Santo Tomás de Aquino (3981)
O quarto discute-se assim. — Parece que a Paixão de Cristo não obrou a nossa salvação a modo de redenção.
1. — Pois, ninguém compra ou redime o que nunca deixou de lhe pertencer. Ora, os homens nunca deixaram de ser de Deus, conforme aquilo da Escritura: Do Senhor é a terra e tudo o que a enche, a redondeza da terra e todos os seus habitantes. Logo, parece que Cristo não nos remiu com a sua Paixão.
2. Demais. — Como diz Agostinho, Cristo devia vencer o demônio pela justiça. Ora, a justiça exige, que quem se apoderou dolosamente da coisa alheia deve ser privado dela, porque a ninguém deve aproveitar a fraude e o dolo, como também o exigem as leis humanas. Logo, tendo o diabo enganado e a si subjugado dolosamente o homem, criatura de Deus, parece que não devia o homem ser-lhe arrebatado ao pode por meio da redenção.
3. Demais. — Quem compra ou redime uma coisa paga o preço a quem antes a possuía. Ora, Cristo não pagou o seu sangue, considerado preço da nossa redenção, ao diabo, que nos retinha captívos. Logo, Cristo não nos remiu com a Paixão.
Mas, em contrário, a Escritura: Não por ouro nem por prata, que são coisas corruptíveis, haveis sido resgatados da vossa vã conversação que recebestes de vossos pais; mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem contaminação alguma. Noutro lugar: Cristo nos remiu da maldição da lei, feito ele mesmo maldição por nós. E dito do Apóstolo — feito maldição por nós — significa que sofreu por nós no madeiro, como antes se disse. Logo, pela sua Paixão nos remiu.
SOLUÇÃO. — Pelo pecado o homem estava escravizado, de dois modos. — Primeiro pela servidão do pecado; pois, todo o que comete pecado é escravo do pecado; e todo o que é vencido é escravo daquele que venceu - como se lê na Escritura. Ora, como o diabo venceu ao homem, induzindo-o ao pecado, o homem foi feito escravo do diabo. — Segundo, quanto ao reato da pena pelo qual o homem estava ligado, segundo a justiça de Deus. E esta também é uma escravidão; pois, é próprio do escravo sofrer o que não quer, ao contrário do homem livre, que pode dispor de si mesmo como quer. Por onde, sendo a Paixão de Cristo uma satisfação suficiente e superabundante pelo pecado e pelo reato do gênero humano, a sua Paixão foi um como preço, pelo qual fomos livrados de uma e outra escravidão. Assim, a satisfação pela qual satisfazemos por nós ou por outrem é considerada um preço pelo qual nos remimos do pecado e da pena, segundo a Escritura: Redime os teus pecados com a esmola. Ora, Cristo satisfez não certo dando dinheiro nem por qualquer forma semelhante, mas dando-se a ele próprio - bem máximo - por nós. Por isso é que se diz ser a Paixão de Cristo a nossa redenção.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — De dois modos dizemos que o homem pertence a Deus. Primeiro, por lhe estar sujeito ao poder. E, neste sentido, o homem nunca deixa de pertencer a Deus, segundo aquilo da Escritura: o Excelso tem debaixo da sua dominação os reinos dos homens e os dá a quem lhe aprazo Noutro sentido, pela união da caridade com ele, segundo o dito do Apóstolo: Se algum não tem o Espírito de Cristo, este tal não é dele. — Ora, do primeiro modo o homem nunca deixou de ser de Deus. Mas, do segundo, o deixa, pelo pecado. Por onde, quando liberado do pecado, pela Paixão satisfaciente de Cristo, dizemos que o homem foi remido pela Paixão de Cristo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O homem, pecando, contraiu uma obrigação tanto para com Deus como para o diabo. Pois, pela culpa, ofendeu a Deus e, sujeitou-se ao diabo, pelo seu consentimento. E assim, em razão da culpa, não se tornou servo de Deus; mas antes, afastando-se doseu serviço, incorreu na servidão do diabo, por justa permissão de Deus, por causa da ofensa contra ele cometida. Mas, quanto à pena, o homem contraiu principalmente uma obrigação para com Deus, como supremo juiz; e para com o diabo, como seu algoz, segundo aquilo do Evangelho: Para que não suceda que o teu adversário te entregue ao juiz e que o juiz te entregue ao seu ministro, isto é, ao anjo cruel da pena, como interpreta Crisóstomo. Embora, pois, o diabo retivesse, injustamente e na medida do seu poder, sob o seu jugo o homem, enganado pela sua fraude, tanto quanto à culpa como quanto à pena, contudo, era justo que isso o homem o sofresse, por permissão de Deus, quanto à culpa, e pela ordem do mesmo Deus, quanto à pena. Por onde, relativamente a Deus, a justiça exigia fosse o homem redimido; não, porém relativamente ao diabo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como a redenção era necessária para a liberação do homem, relativamente a Deus, mas não relativamente ao diabo, o preço não devia ser pago ao diabo, mas a Deus. Por isso, não se diz que Cristo tivesse oferecido ao diabo, mas a Deus o seu sangue, que é o preço da nossa redenção.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a Paixão de Cristo não se realizou a modo de sacrifício.
