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Existirá a matéria?

O leitor que não costuma freqüentar com assiduidade os textos deixados pelos filósofos, embora já tenha descoberto que esse coro de vozes é o mais discordante e desafinado que jamais se ouviu, e embora já tenha notado que não há coisa que algum deles não tenha afirmado ou negado, talvez não saiba que houve um filósofo para provar que a matéria não existe. Pois houve. Nasceu em 1685, morreu em 1753, foi inglês e chamou-se George Berkeley.

No seu The Principles of Human Knowledge, seguindo a tradição empirista de seu meio, Berkeley leva-a até as suas últimas conseqüências. Contestando a distinção traçada por Locke entre as duas espécies de qualidades sensíveis, distinção que de certo modo se assemelhava à da tradição aristotélica-tomista, Berkeley diz: “Alguns autores fazem uma distinção entre as qualidades primárias e as secundárias. Por primárias entendem eles a extensão, a figura, o movimento, a solidez ou impenetrabilidade e o número; por secundárias designam todas as outras qualidades sensíveis tais como gosto, cor, timbre, etc. As idéias que temos sobre essas últimas são reconhecidas como não tendo semelhança alguma com qualquer coisa que exista fora da mente; mas esses mesmos autores consideram as qualidades primárias como modelos ou imagens de coisas que existem sem a mente, numa substância não pensante que eles chamam Matéria. Por Matéria, então, devemos entender uma substância inerte, desprovida de percepção (senseless) na qual a extensão, a figura e movimento atualmente existem. Mas é evidente – continua Berkeley – pelo que já mostramos, que extensão, figura e movimento são somente idéias existentes na mente e que uma idéia só pode ser semelhante a outra idéia, e que portanto nem elas nem os seus arquétipos podem existir em uma substância desprovida de percepção. Logo, é claro que a própria noção do que chamam Matéria ou Substância Corpórea envolve nela mesma uma contradição.”

Como se vê, Berkeley parece negar a existência daquilo que todos entendiam por Matéria; e é fácil imaginar a celeuma levantada no século XVIII que justamente pode ser imputado como o tempo em que o materialismo ganhava consistência e entusiasmo na cultura ocidental. O doutor Johnson, saindo da Igreja após um ofício dominical, conversava sobre assuntos filosóficos com Boswell, que acreditava, pessoalmente, na existência da matéria mas confessava que não sabia como provar sua existência. “I shall never forget – diz-nos Boswell – the alacrity with which Johnson answered, striking his foot with mighty force against a large stone, till he rebounded from it, I REFUTE IT THUS”. O doutor Johson repetia, a dois mil anos de distância, a mesma sensata indignação de um grego quando Zenon pretendia provar que não existia o movimento. Mais severo ainda foi o médico conhecido de um amigo de Berkeley, chamado J. Percivel, que mandou dizer ao filósofo que ele certamente estava doido e era urgente que tomasse remédios. Hoje recomendaríamos choques elétricos até que o filósofo desse sinais daquela sadia alacridade do doutor Johnson; ou então daríamos ao filósofo uma cátedra para ensinar aos meninos do curso secundário...

Mas agora creio que vou inquietar o meu leitor habitual dizendo que concordo com a conclusão de Berkeley. Não acompanho os passos de seu raciocínio nem tenho suas premissas, mas como modestíssimo ouvinte da tradição aristotélico-tomista, digo também que não existe matéria, se por matéria devo pensar uma substância extensa, móvel, etc. Quem concebia a Matéria como um ser atualizado (em ato), como uma espécie de encarnação da extensão, eram os filósofos da nova civilização: Descartes, Hobbes, Locke; e era contra eles que Berkeley proclamava aos quatro ventos a sua doutrina imaterialista.

O aspecto curioso desse debate é a concordância profunda que existe entre os que discordam tão asperamente, ou é a discordância profunda dos que concordam nas conclusões. Berkeley sentia o aspecto grosseiro da concepção mecanicista, que não repugnou ao genial e piedoso Descartes, e tentou corrigi-la. Não parece que tenha escrito obra para demonstrar, pela redução ao absurdo, as premissas nominalistas e empiristas. Berkeley parece querer realmente corrigir a filosofia de Locke, mas nessa tentativa usa os mesmos critérios empiristas, o mesmo descaso pela esquecida tradição escolástica, e vai parar comicamente no extremo oposto, dando ao bravo velho mundo inglês do século dezoito o espetáculo de um imaterialismo construído com critérios materialistas!

