Santo Tomás de Aquino (3981)
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo também desceu ao inferno dos condenados.
1. — Pois, diz a divina Sabedoria: Penetrarei todas as partes inferiores da terra. Ora, entre as partes inferiores da terra também se conta o inferno dos condenados, segundo a Escritura: Entrarão nas profundezas da terra. Logo, Cristo, a sabedoria de Deus, desceu também até ao inferno dos condenados.
2. Demais. — Diz Pedro, que Deus ressuscitou a Cristo, soltas as dores do inferno, porquanto era impossível que por este fosse ele retido. Ora, não havia dores no inferno dos Patriarcas, nem também no das crianças, que não sofrem a pena dos sentidos, por causa do pecado atual, mas só a pena do dano, por causa do pecado original. Logo, Cristo desceu ao inferno dos condenados, ou mesmo ao purgatório onde as almas sofrem a pena dos sentidos, por causa dos pecados atuais.
3. Demais. — A Escritura diz que Cristo foi pregar aos espíritos que estavam no cárcere, que noutro tempo tinham sido incrédulos. E isso, como o explica Atanásio, se entende da descida de Cristo aos infernos. Pois, diz, que o corpo de Cristo foi deposto no sepulcro, quando se adiantou a pregar aos espíritos que estavam no cárcere, como diz Pedro. Ora, sabemos que os incrédulos estavam no inferno dos condenados. Logo, Cristo desceu ao inferno dos condenados.
4. Demais. — Diz Agostinho: Se a Escritura, dizendo que Cristo, depois da sua morte, foi ao seio de Abraão, não quis com isso designar o inferno e as suas dores, admiro-me de quem ousasse afirmar que desceu aos infernos. Mas desde que o inferno e os seus tormentos aí estão designados por um testemunho evidente, nenhuma causa ocorre de crermos que ao inferno desceu o Salvador, senão para livrar os que tais tormentos sofriam. Ora, o lugar dos tormentos é o inferno dos condenados, Logo, Cristo desceu ao inferno dos condenados.
5. Demais. — Diz Agostinho, num Sermão sobre a Ressurreição, - que Cristo, descendo aos infernos, libertou todos os justos, que nele estavam encerrados, por causa do pecado original. Ora, entre eles estava também Jó, que diz de si mesmo: Todas as minhas causas desceram ao mais profundo dos infernos. Logo, Cristo também desceu ao profundíssimo dos infernos.
Mas, em contrário, diz Jó do inferno dos condenados: Antes que vá para não tornar, para aquela terra tenebrosa e coberta da escuridade da morte, etc. Ora, nenhum comércio pode haver entre a luz e as trevas, diz o Apóstolo. Logo, Cristo, que é luz, não desceu ao interno dos condenados.
SOLUÇÃO. — De dois modos podemos dizer que um ser está num lugar. — Primeiro pelo seu efeito. E, neste sentido, Cristo desceu a cada um dos infernos, mas de, maneiras diferentes. Assim, sobre o inferno dos condenados produziu o efeito de descendo a eles, convencê-las da sua malícia e incredulidade. Quanto aos detidos no purgatório, deu-lhes a esperança de alcançarem a glória. E aos Santos Patriarcas, que só pelo pecado original estavam enclausurados no inferno, infundiu-lhes o lume da glória eterna. - De outro modo, dizemos que um ser está num lugar, pela sua essência. E, neste sentido a alma de Cristo desceu só ao lugar do inferno onde estavam encerrados os justos, a fim de que os interiormente visitados pela graça da sua divindade, a esses também os visitasse localmente a sua alma. Assim, pois, embora não estivesse localmente senão numa parte do inferno, contudo o seu efeito de certo modo derivou para todas as partes dele; como também, tendo sofrido num lugar da terra, libertou todo o mundo com a sua Paixão.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo, a Sabedoria de Deus, penetrou todas as partes inferiores da terra, não percorrendo-as todas, localmente, a sua alma, mas estendendo de certo modo a todas o efeito do seu poder; mas de modo que iluminou só os justos. Assim, o lugar citado continua: E esclarecerei a todos os que esperam no Senhor.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Há duas espécies de dor. Uma é a resultante do sofrimento da pena que os homens padecem, pelo pecado atual — segundo aquilo da Escritura: Dores do inferno me cercaram. Outra é a dor resultante da dilatação da glória esperada, conforme o lugar da Escritura: A esperança que se retarda aflige a alma. E essa era a. dor sofrida pelos santos Patriarcas no inferno. E para o significar Agostinho diz, que oravam a Cristo, obscecando-o com lágrimas. — Ora, uma e outra dor Cristo fez cessar, descendo aos infernos, mas de modos diferentes. Assim, solveu as dores das penas, preservando delas, como dizemos que o médico cura a doença da qual nos preserva com o seu remédio. E as dores causadas pela dilatação da glória solveu-as atualmente, dando a glória.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O que diz Pedro, no lugar citado, alguns o referem àdescida de Cristo aos infernos, expondo-o desta maneira: Aos que estavam no cárcere encerrados, isto é, no inferno, em espírito, isto é, quanto àalma, a esse Cristo veio pregar, que foram antes incrédulos. Por isso diz Damasceno: Assim como evangelizou aos que viviam na terra, assim também aos que estavam no inferno; não certo para converter os incrédulos àfé, mas para convencê-los de infidelidade. Pois, não podemos entender por essa pregação senão a manifestação da sua divindade aos encarcerados do inferno pela milagrosa descida de Cristo até eles. - Mas Agostinho expõe melhor, referindo tais palavras, não à descida de Cristo aos infernos, mas a um ato da sua divindade, que exerceu desde o princípio do mundo. Sendo então o sentido: aos que estavam encerrados no cárcere, isto é, vivendo num corpo mortal, que é um como cárcere da alma, a esses adiantou-se a pregar pelo espírito da sua divindade, por inspirações internas e ainda mediante advertências externas pela boca dos justos. A esses, digo, pregou, que outr'ora tinham sido incrédulos, isto é, a Noé que lhes pregou, quando contavam com a paciência de Deus, pela qual diferisse a pena do dilúvio. E por isso Pedro acrescenta: Nos dias de Noé, quando se fabricava a arca.