1. — Pois, a realidade deve corresponder à figura. Ora, nos sacrifícios da lei antiga, que eram a figura de Cristo, nunca era oferecida a carne humana; ao contrário, esses sacrifícios eram considerados como nefandos, segundo se lê na Escritura: Derramavam o sangue inocente, o sangue de seus filhos e de suas filhas, que haviam sacrificado aos ídolos de Canaam. Logo, parece que a Paixão de Cristo não pode ser chamada sacrifício.
2. Demais. — Agostinho diz que o sacrifício visível é o sacramento, isto é, sacro sinal do sacrifício invisível. Ora, a Paixão de Cristo não é um sinal, mas antes, foi significada por outros sinais. Logo, parece que a Paixão de Cristo não foi um sacrifício.
3. Demais. — Quem quer que ofereça um sacrifício faz algo de sagrado, como o demonstra a palavra mesma de sacrifício. Ora, os que mataram a Cristo nada fizeram de sagrado; ao contrário, perpetraram uma grande malícia. Logo a Paixão de Cristo foi antes um malefício que um sacrifício.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Entregou-se a si mesmo por nós outros, como oferenda e hóstia a Deus em odor de suavidade.
SOLUÇÃO. — Chama-se sacrifício em sentido próprio o que é feito como uma honra propriamente devida a Deus, com o fim de o aplacar. E por isso diz Agostinho: É verdadeiramente sacrifício toda obra feita com o fim de nos unirmos com Deus numa sociedade santa; isto é, uma obra referida ao fim bom, cuja posse é capaz de nos dar verdadeiramente a felicidade. Ora, Cristo, como no mesmo lugar se acrescenta, se ofereceu a si mesmo a sofrer por nós; e o próprio fato de ter padecido voluntàriamente a sua Paixão foi sobremaneira aceito de Deus, como proveniente de uma caridade máxima. Por onde é manifesto, que a Paixão de Cristo foi um verdadeiro sacrifício. E como Agostinho acrescenta a seguir, no mesmo livro, os sacrifícios primitivos dos santos foram sinais variados e múltiplos desse verdadeiro sacrifício, esse sacrifício único foi simbolizado por numerosos sacrifícios, do mesmo modo que uma mesma realidade é designada por numerosas palavras, a fim de que fosse grandemente recomendado, sem nenhum inútil encarecimento. Mas, continua Agostinho, consideramos quatro elementos num sacrifício: aquele a quem o oferecemos, quem o oferece, o que é oferecido e por quem o é. Assim, o mesmo, só único e verdadeiro mediador, reconciliando-nos com Deus pelo sacrifício da paz, devia permanecer uno com aquele a quem oferecia esse sacrifício, reunir em si, numa unidade, aqueles por quem o oferecia, e ser simultânea e identicamente o oferente e a oferenda.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a realidade corresponda à figura, de certo modo, não corresponde totalmente, pois, a verdade há de necessàriamente ultrapassar a figura. Por isso e convenientemente a figura deste sacrifício pelo qual a carne de Cristo é oferecida por nós, foi a carne, não dos homens, mas de animais irracionais que significavam a carne de Cristo. A carne de Cristo é o perfeitíssimo dos sacrifícios pelas razões seguintes. Primeiro porque, sendo carne de natureza humana, é convenientemente oferecida pelos homens, que a tomam sob a forma de sacramento. Segundo, porque, sendo passível e mortal, era apta para a imolação. Terceiro, porque, sendo isenta de pecado, tinha a eficiência para purificar dos pecados. Quarto, porque, sendo a carne mesma do oferente, era aceita de Deus por causa da caridade com que a oferecia. Donde o dizer Agostinho: Que oferenda podiam os homens tomar, que lhes fosse mais adaptada, que uma carne humana? Que de mais apto à imolação do que uma carne mortal? Que haveria de mais puro para delir os vícios dos mortais que uma carne nascida sem o contágio da concupiscência carnal, de um ventre e de um ventre virginal? Que poderia ser oferecido e aceito com mais graça que a carne de nosso sacrifício, tornado o corpo de nosso Sacerdote?
RESPOSTA À SEGUNDA. — Agostinho, no lugar aduzido, refere-se aos sacrifícios visíveis figurados. E, contudo a Paixão mesma de Cristo, embora fosse significada por outros sacrifícios figurados, é contudo o sinal de uma realidade que nós devemos guardar, segundo aquilo da Escritura: Havendo pois Cristo padecido na carne, armai-vos também vós outros desta mesma consideração: que aquele que padeceu na carne cessou de pecados; de sorte que o tempo que lhe resta da vida mortal, ele não vive mais segundo as paixões do homem, mas segundo a vontade de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A Paixão de Cristo, relativamente aos que o mataram, foi um malefício; foi porém um sacrifício por parte dele mesmo, que sofreu levado da caridade. Por isso se diz, que quem ofereceu esse sacrifício foi o próprio Cristo e não os que o mataram.
