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Category: Cardeal PieConteúdo sindicalizado

O Cardeal Louis-Édouard-François-Desiré Pie (1815-1890), ultramontano, foi um dos grandes nomes do seu tempo. São Pio X foi um grande admirador das suas obras.

A intolerância católica

Cardeal Pie

Meus irmãos (...)

Nosso século clama: “tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que um padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser necessariamente intolerante. Mas antes de entrar no mérito, distinguindo as coisas, convenhamos sobre o sentido das palavras para bem nos entendermos e assim não nos confundiremos.

A tolerância pode ser civil ou teológica. A primeira não nos diz respeito e não falarei senão uma pequena palavra sobre ela. Se a lei tolerante quer dizer que a sociedade permite todas as religiões porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas ou porque as autoridades se consideram incompetentes para tomar partido neste assunto, tal lei é ímpia e atéia. Ela exprime não a tolerância civil como a seguir indicaremos, mas uma tolerância dogmática que, por uma neutralidade criminosa, justifica nos indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao contrário, se, reconhecendo que uma só religião é boa, a lei suporta e permite que as demais possam se exercer por amor à tranqüilidade pública, esta lei poderá ser sábia e necessária se assim o pedirem as circunstâncias como outros observaram antes de mim.(...)

Deixo, porém, este campo cheio de dificuldades e volto-me para a questão propriamente religiosa e teológica em que exponho estes dois princípios:

A religião que vem do céu é verdade e ela é intolerante com relação às doutrinas errôneas

A religião que vem do céu é caridade e ela é cheia de tolerância quanto às pessoas.

Roguemos a Nossa Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito de verdade e de caridade: “Spiritum veritatis et pacis”. Ave Maria.

Faz parte da essência de toda verdade não tolerar o princípio que a contradiz. A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é definido, pode-se partilhar os sentimentos, podem varias as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opiniões de coisas duvidosas: “in dubiis, libertas”. Mas logo que a verdade se apresenta com as características certas que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é positiva, ela é necessária e por conseqüência ela é uma e intolerante: “in necessariis, unitas”. Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio. A afirmação se aniquila se ela duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma se ela admite com indiferença que se ponha a seu lado sua própria negação. Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa é preciso defendê-la, sob pena de ser despojado dela bem cedo.

Assim, meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância está em toda parte; porque em toda parte existe o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. Que há de mais intolerante do que esta proposição: “2 e 2 fazem 4”? Se vierdes me dizer que 2 e 2 fazem 3 ou fazem 5, eu vos respondo que 2 e 2 fazem 4. (...)

Nada é tão exclusivo quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São Paulo: “Unus Dominus, una fides, unum batisma”. Há, no céu, um só Senhor: “Unus Dominus”. Esse Deus cuja unidade é seu grande atributo, deu à terra um só Símbolo, uma só doutrina, uma só fé: “una fides”. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só sociedade visível, uma só Igreja, cujos filhos são, todos, marcados com o mesmo selo e regenerados pela mesma graça: “Unum batisma”. Assim, a unidade divina que esplende por todos os séculos na glória de Deus, produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade hierárquica do sacerdócio: Um Deus, uma fé, uma Igreja: “Unus Dominus, una fide, unum batisma”.

Um pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância de Jesus Cristo e o filósofo de Genebra (Jean-Jacques Rosseau) disse, falando do Salvador dos homens: Não vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma”. Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no Espírito Santo; se alguém, recusa-se a comer a minha carne e a beber o meu sangue, não terá parte em meu Reino. Confesso que nisso não há sutilezas, há intolerância, a exclusão a mais positiva, a mais franca. E mais, Jesus Cristo enviou seus apóstolos para pregar a todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma católico. E prevendo os movimentos e as divisões que esta doutrina vai incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que tinha vindo para trazer não a paz, mas a espada e acender a guerra não somente entre os povos, mas no seio de uma família e separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo incrédulo, o genro cristão, do sogro idólatra. A afirmação é verdadeira e o filósofo tem razão. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma.(...)

Falam da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos apóstolos. Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra de intolerância religiosa. No momento da pregação dos apóstolos, quase todo o universo praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os outros, eram todos demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam uns aos outros: satã não está dividido contra si mesmo. O Império Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava seus deuses e o estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção que o da sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio fazia marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que arrastava atrás de si os reis vencidos. A mais das vezes, em virtude de um Senatus-Consulto, os ídolos dos bárbaros se confundiam desde então com o domínio da pátria e o Olímpio nacional crescia como o Império.

