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O Progresso Espiritual em Maria

 

O progresso espiritual é antes de tudo o progresso da caridade, que inspira e anima as outras virtudes – cujos atos se tornam meritórios –, de forma tal que as virtudes infusas, que são conexas da caridade, se desenvolvem na proporção daquele progresso, como na criança crescem ao mesmo tempo os dedos da mão1.
 
Convém saber o porquê e o como do desenvolvimento constante da caridade em Maria e o ritmo dessa progressão. O método que seguimos nos obriga a insistir nos princípios que remetem à firmeza e à elevação da Mãe de Deus, de molde a em seguida aplicá-los com segurança à sua vida.

 

 


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A aceleração do progresso na Santíssima Virgem
 

Por que deveria a caridade crescer nela sem parar até a morte?
 
Antes do mais, porque tal crescimento é conforme à natureza da caridade no caminho para a eternidade e também ao preceito supremo: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento”, de acordo com a gradação ascendente expressa em Deuteronômio 6, 4 e em São Lucas 10, 27. Segundo tal preceito, soberano entre os preceitos e superior aos conselhos, os cristãos – cada qual conforme sua condição – devem tender à perfeição da caridade e das outras virtudes, quer no estado matrimonial, quer no estado religioso ou na vida sacerdotal2. Nem todos são chamados à prática dos três conselhos, mas hão de aspirar ao espírito deles, que é o espírito do desapego aos bens terrenos e a si mesmo, para que se avulte o apego a Deus. Só em Nosso Senhor não existe tal aumento ou progresso da graça e da caridade, pois que recebera desde o instante da concepção a plenitude absoluta, conseqüência da união hipostática (afirma o 2º Concílio de Constatinopla que Jesus não melhorou por meio do progresso das boas obras3, não obstante tivesse cumprido sucessivamente os atos de virtude correspondentes às diferentes idades da vida).
 
Maria, ao contrário, durante a vida terrena se tornou cada vez melhor. Mais ainda, houve nesse progresso uma aceleração maravilhosa, segundo o princípio que formulou S. Tomás acerca desta palavra da Epístola aos Hebreus 10, 25: “Animemos uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia (final).” Nesse trecho, escreve o Doutor Angélico no Comentário à epístola: “Poderia alguém perguntar: ‘Por que progredimos mais e mais na fé e no amor?’ A resposta é que o movimento natural (ou conatural) se torna tanto mais rápido quando mais se aproxima do termo (do fim que o atrai). Para o movimento violento, já é o inverso. (De fato dizemos atualmente: a queda dos corpos tem aceleração uniforme, ao passo que o movimento inverso – o da pedra lançada ao ar na vertical– tem desaceleração uniforme). Ora, continua S. Tomás, a graça aperfeiçoa e inclina ao bem, segundo o caminho da natureza (à semelhança de segunda natureza); segue-se daí que aqueles que estão em estado de graça devem portanto crescer em caridade na medida em que se aproximam do fim último (que os atrai). Por isso se diz na Epístola aos Hebreus 10, 25: ‘Não abandonemos as assembléias, mas animemos uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia (final)’, i. e., o termo da viagem. Diz-se alhures: ‘A noite está quase passada, o dia se aproxima’ (Rm 13, 12). ‘A vereda dos justos é como luz que resplandece, vai adiante e cresce até ao dia pleno’ (Pr 4, 18)4.
 
Faz S. Tomás, antes da descoberda da lei da gravitação universal, essa observação profunda de locução simples, quando só de modo mui imperfeito se conhecia – sem havê-la medido – a aceleração dos corpos; ele percebera nisso um símbolo do que havia de ser a aceleração do progresso do amor a Deus na alma dos santos que gravitam na órbita do sol dos espíritos e da fonte de todo o bem. Quer afirmar o santo doutor que, para os santos, na medida em que se acentua a intensidade da vida espiritual e a presteza e a generosidade com que eles se dirigem a Deus, tanto mais se aproximam Daquele que os vai atraindo mais e mais para Si. Eis a lei da atração universal na ordem espiritual. Assim como se atraem os corpos na razão direta da massa e na razão inversa do quadrado da distância, i. e., na medida em que se aproximam, assim atrai Deus as almas dos justos, na medida em que se aproximam Dele.
 