O segundo discute-se assim. — Parece que a Paixão de Cristo não causou a nossa salvação a modo de satisfação.
1. — Quem pecou é que deve dar satisfação, como demonstram as outras partes da penitência; assim, quem pecou deve arrepender-se e confessar o pecado. Ora, Cristo não pecou segundo o diz a Escritura: O qual não cometeu pecado. Logo, não satisfez pela sua Paixão própria.
2. Demais. — Não satisfazemos a ninguém por meio de uma ofensa maior. Ora, a ofensa máxima foi a perpetrada na Paixão de Cristo; pois, pecaram gravissimamente os que o mataram como dissemos. Logo, parece que pela Paixão de Cristo não podia Deus ser satisfeito.
3. Demais. — A satisfação implica uma certa igualdade com a culpa, por ser um ato de justiça. Ora, parece que a Paixão de Cristo não foi igual a todos os pecados do gênero humano, porque Cristo não sofreu nas divindades, mas na sua carne, segundo aquilo da Escritura: Havendo, pois, Cristo padecido na carne. Ora, a alma que é a contaminada pelo pecado, é superior à carne. Logo, pela sua Paixão Cristo não satisfez pelos nossos pecados.
Mas, em contrário, da sua pessoa diz a Escritura: Paguei então o que não tinha roubado. Ora, não pagou o que perfeitamente não satisfez. Logo, pela sua Paixão Cristo satisfez perfeitamente pelos nossos pecados.
SOLUÇÃO. — Propriamente satisfaz pela ofensa, quem oferece o que ama tanto ou mais oque odeia a ofensa. Ora, Cristo, sofrendo por obediência e caridade, ofereceu a Deus um bem maior do que o exigido pela recompensa da ofensa total do gênero humano. Assim, primeiro, pela grandeza da caridade, com a qual sofria. Segundo, pela dignidade de sua vida, que oferecia em satisfação, que era a vida de Deus e do homem. Terceiro, por causa da generalidade da Paixão e da grandeza da dor assumida, como dissemos. Por onde, a Paixão de Cristo não foi só uma satisfação suficiente, mas também superabundante pelos pecados do gênero humano, segundo aquilo do Evangelho (1Jo 2,2): Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A cabeça e os membros constituem uma como pessoa mística. Por isso a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis, como aos seus membros. Assim, também quando dois homens estão unidos pela caridade, um pode satisfazer por outro, como a seguir se dirá. Mas o mesmo não se dá com a confissão e o arrependimento; porque a satisfação consiste num ato exterior, para o qual se podem empregar instrumentos, entre os quais se contam também os amigos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Maior foi à caridade de Cristo na sua Paixão do que a malícia dos que o crucificaram. Por isto Cristo pôde satisfazer mais pela sua Paixão, do que ofendê-lo os que o crucificaram e o mataram. Porquanto a Paixão de Cristo foi suficiente e superabundante para satisfazer pelos pecados dos que o mataram.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A dignidade da carne de Cristo não deve ser a validade só pela natureza da carne, mas pela pessoa assumente; isto é, enquanto carne de Deus, donde lhe derivava a dignidade infinita.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a Paixão de Cristo não causou a nossa salvação a modo de mérito.
1. — Pois, os princípios das paixões não estão em nós. Ora, ninguém merece nem é louvado senão em virtude de um princípio em si existente. Logo, a Paixão de Cristo nada operou em nós a modo de mérito.
2. Demais. — Cristo desde o princípio da sua concepção mereceu tanto para si como para nós, segundo se disse. Ora, é supérfluo merecer alguém de novo o que já antes merecera. Logo, Cristo pela sua Paixão não mereceu a nossa salvação.
3. Demais. — A raiz do mérito é a caridade. Ora, a caridade de Cristo não aumentou mais na Paixão, que antes. Logo, não mereceu a nossa salvação mais, sofrendo, que antes.