Quando aparece o Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são dados históricos de algum valor com relação ao assunto presente), o Cristianismo, quando apareceu pela primeira vez, não foi logo repelido subitamente. O paganismo perguntou-se se, ao invés de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu seio. A Judéia tinha se tornado uma província romana. Roma, acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judéia. Um imperador colocou Jesus Cristo assim como Abraão entre as divindades de seu oratório, como viu-se mais tarde um outro César propor prestar-lhe homenagens solenes. Mas a palavra do profeta não tardou a se verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem ciúmes, deuses novos e estrangeiros serem colocados ao lado deles, com a chegada do Deus dos cristãos, lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranqüila poeira, abalam-se sobre seus altares ameaçados: Ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie ejus. Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando se viu que os cristãos, dos quais se havia admitido o culto, não queriam admitir o culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o espírito intolerante da fé cristã, é aí então que começou a perseguição.

Ouvi como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos: eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os censuram somente por não poderem suportar outra religião que não seja a deles. “Eu não tinha dúvidas, diz Plínio o jovem, apesar de seu dogma, que era preciso punir sua teimosia e sua obstinação inflexível: Pervicaciam et inflexibilem obstinationem”. “Não são criminosos, diz Tácito, mas são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há neles uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena as crenças de todos os povos: Apud ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium”. Os pagãos diziam geralmente dos cristãos o que Celso disse dos judeus, com os quais foram muito tempo confundidos, porque a doutrina cristã tinha nascido na Judéia. “Que esses homens adiram inviolavelmente às suas leis, dizia este sofista, nisto não os censuro; eu só censuro aqueles que abandonam a religião de seus pais para abraçar uma diferente! Mas se os judeus ou os cristãos querem se dar ares de uma sabedoria mais sublime que aquela do resto do mundo, eu diria que não se deve crer que sejam mais agradáveis a Deus que os outros”.

Assim, meus irmãos, o principal agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta de seu Símbolo, e, como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se tratasse de um Deus a mais, não teria havido reclamações, mas era um Deus incompatível, que expulsava todos os outros: eis porque a perseguição. Assim, o estabelecimento da Igreja foi uma obra de intolerância dogmática. Toda a história da Igreja não é outra que a história dessa intolerância. O que são os mártires? Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios a professarem o erro. O que são os Símbolos? São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer e que impõem à razão os Mistérios necessários. O que é o Papado? Uma instituição de intolerância doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade da fé. Porque os concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas interpretações do dogma; anatematizar as proposições contrárias à fé.

Nós somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina: nós disto fazemos profissão; nós nos orgulhamos da nossa intolerância. Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a verdade é uma, e conseqüentemente intolerante. Filha do céu, a religião cristã, descendo sobre a terra, apresentou os títulos de sua origem; ela ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam irrefutavelmente sua divindade. Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu autor, pode dizer: Eu sou a verdade: Ego sum veritas, é necessário por uma conseqüência inevitável, que a Igreja Católica conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu do Céu; é necessário que ela repila, que ela exclua tudo o que é contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar a Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina é dirigir-lhe uma recriminação muito honrosa. É recriminar a sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar a esposa ser muito delicada e exclusiva.

Nós ficamos muitas vezes confusos do que ouvimos dizer sobre todas essas questões até por pessoas de senso. A lógica lhes falta, desde que se trata de religião. É a paixão, é o preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que elas querem quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o dogma, elas preparam para si uma moral fácil. Diz-se com uma justeza perfeita: é antes o decálogo que o Símbolo que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser postas num mesmo nível, é que elas se equivalem todas; se todas são verdadeiras é porque todas são falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus. E se se pode aí chegar, não sobra mais nenhuma moral incômoda. Quantas consciências estariam tranqüilas, no dia em que a Igreja Católica desse o beijo fraternal a todas as seitas suas rivais!

Jean-Jacques Rosseau foi, entre nós, apologista e propagador desse sistema de tolerância religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que  tenha ido mais longe que o paganismo, o qual nunca chegou a levar a indiferença a tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto principal do catecismo genovês, tornado infelizmente popular: todas as religiões são boas; isto é, de outra forma, todas as religiões são ruins (...).