Eis a razão de a trajetória do movimento espiritual da alma dos santos elevar-se até ao zênite e daí não declinar; para eles não há crepúsculo: na velhice, só se lhes enfraquecem o corpo e as faculdades sensíveis. Eis então o progresso do amor na vida dos santos. Eles progridem, como é manifesto, muito mais rápido nos últimos que nos primeiros anos de vida. Em espírito caminham a marche-marche, malgrado a pesadez da velhice – “renova-se, como a da águia, a sua juventude” (Sl 102, 5).
 
Vê-se tal progresso cada vez mais célere, sobretudo na vida da Santíssima Virgem na terra, pois nela não havia sombra de vississitude, interrupção ou morosidade, nem delongas em coisas da terra ou em si mesma. E era tão mais intenso esse progresso em Maria quanto maior era a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em Maria (sobretudo se pela ciência infusa, como é provável, ela se guardara do uso da liberdade e do mérito durante o sono) uma aceleração maravilhosa do amor a Deus, aceleração cuja imagem longínqua é a gravitação dos corpos.
 
Ensina a física moderna que se a velocidade da queda dum corpo no primeiro segundo é 20, no segundo segundo há de ser 40, no terceiro 60, no quarto 80, no quinto 100. É o movimento acelerado uniforme, símbolo do progresso espiritual da caridade na alma que, sem óbices, se dirige tanto mais rápido a Deus, na medida em que se aproxima Daquele que a vai atraindo para Si. Assim é normal que nessa alma cada comunhão espiritual ou sacramental seja dum fevor mais fervoroso que o precedente e por isso mais frutífero. Em oposição, a pedra lançada ao ar na vertical, em movimento desacelerado uniforme até que caia, simboliza o progresso da alma tíbia, sobretudo se o apego progressivo ao pecado venial lhe torna as comunhões cada vez menos fervorosas ou lhe diminui dia após dia a devoção substancial da vontade.
 
Demonstram-nos tais princípios o que é o progresso espiritual em Maria desde o instante da Imaculada Conceição, sobretudo se nela se interrompeu, como é provável, o uso do livre-arbítrio já no ventre materno5. Ademais, como parece certo que a plenitude inicial da graça em Maria já superasse a graça final dos santos todos reunidos, a aceleração da marcha ascendente em direitura a Deus supera tudo quanto possamos dizer6.
 
Nada a retardaria, nem as feridas do pecado original, nem o pecado venial, nem negligência ou distração, nem imperfeição, pois que estava ela sempre presta a seguir a inspiração dada em forma de conselho. Eis uma alma que, após o mais perfeito dos votos, seria plenamente fiel a ele. Deveria Sant’Ana ser apossada da perfeição singular de sua filha santa; todavia não podia ela suspeitar que se tratava da Imaculada Conceição, nem que chamariam Maria a Mãe de Deus. Era a filha sua muitíssimo mais amada de Deus que poderia Sant’Ana conceber. Guardadas as proporções, Deus ama cada justo mais que poderia cada justo conceber; para sabê-lo, seria mister conhecer plenamente o valor da graça santificante, gérmen da glória; e para conhecer o valor do gérmen espiritual em sua inteireza, seria mister haver gozado um instante da beatitude celeste, assim como para conhecer o valor do gérmen na pinha, é mister haver contemplado o roble pujante, que nasce dum tão pequeno gérmen. Amiúde estão contidas em sementes quase imperceptíveis as grandes coisas, qual um grão de mostarda ou um rio imenso que brota dum filete tênue.
 
