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Category: PensamentoConteúdo sindicalizado

Quando não é filosofia por não ter uma conotação especulativa natural; quando não é teologia por não tratar de dogmas nem de um ponto preciso da doutrina católica. Quando exprime o pensamento católico na análise do mundo, da vida, das coisas que nos cercam e que nos afligem ou nos alegram.

Brasil vitorioso

Gustavo Corção

 

Não, amigo, não me refiro ao futebol de cuja vitória já me expandi nesta coluna; refiro-me hoje a outra luta mais cruel, mais desleal, que o Brasil começou em 1964. O desmantelamento da quadrilha de Marighella, no ano passado, e o desmascaramento dos maus religiosos que desonravam a ordem dominicana foram os marcos da primeira vitória contra a conjuração terrorista que quer fazer o Brasil regredir aos tempos sombrios em que o comunismo chegou ao poder.

Os agentes da guerra revolucionária, obedientes a ordens emanadas de Havana, de Pequim ou de Paris, com assaltos de bancos, sequestros de embaixadores, conseguiram incomodar, inquietar a opinião pública. Em compensação alegraram e confortaram Dom Hélder Câmara que, em entrevista dada a L’Express, declarou sem a menor hesitação seu afeto e sua admiração por esses rapazes que assaltam bancos, sequestram embaixadores, matam policiais e sequestram aviões dispostos a matar o piloto e a sacrificar todos os passageiros. Dom Hélder só lamenta que seja pouco o dinheiro roubado aos bancos porque com ele seus rapazes não podem fazer frente ao Exército.

Ora, meu grito de triunfo, meu deslumbramento de hoje se refere à vitória da operação perfeita realizada por nossa Aeronáutica na semana passada. Foi realmente uma operação em que a organização perfeita e a bravura exemplar neutralizaram a chantagem sinistra que os perversos terroristas fazem com as vidas de mulheres, velhos e crianças. A dificuldade em que se acham as autoridades nas situações criadas pelos terroristas vem do receio de ser, não a causa, mas a ocasião de perdas de vidas inocentes. Mas essa delicadeza, esse temor, tem seus limites mormente quando se vê o crescendo insuportável da insolência dos criminosos. Desta vez já exigiam que lhes trouxessem dois cardeais, D. Jaime Câmara e D. Agnelo Rossi. Como? Amarrados? Encaixotados? E tudo em tempo marcado. E se um dos cardeais tivesse um enfarte? Os amigos de Dom Hélder Câmara não se embaraçam com tais escrúpulos. Sentem a delicadeza das autoridades e roncam grosso: “Ninguém deverá aproximar-se do nosso aparelho sem nosso prévio consentimento”,

O comandante do Caravelle foi perfeito; perfeito foi o Comandante da Base Aérea na resposta: “Não dialogo com terroristas”; e perfeitíssimas as operações subsequentes. Dirá alguém que bravos soldados da Aeronáutica puseram em risco a vida dos passageiros? Responderei que tinham o direito de fazer porque começaram por arriscar as próprias vidas quando forçaram a porta e entraram no avião. E a feliz combinação de bravura e organização nos deram a espetacular vitória que oferecemos ao mundo inteiro como exemplo.

É curioso. No dizer dos sociólogos e economistas somos subdesenvolvidos, somos atrasados, mas na luta contra a anarquia que envenena toda a civilização temos marcando mais pontos do que qualquer outro país. Em 1964 corremos com os comunistas que já estavam no poder. Um jornal comunista da cortina de ferro foi o único que nos homenageou: o redator fazia uma autocrítica e reconhecia que os comunistas no Brasil haviam subestimado a classe média. Não direi que foi só por isso que perderam, mas o fato é que o Brasil foi o único país do mundo que soube repelir o comunismo já instalado.