A filosofia do século XIX se espalha por mil canais sobre toda a superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética, sincrética e, com uma pequena modificação, é também chamada progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que todas as opiniões e todas as religiões podem ser conciliadas; que o erro não é possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que todo o erro dos homens consiste em crer possuírem exclusivamente toda a verdade, quando cada um deles só tem um elo e que, da reunião de todos esses elos, deve-se formar a corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria, não há religiões falsas, mas elas são todas incompletas umas sem as outras. A verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo, a qual ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto é, a religião natural que reconhece um Deus; o ateísmo que não conhece nenhum; o panteísmo que o reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo que crê na alma, e o materialismo que só crê na carne, no sangue e nos humores; as sociedades evangélicas que admitem uma revelação, e o deísmo racionalista que a rejeita; o cristianismo que crê no Messias que veio e o judaísmo que o espera ainda; o catolicismo que obedece ao papa, e o protestantismo que olha o papa como o anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade. Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que abrigará todas as outras no seu seio.

Esta doutrina que qualificais de absurda, não é minha invenção; ela enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu fundo jamais varie, ela toma, todos os dias, novas formas sob a pena e sobre os lábios dos homens em cujas mãos repousa os destino da França. — A que ponto de loucura nós então chegamos? — Nós chegamos ao ponto onde deve logicamente chegar todo aquele que não admite o princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que a verdade é uma, e por conseqüência intolerante, excludente de toda doutrina que não é a sua. E, para juntar em poucas palavras toda a substância deste meu discurso, eu lhes direi: procurais a verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os erros podem se fazer concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que tem um pai comum: Vos ex patre diabolo est. A verdade, filha do céu, é a única que não capitula.

Sim, Santa Igreja Católica, vós tendes a verdade, porque vós tendes a unidade, e porque vós sois intolerante, não deixais decompor esta unidade. É este, meus irmãos, nosso primeiro princípio: a religião que desce do céu é a verdade, e por conseqüência ela é intolerante quanto às demais doutrinas.

Não nos peçais a tolerância em relação às doutrinas. Encorajai, ao contrário, nossa solicitude em manter a unidade do dogma, que é o único laço da paz sobre a terra. O orador romano disse: a união dos espíritos é a primeira condição da união dos corações. E este grande homem faz entrar na definição mesma da amizade, a unanimidade de pensamento em relação às coisas divinas e humanas: Eadem de rebus divinis et humanis cum summa charitate juncta concordia.

Nossa sociedade está sujeita a mil divisões; nós nos lastimamos disso todos os dias. De onde vem este enfraquecimento das afeições, este resfriamento dos corações? Ah! meus irmãos, como seriam os corações aproximados onde os espíritos estão tão distantes? É porque cada um de nós se fecha no amor de si mesmo. Queremos por fim a essas dissidências sem número que ameaçam destruir todo espírito de família, de cidade e de pátria? Queremos não ser mais estrangeiros, adversários e quase inimigos uns dos outros? Voltemos a um Símbolo e nós reencontraremos logo a concórdia e o amor.

(Trecho de sermão pregado na Catedral de Chartres)

O Anticristo

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Instrução pastoral do Cardeal Pio - Quaresma 1863

 

Anticristo, o que nega que Jesus seja Deus; anticristo, o que nega que Jesus seja homem; anticristo, o que nega que Jesus seja homem e Deus ao mesmo tempo.

Um anticristo, nos diz São João, nega o Pai, pois negando o Pai nega o Filho: Hic est antichristus qui negat Patrem et filium (I Jo. 2, 22). De fato, não há anticristianismo mais radical do que aquele que nega a divindade em sua raiz, em seu princípio. Como o Cristo seria Deus se Deus não existisse? Ora, negar o ser divino, a substância divina, a personalidade divina e introduzir não sei que outra teodicéia é prova de que suprimem a realidade, substituindo-a por abstrações e sonhos que flutuam entre o ateísmo e o panteísmo ou que não têm sentido algum. Eis o sistema capital da atual situação intelectual; eis o ensinamento que enche os livros e inspira as lições de toda uma escola, abundante e poderosa. Diante de tais doutrinas, “só tenho uma coisa a dizer-vos: cuidado com o anticristo”: Unum moneo: cavete antechristum.