 
 

O progresso espiritual em Maria pelo mérito e pela oração 

Devia então a caridade crescer na Santíssima Virgem sem interrupções, conforme ao supremo preceito do amor. Mas como se deu o aumento? Por meio do mérito, da oração e da comunhão espiritual com o Deus presente em espírito na alma de Maria, desde o início da existência dela. Força é recordar que, antes de tudo, não aumenta a caridade em extensão pois, ainda que em ínfimo grau, aquela virtude já ama a Deus – com amor de estima – acima de tudo e ao próximo como a si mesmo, sem acepção de pessoa, não obstante mais tarde a devoção estender-se de modo progressivo. Cresce a caridade mormente em intensidade, radiculando-se mais e mais nossa vontade adentro, ou para falar sem metáfora, determinando com maior força a inclinação da vontade no afastar-se do mal e do menos bom e no comportar-se com generosidade ante Deus. Há um crescimento da ordem, duma ordem que não é quantitativa, como a dum montão de trigo, mas qualitativa, como quando se torna mais intenso o calor ou quando a ciência, sem novas conclusões, se torna mais penetrante, profunda, unificada e certa. Assim tende a caridade a amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo – com maior perfeição, pureza e força – para que glorifiquemos a Deus no tempo e na eternidade. Destarte sublinha-se, acima de todo motivo secundário ou acessório no qual antes se detinha, o objeto formal e o motivo formal da caridade, bem como os das outras virtudes. De ínicio se ama a Deus por conta dos benefícios recebidos e esperados, e não tanto por Si mesmo; após, entra-se na consideração de que o benfeitor é em si um bem melhor que os bens que Dele dimanam, merecendo o amor por Si mesmo, em razão de Sua bondade infinita.

Aumenta-nos a caridade como a uma qualidade, qual o calor que se intensifica, e assim de modos muito vários, quer pelo mérito, quer pela oração, quer pelos sacramentos. Com maior razão fez as três coisas Maria, sem sombra de imperfeição. O ato meritório procedente da caridade ou da virtude que a caridade inspira dá direito a uma recompensa sobrenatural e, antes do mais, ao aumento da graça habitual e da mesma caridade. Não produzem os atos meritórios, por si próprios e de modo direto, o aumento da caridade, pois que não é virtude adquirida que se produza ou aumente com a repetição dos atos, mas é virtude infusa. Como só Deus pode produzi-la, já que é participação na Sua íntimidade, somente Ele pode aumentá-la. Por isso diz São Paulo: (1 Cor 3, 6-9): “Eu plantei (com a pregação e o batismo), Apolo regou, mas quem faz crescer é Deus.”; (2 Cor 9, 10): “Ele fará crescer os frutos da vossa justiça.”
 
Se não podem os atos de caridade produzir o aumento dessa virtude infusa, entretanto concorrem para esse aumento de duas maneiras: moralmente, ao merecê-las; e fisicamente, na ordem espiritual, ao nos dispor a recebê-las. Tem a alma por mérito seu receber o crescimento que há de fazê-la amar a Deus com mais força e pureza; dispõe-se a alma a receber tal crescimento, de molde a que os atos meritórios aprofundem e dilatem as faculdades superiores, para que o divino possa mormente penetrá-las e, purificando-as, elevá-las. Mas nos acontece amiúde que os atos meritórios restam imperfeitos – remisso, dizem os teólogos, ou remitentes (tal como se diz calor remitente ou fervor remitente), i. e., inferior ao patamar da virtude da caridade que está em nós.

Na posse duma caridade de três talentos, é comum acontecer de agirmos como se apenas houvéssemos dois, qual um homem atilado que por negligência só aplicasse mui de leve a inteligência. São ainda meritórios esses atos de caridade imperfeita ou remitente, mas segundo S. Tomás e os antigos teólogos, não obtêm eles os aumentos de caridade que mereceriam, pois que se não dispõem a recebê-los7. Quem tiver uma caridade de três talentos e opera como se apenas tivesse dois, não se dispõe a contento para receber o aumento dessa virtude até aos quatro talentos. Só há de obtê-lo à consecução dum ato mais generoso ou intenso dessa virtude ou dessoutras virtudes inspiradas ou governadas pela caridade.