No sequestro do embaixador americano, em 24 horas tinham nossos policiais a casa descoberta e focalizada com teleobjetivas. Só não cercaram a casa e prenderam os sequestradores porque quiseram proteger a vida do embaixador. E o curioso é que, nessa ocasião, não ocorra a nenhum americano que os inimigos que aqui sequestram embaixadores são os mesmos que no Vietnam eles combatem. Ora, se no Vietnam eles combatem os comunistas com sacrifício de vidas americanas, porque não admitir que aqui os ajudemos a combater com risco de vida de um embaixador.

O que não é possível é admitir a progressão geométrica das concessões e dos diálogos com criminosos. No caso do embaixador alemão exigiram a libertação de presos, e a publicação de manifestos. No caso da semana passada exigem dois cardeais. Por que não o Papa? Essa questão de delicadezas e de salvar vidas já está a um milímetro da desonra. A um milímetro da exigência de todo o berçário imaginado por Nelson Rodrigues.

E foi essa brusca evidência que desencadeou a bravura e a operação perfeita do Galeão. O Brasil mais uma vez está de parabéns.

***

Mas há uma outra evidência que entra pelos olhos: a necessidade de uma fiscalização mais severa, e a punição dos responsáveis pela má fiscalização. Já sugeri aqui, tempos atrás, vários meios eletrônicos ou eletromagnéticos para detectar a presença de armas de material magnético. Tudo tem de ser feito para devolver à navegação aérea seu teor, já não digo de segurança, mas de decência. O que me choca especialmente é este paradoxo: justamente no momento em que a pessoa parece estar fruindo o creme de todo um apuro civilizacional, de repente, está ao rés da barbárie.

***

Não posso deixar de consignar neste mesmo artigo de júbilo o nosso triunfo diplomático na OEA. Nossa tese, que é a do bom-senso, saiu vencedora. Os países da América Latina começam a desconfiar de que devem ouvir o Brasil.

 

(O Globo, 09/07/1970)

O dever dos fiéis para a restauração do Reino Social de Jesus Cristo

Pe. Theotime de S. Just

 

O primeiro dever dos fiéis para ajudar a restauração social católica é, sobretudo, fazer reinar Jesus Cristo em suas mentes por meio da instrução religiosa.

“A única esperança de nossa regeneração social”, diz o Cardeal Pie, “repousa no estudo da religião... o primeiro passo de volta para a paz e a felicidade será “o retorno à ciência do catolicismo.” 1

O cardeal insiste neste ponto que lhe parece essencial porque, aos seus olhos, o renascimento social católico da França está intimamente ligado ao renascimento catequético. Em quatro sermões pregados na catedral de Chartres, explicou longamente aos fiéis a importância do estudo da religião e lhes indicou o método a ser empregado neste estudo.2

Estes sermões do jovem vigário da catedral de Chartres, dados em 1840, são de uma atualidade marcante, e não conhecemos nada de mais claro e persuasivo. Ao relê-los, todos os fiéis serão fortemente encorajados a dar à instrução religiosa o primeiro lugar em suas vidas.

Como não ser tocado por palavras tão verdadeiras e fortes?

"Afastar o espírito da verdade e se tornar indiferente a ela, é precisamente o crime que Deus castigará com maior severidade e justiça... É evidente que a mera ignorância voluntária da religião é, em si mesmo, um crime digno de morte, porque contém desprezo por Deus e o desejo de "escapar de sua mão todo-poderosa.’’ 3

Essa sólida instrução religiosa exigida dos fiéis deve ser para eles o alimento de uma fé integral e completa e, para o Cardeal Pie, a fé completa, a única e verdadeira fé,  é aquela que não apenas afirma a Divindade e a Humanidade de Jesus Cristo, mas também proclama a sua Realeza Social.

Ouçamo-lo comentar uma passagem de S. Gregório aos fiéis, e respondendo assim aos católicos dos nossos dias, imbuídos de falsas ideias modernas.