RESPOSTA À QUARTA. — O seio de Abraão pode ser entendido de dois modos. - Primeiro, pela isenção que nele havia de toda pena sensível. E por aí, nem lhe cabia o nome de inferno, nem nenhumas dores nele haviam. - Noutro sentido podemos considerá-la quando à privação da glória esperada. E então implica a idéia de inferno e de dor. Por isso costumamos chamar seio de Abraão a esse repouso dos bem-aventurados, sem contudo lhe chamar inferno; nem dizemos que houvesse dores no seio de Abraão.
RESPOSTA À QUINTA. — Como diz Gregório no mesmo lugar, Jó chama inferno profundíssimo mesmo às partes superiores do inferno. Se, pois, consideradas as alturas do céu, o nosso ar é um inferno caliginoso; considerada a altura desse mesmo ar, a terra, que está na parte inferior, pode ser tomada como um inferno profundo. Quanto, porém à altura mesma da terra, aqueles lugares do inferno, superiores aos demais compartimentos dele, podem ser significados pela denominação, ora usada, de inferno profundíssimo.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não devia Cristo ter descido aos infernos.
1. — Pois, diz Agostinho: Nunca pude encontrar na Escritura a palavra inferno significativa de qualquer bem. Ora, a alma de Cristo não desceu para nenhum mal, porque nem as almas dos justos para nenhum mal desceram. Logo parece que não devia Cristo ter descido aos infernos.
2. Demais. — Descer aos infernos não podia convir a Cristo em razão da natureza divina, absolutamente imutável; mas só lhe podia convir em razão da natureza assumida. Ora, tudo o que Cristo fez ou sofreu, em virtude da natureza assumida, se ordena à salvação humana. E para isso não era necessário que descesse aos infernos; pois, pela sua paixão, que padeceu neste mundo, livrou-nos da culpa da pena, como se disse. Logo, não devia Cristo ter descido aos infernos.
3. Pela morte de Cristo a alma se lhe separou do corpo, o qual foi depositado no sepulcro, como se disse. Ora, parece que não foi a sua alma isolada, a que desceu aos infernos. Pois, a alma, sendo incorpórea, não pode mover-se localmente, o que é um movimento material, como o prova Aristóteles; e a descida implica um movimento material. Logo, não devia Cristo ter descido aos infernos.
Mas, em contrário, o Símbolo (dos apóstolos): desceu aos infernos. E o Apóstolo: Quanto a dizer subiu, porque é isto senão porque também antes havia descido aos lugares mais baixos da terra? Comentário de Glosa: isto é, aos infernos.
SOLUÇÃO. — Cristo devia ter descido ao inferno. — Primeiro, porque veio carregar com a nossa pena, para dela nos livrar, segundo aquilo da Escritura: Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as nossas fraquezas e ele mesmo carregou com as nossas dores. Pois, pelo pecado o homem não somente incorreu na morte do corpo, mas também teve que descer aos infernos. Por onde, assim como devia morrer para nos livrar da morte, conveniente foi que descesse aos infernos para nos livrar dessa descida. Por isso diz a Escritura: ómorte, eu serei a tua morte; óinferno, eu serei a tua mordedura. - Segundo, porque devia, uma vez vencido o diabo pela Paixão, arrebatar-lhe os que tinha encarcerados no inferno, segundo a Escritura: Tu também pelo sangue do teu testamento fizeste sair os teus presos do lago. E o Apóstolo: Despojando os principados e potestades, os trouxe confiadamente. - Terceiro, a fim de, como mostrou o seu poder na terra, nela vivendo e morrendo, assim também mostrasse o seu poder sobre o inferno, visitando-o e iluminando-o. Donde o dizer a Escritura: Levantai, ópríncipes, as vossas portas; isto é, comenta a Glosa, ópríncipes do inferno; deponde o vosso poder, com que até agora detínheis as almas no inferno; e assim, segundo diz o Apóstolo, ao nome de Jesus se dobre todo o joelho, não só dos que estão nos céus, mas também nos infernos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O nome de infernos exprime o mal da pena e não o da culpa. Por isso devia Cristo descer ao inferno: não que fosse devedor da pena, mas para livrar os que a ela tinham sido entregues.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A Paixão de Cristo foi a como causa universal da salvação humana, tanto dos vivos como dos mortos. Ora, uma causa universal se aplica a efeitos particulares por algum meio especial. Por onde, assim como a virtude da Paixão de Cristo se aplica aos vivos pelos sacramentos, que nos assemelham a Cristo padecente, assim também se aplicou aos mortos pela descida de Cristo aos infernos. Por isso a Escritura diz sinaladamente: Pelo sangue do teu testamento fizeste sair os teus presos do lago, isto é, pela virtude da tua paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A alma de Cristo não desceu aos infernos por aquele gênero de movimentos com que se movem os corpos; mas pelo gênero de movimento com que se movem os anjos, como estabelecemos na Primeira Parte.
