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Art. 3 ─ Se a alma separada pode sofrer a ação do fogo corpóreo.

O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a alma separada não pode sofrer a ação do fogo corpóreo.

1. ─ Pois, Agostinho diz: Não são cousas corpóreas, mas semelhantes às corpóreas as que afetam, para bem ou mal delas, as almas separadas do corpo. Logo, a alma separada não pode ser punida pelo fogo material.

2. Demais. ─ Agostinho, no mesmo livro diz, que o agente é sempre mais nobre que o paciente. Ora, é impossível um corpo mais nobre que a alma separada. Logo, não pode ela sofrer a ação de nenhum corpo.

3. Demais. ─ Segundo o Filósofo e segundo Boécio, só podem ser ativos e passivos uns em relação aos outros os seres que comunicam pela matéria. Ora, a alma e o fogo corpóreo não comunicam pela matéria, porque não há nada de material comum entre os seres espirituais e os corpóreos. Por isso não podem transformar-se uns nos outros. Logo, a alma separada não pode sofrer nada do fogo corpóreo.

4. Demais. ─ Tudo o que sofre uma ação recebe alguma cousa do agente. Se, pois, a alma sofrer a ação do fogo corpóreo, dele receberá alguma coisa. Ora, tudo o que um ser recebe de outro ao seu modo o recebe. Logo, o que a alma receber, do fogo, nela não existirá materialmente, mas espiritualmente. Ora, formas das causas existentes na alma espiritualmente constituem perfeições dela. Logo, admitindo-se que a alma pode sofrer uma ação fogo corpóreo, não o será para sua pena, mas, antes, para a sua perfeição.

5. Demais. ─ Se se disser que a alma punida pelo fogo só pelo ver, como parece ser a opinião de Gregório, objeta-se em contrário. ─ Pois, se alma vê o fogo do inferno, não no poderá ver senão por uma visão intelectual, porque não tem órgãos por onde se exerça a visão sensitiva ou a imaginativa. Ora, a visão intelectual não pode ser causa de tristeza, porque ao prazer da contemplação nenhuma tristeza contrária, segundo o Filósofo. Logo, por essa visão a alma não será punida.

6. Demais. ─ Se se disser que a alma sofre a ação do fogo material, por ficar encerrada nele como o está no corpo, enquanto vivo unida a este, objeta-se em contrário. - Pois, a alma enquanto unida ao corpo está encerrada nele porque dela e do corpo resulta uma unidade, como da matéria e da forma. Ora, a alma não será a forma desse fogo corpóreo. Logo, não poderá, ao modo sobredito ser nele encerrada.
 
7. Demais. ─ Todo agente material age por contato. Ora, nenhum contato pode haver entre o fogo corpóreo e a alma, pois contato só pode existir entre corpos cujas extremidades se tocam. Logo, a alma não pode sofrer a  ação de um tal fogo.

8. Demais. ─ Um agente instrumental não pode atuar sobre os corpos afastados senão atuando sobre os que estão no meio; e assim pode agir numa determinada distância proporcionada à sua virtude. Ora, as almas, ou pelo menos os demônios, que se acham nas mesma condições, podem achar-se fora do lugar inferno, e às vezes aparecem aos homens neste mundo. Mas nem por isso ficam imunes da pena; pois, assim como a glória dos santos nunca se interrompe, assim também não a pena dos demônios condenados. Ora, não vemos que o fogo do inferno se faça sentir em todos lugares intermediários que separam os demônios, da sua eterna morada. Nem além disso é crível que um elemento de natureza corpórea tenha tão grande energia, que possa alcançar uma tão grande distância. Logo, as penas sofridas pelas almas condenadas não são causadas por nenhum fogo corpóreo.

Mas, em contrário. ─ O mesmo se dá com as almas separadas e com os demônios, quanto a sofrerem a ação de um fogo corpóreo. Ora, os demônios sofrem a ação dele, pois são punidos pelo fogo onde serão precipitados os corpos dos condenados depois da ressurreição, fogo que há de ser de natureza corpórea, como se conclui da sentença do Senhor: Apartai-vos de mim, malditos, para o jogo eterno, que está aparelhado para o demônio e para os seus anjos. Logo, também as almas separadas podem sofrer a ação do fogo corpóreo.

2. Demais. ─ A pena deve corresponder à culpa. Ora, pela culpa a alma, arrastada pela gravidade da concupiscência, sujeitou-se ao corpo. Logo, é justo que, como pena, sofra a ação de um agente corpóreo.

3. Demais. ─ Mais íntima é a união entre a forma e a matéria do que entre o agente e o paciente. Ora, a diversidade da natureza espiritual e corporal não impede seja a alma a forma do corpo. Logo, também não impede que possa sofrer a ação de um agente material.