“Irmãos, vós me dizeis que vossa consciência está tranquila. Ao mesmo tempo em que aderis ao programa do catolicismo liberal, pretendeis permanecer ortodoxos, uma vez que acreditais firmemente na divindade e na humanidade de Jesus Cristo, o que é suficiente para que vosso cristianismo seja inatacável. Pensai de novo. Desde o tempo de São Gregório havia hereges, nonnulli haeretici acreditavam nessas duas verdades, como vós, e sua "heresia" consistia em não querer reconhecer uma realeza estendendo-se a tudo para esse Deus feito homem: sed hunc ubique regnare nequaquam credunt.

“Não, não sois irrepreensíveis em vossa fé; e o Papa São Gregório, mais enérgico que o Syllabus, acusa-vos de heresia se sois daqueles que, tendo como dever oferecer o incenso a Jesus, não querem lhe oferecer também o ouro; 4 em outras palavras, se não quiserdes reconhecer e proclamar a sua realeza social.”

Assim, se querem ter um “catolicismo inatacável” e permanecerem “irrepreensíveis em sua fé”, se querem ser contados entre os fiéis e não entre os heréticos, os católicos devem crer firmemente que Jesus Cristo deve reinar sobre as instituições sociais, penetrando-as com seu espírito e tornando sua legislação consistente com as leis de seu Evangelho e de sua Igreja.

*

Esta fé na realeza social de Cristo deve, antes de tudo, vivificar a família católica, submetendo-a perfeitamente ao Divino Rei. O Cardeal Pie, Doutor do Reinado Social, mostrou como Nosso Senhor quer reinar sobre os lares cristãos. Ele fez isso em 1854, na carta sinodal dos Padres do Concílio de Rochelle, inserida em suas obras. Citemos as principais passagens. É uma magnífica pintura da família católica:

“Na linguagem de São Paulo, cada casa é um santuário. Que ali encontremos a Cruz de Jesus Cristo, que é o sinal de toda família católica, e que a imagem de Maria, a Mãe de Deus e nossa mãe, seja inseparável do crucifixo! Que a água benta e o ramo bento protejam a morada contra as ciladas do inimigo; que a vela da Candelária seja ali mantida para ser acesa nos instantes de perigo, bem como na hora da agonia e da morte. Ah! nossos pais possuíam o segredo dessa vida plenamente católica, na qual a religião tinha seu lugar marcado em todas as coisas. A refeição era santificada pela bênção que o chefe da família recitava. Três vezes por dia, quando o bronze sagrado ressoava no alto do campanário paroquial, cada um suspendia a sua tarefa e invocava com amor a Virgem que deu ao mundo o Verbo feito carne. No limite da propriedade havia uma cruz, que o trabalhador saudava piedosamente ao passar. Ainda se encontravam momentos durante o dia para se rezar o rosário, ler algumas páginas de um livro de família com os principais fatos dos dois Testamentos e as mais belas páginas da vida dos santos.5A mãe de família não julgava ter cumprido todos os seus deveres religiosos antes de ter explicado aos seus filhos e empregados algum artigo da doutrina cristã. Se o toque fúnebre anunciava alguma morte, todos os irmãos em Cristo do falecido apressavam-se a conceder-lhe os benefícios de seus sufrágios; e o culto dos mortos, hoje tão negligenciado, propagava-se por vários testemunhos e práticas que jamais recordaríamos com demasiada. Finalmente, quando o último raio do dia reconduzia família dispersa ao redor da lareira, como era tocante ver velhos e crianças, patrões e criados ajoelhados diante das santas imagens, confundindo na mesma oração as suas vozes e o seu amor!

