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A fecundidade dos santos e a esterilidade de nossas obras

Se há uma coisa que impressione na vida de certos santos, mormente daqueles que no seu tempo foram obscuros, ou cujas obras pareciam pequenas e limitadas, é a sua extraordinária fecundidade.

 

Santa Teresinha do Menino Jesus viveu uma curtíssima vida enclausurada. Fora dos muros do Carmelo não se sabia que ela existia. Dentro dos próprios muros, tão pouco assinalada era sua presença que uma das irmãs, no dia de sua morte, conversava com as outras dizendo: “A madre vai ficar bastante embaraçada para dizer alguma coisa sobre a irmã Teresinha...”.

 

São Bento também foi um grande obscuro. Quem no seu tempo visitasse sua casa monástica, e visse na sala do capítulo os manuscritos da Regula Monacorum, nunca imaginaria o enorme papel que estava reservado para aquele obra, tanto na vida espiritual como no plano da civilização. Ninguém por certo diria que daquela casa sairiam monges a conquistar para o estandarte de Cristo as terras dos anglos e dos germânicos. Ninguém diria que num país remoto, ignorado, insuspeitado, perdido lá do outro lado dos mares, em selva densa, em clima inóspito, iriam as pedras crescer, em paredes, em colunas, em arcos para responderem, com a fidelidade própria das pedras, às salmodias dos monges, filhos do mesmo patriarca, discípulos do mesmo mestre.

 

Esses santos, aliás, não fazem outra coisa senão imitar a obra do Santo que em três anos, vivendo entre gente ínfima, num esquecido recanto do mundo submetido a Roma, plantou na terra a semente da mostarda que em vão quiseram os poderosos espezinhar.

 

E qual é o segredo dessa misteriosa fecundidade? Qual é a força dessas obras que brotam tão humildes e tão pujantemente se ramificam?

 

Transportemos nossas cogitações para um outro plano onde uma outra espécie de fecundidade, de mais fácil apreciação, se manifesta aos nossos olhos. Pensemos nos homens, que perscrutaram o segredo das coisas. Muitos há que não saíram da obscuridade. Mas outros, como um Newton e um Pasteur, deixaram um imenso testamento.

 

Qual foi a força especial desses homens cuja obra transborda os séculos? Por que motivo a descoberta deles prolonga, se estende, se desdobra, mais do que as descoberta dos outros?

 

A resposta é extremamente simples: esses homens tocaram mais profundamente a verdade das coisas. E é nessa verdade maior, mais larga, mais alta, mais profunda, é na força dessa verdade tocada, sentida, transmitida, é no ímpeto desse acerto, dessa concordância entre a inteligência e as coisas, na explosão desse encontro, desse enlace, dessa conjugação que reside o segredo da fecundidade.

 

O que vale para esse domínio restrito, para esse torneio entre o homem e o mundo da matéria, vale muito mais para o domínio maior da vida do espírito. Com uma diferença, entretanto. Aqui, nesta nova ordem, não basta o olhar frio do cientista que domina o segredo da matéria. Aqui não é só na pureza do olhar que mora a verdade. É também, e sobretudo, na pureza do coração.

 

Este é o segredo dos santos. Esta é a receita da fecundidade de suas obras: a verdade e a pureza de coração.

 

Já que estamos falando da fecundidade dos santos, será bom considerarmos agora a esterilidade de nossas obras e empreendimentos. O fato é positivo. O resultado é irrecusável. Todos os movimentos, grupos e associações em que nos empenhamos ficam raquíticos e impotentes diante da onda que dia a dia vemos crescer. Alguns abortam, outros prolongam-se numa subvida sem difusão mais sustentada pelo hábito rotineiro de ir em certos lugares em tais dias da semana do que alimentada por uma corajosa perseverança.

 

De onde nos vem essas insuficiências? Podemos dizer sem ferir a modéstia que nossas intenções são boas, e temos a certeza, vinda de autoridade maior, que a orientação, de um modo geral, está de acordo com a realidade das coisas e com a grande expectativa de nosso tempo.

 

De onde vem pois os obstáculos? Disse que nossas intenções são retas. Realmente, nenhum de nós rouba, nenhum de nós assassina, nenhum de nós ludibria, bajula, engana, trapaceia como tantos com tamanho desembaraço o fazem. E daí? Poderemos nós dizer, como o fariseu, que não somos iguais aos outros? E se o dissermos, como explicaríamos então o péssimo rendimento de nossas obras, sem desmentir os evangelhos no ponto em que diz que a boa árvore se conhece pelo frutos?

 

A explicação não é muito difícil de compreender embora continue difícil de aproveitar. Nós temos, de fato, uma certa retidão, um certo desinteresse que nos autoriza dizer que os nossos grupos são realmente melhores do que as quadrilhas que parecem se preparar para tomar conta do Brasil. Mas essa purificação é ainda exterior, tão exterior que muito nos arriscamos se dele tirarmos um grande contentamento.

 

Não sei se o meu leitor faz idéia do que seja o rendimento de um maquinismo. Feito para produzir um determinado serviço, o seu rendimento se mede pela proporção entre o serviço prestado e as dissipações internas de energia. O mau maquinismo põe para fora pouca coisa, gastando-se todo em atritos internos, em choques, em solavancos inúteis que degeneram em calor.

 

Ora, os nossos grupos embora montados segundo as boas regras dessa peculiar mecânica funcionam assim também, com grandes atritos e às vezes com choques inúteis.

 

Desculpem-me a imagem mecanicista. Bem sei que há um abismo entre os nossos desatinos e os rangidos de um mecanismo enferrujado. Mas a semelhança existe. Existe essa dissipação interna, esse desperdício de generosidade em atritos, em choques, em cachações, como dizia Machado.

 

E de onde vêm esses atritos?

 

Vêm da falta de uma purificação mais profunda e mais penetrante. Não adianta muito não roubarmos, não matarmos, se não levamos até às raízes escondidas de nosso “eu” essa purificação. Em palavras mais singelas: o amor-próprio, a vaidade, o orgulho secreto são a morte do grupo mais bem orientado, são as causas dos atritos, as explicações da esterilidade.

 

Este é o ponto de fundamental importância, e é neste sentido que nós devemos aplicar nossos esforços em correspondência aos dons de Deus. E aí, nesse último reduto, na fortaleza do eu, no vértice, na fina ponta da alma que se trava a batalha decisiva do homem. E aí, no segredo do coração, que devemos renunciar, não somente à vanglória dos cargos e ao conforto das riquezas, mas também, e sobretudo, a essa vontade própria que a cada instante conspira para nos isolar, de Deus e dos homens, e para nos aprisionar num “eu” de pedra.

 

Nossas obras são estéreis por isso. Por causa dessa convexidade que faz refluir e gastar-se por dentro, o calor com que deveríamos abrasar o mundo.

 

 

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