Mas, em contrário, àquilo do Apóstolo — Pelo que Deus o exaltou - diz Agostinho: A humildade da paixão é o mérito da glória; a glória é o prêmio da humildade. Ora, Cristo foi o glorificado, não só em si mesmo, mas também nos seus fiéis, como ele próprio o disse. Logo, parece que Cristo mereceu a salvação dos seus fiéis.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, a Cristo foi dada à graça, não só como a uma pessoa singular, mas enquanto cabeça da Igreja, de modo que dele redundasse para os membros dela. Por isso as obras de Cristo estão para o mesmo e para as suas obras, assim como estão às obras de um homem constituído em graça para com ele próprio. Ora, é manifesto que quem, constituído em graça, sofre pela justiça, por isso mesmo merece para si a salvação, segundo aquilo do Apóstolo: Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor da justiça. Por onde, Cristo, pela sua paixão, merecem a salvação não somente para si mas também para todos os seus membros.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Apaixão, como tal, procede de um princípio exterior. Mas, enquanto sofrida por um paciente voluntariamente, procede de um princípio interno.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo, desde o princípio da sua concepção, mereceu-nos a salvação eterna. Mas, de nosso lado, certos impedimentos constituíam um obstáculo a conseguirmos o efeito dos méritos precedentes. Por isso, a fim de remover esses impedimentos é que Cristo teve de sofrer, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A Paixão de Cristo teve certo efeito que não tiveram os méritos precedentes; não por causa de uma caridade maior, mas pelo gênero da obra, que era concordante com esse efeito, como ficou claro pelas razões supra - aduzidas referentes à conveniência da Paixão de Cristo.
O sexto discute-se assim — Parece que o pecado dos que crucificaram a Cristo não foi o gravíssimo dos pecados.
1. — Pois, não é o gravíssimo dos pecados o que tem perdão. Ora, o próprio Senhor perdoou o pecado dos que os crucificaram, quando disse: Pai perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. Logo, o pecado deles não foi o gravíssimo.
2. Demais. — O Senhor disse a Pilatos: O que me entregou a ti tem maior pecado. Ora, foi Pilatos mesmo que entregou Cristo para ser crucificados pelos seus ministros. Logo, parece ter sido maior pecado o de Judas traidor, que o dos crucificadores de Cristo.
3. Demais. — Segundo o Filósofo, ninguém sofre injustiça voluntàriamente; e como ainda diz no mesmo lugar, se ninguém sofre injustiça, ninguém a comete. Logo, ninguém comete injustiça contra quem a sofre voluntàriamente. Ora, Cristo sofreu voluntàriamente, como se estabeleceu. Logo, os que o crucificaram nenhuma injustiça cometeram contra ele. E assim o pecado deles não foi o gravíssimo.
Mas, em contrário, aquilo do Evangelho — Acabai vós, pois, de encher a medida de vossos pais - diz Crisóstomo: Na verdade, excederam a medida dos pais. Pois, aqueles mataram homens, ao passo que estes crucificaram a Deus.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, os magistrados dos judeus conheceram a Cristo; se em alguma ignorância incorreram, essa foi à afetada, que não podaria escusá-las. Por isso foi gravíssimo o pecado deles, quer genericamente considerado, quer pela malícia da vontade. — Quanto aos Judeus do povo, esses pecaram gravissimamente quanto ao gênero do pecado; mas a ignorância em que faziam de certo modo diminuía-lhes o pecado. Por isso, aquilo do Evangelho — Não sabem o que fazem — diz Beda: Roga por aqueles que não sabiam o que faziam, tendo, é verdade, zelo pelas causas de Deus, mas não fundado em ciência. — Muito mais escusável, porém foi o pecado dos gentios, pelas mãos de quem Cristo foi crucificado, pois não tinham a ciência da lei.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essa excusa do Senhor não se refere aos príncipes dos judeus, mas à gente do povo, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Judas entregou a Cristo, não a Pilatos, mas ao príncipe dos sacerdotes, que o entregaram a Pilatos, segundo o Evangelho: A tua nação e os pontífices são os que te entregaram nas minhas mãos. O pecado de todos esses, porém foi maior que o de Pilatos, que por temor de César matou a Cristo; e também que o pecado dos soldados, que obedecendo ao mandado do governador, o crucificaram, não por avareza, como Judas, nem por inveja e ódio, como os príncipes dos sacerdotes.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo quis por certo a sua Paixão, como também a quis Deus; mas não quis a ação iníqua dos judeus. Por isso, os imoladores de Cristo não ficam escusados da injustiça. E, contudo, quem assassina um homem comete uma injustiça, não só contra ele, mas também contra Deus e a república, como o ensina o Filósofo. Por isso Davi condenou à morte aquele que não temeu estender a mão para matar ao ungido do Senhor, não obstante as suas suplicas, conforme lemos na Escritura.
O quinto discute-se assim. — Parece que os perseguidores de Cristo o conheciam.
1. — Pois, como diz o Evangelho, os lavradores, vendo o filho, disseram entre si - este é o herdeiro; vinde, matemo-lo, o que comenta Jerônimo: Manifestissimamente o Senhor prova, com essas palavras, que os príncipes dos judeus crucificaram o Filho de Deus não por ignorância, mas por inveja; pois entendiam ser ele a quem o Pai disse, por meio do Profeta — Pede-me e eu te darei as nações em tua herança. Logo, parece que sabiam ser Cristo o Filho de Deus.
2. Demais. — No Evangelho o Senhor diz: Agora eles não somente viram, mas ainda me aborreceram tanto a mim como a meu Pai. Ora, o que é visto é manifestamente conhecido. Logo, os judeus conhecendo a Cristo, infligiram-lhe a Paixão levados do ódio.