“Esses costumes piedosos atraíam à terra as bênçãos do céu; enobreciam o lar, santificavam-no, e projetavam na sociedade algo de sério, algo de digno, algo que, juntamente com a unidade dos dogmas da fé, mantinha a inocência nas almas e a união das vontades. Que nós possamos reviver esses comoventes hábitos dos tempos católicos”

Uma vida familiar tão bela não saberá se manter por muito tempo sob o cetro do Rei Jesus se a educação das crianças não for profundamente cristã. Nós não podemos resumir aqui todos os ensinamentos do Cardeal Pie sobre esse assunto. Assinalemos ao menos a insistência com que recorda aos pais que não podem enviar os seus filhos para escolas ateístas ou ainda simplesmente indiferentes. Ouçamo-lo, fazendo suas as palavras de São João Crisóstomo:

“O crime dos pais que mandam os filhos para tais escolas é mais atroz do que o infanticídio, patres parricidis ipsis crudeliores. Seria menos cruel pegar a espada e cravá-la no peito dessa vítima inocente. O crime do pai não tornaria a criança culpada, apenas separaria a sua alma de seu corpo; ao passo que, entregando no presente o corpo e a alma da criança ao inferno, ela carregará o inferno consigo por toda a vida para depois ser precipitada no fogo eterno.”

Este texto refere-se à escola abertamente má. Mas a escola neutra ou indiferente é referida diretamente na passagem seguinte:

“Mandar os filhos para um lar onde a religião de nada vale é um pensamento que faz estremecer, e é esse, segundo São João Crisóstomo, o crime de muitos pais. Se os informássemos que a peste está na cidade onde residem seus filhos, eles não encontrariam palavras para nos agradecer. Mas quando uma praga mil vezes mais terrível penetrou em toda a parte, o nosso conselho é acusado de indiscrição, isso se não formos arrolados entre os inimigos da paz pública.”6

Se os pais souberem impor-se sacrifícios para afastar seus filhos da educação sem Deus, Jesus Cristo será verdadeira e para sempre o Rei das famílias.

*

A fé na Realeza social de Cristo se irradiará para fora da família pela prática pública da religião cristã. Isto é, ao se demonstrar a todos que Cristo deve dirigir os atos públicos do católico, bem como os seus atos individuais e domésticos.

A religião católica é uma religião pública e os fiéis são obrigados a praticá-la abertamente. O Cardeal Pie percebeu que este carácter público da religião era justamente o caminho normal para o reinado social de Jesus Cristo, e recordou instantemente aos fiéis a necessidade do culto público e do que ele impõe.

Possuímos três sermões dele sobre a santificação do domingo, os quais mais tarde foram desenvolvidos e se tornaram duas magníficas instruções pastorais sobre o preceito dominical, que ele chamava de a obra-prima da legislação social.

Temos várias instruções suas sobre a missa, o sacrifício público da religião católica.

Sobre a liturgia, que é o conjunto do culto público, encontramos nas obras do Bispo de Poitiers uma série de instruções que formariam um volume precioso em si mesmo. Ele tampouco se esqueceu de tratar da observância da lei quadragesimal que, para a felicidade dos povos, tinha anteriormente um carácter eminentemente social. Outra manifestação pública de fé, a peregrinação, foi estudada por ele cuidadosamente.

Esta rápida enumeração das práticas externas e públicas da religião mostra-nos o quanto o grande bispo queria que os fiéis estivessem conscientes da sua importância e do seu elevado significado social.

Finalmente, numa magnífica instrução pastoral sobre a obrigação de confessar publicamente a fé católica, o Cardeal Pie mostra que os fiéis não apenas devem associar-se ostensivamente ao culto, mas também agir como católicos em toda a sua conduta pública.

Depois de ter estabelecido pela Escritura a necessidade rigorosa de não se envergonhar de Jesus Cristo diante dos homens, depois de ter recordado sem ambiguidade, com São João, que os "timoratos" que não ousarem confessar a sua fé terão o mesmo destino dos que não creem, e que a parte a que terão direito será o lago de fogo. «Timidis autem et incredulis, pars illorum erit in stagna ardenti» (Ap 21 ,8), o Cardeal Pie refuta a objeção que a covardia, infelizmente, coloca hoje em dia nos lábios de quase toda a gente. Aqui está:

“O ambiente em que tenho de viver não é católico, diz o timorato; agir como católico chamaria a atenção e contrastaria com os demais, poderia até suscitar sarcasmo e blasfêmias. É necessário curvar-se às exigências dos tempos e às necessidades das posições.