Esclarecem deveras tais princípios o que foi em Maria o progresso espiritual por meio dos méritos próprios. Nela jamais houve ato imperfeito ou remitente: seria isso imperfeição moral ou generosidade contida ao serviço de Deus. Os teólogos, como vimos, são todos acordes em negar a ela essa imperfeição. Por isso seus méritos obtêm tão logo o aumento da caridade merecida. Ademais, para melhor avaliar o valor dessa generosidade, é mister recordar – de acordo com o ensinamento comum8 – que maior é a glória de Deus por um só ato de caridade de dez talentos que por dez atos de caridade de um talento só. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo praz mais a Deis que muitos que reunidos permaneçam em relativa mediocridade ou tibieza.

Supera a qualidade à quantidade, sobretudo nesse domínio espiritual. Eram os méritos de Maria mais que perfeitos. Seu coração puríssimo dilatava-se mais e mais e alargava-se a capacidade divina nela, segundo a palavra so Sl 118, 32: “Correrei pelo caminho dos teus mandamentos, quando me dilatares o coração.” Enquanto ficamos esquecediços de que somos viajantes no caminho da eternidade e desejamos nos instalar na vida presente como se fosse ela durar para sempre, Maria tinha os olhos fitos no fim último da viagem, em Deus. Não perdia um minuto do tempo que lhe era concedido. Cada instante de vida terrestre adentrava no instante único da imobilidade eterna pela via dos méritos acumulados e cada vez mais perfeitos. Ela analisava os momentos da própria vida, não apenas pela linha horizontal do tempo que marca o devir terrestre, mas pela linha vertical que os remete ao instante eterno e impassável. Além disso, força é notar que, como ensina S. Tomás, na realidade concreta da vida não existe ato deliberado indiferente; ainda se assim fosse (i. e., moralmente nem bom nem mau), o mesmo objeto da ação – como sair a passeio ou ensinar matemática – tornaria esse ato moralmente bom ou mau, por conta do fim a que se propõe, pois que sempre deve um ser racional agir por um motivo racional, um fim honesto, e não somente deleitável ou útil9. Segue-se que numa pessoa em estado de graça o ato deliberado que não seja mau, nem pecado, é bom; por conseguinte, está ele de modo virtual ordenado a Deus como ao fim último do justo, logo seu ato é meritório. “In habentibus caritatem omnis actus est meritorius vel demeritorius”10.
 
Daí resulta que em Maria os atos deliberados eram bons e meritórios; no estado de vigília, nela não houve ato indeliberado ou puro maquinismo que se produzisse independente da direção da inteligência e da influência da vontade vivificada na caridade11.

É à luz da claridade desses princípios que se deve considerar os principais momentos da vida terrena de Maria; como falássemos aqui daqueles lanços que precederam a Encarnação do Verbo, pensemos na apresentação ao tempo, quando era ela ainda uma criança, e no que fizera ao assistir às festas solenes, nas quais se liam as profecias messiânicas – mormente as de Isaías – aumentando-lhe a fé, a esperança, o amor a Deus e ao Messias esperado e prometido. Como ela não devia penetrar no sentido destas palavras do profeta Isaías (Is 9, 6) acerca do Salvador vindouro: “Um menino nasceu para nós, e um filho nos foi dado e foi posto o principado sobre o seu ombro; e será chamado Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncepe da paz”. A fé viva da infanta Maria, já de si tão elevada, talvez vislumbrasse a esta palavra: “Deus forte”, mais que o mesmo Isaías jamais vislumbrara. Já penetrava Maria na verdade que haveria de residir em plenitude de forças no seio Daquela criança – a de que o Messias seria um rei eterno, não conheceria a corrupção e adotaria seu povo na qualidade de pai eterno.

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Não cresce a vida da graça apenas pelo mérito, mas também pela oração, que tem força impetratória distinta. Assim todos os dias pedimos para que nos cresça o amor a Deus, dizendo: “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha a nós o vosso reino (em nós, cada vez mais), seja feita a vossa vontade (que observemos vossos preceitos cada vez melhor)”. Na missa dizemos com a Igreja: “Da nobis, Domine, fidei, spei et caritatis augmentum” – aumentai-nos, Senhor, a fé, a esperança e a caridade” (13º domingo depois de Pentecostes).
 
