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O espantalho

Todas as grandes almas semeadas por Deus nestes vinte séculos de cristianismo e que a Igreja nos oferece como exemplos do Exemplo perfeito deixaram-nos, por atos e palavras, a mesma doutrina de santificação pregada por Jesus. A doutrina do Sangue. A doutrina da Cruz.

Quase todos os dias corremos ao encontro marcado com Jesus. A Santa Missa como sabemos é o mesmo e único sacrifício em que Cristo Sacerdote oferece ao Pai o Cristo Vítima para a salvação daqueles que, pela graça, querem Deus acima de tudo. Mas neste mesmo e único sacrifício, agora multiplicado sob as espécies, se esconde a paixão cruenta de Nosso Senhor. A pupila da Fé pode fartar-se da Presença Real do mesmo e único Cristo Jesus, mas à pupila da carne é poupada a violência da paixão. E por isto, lembrando a definição de poesia deixada por Wordsworth, ousaremos dizer que: «Mass is Passion recollected in tranquillity».

Nossa memória e nossa imaginação facilmente nos mostram o abismo que separa estas duas aparências sensíveis: de um lado uma missa bem rezada em manhã clara e quieta para os fiéis que no recolhimento de alma contemplam o mistério; do outro o sombrio Calvário onde agoniza, no arremate da obra de nossa salvação, o Homem das Dores, Deus admiravelmente encarnado, Deus espantosamente crucificado. Mas aqui e ali o mesmo gesto, a mesma obra, a mesma presença de Deus.

Na liturgia da Semana Santa a Igreja não traz nenhum dado novo ao compasso dos passos de Jesus, mas pode-se dizer que traz um apaixonado empenho de desvendar um pouco a Paixão que o dia a dia da vida religiosa manteve escondida na tranqüilidade. Tranqüilidade excessiva, por nós mesmos adensada, para fugirmos, pela rotina ou pelo cumprimento dos deveres mais fáceis, aos desmedidos chamados de Deus e à lembrança dos compromissos que trazemos marcados na anca da alma pelo sinal da Cruz.

Além disso é nos dias da Paixão que a Igreja realça as lições mais fortes e necessárias do ensinamento de Jesus especialmente concentrados no Evangelho de São João. Vivamos nestes santos dias, mais intensamente do que nunca, as palavras de Jesus que, com  maior energia, se opõem à tenaz impiedade com que o mundo repele Jesus.

«Se o mundo vos odeia sabei que me odiou antes a mim do que a vós. Se fosseis do mundo, o mundo haveria de amar o que lhe pertence. Mas claro que não sois do mundo, e eu vos apartei do mundo, por isso é que o mundo vos odeia» (Jo XV, 18, 19).

Estas palavras fortes que os fracos modernistas lerão – se ainda as lêem! – com arrepio e pavor, são a principal advertência deixada por Jesus. O que o “mundo” procurará insistentemente, por instigação de Satã e pela moleza dos homens carnais, é rejeitar a dimensão divina da obra de Jesus. Em resumo, recusa Deus e firma-se na idéia de um humanismo tolerante, flexível, “humano, muito humano” para rejeitar o cristianismo. Toda essa tragédia começada no Paraíso perdido, e prolongada na História que é um volumoso catálogo de perdas, poderia ser posta nos termos em que Chesterton a pôs no seu genial “The ball and the Cross”.

Toda a história depois de Cristo transcorre, efetivamente, entre duas correntes que se entrechocam numa guerra sem tréguas: a corrente que transporta, difunde, espalha, e pelo mundo inteiro semeia o sinal da Cruz; e a outra corrente que desde os primeiros dias revela o obstinado objetivo de matar Jesus, e depois, o de arrancá-lo dos corações fiéis, e depois, ao longo dos séculos, e principalmente nos tempos modernos, se manifesta pela aversão à cruz. Nos momentos de inimaginável crueldade da perseguição desencadeada pelos socialistas na Espanha, os crucifixos arrancados dos altares e das paredes foram usados como instrumentos de tortura, de violação e de morte: vários sacerdotes foram assassinados por empalação com crucifixos, e freiras que tinham feito voto de virgindade foram violadas com este impensável requinte.

Não se escandalize, leitor, se eu lhe disser que essa profanação brutal, bestial, carnal, me parece menos diabólica do que a burocrática e glacial perseguição de um Combes que na França manda arrancar as cruzes das paredes dos colégios e das enfermarias.  Mais tarde, creio que em 31 ou 33, o desastrado Azana decreta na Espanha o fim do cristianismo e manda arrancar as cruzes dos colégios e das enfermarias.

Agrava-se a perversidade dos inimigos da cruz quando, nos últimos tempos, nos próprios meios católicos surge uma corrente humanista que começa por lançar à execração e ao ridículo a história e até o simples nome das cruzadas. Ora, toda a história do cristianismo é uma longa cruzada, ou não é cristã. Foi esse um dos pretextos alegados pelos intelectuais católicos franceses para tomarem posição contra Franco na guerra civil Espanhola. Na verdade, os defensores de um Humanismo Integral e anunciadores de uma nova cristandade, como todos os não-violentos e pacifistas de hoje, na verdade difundem a mais repugnante das doutrinas: aquela pela qual não há valor humano ou religioso que valha o sangue, a luta e a guerra.

Chegamos ao mais sombrio ponto da história moderna no momento em que, intra muros Ecclesiae, os deformadores, alegando “motivos pastorais” e “acomodações com a mentalidade contemporânea”, começaram a apagar as cruzes traçadas na trama da Sagrada Liturgia, e principalmente na estrutura da Santa Missa. A nova cerimônia «acomodada à mentalidade contemporânea», «mentalidade cada vez menos cristã e cada vez mais burra», como disse magistralmente Djacir Menezes na Conferência Nacional do Comércio, foi feita com o evidente propósito de aproximar o cristianismo da corrente revolucionária dos arrancadores de cruz. Senão vejamos: na Missa de Pio V, Pio X, Pio XI e Pio XII, o celebrante traçava 28 vezes o sinal da cruz; o novo missal assinala 2 vezes. No rito do Batismo eram 19 as cruzes a agora são 2.

Agora, atravessando o “Vaticano II” para chegarmos a Pio XII, e logo a Pio XI e São Pio X – que alegraram nossa juventude, e finalmente a São Pio V e ao Concílio de Trento, encontramos as fontes da água pura que nos deram os inesquecíveis catecismos onde aprendemos os primeiros passos da vida em Cristo.

- És cristão? - Sim, sou cristão pela graça de Deus. - Qual é o sinal do cristão? - O sinal do cristão é o sinal da santa Cruz.

 

Não virá de Deus, nesta semana santa, a inspiração de uma cruzada para a restauração das cruzes arrancadas, das cruzes apagadas, das cruzes esquecidas?

– O crux ave spes única!

O GLOBO Sábado, 17/4/76




 

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