O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo não permaneceu no sepulcro só um dia e duas noites.
1. — Diz a Escritura: Assim como Jonas esteve no ventre da baleia três dias e três noites, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra. Ora, no coração da terra esteve enquanto demorou no sepulcro. Logo, não esteve no sepulcro só um dia e duas noites.
2. Demais. — Gregório diz que assim como Sansão tomou, à meia noite, as portas de Gaza, assim Cristo ressurgiu tomando, à meia noite, as portas do inferno. Ora, tendo ressurgido, já não estava no sepulcro. Logo, não esteve no sepulcro duas noites inteiras.
3. Demais. — Pela morte de Cristo a luz venceu as trevas. Ora, a noite são as trevas e o dia, a luz. Logo, era conveniente que o corpo de Cristo estivesse no sepulcro, antes, dois dias e uma noite, que ao contrário.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Desde à tarde da sepultura até a manhã da ressurreição são trinta e seis horas, isto é, uma noite toda seguida deum dia todo e mais uma noite inteira.
SOLUÇÃO. — O tempo mesmo que Cristo permaneceu no sepulcro representa o efeito da sua morte. Pois, como dissemos pela morte de Cristo fomos libertos de uma dupla morte: a da alma e a do corpo. O que é significado pelas duas noites, durante as quais Cristo permaneceu no sepulcro. A sua morte, porém, não causada pelo pecado, mas motivada pela caridade, não é comparável à noite, mas ao dia. Por isso é simbolizada pelo dia inteiro em que esteve no sepulcro. Por onde, era conveniente que Cristo permanecesse no sepulcro um dia e duas noites.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz Agostinho: Certos, ignorando o modo de exprimir-se da Escritura, quiseram considerar como noite aquelas três horas, da sexta até a nona, durante as quais o sol se obscureceu; e como dia, as três outras horas quando de novo voltou o sol a iluminar a terra, isto é, da nona até o ocaso. A isso acresce a noite seguinte, do sábado; e essa, contada com o seu dia, viria tudo já a dar duas noites e dois dias. Ao sábado, porém se lhe segue a noite do primeiro sábado e, a do dia seguinte, domingo, quando o Senhor ressurgiu. Mas mesmo assim não se chega a ter os três dias e as três noites. Resta, pois que os descubramos de acordo com o modo de exprimir-se das Escrituras, que compreende o todo na parte; de modo que tomemos uma noite e um dia por um dia natural. E assim, o primeiro dia é contado desde a sua última parte, quando Cristo morreu e foi sepulto na sexta-feira; o segundo dia inteiro se perfez pelas vinte e quatro horas diurnas e noturnas e a noite seguinte pertencia ao terceiro dia. Pois, assim como os primeiros dias (da criação) se contavam a partir da luz até a noite, por causa da queda futura do homem, assim, no caso vertente, por causa do resgate do homem, os dias se contam partindo das trevas para a luz.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, Cristo ressurgiu no dilúculo quando já a luz começa a aparecer e, contudo ainda resta algo das trevas da noite; por isso o Evangelho refere que as mulheres vieram ao sepulcro de manhã, jazendo ainda escuro. E por causa dessas trevas, Gregório diz ter Cristo ressurgido à meia noite, não dividindo-se a noite em duas partes iguais, mas considerada noite o que já propriamente não o era. Pois, esse dilúculo pode considerar-se parte tanto do dia como da noite, pela conveniência que tem com um e com a outra.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Na morte de Cristo, a luz, significada por um dia inteiro, prevaleceu a ponto de arredar as trevas de duas noites, isto é, da dupla morte nossa, como se disse.
O terceiro discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo se reduziu as cinzas, no sepulcro.
1. — Pois, assim como a morte foi a pena do pecado dos nossos primeiros pais, assim a redução àcinzas. Porquanto foi dito ao primeiro homem - Tu és pó e em pó te tornarás, como refere a Escritura. Ora, Cristo padeceu a morte para nos livrar dela. Logo, também o seu corpo devia reduzir-se a cinzas, a fim de livrar o nosso dessa mesma redução.
2. Demais. — O corpo de Cristo era da mesma natureza que o nosso. Ora o nosso corpo logo depois da morte, começa a desfazer-se e a entrar em putrefação; porque, desaparecido o calor natural, sobrevém o calor estranho, causa da putrefação. Logo, parece que o mesmo devia ter-se dado com o corpo de Cristo.
3. Demais. — Como se disse, Cristo quis ser sepulto, para nos dar a esperança de ressurgir, mesmo do sepulcro. Logo, também devia ter sofrido a redução a cinzas, para dar a esperança de a ressurgir aos que se acham reduzidos a cinzas, mesmo depois dessa redução.
Mas, em contrário, a Escritura: Não permitirás que o teu santo veja corrupção. O que, Damasceno explica, se refere à corrupção resultante da redução aos elementos.