São João continua: “Todo aquele que nega o Filho, também não reconhece o Pai. O que crê no Filho de Deus, tem em si o testemunho de Deus. O que não crê no Filho, torna Deus mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus deu de seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho, não tem a vida” (I Jo. 2,23; 5, 10-12). “Muitos sedutores se têm levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo em carne; quem faz isso é um sedutor e um anticristo”: “Qui non confiteur Christum in carne venisse, hic est seductor et antichristum” (II Jo. 7). Ora, se os senhores escutarem o que se diz hoje e se lerem o que se escreve atualmente, descobrirão ou que o personagem histórico Jesus nem chegou a existir (ao menos como é representado nos Evangelhos) ou que foi um desses tipos que manifestou mais fortemente o ideal de sabedoria, de razão, de perfeição e que convencionou-se denominar “Deus”. Jamais admitirão que o Filho de Maria seja o Filho de Deus feito homem, o Verbo feito carne, aquele em que reside corporalmente a plenitude da divindade (Col. 2, 9), e, para concluir definitivamente, o Homem-Deus. Aterrorizado com tais blasfêmias, que são a própria inversão do símbolo cristão, “só tenho uma coisa a dizer-vos: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.

Que diria eu ainda? Anticristo, o que nega o milagre, o que ensina que o milagre não tem lugar possível na trama das coisas humanas. Cristo, ainda que suas palavras tivessem um tom que merecesse credibilidade, só estabeleceu sua divindade pelo argumento decisivo do milagre. Ele deu a seus apóstolos, como meio de persuasão e conquista, o poder de operar milagres. Sua vinda ao mundo em carne, a união entre a natureza humana e a natureza divina em uma única pessoa é o milagre por excelência. Suprimir o milagre é suprimir toda a ordem sobrenatural e cristã. Aqui repito: “Cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.

Anticristo, aquele que nega a revelação divina das Escrituras: pois são os profetas divinamente inspiradas que nos anunciaram o Cristo. São os Evangelhos ditados pelo Espírito Santo, assim como os atos e as cartas dos Apóstolos que nos fazem conhecer a Cristo. Podemos alegar as próprias palavras de Santo Hilário: “Quem quer que negue o Cristo tal como foi anunciado pelos Apóstolos, este é um anticristo”: “Quisquis enim Christum, qualis ab apostolis est praedicatus, negavit, antichristum est”. Se os senhores ouvirem negar os livros santos, se sua autoridade for desprezada como simples concepção e invenção do espírito humano, “tenho um conselho a dar: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.

Anticristo, aquele que nega a instituição divina a missão divina da Igreja, pois a conclusão, a finalização das obras, dos sofrimentos e da morte de Jesus Cristo foi a fundação de sua Igreja. “Cristo amou a Igreja e por ela se entregou a si mesmo, para a santificar, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para apresentar a si mesmo esta Igreja gloriosa, sem mácula, sem ruga, mas santa e imaculada” (Ef. 5.25-27). Ora, se a Igreja não possui um caráter sobrenatural, se ela é somente uma instituição terrena, um dos estabelecimentos religiosos destinados a desempenhar um papel mais ou menos longo no seio da humanidade, uma sociedade exposta às vicissitudes e falhas das coisas desse mundo, uma escola mais ou menos respeitável de filosofia e filantropia, numa palavra, se a Igreja não é divina, é que Cristo, seu fundador, não é Deus. Rejeitar a divindade da obra é rejeitar a divindade do autor: “Tenho sempre a mesma recomendação a dar: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.

Anticristo, aquele que nega a suprema e indefectível autoridade de Pedro. Na verdade, Jesus Cristo, depois de ter olhado nos olhos desse homem, disse-lhe: “Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas que quer dizer Pedro” (Jo. 1, 42); “e sobre esta pedra Eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; e tudo o que desatares sobre a terra, será desatado nos céus” (Mt. 16, 18-19). E o mesmo Jesus lhe disse ainda: “Simão, Simão, eis que Satanás te reclamou com instância para te joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que tua fé não falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc. 22, 31-32). Se essas palavras de Jesus Cristo não fizeram de Pedro o fundamento inabalável da Igreja, a rocha imutável da verdade, o oráculo infalível da fé, é porque quem as pronunciou não tinha o poder de torna-las eficazes. Ferir Pedro é ferir a cabeça viva, o chefe invisível da Igreja cristã que nele revive e subsiste. “Clamo ainda: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antichristum”.