SOLUÇÃO. ─ Suposto que o fogo do inferno não seja simplesmente metafórico nem imaginário, mas um verdadeiro fogo material, é forçoso admitir que a alma sofrerá as penas desse fogo. Pois, segundo as palavras do Senhor, esse fogo está aparelhado para o demônio e para os seus anjos. Ora, estes são incorpóreos, como a alma. Mas, como pode a alma sofrer a ação de tal fogo, é variamente explicado.

Assim, certos ensinaram que já o simples fato de a alma ver o fogo implica em sofrer-lhe a ação. Por isso Gregório diz: Por isso mesmo que a alma vê o jogo, já lhe sofre a ação. ─ Mas esta explicação é insuficiente. Porque a visão de qualquer objeto constitui por si mesma uma perfeição do agente que vê. Por isso não pode o fogo, só enquanto visto, constituir uma pena para quem o vê. Pode porém, por acidente, ser o fogo, simplesmente visto, uma causa de punição e de dor, enquanto apreendido como nocivo. Por onde e necessariamente, para esse fogo poder causar à alma um sofrimento, não basta que ela o veja, mas deve ainda ter um certo contato com ele.

Por isso outros disseram, que embora um fogo material não possa queimar a alma, contudo esta o apreende como nocivo para si; e dessa apreensão lhe resulta o temor e a dor, de modo a cumprir-se o dito da Escritura: Ali tremerão de medo onde não havia que teme?. Donde o dizer Gregório, que a alma é realmente queimada pelo só fato de se ver queimar. ─ Mas também esta explicação não é suficiente. Porque então, a alma sofreria a ação do fogo, não realmente, mas só como apreensão. Pois, embora, como diz Agostinho, uma falsa imaginação possa ser causa de tristeza ou de dor reais, contudo não se pode dizer que esse sofrimento assim imaginário provenha de um agente real, senão só da imagem da realidade concebida. Além disso, esse modo de sofrer mais diferiria de um sofrimento real, que o causado por visões imaginárias; porque seria este derivado de imagens verdadeiras de objetos, se concebidas pela alma, ao passo que o primeiro resultaria de falsas concepções que alma em si enganosamente formou. ─ Além disso, não é provável que as almas separadas ou os demônios, dotados de subtileza de engenho, pensassem que um fogo material lhes pudesse causar mal, se nenhum sofrimento dele recebessem.
 
Por isso ensinam outros ser forçoso admitir que a alma sofre realmente pelo fogo material. Donde o dizer também Gregório: podemos coligir, das expressões do Evangelho, que a alma arde, não só por ver o jogo, mas também por lhe experimentar a ação. E assim explicam como isso pode ser. Esse fogo material, dizem, pode ser considerado a dupla luz. Primeiro, como um ser corpóreo; e então não pode exercer nenhuma ação sobre a alma. Segundo, como instrumento da vingança da justiça divina. Pois, a ordem da divina justiça exige que a alma que se apegou pelo pecado às causas materiais, também sofra a pena causada por elas. Ora, um instrumento age não só por virtude da própria natureza, mas também por virtude do agente principal. Não há portanto absurdo em esse fogo, atuando em virtude de um agente espiritual, produzir o seu efeito no homem ou no demônio, ao modo por que também explicamos a santificação da alma pelos sacramentos.

Mas também esta opinião é insuficiente. Porque todo instrumento, quando funciona como tal, tem uma ação própria e conatural sobre o ser que a sofre, além daquela que exerce por influência do agente principal. E até mesmo, quando exerce a sua ação própria, há de também necessariamente exercer a segunda. Assim a água, lavando o corpo no batismo, santifica a alma; e a serra, cortando a madeira, produz a forma da casa. Por onde, é forçoso atribuir ao fogo uma certa ação sobre a alma, que lhe seja conatural a ele, para ser instrumento da justiça divina vingadora dos pecados.
 
Devemos, pois, pensar que um corpo não pode agir naturalmente sobre o espírito, nem se lhe opor ou gravá-la de qualquer maneira, senão enquanto o espírito está de algum modo unido ao corpo; assim, como diz a Escritura, o corpo que se corrompe, jaz pesada a alma. Ora, um espírito pode estar unido ao corpo, de dois modos. ─ Primeiro, como a forma à matéria, donde resulte uma completa unidade. E assim o espírito está unido ao corpo e o vivifica, sendo também de algum modo gravado por ele, Ora, neste sentido, o espírito do homem ou do demônio não está unido ao fogo material. ─ Segundo, como o motor ao móvel, ou como o localizado ao lugar, modo por que os seres incorpóreos ocupam um lugar. E neste sentido, os espíritos incorpóreos criados são circunscritos pelo lugar, de modo que estando em um não estarão em outro. Embora, pois, um ser corpóreo, pela sua natureza mesma, circunscreva num lugar o espírito incorpóreo, não pode contudo, por essa natureza, reter o espírito incorpóreo, preso a um lugar, de modo ligado a este que não possa ocupar outro: porque um espírito não ocupa nenhum lugar, tão naturalmente que fique a ele ligado. O fogo corpóreo porém, enquanto instrumento da justiça divina vindicante, recebe a propriedade especial de ligar o espírito. E assim lhe constitui uma pena, impedindo-lhe obedecer à sua vontade própria, de modo a não poder agir quando quer e como quer.