“Então, caros fiéis”, responde o bispo, "uma vez que Jesus Cristo é desconhecido por muitos dos vossos contemporâneos vos julgais no direito de o ignorardes? Porque um sopro maligno e irreligioso passou sobre a geração atual reivindicais o direito de participar do contágio?

“Oras! A infidelidade geral que invocais como desculpa é uma circunstância que antes agrava do que atenua a vossa culpa. Perante a apostasia de muitos, sois obrigados a declarar mais fortemente a vossa fé, tornando-vos assim um exemplo e um protesto. Não ouvistes a solene afirmação do Salvador? “No meio desta geração adúltera e pecadora, quem se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.”

“Caros fiéis, tornar-vos-eis vis diante de vossos próprios olhos, perdereis o direito à própria estima se tiverdes a covardia de não conhecer um amigo no dia da sua desgraça; e porque o Senhor do céu e da terra, o Senhor da vossa alma e do vosso batismo, tornou-se impopular, porque vós arriscais partilhar com ele o desfavor de uma geração rebaixada e merecedora de desprezo, julgais-vos livres de vossos deveres para com Ele! Não, não, é a lei mesma da ordem e da justiça que o exige: seremos tratamos por Jesus Cristo como nós mesmos o tivermos tratado. Se nós lhe formos fiéis, reinaremos com Ele; mas se nós o renegarmos, seremos renegados...

“Honra a vós, católicos, que sois coerentes com vós mesmos; honra a vós que credes e que não vos envergonhais da vossa crença. Aquele que vós confessais perante os homens, sem ostentação nem jactância, mas também sem respeito humano e falsa vergonha, vos confessará diante de seu Pai e diante dos anjos.”

Iluminado e confortado por tais palavras, que pessoa fiel, desprezando o respeito humano, não trabalhará com todas as suas forças pela prática pública do catolicismo para o reinado social de Cristo?

*

O grande meio, portanto, para promover esse reino é a oração, que vivifica a ação e obtém do céu o sucesso que nossos esforços sozinhos não podem obter.

O Cardeal Pie nos mostrou nos três primeiros pedidos do Pater: “santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”, a oração por excelência para o advento do Reino social aqui embaixo.

Ele quer que os fiéis compreendam o pleno significado dessa oração e saibam que o reino de que se fala não é apenas o céu, mas também o reino social de Cristo na terra. Eles devem, portanto, ao recitá-lo, desejar esse reino e orar com confiança ao Pai celestial para conceder ao mundo esse benefício inestimável.

Ouçamos o Bispo de Poitiers recomendar a oração pelo reino. É a uma freira que ele se dirige e, por meio dela, a todos os fiéis que amam Nosso Senhor:

“A vida espiritual não avança entre aqueles que estão no comando dos negócios, sejam homens de poder ou homens do futuro. Deus não é colocado em seu lugar por ninguém. Infelizmente! Aprenderemos às nossas custas que não se dispensa o Ser Necessário impunemente. O mundo perdoa-lhe a sua existência, desde que esteja disposto a deixar os seus negócios transcorrerem sem Ele, e este mundo não é apenas o mundo sem Deus, mas um certo mundo político cristão. Quanto à nós, esforcemo-nos a melhor sentir, a melhor salientar os três primeiros pedidos do Pai Nosso. Enquanto o mundo atual durar, não consintamos em relegar o reino de Deus ao céu, ou mesmo ao interior das almas: sicut in caelo et in terra? O abandono terreno de Deus é um crime: nunca nos resignemos a ele!”