SOLUÇÃO. — Não convinha que o corpo de Cristo se putrefizesse ou fosse de qualquer modo reduzido a cinzas. Porque a putrefação de qualquer corpo lhe provém da debilidade da natureza, que não pode mais conservar-lhe a unidade. Ora, a morte de Cristo como dissemos, não podia ser resultante da debilidade da natureza, a fim de que não se pensasse que não foi voluntária. Por isso quis morrer não de doença, mas dos padecimentos que lhe foram impostos e aos quais se ofereceu espontaneamente. Por onde, a fim de que a sua morte não lhe fosse atribuída à doença, Cristo não permitiu o seu corpo putrefazer-se de nenhum modo, nem de nenhum modo corromper-se; mas, para mostrar o poder divino, quis permanecesse incorrupto. Por isso diz Crisóstomo: Dos homens, os que procederam heroicamente, os próprios feitos lhe ornam a vida; mas suas glórias perecem com a morte, totalmente o contrário se deu com cristo. Pois, antes da cruz tudo lhe era tristeza e enfermidade; depois, porém de crucificado, tudo se lhe torna glorioso — a fim de saberes que não era um puro homem esse crucificado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo, não estando sujeito ao pecado, também não o estava à morte nem a ser reduzido a cinzas. Voluntàriamente, porém sofreu a morte pela nossa salvação, pelas razões já apresentadas. Se, porém o corpo lhe tivesse sido putrefato ou decomposto, isso teria sido antes em detrimento da salvação humana; pois então não lhe acreditaríamos no poder divino. Por isso, da sua pessoa diz a Escritura: Que proveito há no meu sangue se desço à corrupção? Como se dissesse: Se o meu corpo se putrefizer, perder-se-á o proveito do sangue derramado.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O corpo de Cristo, quanto à condição da natureza passível, foi putrescível, embora não quanto à causa do merecimento da putrefação, que é o pecado. Mas o poder divino preservou o corpo de Cristo da putrefação, como o ressuscitou da morte.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo ressurgiu dos mortos pelo seu poder divino, que não é coaretado por nenhum limite. Por onde, o fato de ter ressurgido do sepulcro era um argumento suficiente para estabelecer que os homens haveriam de ressuscitar, por esse poder divino, não só dos sepulcros, mas também de quaisquer cinzas.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não foi sepulto de modo conveniente.
1. — Pois, a sua sepultura lhe correspondia à morte. Ora, Cristo sofreu morte objetíssima, segundo aquilo da Escritura: Condenêmo-lo a uma morte a mais infame. Logo, parece inconveniente o ter sido dada a Cristo uma sepultura honrosa, pelo fato de ter sido enterrado por homens ricos, isto é, por José de Arimateia um decurião nobre, e por Nicodemos, senhor entre os judeus, como lemos no Evangelho.
2. Demais. — Com Cristo nada devia ter-se dado que fosse exemplo de superfluidade. Ora, parece ter sido superfluidade que, para sepultá-lo, Nicodemos viesse trazendo uma composição de quase cem libras de mirra e de aloé; sobretudo que uma mulher foi embalsamar-lhe antecipadamente o corpo para a sepultura, segundo lemos no Evangelho. Logo, isso não se fez com Cristo, de maneira conveniente.
3. Demais. — Não pode estar uma coisa em dissonância consigo mesma. Ora, a sepultura de Cristo foi simples, de um lado, pois, José amortalhou-o num asseado lençol, como refere o Evangelho; não, porémcom ouro ou gemas ou seda, como explica Jerônimo. Mas, de outro lado, parece que esse sepultamento foi faustoso, pois o sepultaram com aromas. Logo, parece que não foi conveniente o modo do sepultamento de Cristo.
4. Demais. — Tudo quanto está escrito, e, sobretudo de Cristo, para nosso ensino está escrito, no dizer do Apóstolo. Ora, certas coisas estão escritas no Evangelho sobre o sepultamento, que em nada parecem contribuir para o nosso ensino. Assim, que foi sepulto numa horta, num sepulcro que lhe não pertencia, que ainda não tinha servido e aberto numa rocha. Logo, foi inconveniente o modo do sepultamento de Cristo.
Mas, em contrário, a Escritura: E será glorioso o seu sepulcro.
SOLUÇÃO. — O modo do sepultamento de Cristo prova-se que foi conveniente por três razões. - Primeiro, para confirmar a nossa fé na sua morte e ressurreição. - Segundo para celebrar a piedade dos que o sepultaram. E por isso diz Agostinho: O Evangelho celebra com razão os que, tirando-lhe o corpo da cruz, cuidaram em envolvê-lo e sepultá-lo diligente e honrosamente. Terceiro, para representar o mistério que envolve os que são sepultados com Cristo para morrer.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Na morte, que Cristo sofreu, se lhe celebra a paciência e a constância; e tanto mais quanto mais abjeta foi essa morte. Ao passo que no seu honorífico sepultamento se considera a virtude de quem, contra a intenção dos que o mataram, mesmo depois de morto foi sepultado honorificamente; e se prefigura a devoção dos fieis, que haviam de servir a Cristo morto.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O dito do Evangelista, que o sepultam como costumam os judeus sepultar, adverte, conforme o explica Agostinho, que nesses deveres prestados aos mortos devem-se observar os costumes de cada povo. Ora, o costume do povo judeu era embalsamar o corpo do morto com vários aromas, para mais diuturnamente se conservar incorrupto. Por isso ele mesmo ainda diz, que em dados os casos semelhantes, não é o uso das coisas que é culpável, mas o deleite que nele se põe. E a seguir acrescenta: O que de ordinário é culposo, em relação às outras pessoas, é sinal de algo de grande quando se trata de uma pessoa divina ou de um profeta. Quanto à mirra e ao aloé, pela sua amargura, significam a penitência, pela qual conservamos a Cristo em nós sem a corrupção do pecado. E o odor dos aromas simboliza a boa fama.