Após a justificação, pode o justo conseguir o crescimento da vida da graça – como um direito à recompensa – pelo mérito, que se liga à justiça divina, e pela oração, que se dirige à infinita misericórdia. E tanto mais eficaz é a oração quanto mais humilde, confiante e perseverante, desde que requeira antes do mais não bens temporais, mas o aumento das virtudes, segundo esta palavra: “Buscai antes o reino de Deus e sua justiça, e o restante vos será dado em acréscimo”. Obtém amiúde a oração fervorosa do justo, por sua vez impetratória e meritória, mais que merece, i. e., não tão-somente o aumento de caridade merecido, mas aquele que se obtém por meio da força impetratória duma oração distinta daquela meritória12.
 
No silêncio da noite, a oração fervorosa de imprecação e mérito consegue instante um aumento de caridade, o que nos faz experimentar o quão imensa é a bondade de Deus; nisso há comunhão espiritual e a certeza da existência dum salvador de vida eterna. Ora, era a oração da infanta Maria não apenas meritória, mas duma tal força impetratória que não há medida proporcionada à sua humildade e confiança, nem à perseverança de sua generosidade ininterrupta e sempre em progresso. Lograva ela, conforme a esses princípios certos, um amor puríssimo e fortíssimo a Deus. Lograva também as graças atuais eficazes que o mérito não alcança – ao menos o mérito de condignidade, como aquele que leva a novos atos meritórios e à inspiração especial, que é o princípio da contemplação infusa, por meio dos dons. Era o que acontecia quando Maria dizia em oração estas palavras do Livro da Sabedoria 7, 7: “Invoquei o Senhor e veio sobre mim o espírito da sabedoria. E preferi-a aos reinos e aos tronos, e juguei que as riquezas nada valiam em sua compração. Nem pus em paralelo com ela as pedras preciosas, porque todo ouro em sua comparação é um pouco de areia, e a prata será considerda como lodo à sua vista” Vinha o Senhor nutri-la de Si mesmo e a cada dia se oferecia a ela com mais intimidade, levando-a a oferecer-se com perfeição.
 
Disse ela estas palavras do Sl 26, 4 com maior propriedade que ninguém, senão Jesus: “Unam petii a Domino hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini” “Só uma coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que habite na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor”. Dia após dia descortinava-se a Maria a bondade infinita de Deus para os que o buscam, e mais ainda para os que o encontram. Antes da instituição da Eucaristia, e mesmo antes da Encarnação, em Maria houvera a comunhão espiritual, que é a oração intimíssima da alma na vida unitiva, em que ela regozijava de Deus nela como num templo espiritual: “Gustate et videte quoniam suavis est Dominus – Provai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33, 9).
 
Se era dito no Sl 41, 2: “Assim como suspira o cervo pelas fontes de águas, assim suspira minh’alma por ti, ó Deus. Minh’alma tem sede de Deus, de Deus vivo”, que houvera de ser a sede espiritual da Santíssima Virgem no instante da Concepção Imaculada até ao da Encarnação. Não mereceu ela a maternidade divina, pois senão mereceria por si a Encarnação; mas mereceu o grau de santidade e caridade que era a disposição próxima à maternidade divina. Ora, se a disposição remota, que era a plenitude inicial da graça, excedia a graça final dos santos todos reunidos, que pensar da perfeição da disposição próxima!
 
Os anos que viveu Maria no Templo atuaram nela o desenvolvimento da “graça das virtudes e dos dons” em proporções inimagináveis, segundo uma progressão e aceleração tais que excedem de muito as das almas mais generosas dos maiores santos. Pode haver exagero no atrbuir à Santíssima Virgem uma perfeição que só pertence a seu Filho mas, nos termos do que lhe é próprio a ela, não saberíamos lobrigar a elevação do ponto de partida do progresso espiritual em Maria, e ainda menos a elevação do ponto de chegada. Entretanto, todo o dito até aqui nos prepara a apreender o que fora o aumento considerável da graça e da caridade que se produziu nela no momento da Encarnação.

