O péssimo nível cultural dos nossos centros de ensino (compreenda-se: péssimo nível, em primeiro lugar, dos professores) em geral não permite que os feitos de nossos antepassados sejam mostrados aos meninos brasileiros em toda a sua verdadeira grandeza. Justamente por falta de critério (principalmente por inadequado critério de valor) a beleza de nosso passado não se desvenda de modo feliz aos olhos dos brasileiros — adultos ou crianças. Não por culpa dos fatos. Não por falta de heróis.
Tivemos no ensino da História do Brasil, ora a burrice grandiloqüente, que deixa fria a alma das crianças porque valoriza o secundário, a natureza, as minas de ouro, as quedas d'água, os índios, ora, como temos ainda, o pedantismo (que no fundo é esquerdista) em que tudo são dados econômicos ou condições geo-econômicas insinuadas como "causa" ou "origem" de fatores políticos ou movimentos históricos.
Mas uma visão, ao mesmo tempo mais simples e mais profunda, simplesmente porque inspirada numa perspectiva moral da História, numa compreensão mais fina do que é a alma do homem, discernindo melhor quem foram e o que fizeram realmente os antigos, essa visão poderá mostrar aos nossos molhos maravilhados, súbitos quadros inesperados de grandeza e heroísmo, estas sim, condições reais fundamentais com que puderam os brasileiros de outros tempos realizar um modo de viver melhor, até mesmo em termos de prosperidade econômica e progresso social real. Vejamos, por exemplo, quais os antecedentes das condições de prosperidade sem par — em termos culturais, sociais, políticos, econômicos, administrativos — do governo Rodrigues Alves que, antes do progresso inigualável que o Brasil conheceu a partir de março de 1964, era sempre apresentado pelos historiadores como o melhor governo da República antiga e aquele em que o Brasil melhor se situou em todos os planos.
Quando se implantou no Brasil a República, em 1889, uma das conseqüências do levante militar foi, como é sempre o caso com revoluções, um abalo na solidez das instituições. Aquilo que os homens haviam aprendido durante muitos e muitos anos a respeitar — o Governo, a maneira de sua composição, a forma de sua substituição etc, mostra-se, de repente, algo de frágil, pelo menos aos olhos daqueles que se sabem autores de sua deposição violenta.
Depois que os dois primeiros governantes do Brasil republicano, ambos militares, deixaram o poder e chegaram os políticos civis à Presidência da República, já não mais existia o prestígio do Trono e o hábito do Império a proteger as instituições. Assim, qualquer político mais influente ou qualquer chefe militar sentia-se alguém em condições de — quem sabe? — atingir o poder e — quem sabe? — por bem ou por mal, acabar depondo o Presidente da República. A disputa entre militares já vinha, desde o Governo Floriano, minando a paz pública no Brasil.
Vivia, pois, o Brasil em um clima de perturbação enorme, mais de caráter moral do que psicológico ou social. Havia um clima de reivindicações, de disputa, de ambições muitas vezes irresponsáveis e algumas vezes absolutamente condenáveis. Havia planos de ideólogos positivistas e disputas entre eles. Dessa confusão, desse clima de desordem — mais do que de outros fatores — decorria a estagnação econômica, a atividade febril à procura de lucro fácil, a especulação do tipo que leva ao "encilhamento", etc. Como hoje é fácil de entender, de tal clima de desordem não nascia nem podia nascer uma multiplicação de investimentos fecundos ou uma sábia utilização de recursos públicos. O Brasil devia aos seus credores estrangeiros e não tinha com que pagar. Negociava uma moratória, o que significa que perdia o crédito externo.
Nesse mundo convulso, perturbado, estagnado, lançado às mãos de aventureiros, em que quase todos os políticos ou generais encontravam motivos bons ou maus para continuar a jogar lenha na fogueira, principalmente porque ninguém pensava em renunciar às suas ambições (é sempre fácil julgá-las justas) em benefício do bem comum, Prudente de Moraes, o primeiro presidente civil do Brasil republicano, homem que se iria mostrar forte, calmo e valente, procurava estabelecer um clima de paz pública, de ordem nas ruas e de respeito à sua autoridade. Tve de enfrentar diversos tipos de abusados. Contando com o apoio de chefes militares mais esclarecidos, enfrentou a ambição de diversos generais e acabou mostrando sua energia fechando o Clube Militar e prendendo seu presidente. Logo pulularam as conspirações e os boatos. No sertão baiano, Antonio Conselheiro derrotara já 3 expedições militares e o Ministro da Guerra de Prudente de Moraes organiza a quarta expedição que, finalmente, conseguiu debelar o levante. Chegam ao Rio tropas vitoriosas que desfilam na presença do Presidente da República, em pé, à beira da calçado do edifício que então era o Ministério da Guerra (hoje Museu Histórico, perto da Praça XV). De repente, do meio da tropa, sai um cabo armado com punhal que investe contra o Presidente da República. O Ministro da Guerra, Marechal Carlos Bittencourt, põe-se na frente do Presidente, recebe a punhalada e morre. Deu sua vida para salvar a do Presidente do Brasil. Ali, no chão, naquela calçada, existe ainda uma placa que deveríamos ir ver, para lê-la com reverência. Com estas visitas e com esta reverência é que se forma o patriotismo.