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A mirra e o aloé foram depositados no corpo de Cristo, para que fosse conservado imune da corrupção, o que era pois exigido por essa necessidade. E nos serve de exemplo, que podemos licitamente usar de certas coisas preciosas, como remédio exigido pela necessidade de conservar o nosso corpo. Quanto ao envolvimento do corpo só tinha de certo modo por fim a conveniência da honestidade. E, em tais casos, devemos nos contentar com a simplicidade. Mas, isso significa como adverte Jerônimo, que aquele envolveu a Jesus num lençol asseado, que o tomou com mente pura. Daí o dizer Beda: O costume da Igreja estabeleceu que o sacrifício do Altar fosse celebrado sobre uma toalha, não de seda nem de pano tingido, senão de linho puro, assim como o corpo do Senhor foi sepulto num lençol asseado.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo foi sepulto num jardim, para significar que pela sua morte e sepultamento somos livrados da morte em que incorremos pelo pecado de Adão cometido no Jardim do Paraíso. - E, depois, o Salvador foi sepultado num sepulcro que lhe não pertencia, porque, como diz Agostinho num Sermão, morreu pela salvação dos outros; ora, o sepulcro é o habitáculo da morte. E isso também pode nos fazer considerar a extrema pobreza que Cristo abraçou por nós. Pois, aquele que durante a vida não teve uma habitação, depois da morte foi ainda sepulto em sepulcro alheio, sendo, por estar nu coberto por José. Foi deposto num monumento novo, como adverte Jerônimo, afim de que, se outros mortos tivessem repousado no túmulo, não se dissesse, depois da sua ressurreição, que foi outro o ressuscitado. E também pode o sepulcro novo simbolizar o ventre virginal de Maria. E ainda nos dá a entender que pela sepultura de Cristo todos somos renovados, destruída a morte e a corrupção. - Foi encerrado num sepulcro aberto numa rocha, como explica Jerônimo, a fim de que, se fosse construído com pedras destacadas, não se pudesse dizer que lhe tiraram furtivamente o corpo por uma abertura, praticada nos fundamentos. Por isso, a grande pedra que lhe foi aposta mostra que o sepulcro não podia ser aberto senão com a cooperação de muitos. E também, se tivesse sido sepulto na terra poderiam dizer: Cavaram a terra e o furtaram, como ensina Agostinho. - A significação mística do corpo de Cristo é como diz Hilário, que os Apóstolos, para introduzirem Cristo no coração da rude gentilidade, tiveram de abri-lo, de certo modo, pelo esforço da doutrina, como se sulca um terreno novo e inculto, impermeável até então ao ingresso do temor de Deus. E como nada além de Cristo deve ter entrada em nosso coração, ao sepulcro se apôs uma pedra. - E, como diz Orígenes, não foi fortuitamente que se escreveu que José envolveu o corpo de Cristo num lençol asseado e o depôs num monumento que ainda não tinha servido e que lhe apôs uma grande pedra: porque tudo o respeitante ao corpo de Jesus é puro, novo e excepcionalmente grande.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não foi conveniente Cristo ser sepultado.
1. — Pois, de Cristo diz a Escritura: Chegou a ser homem como sem socorro, livre entre os mortos. Ora, nos sepulcros são encerrados os corpos dos mortos, o que, parece, é o contrário da liberdade. Logo, parece que não foi conveniente fosse o corpo de Cristo sepultado.
2. Demais. – Nada, devia ser feito, em relação a Cristo, que não fosse salutífero. Ora, parece que em nada contribuía para a salvação dos homens o ter sido Cristo sepultado. Logo, não foi conveniente que fosse sepultado.
3. Demais. — Parece inconveniente que Deus, o excelso sobre os céus, fosse sepultado na terra. Ora, o que convém a Cristo morto é atribuído a Deus, em virtude da união. Logo, parece inconveniente que Cristo fosse remunerado.
Mas, em contrário, diz o Senhor, da mulher que o tenha ungido: No que fezme fezuma boa obra. E depois acrescenta: Porquanto derramar ela este balsamo sobre o meu corpo foi ungir-me para ser enterrado.
SOLUÇÃO. — Era conveniente que Cristo fosse sepultado. — Primeiro, para comprovar a verdade da sua morte; pois, ninguém é posto num sepulcro senão quando consta que está verdadeiramente morto. Por isso no Evangelho se lê que Pilatos, antes de permitir que Cristo fosse sepultado, procurou saber por uma inquisição diligente, se estava morto. - Segundo, porque tendo ressurgido do sepulcro, deu a esperança de ressurgir, por meio dele, aos que estão sepultas segundo aquilo do Evangelho: Todos os que se acham nos sepulcros ouvirão a voz do Filho de Deus. - Terceiro, para exemplo dos que, pela morte de Cristo, morreram espiritualmente aos pecados, conforme àquilo da Escritura: Estão escondidos contra a turbação dos homens. Por isso diz o Apóstolo: Já estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. E assim também os batizados, que pela morte de Cristo morreram aos pecados, são como consepultos com Cristo, pela imersão, segundo o Apóstolo: Nós fomos sepultados com Cristo para morrer pelo batismo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - Cristo, mesmo sepulto, mostrou que entre os mortos era livre, pelo fato da inclusão no sepulcro não ter podido impedi-Ia sair dele pela ressurreição.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como a morte de Cristo obrou eficientemente a nossa salvação, assim também a sua sepultura. Por isso diz Jerônimo: Ressurgimos pela sepultura de Cristo. E àquilo da Escritura: E dará os ímpios pela sepultura, diz a Glosa: isto é, as gentes, que não tinham a piedade, da-tos-á a Deus Padre, porque os ganhou pela sua morte e sepultura.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como se diz num Sermão do concílio Efesino, nenhuma das coisas que servem a salvação dos homens fazem injúria a Deus; pois, mostram que ele não é passível, mas clemente. E noutro sermão do mesmo Concílio lemos: Deus não considera como injurioso nada do que pode ser para o homem ocasião de salvar-se. Pois, não irias ter por vil a natureza de Deus, admitido que ela possa jamais considerar-se sujeita a injúrias.