 
 

[Tradução: Permanência. Originalmente publicado em La vie spirituelle n° 255, juillet 1941]

 

  1. 1. Ia IIae, q. 65 e q. 66, a. 2.
  2. 2. IIa IIae, q. 184, a. 3.
  3. 3. Cf. II Concil. Constant. (Denz, 224): “Si quis defendit Christum. Ex profectu operum melioratum.” A. S.
  4. 4. Cf. S. Thomam, in Ep. Ad Hebr., X, 25: “Motus naturalis quanto plus accedit ad terminum magis intenditur. Contratium est de (motu) violento. Gratia autem inclinat in modum naturae. Ergo qui sunt in gratia, quanto plus accedunt ad finem, plus crescere debent”. Ver também S. Tomás in L. I de Caelo, cap. VIII, lect. 17 fim: “Terra (vel corpus grave) velocius movetur quanto magis descendit”. IIa IIae, q. 35, a. 6: “Omnis motus naturalis intensior est in fine, cum appropinquat ad terminum suae naturae convenientem, quam in principio. Quase natura magis tendat in id quod est sibi conveniens, quam fugiat id quod est sibi repugnans”
  5. 5. Como dissemos, essa é a opinião de São Bernardino de Siena, de Suarez, de Contenson, do Pe. Terrien e, sobretudo, de S. Francisco de Sales, que diz: “Quanto não há de veraz de que a mãe do verdadeiro Salomão usava da razão durante o sono!” (Tratado do Amor a Deus, l. III, c. 8, acerca das palavras do Cântido dos Cant.: “Durmo, mas vela meu coração”.
  6. 6. Fique bem entendido o que significa a expressão “supera tudo quanto possamos dizer”. Decerto era finita ou limitada a graça consumada em Maria; seria exagero inadmissível atribuir-lhe uma perfeição que só pertence a Nosso Senhor. Nesse sentido, sabemos que o progresso nela não ultrapassa certos limites; sabemos também que Maria só não pode fazer o negativo; contudo, ignoramos positivamente o que podia fazer, bem como o grau preciso da santidade que atingira ou de que partira. Ainda, por outro lado, sabemos negativamente o que as forças da natureza não produzem — a ressurreição dum morto ou os efeitos próprios a Deus — mas não sabemos positivamente até onde as forças da natureza podem ir: ainda se descobrem forças desconhecidas, como as do rádio, cujos efeitos são imprevistos. Do mesmo modo, não podemos saber positivamente até onde vão as forças naturais dos anjos, mormente as dos mais elevados; todavia, é certo que o mínimo grau da graça santificante supera as naturezas criadas, inclusive as naturezas angélicas com suas forças naturais. Se é mister haver gozado ao menos um instante da visão beatifica para se conhecer plenamente o valor do mínimo grau da graça — gérmen de glória — quanto mais para se conhecer plenamente o valor da plenitude inicial da graça em Maria.
  7. 7. IIa IIae, q. 24, a. 6 ad 1a.
  8. 8. Cf. Salmanticenses: de Caritate; disp. V dub. III § 7 no. 76, 80, 85, 93.
  9. 9. Cf. S. Tomás Ia IIae, q. 18, a.9.
  10. 10. S. Tomás, de Malo, a. 5 ad 17.
  11. 11. É o justo ensinamento do Pe. E. Hugon, Marie, pleine de Grace, 5ª. Ed., 1926, pág. 77.
  12. 12. Eis como o justo pode conseguir pela oração graças não merecidas, como a da perseverança final, que é o princípio do mérito ou o estado de graça conservado no momento da morte, cf. Ia IIae, q. 114, a. 9. Do mesmo modo, a graça eficaz, que preserva do pecado mortal, conserva em estado de graça e fá-la crescer, não é merecida — mas amiúde a oração a logra; é ainda o caso da inspiração especial — princípio da contemplação infusa — por meio dos dons da inteligência e da sabedoria.
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