Uma das coisas mais difíceis, no panorama geral da história da filosofia, é saber quem está contra e quem está a favor. Em cada caso é mister determinar bem o ângulo em que este concorda com aquele ou discorda daquele outro. Se tivéssemos aqui um quadro negro eu desenharia a figura que passo a descrever apelando para a imaginação do leitor. Tracemos um triângulo ABC com a base BC horizontal e o vértice A no topo do quadro. No vértice A escrevamos Aristóteles-Santo Tomás; no vértice B, à esquerda, Berkeley; no vértice C, à direita, Descartes, Hobbes e Locke. O problema a que o diagrama se refere é o da matéria. Temos de um lado os que afirmam a matéria como um ser atualizado na extensão e no movimento, e de outro o que nega a existência de tal ser e por conseguinte a inexistência da matéria. Aristóteles e Santo-Tomás, lá do púlpito em que os colocamos, diriam a Berkeley: -- Tens razão de estares chocado com a conclusão a que chegaram seus colegas, mas não tens razão – e até admiramos que tenhas tido a coragem de dizer tal coisa aos teus concidadãos – quando negas a existência de algum substratum e de alguma semelhança entre a sensação e as qualidades existentes fora da mente.

A Descartes, Hobbes e Locke, nossos sábios fariam outro discurso, talvez mais severo: -- Assim não! Atualizais e dais corpo de ser em ato ao que existe como princípio dos seres corpóreos, mas EM POTÊNCIA. Se tiverdes a paciência de reestudar a doutrina da potência e do ato, e a correlata doutrina da matéria e da forma, evitareis a continuação dessa cômica oscilação do pensamento entre dois extremos errados ambos.

Na filosofia escolástica, efetivamente, afirma-se que há em todas as substâncias corpóreas dois princípios substanciais, a matéria (matéria-prima) e a forma, o indeterminado e o determinante, o ser em potência e a forma atualizadora. Matéria, aquilo de que são feitos os seres materiais, levando ao mais puro estado esta noção “aquilo de que são feitos”, mas tomando-a como um princípio de ser corpóreo, como uma potência, um quase não ser como diziam Platão e Plotino, essa existe. Voltemos agora ao nosso triângulo. A concorda com B quanto à existência do substratum material, mas discorda vivamente da atualização da extensão substancializada; com “C” a concordância de “A” é mais sutil, mas a discordância mais nítida. Entre si, “B” e “C” concordam e discordam; ou talvez fosse melhor dizer ao contrário, porque o que aparece ao primeiro exame é a discordância. Berkeley diverge dos mecanicistas, dos pais do materialismo moderno, por não ver nenhuma necessidade de distinguir as qualidades sensíveis que Locke chamava de primárias das outras chamadas secundárias. Dava a todas o mesmo tratamento; e como o tratamento das chamadas qualidades primárias era o que condizia bem com a doutrina vigente, ou melhor, com os princípios nominalistas inconscientemente possuídos, que cortam a linha de comunicação entre a inteligência e o ser e que se firmam nesse pessimismo de um divórcio irreconciliável entre o cognoscente e o conhecido, Berkeley se viu compelido a negar a objetividade do substratum material. Uma intuição fina lhe dizia que o modelo da extensão substancializada e atualizada era grosseiro demais; não possuindo porém os instrumentos mentais da tradição escolástica, confinada nos seminários e aí mesmo maltratada, o bravo inglês não teve outro remédio senão negar a objetividade do que em nossa mente é movimento, extensão, etc., sem todavia negar a existência do mundo exterior, notem bem. O que Berkeley negava, como todo bom descendente de Ockam, era a semelhança e a união de conhecimento entre os dois mundos, o da mente e o das coisas.

Tracemos no quadro negro imaginário um triângulo simétrico àquele, com a mesma base BC mas com um vértice voltado para baixo, ao qual damos a letra “N”. Assim como o vértice superior simboliza a síntese do que há de verdadeiro em cada um dos outros, o vértice inferior simbolizará a soma eclética, a soma-ajuntamento dos erros de ambos, e sobretudo simbolizará as raízes inconscientes que unem no mesmo fundamental nominalismo as duas filosofias que brotam na história do pensamento com cores complementares. Berkeley, com seu impertinente imaterialismo, é irmão gêmeo de Descartes, de Hobbes, de Locke, e seus antepassados se chamam Demócrito, Lucrécio e Epicuro, e seus descendentes são os materialistas dos séculos dezoito e dezenove.

Em filosofia, convém notar, importa mais o critério usado na argumentação do que a conclusão atingida. Usando uma expressão derivada por analogia da teoria da matéria e forma, dizemos que importa mais o objeto formal do que o material na valorização de uma tese. Nesse sentido, falando com precisão filosófica, e sem nenhuma antipatia pelo inglês George Berkeley, podemos dizer que seu imaterialismo é muito mais materialista do que o hilemorfismo Aristotélico.

 

(Diário de Notícias, 31 de janeiro de 1960)

 

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