O sexto discute-se assim. — Parece que a morte de Cristo não produziu nenhum efeito para a nossa salvação.
1. — Pois, a morte é uma certa privação a da vida. Ora, a privação, não sendo nenhuma realidade, não tem nenhuma virtude ativa. Logo,
nada podia produzir para a nossa salvação.
2. Demais. — A Paixão de Cristo obrou a nossa salvação a modo de mérito. Ora, assim não podia produza-Ia a sua morte; pois pela morte separa-se do corpo e alma, a qual é o princípio do mérito. Logo, a morte de Cristo nada produziu para a nossa salvação.
3. Demais. — O corporal não pode ser a causa do espiritual. Ora, a morte de Cristo foi corporal. Logo, não podia ser a causa espiritual da nossa salvação.
Mas, em contrário, diz Agostinho: A morte única do nosso Salvador, isto é, a corpórea, foi a salvação para as duas mortes nossas, a saber, a da alma e a do corpo.
SOLUÇÃO. — De dois modos podemos considerar a morte de Cristo: no seu devir e na sua realização. - Assim, dizemos que a morte de alguém está no seu devir, quando tende para ela, por algum sofrimento natural ou violento. E neste sentido, o mesmo é falar da morte e da Paixão de Cristo. Em tal acepção, pois, a morte de Cristo é a causa da nossa salvação, conforme ao que dissemos ao tratar da Paixão. - Mas a morte de Cristo é considerada como realizada, pelo fato da separação entre o seu corpo e a sua alma. E tal é o sentido em que agora tratamos dessa morte. Ora, nesta acepção, a morte de Cristo não pode ser causa da nossa salvação a modo de mérito, mas só a modo de eficiência; isto é, enquanto que nem pela morte a divindade se separou do corpo de Cristo. Donde, tudo o que se passou com o corpo de Cristo, mesmo depois de separado da alma, foi-nos salutífero, era virtude da divindade que lhe estava unida. - Mas, o efeito de uma causa é propriamente considerado tendo-se em vista a semelhança com ela. Por onde, sendo a morte uma privação da vida própria, o efeito da morte de Cristo deve ser considerado relativamente àremoção dos obstáculos contrários ànossa salvação; a esses são a morte da alma e a do corpo. Por isso, dizemos, que a morte de Cristo destruiu em nós tanto a morte da alma - segundo aquilo do Apóstolo: O qual foi entregue por nossos pecados - como a do corpo, consistente na separação da alma - segundo aquele outro lugar: Flagrada foi à morte na vitória.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A morte de Cristo obrou a nossa salvação em virtude da divindade que lhe estava unida, e não só em razão da morte.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A morte de Cristo, considerada como realizada, embora não tenha obrado a nossa salvação a modo de mérito, operou-a, contudo a modo de eficiência como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A morte de Cristo foi, por certo, corporal; mas o seu corpo foi o instrumento da divindade que lhe estava unida, obrando em virtude dela, mesmo enquanto morto.
O quinto discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não foi identicamente o mesmo quando vivo e quando morto.
1. — Pois, Cristo morreu verdadeiramente, como morrem os outros homens. Ora, o corpo de qualquer forma não é identicamente o mesmo quando vivo e quando morto, absolutamente falando, porque há entre um e outro uma diferença essencial. Logo, nem o corpo de Cristo foi identicamente o mesmo quando vivo e quando morto.
2. Demais. — Segundo o Filósofo, coisas especificamente diversas são também diversas numericamente. Ora, o corpo de Cristo foi especificamente diverso quando vivo e quando morto; pois, não dizemos que um morto tem olhos ou carne senão em sentido equívoco, como ensina o Filósofo. Logo e em sentido absoluto, o corpo de Cristo não foi identicamente o mesmo, quando vivo e quando morto.
3. Demais. — A morte é uma forma da corrupção. Ora o que sofre uma corrupção substancial já não existe, depois de corrupto; pois, a corrupção é a passagem do ser para o não-ser. Logo, o corpo de Cristo, depois de morto, não permaneceu identicamente o mesmo que antes era, pois a morte é uma corrupção substancial.
Mas, em contrário, diz Atanásio: O corpo de Cristo quando circunciso, quando andava, quando trabalhava e quando foi pregado na cruz era o Verbo de Deus impassível e incorpóreo; o mesmo se conservou quando deposto no sepulcro. Ora, o corpo de Cristo estava vivo quando foi circunciciado e pregado no madeiro; e estava morto, quando depositado no sepulcro. Logo, foi o mesmo o corpo vivo e o morto.