“E como o destronamento de seu representante visível está intimamente ligado a ele, rezemos sem cessar para que a grande iniquidade consumada em Roma possa chegar ao fim. Então, como a libertação de Roma só pode vir através da França, coloquemos nosso patriotismo nacional mais do que nunca, mas acima de tudo coloquemos todo o ardor do nosso amor a Deus e à sua Igreja para trabalhar pela recuperação da França através de nossas orações e nossos sofrimentos!”

Que os fiéis não se cansem de rezar pela vinda do Reino e que a sua oração, nos nossos dias de apostasia nacional, seja mais fervorosa e mais confiante do que nunca! Esta é a palavra de ordem do Cardeal Pie.

Aprender toda a religião e praticá-la em família e publicamente, crer na Realeza social de Jesus Cristo e rezar para que ela aconteça, tal é o dever dos fiéis.

(La Royauté de N.-S. Jésus-Christ d´après le Cardinal Pie, parte III, cap. 1 - Tradução: Witor Lira)

  1. 1. Œuvres sacerdotales, 1, 137
  2. 2. Ibid., I, 98-189.
  3. 3. Œuvres sacerdotales, I, 133-134.
  4. 4. Homélie sur l'étendue universelle de la Royauté de Jésus-Christ, 1874
  5. 5. Um resumo das Sagradas Escrituras e da vida dos Santos: dois livros indispensáveis. Outros livros não estão excluídos, mas o bispo de Poitiers quer que a biblioteca da família esteja composta unicamente de bons livros. Ele fazia sua as recomendações precisas de um bispo seu amigo: “Perscrutai ai as vossas bibliotecas e as vossas casas, como se perscruta uma floresta ou um lugar onde se supõe a presença de um assassino ou de um ladrão, e declarai guerra de morte aos maus livros”. Quanto aos periódicos, adverte ao pai de família que supervisione o que entra na sua casa. Desse jornal ou periódico depende a vida ou a morte da família. Não se compre jornais ruins ou neutros, mas apenas os bons e inteira e francamente católicos.” – Falando de leitura, devemos assinalar a importância que o bispo de Poitiers dava à questão da imprensa. “Ainda que o povo todo se reunisse para o sermão, o povo mais religioso do mundo que lesse periódicos maus, se tornaria, após trinta anos, uma nação de ímpios e de revoltados. Humanamente falando, não há pregação que segure uma imprensa má” Cardeal Pie, citado por E. Auguer no Vade-mecum du Conférencier. 419
  6. 6. A escola abertamente má é comparada a um gládio que mata, a escola neutra a um veneno que, lentamente, conduz à morte. Não há nenhum exagero nessa doutrina de São João Crisóstomo recordada pelo Cardeal Pie. É a doutrina da Igreja que sempre condenou a escola neutra. Ler a esse respeito a Encíclica Nobilissima gallorum gens de Leão XIII. Lá se lê: “Sempre scholas quas appelant mixtas vel neutras aperte damnavit Ecclesia”.

A Igreja e seus inimigos

Gustavo Corção

Uma das características da camada exterior que desfigura a Igreja em nossos dias, e que se propõe ao mundo como figura verdadeira, modernizada, da Igreja de Cristo, é o impudente exibicionismo que faz dessa falsa Igreja uma “notícia” e quase sempre um escândalo; outro traço não menos deplorável da dita camada exterior é a incontinência verbal, é a tagarelice que se manifesta todos os dias em pronunciamentos, notícias, protestos; o terceiro traço desse make-up que desfigura a Igreja de Cristo é a infinita multiplicação de grupos quase microscópicos que falam engrossando a voz, num plural majestático, como faz agora a subentidade CIEC surgida em São Paulo nas chocadeiras da arquidiocese.

Nós, que conhecemos a Igreja sem essa hedionda desfiguração, que a conhecemos no tempo em que se podiam bem discernir as lições da Mãe e Mestra, mestra do valor da Palavra e mestra do valor do Silêncio, dificilmente podemos suportar sem gemidos de dor ou sem gritos de cólera o que fazem hoje os inimigos da Igreja, ou os amigos desses inimigos.

