abade mandou guardar os porcos do convento, que andavam pastando debaixo das azinheiras da mesma casa. Alguns vizinhos, cujas fazendas do mesmo gênero confinavam com aquela, instigados de inveja e malícia, se punham à espreita para, tanto que algum daqueles animais saísse fora dos seus limites, toma-lo por perdido e mata-lo. 

Andando os dias, desejou o monge pastor subir ao seu convento para tomar alguma refeição de espírito com os santos exercícios que costumava. Não tendo, porém, quem por entretanto ficasse de guarda, e confiado na virtude divina, chamou a toda a grei e lhe intimou, da parte do Senhor, que até ele tornar nenhum deles passasse de tal marco, que era os das próprias terras.

Caso maravilhoso!

Tao pontuais obedeceram todos que, em chegando ali em busca da lande, nem um só pé punham fora, e logo voltavam para dentro. Até que os vizinhos, enfadados da espera, entraram, e às vergastadas os procuravam desencaminhar para fora; porém, por muita instância que nisto puseram, nunca puderam conseguir; porque, tanto que os perseguidos animais chegavam ao termo sinalado pelo monge, como se topassem com um muro de pedra e cal, tornavam a fugir para dentro. Reconhecida, enfim a maravilha, pediram aqueles homens perdão do seu depravado intento, contando o caso.

E, aplicando eu este ao nosso, digo que, se os brutos dos nossos apetites foram tais que lhes pudéramos impor semelhante preceito: “Até aqui chegai, até aqui não” — fácil fora largar à natureza o que lhe compete, sem perigo de se desmandar. Porém este mau gado anda solto à bolota, sem distinguir a que é sua da que é alheia; e, quanto mais engorda, mais grunhe. E não se divisam bem os marcos destes dois terrenos. Logo, é conveniente encurtar o da necessidade para que se não confunda com o do apetite.

A esta dificuldade de distinguir o necessário do supérfluo acresce outra, que é de negar o supérfluo e ilícito, se nos não negarmos também em parte no lícito e necessário. Usemos para o declarar de outros símiles:

Quero endireitar uma vara que está torcida. Bastará porventura trazê-la com moderada força até aquele ponto em que fique direita? Não, por certo; senão que é necessário repuxar para a parte contrária, como se a minha tenção fosse, não tirar-lhe o torcimento, senão trocá-lo por outro. Quero passar um rio caudaloso de ribeira a ribeira. Bastará meter a proa em direitura da paragem onde pretendo desembarcar? Não, por certo; senão que é necessário metê-la muito mais arriba, porque a força da corrente me fará insensivelmente vir descaindo.

Pois, assim também para uma pessoa endireitar as suas más inclinações, não basta que procure pôr a natureza em uma mediania razoável, senão que é necessário puxar para o extremo contrário; e, para vir sair com a mortificação ou negação do ilícito, é necessário emproar mais alto, abraçando a negação do lícito. Para que o apetite não peça o almoço que era supérfluo, é bem negar à natureza a ceia que era necessária. Por que o apetite não cobice o alheio, que é ilícito, é bem negar à natureza ajuntar e guarda o próprio, que é lícito.

De semelhante indústria usava São Pedro de Alcântara, que, quando o corpo lhe pedia mais roupa, porque estava frio, tirava o manto e ficava mais frio; e, quando depois lho restituía, já ficava satisfeito e contente com aquilo mesmo que dantes lhe não bastava...

(Nova Floresta, Apetites)

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