SOLUÇÃO. — A expressão simplesmente falando é susceptível de dois sentidos. — Num, simplesmente significa o mesmo que absolutamente; assim é dito absolutamente o que o é sem nenhum acréscimo, como explica o Filósofo. E, neste sentido, o corpo de Cristo tanto vivo como morto foi simplesmente o mesmo. Pois, dizemos que é simples e identicamente o mesmo o que o é pelo seu suposto. Ora, o corpo de Cristo, tanto vivo como morto, teve o mesmo suposto, pois, vivo e morto não teve outra hipóstase além da do Verbo de Deus, como dissemos. E é este o sentido das palavras citadas de Atanásio. — Noutro sentido, simplesmente quer dizer completamente ou totalmente. E então, o corpo de Cristo vivo não foi simplesmente o mesmo que quando morto. Porque não foi totalmente o mesmo; pois, fazendo a vida parte da essência do corpo vivo, é dele um predicado essencial e não acidental. Donde resulta por consequência que o corpo, deixando de ser vivo, não permanece totalmente o mesmo. Se, porém disséssemos que o corpo de Cristo morto permaneceu totalmente o mesmo, seguir-se-ia que não ficou corrupto, pela corrupção, digo, da morte. E essa é a heresia dos Gaianitas, como refere Isidoro e está nas Decretais. E Damasceno diz, que a palavra corrupção tem dois sentidos: num significa a separação das almas, do corpo e fenômenos semelhantes; noutro, a resolução perfeita aos elementos. Por onde, dizer com Juliano e Gaiano, que o corpo do Senhor ficou incorruptível, conforme ao primeiro sentido da corrupção, antes de ter ressurgido, é ímpio. Porque então o corpo de Cristo não teria sido consubstancial com o nosso, nem teria verdadeiramente morrido, nem nós teríamos verdadeiramente sido salvos. Mas, no segundo sentido, o corpo de Cristo foi incorrupto.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O corpo morto de qualquer homem não continua unido a nenhuma hipóstase permanente, como o corpo de Cristo morto. Por isso, o corpo morto de qualquer homem não é absolutamente idêntico ao que era quando vivo, mas só de certo modo; porque conserva a identidade material sem conservar a mesma forma. Ao contrário, o corpo de Cristo permaneceu identicamente o mesmo, em sentido absoluto, por causa da identidade do suposto, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Dizemos que um ser é identicamente o mesmo, pelo seu suposto; e especificamente idêntico quando pela forma o é. Sempre que o suposto subsiste numa só natureza, por força desapareceu a unidade numérica com a disparição da unidade específica. Ora, a hipóstase do Verbo de Deus subsiste nas duas naturezas. Por onde, embora Cristo não continuasse a ter um corpo idêntico, quanto à espécie da natureza humana, esse corpo continuou contudo a ser identicamente o mesmo pelo suposto do Verbo de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A corrupção e a morte não as teve que sofrer Cristo em razão do suposto, tomando-se por suposto a unidade; mas em razão da natureza humana, segundo a qual havia no corpo de Cristo uma diferença entre a morte e a vida.
O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo, no tríduo damorte, não cessou de ser homem.
1. — Pois, diz Agostinho: Foi tal a união do Verbo com a natureza humana, que tornou Deus, homem, e o homem, Deus. Ora, essa união não cessou com a morte. Logo, não cessou Cristo de ser homem, durante a morte.
2. Demais. — O Filósofo diz: Cada homem é o seu próprio intelecto. Por isso, dirigindo-nos à alma de S. Pedro, depois da morte dele, dizemos: São Pedro, ora por nós. Ora, depois da morte, o Filho de Deus não se separou da sua alma racional. Logo, nesse tríduo o Filho de Deus continuou a ser homem.
3. Demais. — Todo sacerdote é homem. Ora, durante o tríduo da sua morte Cristo foi sacerdote, do contrário não seria verdadeiro o dito da Escritura - Tu és sacerdote eternamente. Logo, durante esse tríduo Cristo foi homem.
Mas, em contrário. — Removido o superior, removido fica o inferior. Ora, ser vivo ou animado é superior ao a ser animal e homem; pois, o animal é uma substância animada sensível. Mas, no tríduo da sua morte, o corpo de Cristo não foi nem vivo nem animado. Logo, não foi homem.
SOLUÇÃO. — Que Cristo verdadeiramente morreu é artigo de fé. Portanto, qualquer afirmação contrária à verdade da morte de Cristo é erro contra a fé. Por isso se diz numa Epístola Sinodal de Cirilo: Quem não confessar que o Verbo de Deus sofreu na sua carne, foi crucificado ria sua carne e na sua carne padeceu a morte, seja anátema. Ora, um homem ou um animal verdadeiramente morto deixa de ser homem ou animal; pois, a morte do homem ou do animal resulta da separação da alma, por ser esta a que completa a natureza animal ou humana. Por onde, é errôneo dizer que Cristo, durante o tríduo da sua morte, foi homem, simples e absolutamente falando. Podemos, porém dizer, que durante esse tríduo Cristo foi um homem morto. Certos, porém confessaram que Cristo, nesse tríduo, foi homem, servindo-se assim de uma expressão errônea, sem, contudo darem à sua fé um sentido errôneo. Tal Hugo de S. Vitor, que disse ter sido Cristo homem no tríduo da sua morte, porque considerava a alma como o homem. Isso, porém é falso, como demonstramos na Primeira Parte. Também o Mestre das Sentenças afirmou que Cristo foi homem no tríduo da sua morte, mas por outra razão. Era essa a de crer que a união da alma e do corpo não é da natureza do homem, bastando para alguém ser homem uma alma humana e um corpo, quer estejam unidas quer separadas. Mas a falsidade dessa opinião também já o mostramos na Primeira Parte e pelo que antes dissemos sobre o modo da união.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Verbo de Deus assumiu a alma unida com o corpo; e por isso essa assunção tornou Deus o homem e o homem, Deus. Mas tal assunção não cessou pela separação do Verbo, da alma e do corpo; cessou porém a união entre o corpo e a alma.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O dizer-se que o homem é o seu intelecto não significa que o intelecto é o homem na sua totalidade, mas que é a principal parte do homem, no qual existe virtualmente a disposição total deste. Como se disséssemos que o chefe do Estado fosse todo o Estado, porque é ele quem lhe dá a sua disposição total.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Ser sacerdote convém ao homem em razão da alma, na qual está o caráter da ordem. Por isso, pela morte, o homem não perde a ordem sacerdotal. E muito menos Cristo, origem de todo sacerdócio.
