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Ainda em torno de uma questão religiosa

Apesar da referência pessoal feita a mim pelo Sr. embaixador do México, em uma de suas últimas entrevistas, não venho discuti-las, propriamente. Não quero fazer mal a S. Ex., e elas já deixaram ver tão claro a pouca prática ou o temperamento anti-diplomático do ilustre mexicano. — S. Ex. critica publicamente o nosso ministro do Exterior e fala na possibilidade de um rompimento de relações entre os dois países... — elas já deixaram ver tão claramente que S. Ex. julga razoável manter para com os brasileiros a linguagem que o seu governo fala ao povo mexicano, [*] o seu admirável governo. Apesar dos seus admiráveis processos de política interna, é bem capaz de desautorizá-lo, como a quem esqueceu as mais comezinhas reservas que deve ao exercício de sua função...

Não quero, pois, concorrer para o desespero de S. Ex., máxime após a sua também pública confissão de que o seu governo é um derrotado em face da opinião do mundo culto. De S. Ex. basta-me isso. Da boca de um diplomata, do representante de um governo que diz ter as aspirações normais de todo governo, isto é, ser estimado e respeitado, aquela confissão vale como um dobre a finados... Sempre os sinos...

O que vale a pena discutir, em uma nação livre como a nossa, é o “fruto” da chamada Constituição, que o Sr. embaixador, como todos os representantes do atual governo do México, afirma será executada naquele país, caindo sobre a consciência dos que o formam como peso de irrecusável direito dos que já se apossaram do poder... O sofisma que batiza de “clericais” a todos os católicos que defendem seus direitos não poderia aparecer ali porque, como lei positiva a ser aplicada, o novo direito mexicano prefere desconhecer brutalmente a história da nação, e atuar como sobre seres nascidos com ele, indistintos ainda, sem memória, sem caráter próprio, e, à primeira vista, o Estado mexicano está em absoluta contradição com o axioma de moral política de que ele, o Estado, funciona para o país e para o que o “constitui”, pois todo o mundo sabe que só o México – abstração dos seus atuais dominantes, poderia ser esse organismo absolutamente neutro em matéria de fé religiosa.

Mas um juízo que assim se formulasse sobre o atual estado de coisas naquela República, e, sobretudo, sobre a sua suposta lei fundamental, ainda seria juízo positivamente inquinado de simplismo tal, de ingenuidade tal, que poder-se-ia confundir com a idiotice.

A pretensa Constituição do México não esquece a nação mexicana. Pelo contrário: tem-na bem presente, visa-a de todos os modos, mas para combatê-la, feri-la, despedaçá-la, humilhá-la e envergonhá-la, e o que os guia, nos seus autores e executores, em toda essa impatriótica campanha, é, justamente, esse anticatolicismo, que eles chamam anticlericalismo, tão mal escondido nas dobras da mortalha com que querem vestir uma nação que deve à Igreja de Jesus Cristo tanto, pelo menos, como qualquer outra nação americana.

“É do Estado, sobretudo, que depende o encontrar a pura política da Igreja, porque só a perseguição solidariza, nesta, os bons e os maus elementos”.

E é este sempre o processo dos miseráveis tiranizantes de consciência dos povos cristãos: coarctam, perseguem, espezinham, ensangüentam, e quando, a excessos tais, os católicos respondem com energia, protestam e fazem face ao despotismo, logo esses monstruosos títeres criam a lenda do clericalismo, e buscam realizar contra todos os católicos o que uma legislação, mesmo revolucionária e ateizante, só poderia fazê-lo contra um ou outro temperamento de católico mais inquieto e irrefletido.

O nosso grande jurisconsulto, Lacerda de Almeida, assim resume, na sua notável obra sobre as relações da Igreja e o Estado no Direito Brasileiro, a situação de fato da maioria absoluta dos governos contemporâneos:

“Os governos na época atual são mantidos pelo prestígio que lhes dá a organização aparente com que se combinam o capital, já meio desmantelado, a força dos exércitos permanentes, expostos cada vez mais à influência destruidora da indisciplina e do bolchevismo, e o funcionalismo, que é o mais seguro esteio das situações políticas, porque delas vive; todos esses elementos juntos a um resto de tradição, alimentados e aumentados pelos esforços da moral cristã e do espírito conservador do catolicismo, mal agüentam o estado atual das coisas, trazendo-nos sempre suspeitosos da segurança e estabilidade dos governos, e, em geral, da ordem estabelecida: o mundo inteiro parece estar sobre um vulcão, tal a desorganização que reina em tudo”.

Esta situação é o lamentável resultado — como o demonstra o mestre brasileiro — de ter o Estado moderno se originado de uma concepção absolutamente arbitrária de sua própria finalidade, concepção em que fica, por assim dizer, esquecida, a existência de um Direito ao qual estão subordinadas Constituições políticas e leis administrativas e civis, Direto que vive e desempenha o papel de censor, mestre e juiz de todos os atos legislativos, e não só os julga, critica e interpreta, senão que os vai aplicando, modificando, retificando e transformando ao sabor das circunstâncias, aos reclamos do tempo, e, sobretudo, às exigências da intuição jurídica nacional.”

Sabe-se que não incide o pensamento do mestre brasileiro em doutrinarismo hegeliano ou evolucionista. Aceitando as idéias profundamente ortodoxas de Vico, Lacerda de Almeida nada mais quer que acentuar “a existência de um Direito Natural e Superior, obra divina, que vai regendo os povos e lhes inspira as leis positivas, não só as corrige e critica, mas se insinua e domina a despeito de opiniões de partidos e de sistemas filosóficos de bom ou mau grado aceitos, em todo caso dissonantes da índole, da história e das aspirações da nacionalidade”.