Tal a explicação que oferece Gregório. Assim, expondo como a alma pode arder por ação do fogo, diz: Desde que a própria verdade nos ensina, que o mau rico é condenado ao fogo do inferno, que homem sábio ousaria negar que as almas dos réprobos são presas das chamas? E isso mesmo ensina Juliano, segundo o refere o Mestre: Se o nosso espírito incorpóreo esta unido ao corpo, enquanto vivemos, porque não poderá depois da morte sofrer a ação de um fogo corpóreo? E Agostinho também diz, que como na condição humana a alma esta unida ao corpo, sendo-lhe assim o princípio da vida, embora seja ela espiritual e ele material; e dessa união resulte o seu veemente amor pelo corpo, assim esta ligada ao fogo, de modo a lhe sofrer a pena, e dessa união concebe um verdadeiro horror.

Assim, pois, reduzindo todas essas explicações a uma só, a fim de compreendermos perfeitamente como a alma pode sofrer a ação de um fogo material, dizemos o seguinte: Ao fogo, por natureza, pode-se-lhe unir o espírito incorpóreo, como o localizado com o lugar. Mas enquanto instrumento da justiça divina, pode de certo modo retê-lo ligado; e assim a alma será cruciada pelo fogo vendo-se como lhe é nocivo. Por isso Gregório passa em revista todas essas explicações, como se vê dos seus lugares supra-citados.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Agostinho se exprime como indagando. Por isso, noutro lugar se exprime como quem resolve, conforme do sobredito se colhe. ─ Ou devemos responder que Agostinho entende que as causas imediatas de dor ou de tristeza para a alma são causas espirituais; pois, não sofreria se não apreendesse o fogo como capaz de lhe causar dano. Assim, o fogo apreendido como doloroso é a causa próxima do tormento, e o fogo material exterior à alma é a causa remota desse mesmo tormento.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a alma, em si mesma considerada, seja de natureza mais nobre que o fogo, de certo modo porém o fogo, enquanto instrumento da justiça divina, é mais nobre que ela.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O Filósofo e Boécio se referem aquela ação pela qual o paciente se transforma em a natureza do agente. Ora, tal não é a ação do fogo sobre a alma. Por isso objeção não colhe.

RESPOSTA À QUARTA. ─ O fogo que age sobre a alma, não a modo de agente influente, mas retendo-a presa, como do sobre dito resulta. Por isso a objeção não vem a propósito.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Para a visão intelectual, nenhuma pena pode resultar de um objeto visto; pois, nenhum objeto visto pode como tal, ser contrário ao intelecto. Tratando-se porém da visão corpórea, um objeto, pela ação mesma que exerce sobre os olhos, de modo a ser visto, pode fazer mal à vista, acidentalmente, destruindo a harmonia do órgão. Com tudo, a visão intelectual pode ser causa de pena quando apreendemos como nociva a causa vista não por causar qualquer dor só pelo fato de ser vista, mas de qualquer outro modo. Ora, neste sentido, a alma sofre pela só vista do fogo.
 
RESPOSTA À SEXTA. ─ O símile não é total, mas parcial, como do sobredito resulta.

RESPOSTA À SÉTIMA. ─ Embora não haja contato corpóreo entre a alma e o corpo, há contudo entre ambos um certo contato espiritual. Assim como o motor do céu, sendo espiritual move o céu por um contato espiritual com ele ao modo por que se diz que um objeto contristante nos toca, conforme o ensina Aristóteles. E este modo de contato basta para agir.

RESPOSTA À OITAVA. ─ Os espíritos condenados nunca saem do inferno senão por divina permissão, para instrução ou exercício dos eleitos. Mas onde quer que estejam, fora do inferno, sempre tem à vista o fogo como pena que lhes foi aparelhada. Por onde, sendo essa visão uma causa imediata de sofrimento, conforme se disse, estejam onde estiverem, são sempre atormentados pelo fogo do inferno. Assim como os presos, mesmo quando fora do cárcere, de certo modo lhe sofrem as agruras, vendo-se condenados a ele. Por isso, assim como a glória do eleitos não se lhes diminui, quanto ao prêmio essencial nem quanto ao acidental, mesmo que possam vir a sair do céu empíreo, o que de certo modo lhes redunda em glória, assim também em nada fica diminuída a pena dos condenados quando saem temporariamente do inferno para permissão divina. Tal o que diz a Glosa, aquilo da Escritura ─ Tisna a roda do nosso nascimento, etc.: O diabo, esteja onde estiver, sob o ar ou sob a terra, leva, consigo os tormentos das suas chamas. A objeção porém procederia se o fogo corpóreo fosse uma causa próxima de tormento para os espíritos, como o é para os corpos.

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