Anticristo, aquele que nega ou despreza o sacerdote cristão. Jesus Cristo ressuscitado disse a seus apóstolos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo. 20, 21). “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as observar todas as coisas que vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt. 28, 18-20). Se os poderes assim conferidos por Jesus não são os plenos poderes de ensinar a verdade em nome de Deus pela pregação, de administrar a graça dos sacramentos, de velar pela observância dos preceitos divinos pelo governo eclesiástico e se, no exercício de seus poderes, o sacerdócio cristão não for sustentado por uma assistência contínua e uma presença quotidiana de Cristo, aqui ainda, deve-se admitir que Cristo falou mais do que podia fazer. Conseqüentemente, ele não é Deus. O Senhor disse aos próprios levitas da antiga lei: “Não toqueis os meus ungidos” (I Par. 16, 22), e disse aos ministros da nova lei: “O que vos recebe, a Mim recebe; e o que Me recebe, recebe Aquele que Me enviou” (Mt. 10, 40); sabendo disso, quando vejo a língua de meu país se depravar até chegar a transforma em título de insulto e desdém essa primícia sacerdotal e real chamada clericatura, e que o vocabulário tinha sido por muito tempo sinônimo de saber e de instrução, me sinto tomado de imensa piedade por uma geração cuja própria elite sucumbe a tal baixeza e se mostra culpada de tal esquecimento e desrespeito em relação ao que todos os povos tiveram de mais sagrado. E “repito sempre a mesma lição: cuidado com o anticristo: unum moneo: cavete antichristum”.

Anticristo, aquele que nega a superioridade dos tempos e países cristãos sobre os tempos e países infiéis ou idólatras. Se Jesus Cristo, que nos iluminou quando estávamos nas trevas e nas sombras da morte, e deu ao mundo o tesouro da verdade e da graça, não enriqueceu o mundo com bens superiores aos possuídos no seio do paganismo, [e falo até mesmo do mundo social e político] é que a obra do Cristo não é uma obra divina. Além disso: se o Evangelho que salva os homens é impotente para fornecer os princípios do verdadeiro progresso dos povos; se a luz revelada, proveitosa aos indivíduos é prejudicial às sociedades, e talvez até para as famílias, é prejudicial e inaceitável para as cidades e os impérios; em outros termos, se Jesus Cristo, que os profetas prometeram e a quem o Pai deu as nações como herança, só pode exercer seu poder sobre elas em seu detrimento e para sua infelicidade temporal, tem de se concluir que Jesus Cristo não é Deus. Porque nem em Sua pessoa nem no exercício dos Seus direitos, Jesus Cristo pode ser dividido, dissolvido, fracionado. Nele, a distinção das naturezas e das operações nunca poderá ser a separação, a oposição. O divino não pode ser antipático ao humano, nem o humano ao divino. Ao contrário, ele é a paz, a aproximação, a reconciliação, é o traço de união “que faz de duas coisas, uma”: “ipse est pax nostra qui fecit utraque unum” (Ef. 2, 14). Por isso São João nos diz: “todo espírito que divide Jesus não é de Deus; mas este é um anticristo do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo”. “Et omnis spiritus qui sivit Jesum, ex Deo non est; et hic est antichristum de quo audistis quoniam venit, et nunc jam in mundo est” (I Jo. 4, 3). Quando ouço então certos ruídos que surgem, certos aforismos que prevalecem com maior freqüência dia a dia e se introduzem no coração das sociedades, dissolvendo-as sob a ação daquele por quem o mundo há de perecer, “lanço um grito de alarme: cuidado com o anticristo”: “unum moneo: cavete antichristum”.

Poderíamos, caros irmãos, nos estender sobre os detalhes dos erros que se propagam a cada dia em nosso redor, que constituem o que poderíamos chamar anticristianismo. O que dissemos é mais do que suficiente para excitar em nós a vigilância e desconfiança de qualquer doutrina que não proceda da Igreja (...).

Permaneçamos firmes na fé antiga e invariável da Santa Igreja; “sejam homens e não crianças flutuantes, e levadas, ao sabor de todo vento de doutrina, pela malignidade dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro” (Ef. 4, 14). O divino Salvador disse, profetizando os tempos de ruína de Jerusalém: “Mas ai das mulheres grávidas e das que tiverem crianças de peito naqueles dias!” (Mt. 24, 19). Santo Hilário nos explica essa passagem: “Nos dias difíceis e de tempestade da Igreja, ai das almas minadas pela incerteza e nas quais a fé e a piedade estiverem ainda em estado embrionário ou ainda na infância. Umas, surpreendidas no embaraço de suas incertezas e atrasadas por causa das irresoluções de seu espírito constantemente irrequieto, estarão muito pesadas para escapar às perseguições do anticristo. Outras, tendo apenas degustado os mistério da fé em embebidas somente de uma fraca dose de ciência divina, não terão força suficiente e habilidade necessário para resistir a tão grandes assaltos” (Comment. In Mat. 25. 6). É esse o peso e debilitação das almas que hão de tornar os últimos tempos tão perniciosos, propícios a tantas quedas.