3. Demais. — Um sermão do Concilio Efesino diz: Quem rasga uma carta imperial é conduzido à morte, por ter como infringido uma ordem do imperador. Assim também o judeu, tendo crucificado aquele a quem via, será punido como se tivesse feito injúria ao Verbo mesmo de Deus. Ora, tal não se daria se não conhecesse que Cristo era o Filho de Deus, ignorância que os escusaria. Logo, parece que os judeus, crucificando a Cristo, sabiam ser ele o Filho de Deus.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Se elesa conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. E Pedro diz, dirigindo-se aos Judeus: Sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos magistrados. E o Senhor, pendente da cruz, exclamou: Pai perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem.
SOLUÇÃO. — Dentre os Judeus, uns eram os grandes e outros, a plebe. — Os grandes chamados príncipes deles, sabiam como também os demônios, que Jesus era o Cristo prometido na lei; pois, viam realizarem-se nele todos os sinais preditos pelos profetas. Mas lhe ignoravam o mistério da divindade; por isso o Apóstolo diz, que se a conhecessem nunca crucificariam ao Senhor da glória. Devemos, porém saber que a ignorância deles não os excusava do crime; pois era de certo modo uma ignorância afetada. Porquanto viam sinais evidentes da sua divindade; mas por ódio e inveja de Cristo, pervertiam-lhes o sentido e não queriam acreditar nas palavras com que se confessava Filho de Deus. Por isso deles disse Cristo: Se eu não viera e não lhes tivera falado, não teriam eles pecado; mas agora não têm desculpa do seu pecado. E assim podemos considerar como referentes à pessoa deles as palavras da Escritura: Disseram a Deus — Retira-te de nós, pois nós não queremos conhecer os teus caminhos. — Quanto à plebe, isto é, a gente do povo, não conhecedores dos mistérios da Escritura, não sabiam plenamente que ele fosse nem Cristo nem Filho de Deus. Assim, embora certos cressem em Cristo, contudo nele não cria a multidão. E se por vezes duvidavam se era Cristo, por causa dos inúmeros milagres e da eficácia da sua doutrina, como se lê no Evangelho, contudo, foram depois iludidos pelos seus chefes de modo a não acreditarem que fosse o Filho de Deus nem Cristo. Donde o dizer Pedro: Sei que o fiz estes por ignorância, como também os vossos magistrados, isto é, porque foram enganados pelos magistrados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras citadas se referem àpessoa dos lavradores da vinha, os quais são os símbolos dos chefes do povo judaico, que sabiam ser ele o herdeiro, porque sabiam que era o Cristo prometido na lei. - Mas, contra essa resposta parece irem às palavras do salmo — Pede-me e eu te darei as nações em tua herança, dirigidas ao mesmo a quem o foram àquelas outras — Tu és meu filho, eu te gerei hoje. Se, pois, sabiam que Cristo era aquele a quem foi dito — Pede-me e eu te darei as nações emtua herança, segue-se que sabiam ser o Filho de Deus. — E Crisóstomo também diz, no mesmo lugar, que sabiam ser ele o Filho de Deus. — Beda, por sua vez, comentando aquilo do Evangelho — não sabem o que fazem, diz: Devemos notar que não ora por aqueles que, sabendo ser Cristo o Filho de Deus, preferiram antes crucificá-lo que o confessar. — Mas a isto pode-se responder, que o conheceram como Filho de Deus, não por natureza, mas pela excelência de uma graça singular. — Podemos contudo dizer que são considerados como conhecedores que Cristo era o verdadeiro Filho de Deus por terem sinais evidentes disso; não quiseram, porém assentir neles, por ódio e inveja, de modo a o reconhecerem como Filho de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Antes das palavras citadas vêem as seguintes: Se eu não tivera feito entre eles tais obras quais não fez outro algum, não haveria da parte deles pecado. E a seguir acrescenta: Mas agora as viram e me aborreceram tanto a mim como a meu Pai. O que mostra ter sido por ódio que não o reconheceram como Filho de Deus, depois de terem presenciado as obras milagrosas de Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A ignorância afetada não escusa da culpa, mas ao contrário, a agrava: pois, mostra que o agente tem um afeto tão veemente pelo pecado que quer incorrer em ignorância a fim de não o evitar. Por isso os Judeus pecaram, tendo crucificado a Cristo, não só como homem, mas também como Deus.
O quarto discute-se assim. — Parece que não foi conveniente que Cristo sofresse da parte dos gentios.
1. — Pois, como pela morte de Cristo os homens deviam ser liberados do pecado, parecia conveniente que pouquíssimos tivessem cometido o pecado da morte de Cristo. Ora, pecaram, entregando-o à morte, os Judeus, das pessoas dos quais diz o Evangelho: Este é o herdeiro; vinde, matemo-la. Logo, parecia conveniente que no pecado da morte de Cristo não se tivessem implicado os gentios.