Não suponha o leitor que eu esteja aqui, romanticamente, imaginando alguma época em que a Igreja aparecia a nossos olhos transfigurada como um dia com a graça de Deus a veremos na Pátria verdadeira. Não julgue o leitor que eu ignore tão completamente não apenas a história da Igreja como também o mistério de sua paixão, e o mistério de nossa mediocridade que não deixa ver, senão na obscuridade da fé, o brilho de sua santidade interior. Nossa Mãe, nos mais gloriosos dias, teve sempre seu mato manchado por nossas faltas, e até rasgado pelas urzes dos caminhos que andou trilhando e por onde correu atrás das ovelhas tresmalhadas, sempre foi Rainha andrajosa por ser Pastora diligente, Mãe eternamente moça e eternamente afatigada.

Discorrendo sobre o Dom do Temor, que apesar do áspero e severo nome é o mais seguro amigo da doce e transluminosa Esperança, Santo Tomás ensina que o temor filial permanece no Céu, e cita estas admiráveis palavras de São Gregório: “Os próprios anjos do Céu, que sem cessar contemplam Deus, estremecem nessa contemplação, não de um tremor de medo ou pena, mas de um tremor de admiração”.

Analogamente eu diria que mesmo no céu a Igreja triunfante guardará o estremecimento de suas entranhas, que aqui na terra é de inquietação e de luta constante, mas lá, na Pátria, será o estremecimento de solicitude infinitamente agradecida e pacificada.

Mas aqui na terra a Igreja tem contra ela, não apenas o peso dos filhos ingratos, dos inúteis servidores, dos filhos pecadores, mas também INIMIGOS. Outro dia, deu-me vontade de escrever, se para tanto a vida sobejasse, um livro inteiro para glosar três linhas do Catecismo de Trento que hoje um cristianismo emasculado gostaria de ver apagadas, raspadas, recobertas de vaselina ou de talco, a fim de não arranhar as peles finas dos pacifistas que estão capitalizando omissões, capitulações, agachamentos, até que esse paiol exploda numa imaginária hecatombe em que as insânias de todos os intelectuais se multipliquem pela insuperável crueldade dos covardes.

Contra esse amolecimento geral vale a pena lembrar as três linhas do Catecismo de Trento: “A Igreja na terra se chama Militante porque está obrigada a sustentar uma guerra incessante contra os mais cruéis inimigos: o mundo, a carne e Satã.” Estava eu nessa disposição de espírito quando recebi a visita de um velho padre lituano que, por causa de um artigo que escrevi sobre a grande paixão do bom povo lituano, trazia-me de presente três pequenos devocionários com orações escritas nas várias línguas da Igreja martirizada pelo comunismo. Ora, logo à primeira página está o Sinal da Cruz que aprendi há mais de setenta anos com a mãozinha de três ou quatro anos guiada pela mão de minha mãe. E hoje, depois de tanta leitura, de tanto estudar e de tantos passos “vãmente derramados”, vejo no antigo e luminosíssimo sinal da evidência de uma figura de espada e escudo. Quem faz o “pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos” arma-se cavaleiro de Cristo e apronta-se para o bom combate.

***

Desviei-me da intenção primeira deste artigo, que visava a criticar uns editoriais de um protozoário eclesiástico chamado CIEC. Antes disso convém firmar algumas noções, ou pelo menos encaminhar nosso pensamento para uma clareira de são doutrina. Quando digo, com a Igreja, que temos de combater três cruéis inimigos, não se deve concluir que temos como inimigos da Igreja todos aqueles que combatemos. Descontados os claros e inequívocos casos que constituem no mundo de hoje anti-Igrejas, o fenômeno que combatemos quase todos os dias é o de uma entidade que quer ser Igreja, que quer ser neutra, que quer ser intermediária e que quer estar em excelentes termos com os inimigos declarados da Igreja.