O terceiro discute-se assim. — Parece que na morte de Cristo houve separação entre a divindade e a alma.
1. — Pois, diz o Senhor: Ninguém tira a minha alma de mim, mas eu de mim mesmo a ponho e de novo a reassumo. Logo, parece que corpo não pode depor a alma, separando-se dela; porque não está a alma sujeita ao poder do corpo, mas antes ao contrário. Donde resulta que Cristo, enquanto Verbo de Deus podia depor a sua alma; isto é, separa-la. Logo, depois da morte de Cristo a alma se lhe separou da divindade.
2. Demais. — Atanásio diz: Maldito seja quem não confessar que a natureza humana, na sua totalidade, assumida pelo Filho de Deus, não ressurgiu dos mortos, de novo assumida ou liberada no terceiro dia. Ora, a natureza humana em sua totalidade não podia ser de novo assumida, se não tivesse algum tempo sido separada do Verbo de Deus. Mas, o homem total é composto de alma e de corpo. Logo, houve durante algum tempo separação da divindade, tanto do corpo como da alma.
3. Demais. — Por causa da união com a natureza humana total, é o Filho de Deus verdadeiramente considerado homem. Se, pois, desaparecida a união entre a alma e o corpo pela morte, o Verbo de Deus permanecesse unido à alma, resultaria o podermos dizer que o Filho de Deus era verdadeiramente a alma. Ora. isso é falso, porque, sendo a alma a forma do corpo, resultaria que o Verbo de Deus seria a forma do corpo - o que é impossível. Logo, na morte de Cristo a alma ficou separada do Verbo de Deus.
4. Demais. — A alma e o corpo, separado um do outro, não constituem uma só hipótese, mas duas. Se, portanto, o Verbo de Deus permaneceu unido tanto ao corpo como à alma de Cristo, separada esta daquele pela morte de Cristo, resulta que o Verbo de Deus, durante a morte de Cristo, constituía duas hipóteses. O que é inadmissível. Logo, depois da morte de Cristo, a alma não permaneceu unida ao Verbo.
Mas, em contrário, diz Damasceno: Embora Cristo morresse como homem e a sua alma santa se lhe ficasse separada do corpo imaculado, contudo a divindade continuava inseparável de uma e de outra, isto é, da alma e do corpo.
SOLUÇÃO. — A alma está unida ao Verbo de Deus mais imediatamente que ao corpo, e anteriormente a essa segunda união; pois, o corpo está unido ao Verbo de Deus mediante a alma, como dissemos. Ora, como o Verbo de Deus não se separou, na morte, do corpo, com muito maior razão não se separou da alma. Por onde, assim como predicamos do Filho de Deus o que convém ao corpo separado da alma, isto é, que foi sepultado, assim também dele dizemos no símbolo. que desceu aos infernos, porque a sua alma, separada do corpo, desceu aos infernos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Agostinho, expondo as palavras referidas de João, pergunta se, sendo Cristo o Verbo, separou-se da alma, enquanto era alma ou, de novo, enquanto era carne. E afirma que, se dissermos que depôs a alma enquanto o Verbo de Deus, resulta que algum tempo essa alma esteve separada do Verbo. Ora, isso é falso. Pois, a morte separou o corpo, da alma; mas não afirmo com isso que a alma ficou separada do Verbo. Se, porém dissermos que a própria alma se separou a si mesma, resulta que a alma mesma se separou de si própria. O que é absurdissimo. Resta, pois, que a carne mesmo depôs a alma e de novo a assumiu, não por poder próprio, mas por poder do Verbo que nela habitava; porque, como dissemos, depois da morte a divindade do Verbo não se separou da carne.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Com as palavras aduzidas, Atanásio não quis dizer que a natureza humana em sua totalidade foi de novo assumida, isto é, todas as suas partes, como se o Verbo de Deus deparasse, pela morte, as partes da natureza humana. Mas que a totalidade da natureza humana, de novo assumida na ressurreição, foi reintegrada pela renovada união da alma e do corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Verbo de Deus, por causa da união da natureza humana, não é considerado por isso como a natureza humana; mas é chamado homem, isto é, o que tem a natureza humana. Pois, a alma e o corpo são partes essenciais da natureza humana. Por onde, da união do Verbo com elas ambas não resulta que o Verbo de Deus seja alma ou corpo, mas , sim, que tem alma ou corpo.
RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Damasceno, na morte de Cristo separou-se a alma, da carne, mas não se dividiu uma mesma hipóstase em duas. Pois, tanto o corpo como a alma de Cristo, à mesma luz, tiraram a sua existência, desde o principio, da hipóstase do Verbo. E na morte, separadas entre si, cada qual continuou tendo a mesma hipóstase do Verbo. Porque a mesma hipóstase do Verbo permaneceu a hipóstase do Verbo, da alma e do corpo. Pois, nunca nem a alma nem o corpo tiveram nenhuma hipóstase própria, além da hipóstase do Verbo; porque sempre é uma hipóstase do Verbo e nunca duas.