Por outro lado, Santo Agostinho ressalta o quanto esses dias de provações serão favoráveis ao embelezamento e crescimento do mérito das almas fieis. Comentando a passagem do Apocalipse: “depois disso é necessário que o demônio seja solto por um pouco de tempo” (Ap. 20, 3), o santo doutor nos mostra que o demônio nunca está preso de maneira absoluta durante a vida da Igreja militante. Entretanto, ele fica freqüentemente preso no sentido de que não lhe é permitido utilizar sua força toda nem todos os seus artifícios para seduzir os homens.

A enfermidade do grande número é tal que, se ele tivesse esse pleno poder ao longo de todos os séculos, muitas almas com que Deus quer aumentar e povoar sua Igreja seriam desviadas da verdadeira crença ou tornar-se-iam apóstatas: isso Deus não quer suportar. Eis porque o demônio fica parcialmente atado. Porém, por outro lado, se ele nunca fosse solto, o poder de sua malícia seria menos conhecido; a paciência da Cidade Santa menos exercida e compreenderíamos menos o imenso fruto que o Todo Poderoso soube tirar da imensa força do mal. O Senhor então desatá-lo-á por um tempo a fim de mostrar a energia com a qual a cidade de Deus vencerá tão horrível adversário, para a grande glória de seu redentor, de seu auxílio, de seu libertador. E o santo doutor chega a dizer a seus contemporâneos: “Quanto a nós, irmãos, quem somos e que mérito possuímos em comparação aos santos e fiéis de então? Porque, para prova-los, o inimigo que nós já temos tanta dificuldade em combater e vencer atado, estará desatado”.

Coragem, meus caros irmãos. Quanto mais a religião é atacada, a Igreja oprimida por todos os lados, quanto mais as doutrinas errôneas e de perversão moral invadem os discursos, livros e teatros e enchem a toda a atmosfera com seus miasmas pestilentos, mais possível será adquirir grandeza, perfeição e mérito diante de Deus, se não nos deixarmos abalar em nenhuma de nossas convicções e permanecermos fiéis ao Senhor Jesus, coisa em que muitos outros falharam e tiveram a desgraça de abandona-Lo. Não vos deixai seduzir pela força e número dos perversos, nem pelas aparentes vitórias dos adversários de Jesus Cristo. Está escrito que os maus e os sedutores farão a terra progredir; progresso no mal, progresso na destruição, progresso na desordem: proficient in pejus “irão de mal a pior” (II Tim. 3, 13). Mas também está escrito que esse tipo de sucesso nunca durará por muito tempo. Os homens que resistem à verdade, pessoas corrompidas em seu espírito e réprobos sob o olhar da fé não tardarão a se convencer dessa loucura juntamente com seus seguidores nessa via.

Perseverai na fé, caríssimos irmãos; perseverai também nas obras, sobretudo nas obras de caridade. É uma doutrina constante e que não deve ser abandonada a nenhum preço: aqueles que crêem em Deus são os que tomam a frente das boas obras: a humanidade, e principalmente, a humanidade sofredora encontrará sempre consolo desse modo. Não ouvimos dizer também, que nesses últimos dias, a esmola feita por sentimento sobrenatural e segundo as tradições da piedade cristã não terá lugar no seio de nossas sociedades e que seu “selo eclesiástico” será uma ofensa à dignidade dos necessitados que se tenta aliviar? O naturalismo, o ardor que põe na secularização de tudo, entende que fazer o bem é obra puramente humana, profana e não tem nada em comum com a ordem da graça e da salvação. Propósito execrável, e se pudesse chegar a desencorajar a caridade cristã e sacerdotal, conseguiria neutralizar as mais oportunas fontes de alívio dos infelizes. Ah! Eu vos diria ainda: “cuidado com o anticristo”: “unum moneo: cavete antichristum”. Mas tenham os olhos sempre fixos em Cristo; no menino Jesus do estábulo de Belém; no operário-Deus do ateliê de Nazaré; naquele que, sendo rico por natureza fez-se pobre para nos enriquecer com sua humilhação; naquele que será um dia nosso juiz, e que, em consideração com essa multidão de operários indigentes e privados de trabalho que terá sido aliviada por amor a Ele, nos fará possuir o reino que seu Pai nos preparou.         

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