2. Demais. — A verdade deve corresponder à realidade. Ora, os sacrifícios figurados da lei antiga não os ofereciam os gentios, mas os judeus. Logo, nem a Paixão de Cristo, que foi um verdadeiro sacrifício, devia ter sido infligida por mãos dos gentios.
3. Demais. — Narra o Evangelho que os judeus queriam matar a Cristo, não só porque violava o sábado, mas ainda por dizer que seu Pai era Deus, equiparando-se a este. Ora, isso parece que só contrariava a lei dos judeus: por isso eles próprios diziam: Ele deve morrer segundo a lei, pois se fez Filho de Deus. Parecia, logo, conveniente que Cristo sofresse, não da parte dos gentios, mas do dos judeus; e que era falso o que diziam - A nós não nos é permitido matar ninguém, porque muitos pecados eram pela lei punidos de morte, como está claro na Escritura.
Mas, em contrário, o próprio Senhor disse: Entregá-lo-ão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado.
SOLUÇÃO. — No modo mesmo da paixão de Cristo lhe estava prefigurado o efeito. Assim, o primeiro efeito da morte de Cristo aproveitou aos judeus, muitos dos quais foram batizados na ocasião dessa morte, como se lê na Escritura. Depois, mediante a pregação dos judeus, o efeito da paixão de Cristo o sentiram os gentios. Por onde, foi conveniente que Cristo começasse a sofrer da parte dos judeus e em seguida, entregue por estes, a sua Paixão se consumasse pelas mãos dos gentios.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo, para mostrar a abundância da sua caridade, que o levou a sofrer, pediu do alto da cruz perdão pelos seus perseguidores. Por isso, a fim de os frutos dessa petição chegar aos judeus e aos gentios, quis Cristo sofrer da parte de uns, como de outros.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A Paixão de Cristo foi à oblação de um sacrifício, pois Cristo sofreu a morte movido da caridade, por vontade própria. Mas o sofrimento que lhe infligiram os perseguidores não foi sacrifício, mas pecado gravíssimo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como pondera Agostinho quando os judeus disseram - A nós não nos e permitido matar ninguém — entendiam significar que não lhes era lícito matar ninguém por causa da santidade do dia festivo, que já começavam a celebrar. — Ou isso diziam, como ensina Crisóstomo, porque queriam matar a Jesus, não como transgressor da lei, mas como inimigo público, por se ter feito rei — do que não lhes competia julgar. — Ou porque não lhes era lícito crucificá-la, como desejavam, mas sim lapidar — o que fizeram com Estevam. — Ou, melhor é dizer, que pelos Romanos, a quem estavam sujeitos, era-Ihes denegado o poder de matar.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Deus Padre não entregou Cristo à Paixão.
1. — Pois, é iníquo e cruel entregar um inocente à Paixão e à morte. Ora, como diz a Escritura, Deus é fiel e sem nenhuma iniquidade. Logo, não entregou Cristo inocente à Paixão e à morte.
2. Demais. — Ninguém pode ser entregue à morte por si mesmo e por outrem. Ora, Cristo entregou-se a si mesmo por nós, segundo aquilo da Escritura: Entregou a sua alma àmorte. Logo, parece que não o entregou o Pai.
3. Demais. — Judas foi censurado por ter entregue Cristo aos judeus, como o lemos no Evangelho: Um de vós é o diabo; o que ele dizia por Judas Iscariotes, que o havia de entregar. Semelhantemente, também foram censurados os judeus, que o entregaram a Pilatos, como o próprio Cristo o disse: A tua nação e os teus pontífices são os que te entregaram nas minhas mãos: Pilatos também o entregou para que fosse crucificado, como se lê no Evangelho. Ora, segundo o Apóstolo, não há nenhuma união entre a justiça e a iniquidade. Logo, parece que Deus Padre não entregou Cristo à Paixão.
Mas, em contrário, o Apóstolo: A seu próprio Filho não perdoou Deus, mas por nós todos o entregou.