E preceitua: “O direito é como a língua, uma coisa nacional e assim como a língua não é pura criação da raça, mas toma de empréstimo a outras línguas e vai buscar em um passado comum os elementos que a constituem; assim também o Direito: é nacional e tem raízes estrangeiras; zomba de quantas tentativas façam para desnacionaliza-lo, convertendo-o em espelho e cópia de instituições exóticas, ou, o que é pior, um campo de experiências para opiniões filosóficas e teorias de ideólogos por acaso guindados ao supremo poder”.

Dentro deste ponto de vista, rigorosamente filosófico, julgue o leitor brasileiro, católico ou não, que denominação merecem os atuais dominadores da grande nação mexicana, que não poderão jamais provar que seja uma exigência de sua pura intuição jurídica nacional o que os leva a desconhecer as normas mais comezinhas do Direito Natural, aquelas que garantem a qualquer povo o respeito a si próprio, às bases de moralidade universal sobre as quais se formou e se caracterizou como coletividade. Isto, como disse, de um ponto de vista rigorosamente filosófico.

Ora, de um ponto de vista histórico, no México, como em todo o mundo ocidental, não é possível negar que a Igreja, como sociedade orgânica, antecedeu ao Estado ou, pelo menos, que, ao lado dele, como ele, sofresse solução de continuidade que alterasse a sua natureza e fins dentro da vida americana. Mais do que em qualquer outra parte mesmo, é na América que se encontra a diferença essencial entre os dois organismos: “o primeiro — diz Demenran (L’Église) resulta de uma análise: é com efeito após a sua instituição divina, e conformemente às leis progressivas desta instituição, que a Igreja se dividiu em sociedades inferiores, distintas umas das outras, ligadas todas entre si pela mesma fé, os mesmos sacramentos e o mesmo chefe visível. O segundo resulta de uma síntese, pois o Estado deve a sua existência à união das sociedades inferiores preexistentes, tais como as famílias, cidades e províncias.”

Isto quer dizer que o Estado moderno (e o mexicano, pois), não encontrou as nações em estado de natureza, seja qual for a idéia, falsa ou verdadeira que dele se faça, é um condicionado à história do Cristianismo, e, em matéria de respeitabilidade, seria impossível contrapor a autoridade de qualquer desses Estados à autoridade da Igreja, que os ajudou a formar-se, a progredir e viver, enfim, vida digna de ser vivida.

“Por isso, um homem como Tainé, a quem certamente o Sr. Embaixador do México, por menos que o conheça, não ousará chamar de fanático, não recuava ante a afirmação de que, dentro do Estado tal como o conhecemos no mundo Ocidental, a Igreja Católica, “força social distinta e permanente e de primeira ordem, todo o cálculo político que não contar com ela, está errado”.

Ora, no domínio da realidade política, estamos diante dos seguintes fatos, segundo as próprias afirmações eu aqui se apresentam como oficiais: há atualmente um país de 15 milhões de católicos, que não são só excluídos, mas perseguidos como tais, por um grupo de indivíduos, que dizem encarnar o Estado naquele país.

Esse Estado, dizem eles que é a expressão da vontade daqueles mesmos quinze milhões de criaturas.

Eis tudo quanto se pôde compreender de tão grosseira quanto confusa literatura oficial mexicana, que tem chegado até nós.

E temos que crer no que ela diz, porque todo o mundo culto está aí a protestar horrorizado contra a existência, de fato, de uma Constituição mexicana, que é uma negação absoluta daquele povo, segundo os dados mais positivos da história.

Dessa literatura, toda a parte que constitui a defesa dos tiranizadores do México, não merece, como já dissemos, maior atenção. É a ideologia bolchevista através de uma mentalidade de tropeiros, é o radicalismo revolucionário e paganizante agitado por vaqueanos, embriagados pela água ardente de um poder que eles julgam eterno.

Parece incrível!

Para atacarem a Igreja, para justificarem as suas tropelias contra o lar mexicano, esses homens não recuam em caluniar os seus antepassados ou em lançar contra irmãos de sangue a pecha de traidores da pátria!

Parece que não foram poucos os “clericais”, os padres católicos, os fervorosos crentes católicos que contribuíram com o seu sangue e o seu denodo, para solidificarem a Independência do México, coisa, ao que também nos parece, mais séria, muito mais séria, que a solidificação das idéias de Elias Calles e seus comparsas, ante a consciência daquele país.

Os católicos do México, que se miram em tais exemplos, são hoje acusados por homens que os “representam” no estrangeiro, como capazes de atrair sobre o seu país as ganas imperialistas dos Estados Unidos!

A acusação é muito baixa demais para ser respondida.

Mas é, assim, que, em geral, fazem e obram os que, por ódio à Igreja, acabam por perder, de todo, o respeito que devem à própria pátria.

E, se pudessem, fariam mais.

Aquela palavra do personagem de Chesterton, eles talvez não a conheçam: “Começais por quebrar a cruz, mas acabareis por destruir o mundo habitável”.

Por que a outra, essa, eles a esqueceram: a que anunciou que o mundo habitável não permanecerá um dia mais que a Igreja visível e militante, fundada com o sangue de Jesus Cristo.

 
(Gazeta de Notícias, 4 de Agosto de 1926)

 


[*] palavra ilegível no original.

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