Os historiadores que se querem "objetivos" contam o fato e logo passam adiante e relatam outros. Perdem assim o fio que une os fatos e se esquecem de que há conexões profundas, laços espirituais entre fatos como aquele que acabamos de relatar e os subseqüentes. É só enumerá-los. O que aconteceu depois daquela morte, daquele sangue derramado daquela maneira?
Primeiro, dizem todos, o Brasil ficou comovido. Todos sentiram, de repente, como que a monstruosidade daquele clima de cobiças e de ódios mais ou menos imbecis. Prudente de Moraes dirige enérgico "Manifesto" ao país afirmando que a lei e a ordem iriam ser respeitados. Um Congresso rebelde e ambicioso de influências e favores não se atreveu mais a dizer "não", e logo concedeu ao presidente Prudente de Moraes a decretação do "estado de sítio". Alguns políticos de má índole foram afastados de suas funções em maiores problemas. Prudente de Moraes conseguiu utilizar seu último ano de governo para impor ao país a ordem e o respeito à sua autoridade e obtém o respeito de políticos e generais. Seu sucessor, Campos Sales, encontra um país já dotado, outra vez, de respeito à autoridade e à ordem pública. Com seu excelente Ministro da Fazenda, Murtinho, começa a recompor as finanças do país com severas (e impopulares) medidas de economia que talvez não pudesse fazer cumprir sem aquele bem público recuperado — isto é, a ordem, a paz relativa, o respeito à autoridade. Campos Sales deixa o governo com as contas pagas, dinheiro nos cofres e crédito recuperado no exterior. Rodrigues Alves, assumindo, encontra os dois ingredientes fundamentais para um bom governo: um clima de ordem pública, de confiança e de respeito imposto pelas autoridades (se queremos avaliar bem o que é isto, lembremo-nos do seu oposto, lembremo-nos, pr contraste, do clima vigente no governo, ou desgoverno João Goulart) e, além disso, as finanças do país equilibradas. A estes dois ingredientes, Rodrigues Alves acrescenta o terceiro e mais importante: cercou-se dos melhores e mais capazes auxiliares dentre os homens de seu tempo: o Barão do Rio Branco, Lauro Müller, Paulo de Frontin, Pereira Passos, Oswaldo Cruz. Com eles, e com os outros dois ingredientes, fez o Brasil crescer e desabrochar em todos os planos, tornando-o país respeitado entre os demais da América, próspero no seu progresso, embelezando-se no Rio e em outras cidades e erradicando doenças como a febre amarela, que ainda faziam do Rio de Janeiro uma cidade temida por viajantes. As condições econômicas e os dados estatísticos conhecidos da época, fazem dela o apogeu do progresso brasileiro até que os governos nascidos em 1964 batessem o seu recorde.
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É aqui que se impõe parar e voltar os olhos para trás. Não temos algum dever relativamente àquele sangue derramado? Não temos a obrigação de ver a relação entre os gestos de um herói e suas fecundas conseqüências? É evidente que o impulso vital levantado pelo sacrifício do Marechal Bittencourt foi o instrumento criador que levou todo um país a uma ascensão tão grande que durou até o terceiro governo seguinte, quando os efeitos e conseqüências daquele ato chegaram ao seu apogeu. Realmente, é com o governo Afonso Pena que começa a declinar o "élan" ascensional da primeira República e isso é visível a olho nu para quem leia a História do Brasil.
Falta, pois, aos nossos historiadores uma adequada filosofia da História. Se a tivessem, perceberiam que existem épocas em que se tem a impressão de que uma mão fecunda tocou o coração dos homens e assim, tudo o que fazem prospera e se integra em um vasto leque de iniciativas felizes. Assim foi, por exemplo, a época do rei São Luís na França, ou a do rei Alfredo na Inglaterra, ou a do rei Dom Dinis em Portugal, ou aquela dos nossos três primeiros governos civis, fecundados pelo sangue derramado por um herói militar.
Sabemos por outro lado e por outro gênero de saber, que é do mundo da inteligência espiritual verdadeira, da vontade espiritual, em atos de sabedoria e santidade e heroísmo e valor que pode nascer e prosperar aquele ímpeto vital que eleva os homens. Portanto, de uma civilização cristã que os eleva espiritualmente e com isso os faz capazes de bem agir, inclusive no mundo da economia ou da engenharia ou de qualquer outra atividade profana. Por isso é que, na verdade, é com o governo de santos e heróis que encontramos os melhores resultados possíveis em termos dos bens a serem partilhados pela multidão. Contrariamente, aparecem a decadência e a decomposição (que podem ser lentas ou rápidas) na medida em que os valores espirituais verdadeiros desaparecem do quadro geral daquilo que se aprecia no mundo em que vivemos.
(Permanência, Jan/Fev. de 1976)