SOLUÇÃO. — Como se disse, Cristo sofreu voluntariamente, por' obedecer ao Pai. Por onde de três modos Deus Padre entregou Cristo à Paixão. — Primeiro, porque, na sua vontade eterna, preordenou a Paixão de Cristo para a liberação do gênero humano, segundo aquilo da Escritura: O Senhor carregou sobre ele a iniquidade de todos nós. E ainda: O Senhor quis quebrantá-Ia na sua enfermidade. — Segundo, por lhe ter inspirado a vontade de sofrer por nós, infundindo-lhe a caridade. Por isso, a Escritura acrescenta: Foi oferecido porque ele mesmo o quis. — Terceiro, porque, longe de o livrá-lo da paixão, ele o expôs aos perseguidores. Donde o dito do Evangelho, que, pendente da Cruz, Cristo exclamava: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? E isso porque o entregou ao poder dos que o perseguiam como diz Agostinho.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — É ímpio e cruel entregar ao sofrimento e à morte um homem inocente, contra a sua vontade. Mas não foi assim que Deus Pai entregou a Cristo, senão inspirando-lhe a vontade de sofrer por nós. E isso mostra a severidade de Deus, na expressão do Apóstolo, que não quis perdoar o pecado, sem a pena: o que o Apóstolo o indica sinaladamente com as palavras: Não poupou ao seu próprio Filho. E também mostra a sua bondade, pois, como o homem não lhe pudesse suficientemente satisfazer por nenhuma pena que sofresse, deu-lhe quem o satisfizesse por ele; o que o Apóstolo assinala, dizendo: Por nós todos o entregou. E noutro lugar: Ao qual, isto é, Cristo, propôs Deus para ser vítima de propiciação pela fé no seu sangue.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo, enquanto Deus entregou-se a si mesmo àmorte, pela mesma vontade e ação pela qual também o Pai o entregou. Mas, enquanto homem entregou-se a si mesmo por uma vontade inspirada pelo Pai. Por isso não houve contradição entre o Pai ter entregado a Cristo e o ter-se ele entregue a si mesmo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Uma mesma ação é diversamente julgada como boa ou má, segundo a raiz diversa donde ela procede. O Padre, pois, entregou a Cristo, e este a si mesmo, pela caridade; por isso são louvados. Ao passo que Judas o entregou por cobiça, os Judeus, de seu lado, por inveja; e Pilatos, pelo temor mundano, com que temia a César. Por isso é que foram censurados.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não morreu por obediência
1. — Pois, a obediência implica um preceito: Ora, não lemos na Escritura fosse preceituado que Cristo houvesse de sofrer. Logo, não sofreu por obediência.
2. Demais. — Dizemos que age por obediência quem age em virtude da necessidade de um preceito. Ora, Cristo não sofreu necessária, mas voluntariamente. Logo, não sofreu por obediência.
3. Demais. — A caridade é virtude mais excelente que a obediência. Ora, o Apóstolo diz, que Cristo sofreu pela caridade: Andai em caridade, assim como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós outros. Logo, a Paixão de Cristo deve ser atribuída, antes à caridade que à obediência.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Feito obediente ao Pai até à morte.
SOLUÇÃO. — Foi convenientíssimo que Cristo sofresse por obediência. — Primeiro, porque isso convinha à justificação humana; pois, assim como pela desobediência de um só homem foram muitos feitos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos se tornaram justos, como diz o Apóstolo. — Segundo, foi conveniente, para reconciliar os homens com Deus, segundo aquilo do Apóstolo: Fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho; isto é, enquanto que a morte mesma de Cristo foi um sacrifício muito aceito de Deus, como o diz o Apóstolo: E se entregou a si mesmo por nós outros como oferenda e hóstia a Deus em odor de suavidade. Ora, a obediência se antepõe a todos os sacrifícios, segundo a Escritura: A obediência é melhor que as vítimas. Por isso foi conveniente que o sacrifício da Paixão e da morte de Cristo procedesse da obediência. - Terceiro, foi conveniente à vitória pela qual triunfou da morte e do autor dela. Pois, um soldado não pode vencer sem obedecer ao general. E assim Cristo alcançou a vitória por ter sido obediente a Deus, segundo aquilo da Escritura: O homem obediente cantará a vitória.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo recebeu do Pai o preceito de sofrer. Assim, diz o Evangelho: Tenho o poder de pôr a minha vida e tenho o poder de reassumir este mandamento recebi de meu Pai, isto é, o de pôr e reassumir a vida. Pelo que, como ensina Crisóstomo, não se deve entender, que primeiro tivesse que ouvir esse preceito, com a necessidade de aprendê-lo; mas mostrou que agia voluntàriamente, desfazendo toda suspeita de oposição entre ele e o Pai. Mas, na morte de Cristo consumou-se a lei antiga, conforme as palavras mesmas que disse ao esperar: Tudo está cumprido. Por isso podemos entender que, sofrendo, cumpriu todos os preceitos da lei antiga. — Os preceitos morais, porém, fundados no da caridade ele os cumpriu, sofrendo por amor de seu Pai, segundo o lugar do Evangelho: Para que conheça o mundo que amo ao Pai e que faço como ele me ordenou; levantai-vos, vamo-nos daqui, a saber, para o lugar da Paixão. E sofreu também por amor do próximo, segundo o Apóstolo: Amou-me e se entregou a si mesmo por amor de mim. — Quanto aos preceitos cerimoniais da lei, ordenados sobretudo os sacrifícios e às oblações, Cristo os cumpriu na sua Paixão, porque todos os sacrifícios antigos foram figuras desse verdadeiro sacrifício que Cristo sofreu morrendo por nós. Donde o dizer o Apóstolo: Ninguém vos julgue pelo comer ou pelo beber nem por causa dos dias de festa, ou das luas novas ou dos sábados, que são sombra das coisas vindouras; mas o corpo é em Cristo; e isso porque Cristo está para esses sacrifícios como o corpo para a sombra. — Quanto aos preceitos judiciais da lei, sobretudo ordenados à satisfação das injúrias sofridas, Cristo os cumpriu na sua Paixão. Pois, como diz a Escritura, pagou então o que não tinha roubado, deixando-se pregar no madeiro, pela fruta que o homem roubara da árvore, contra o mandado de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A obediência, embora implique obrigação relativamente ao que foi mandado, contudo supõe a vontade de cumprir a ordem. E tal foi à obediência de Cristo. Pois, a Paixão mesma e a morte, em si considerada repugnavam àvontade natural. Contudo Cristo queria que a vontade de Deus se cumprisse nessa matéria, segundo a Escritura: Para fazer a tua vontade, Deus meu, eu o quis. Por isso dizia: Se este cálice não pode passar sem que eu o beba, faça-se a tua vontade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Pela mesma razão Cristo sofreu por obediência e caridade. Porque só por obediência cumpriu os preceitos da caridade e foi obediente por amor para com o Pai, que lhe mandava.
O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo não foi morto por outrem, mas por si mesmo.
1. — Pois, Ele próprio o diz no Evangelho: Ninguém tira de mim a vida, mas eu de mim mesmo a ponho. Ora, diz-se que mata a outrem quem lhe tira a vida. Logo, Cristo não foi morto por outrem, mas por si mesmo.
2. Demais. — Os mortos por outrem perecem pouco a pouco, àmedida que se lhe enfraquece a natureza. O que, sobretudo se dá com os crucificados; pois, como diz Agostinho, suspensos no madeiro são cruciados por uma morte prolongada. Ora, tal não aconteceu com Cristo, pois, dando um grande brado, rendeu o espírito, como refere o Evangelho. Logo, Cristo não foi morto por outro, mas por si mesmo.
3. Demais. — Os mortos por outrem sofrem morte violenta, e não voluntária, portanto; porque o violento se opõe ao voluntário. Ora, Agostinho diz que o espírito de Cristo não se separou do corpo sem que ele o quisesse, mas porque o quis, quando o quis e como o quis. Logo, Cristo não foi morto por outros, mas por si mesmo.
Mas, em contrário, o Evangelho: E depois de açoitá-lo tirar-lhe-ão a vida.
SOLUÇÃO. — Um agente pode causar um efeito, de dois modos. — Primeiro, produzindo-o diretamente pela sua ação. E, assim, os perseguidores de Cristo o mataram, porque lhe infligiram intencionalmente tratamentos capazes de lhe causarem a morte, com que efetivamente causaram, pois, das referidas causas proveio a morte subsequente. — Noutro sentido, um agente pode produzir um efeito indiretamente, quando, podendo impedi-la, não o faz; assim dizemos que é causa de outrem ser molhado quem não fechou a janela por onde entrou a chuva. E deste modo Cristo foi, ele próprio, causa da sua paixão e morte, pois, podia impedir tanto uma como outra. Primeiro, coibindo os seus adversários, de maneira que não o quisessem ou não o pudessem matar. Segundo, porque o seu espírito tinha o poder de conservar a natureza da sua carne, de modo que nenhuma ofensa física pudesse fazê-lo sucumbir. E esse poder a alma de Cristo o tinha, por estar unida a Deus na unidade de pessoa, como o diz Agostinho. Como, pois, a alma de Cristo não livrou o seu próprio corpo das injúrias que lhe eram feitas, mas quis que a sua natureza corpórea a elas sucumbisse por isso o Evangelho diz que pôs a sua vida ou morreu voluntàriamente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No dito do Evangelho — Ninguém tira de mim a vida, subentende-se — contra a minha vontade. Pois, a palavra tirar, em sentido próprio, significa arrebatar alguma coisa a alguém, que não pode resistir, contra a sua vontade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Para mostrar que a paixão sofrida por violência não o privava da vida, Cristo conservou toda a sua vitalidade corpórea, a ponto de, no momento de expirar, ter clamado com alta voz. O que se lhe enumera entre outros milagres da sua morte. Donde o dizer o Evangelho: O Centurião, que estava bem defronte, vendo que Jesus expirava dando este brado, disse: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus. - Também foi admirável na morte de Cristo o ter morrido mais ràpidamente que quaisquer outros padeceram sofrimentos semelhantes. Por isso, como refere o Evangelho, os que morreram com Cristo lhes quebraram as pernas, para morrerem mais depressa; tendo vindo depois a Jesus, como viram que estava já morto, não lhe quebraram as pernas. E Marcos diz que Pilatos se admirava que Jesus morresse tão depressa. Assim, pois, como por sua vontade a sua natureza corpórea conservou-se vigorosa até o fim assim também, quando quis; subitamente cedeu aos ferimentos que lhe tinham sido feitos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Simultaneamente Cristo sofreu a violência de que morreu, e contudo morreu porque o quis; pois a violência, que lhe foi feita ao corpo, só veio a prevalecer sobre ele, quando o quis Cristo.