Uma das tremendas dificuldades de nosso tempo reside precisamente nesta falta de nitidez, e na facilidade parva com que pessoas vagamente bem intencionadas passam a servir ao inimigo. Um dos mais brutais exemplos de nossos dias é o da complacência de uma parte tresloucada do clero com o comunismo ou o revolucionarismo, e a complacência do episcopado que, sem ser declaradamente inimigo da Igreja, acoberta esses inimigos e lança a confusão e descrédito em toda a Igreja.

E isto no s devolve à intenção primeira desta artigo, que era o de denunciar uma estupidez crassa que a tal entidade paulistana CIEC atribui à Igreja. Mas vejo que cheguei ao limite do papel, e deixo para sábado a supracitada denúncia. Nesse meio tempo o CIEC poderá fazer uma autocrítica.

(O Globo, 18/3/71)

Vida de Santo Tomás de Aquino

“Assim como foi dito aos antigos egípcios em tempos de fome: ‘Ide a José’, para receberem dele abundância de trigo e nutrirem seus corpos, assim também hoje nós dizemos a todos que desejam a verdade: ‘Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê de sua abundância o alimento da doutrina substancial com a qual podeis nutrir vossas almas para a vida eterna.’” (Papa Pio XI – Encíclica Studiorum Ducem – 29 de Junho de 1923)

“Invoquei (o Senhor) e veio a mim o espírito da sabedoria. Preferia-a aos cetros e aos tronos, e julguei que as riquezas nada valiam em sua comparação.” (Sb 7, 7-8)

 

Introdução

O século XIII foi um período de extraordinária atividade intelectual, mas não foi isento de perigos. Na busca entusiasmada por conhecimento, os estudantes reuniam-se aos milhares nas grandes universidades, que apesar de serem escolas de fé, foram também muitas vezes escolas de infidelidade. Os filósofos da época deviam tudo a um único mestre, que fora um pagão. “Aristóteles”, diz Lacordaire, “foi tomado como representante da sabedoria, mas, infelizmente, ele e o Evangelho nem sempre concordam um com o outro”. E muitos, entrando no oceano inexplorado do pensamento sem nenhum guia, naufragaram sem esperança a sua religião. Grandes professores, que eram tidos como os “oráculos do dia”, nem sempre souberam resistir às seduções da vaidade, e algumas vezes buscaram o renome propondo audaciosas teorias em assuntos em que a especulação original era raramente amigável à fé.

Foi em meio à confusão dessas novas opiniões que Santo Tomás foi dado ao mundo para demarcar os limites da filosofia cristã e para integrar, em uma estrutura grande e completa, as matérias de teologia dogmática, moral e especulativa, que até então estavam separadas. Ao mesmo tempo, enriqueceu a liturgia da Igreja com algumas de suas mais belas devoções, e mostrou, em sua vida e em seu caráter, todas as virtudes que as graças de um santo produzem.

 

1. Nascimento e infância

Situada de um modo pitoresco no sul da Itália, no topo de um penhasco escarpado,  flanqueando o pico dos Apeninos e divisando as águas correntes de Melfi, lá estava em tempos medievais a fortaleza de Roccasecca. Ali nasceu Santo Tomás por volta do ano de 1225 – os autores não chegaram a um consenso acerca da data precisa – e devido ao condado vizinho de Aquino, ele recebeu seu sobrenome. 1 O conde, seu pai, era sobrinho do imperador Frederico Barba-Roxa, e pelo lado de sua mãe, era descendente dos barões normandos que haviam conquistado a Sicília dois séculos antes. A família Aquino arrogava-se de parentesco com São Gregório Magno e era ligada pelo sangue a São Luís de França e a São Fernando de Castela. A futura vocação e santidade do pequeno Tomás foram preditas à sua mãe, a condessa Teodora, por um santo eremita de nome Bonus, e quando ainda era uma criança, a Providência vigilante de Deus sobre ele já estava manifesta de uma maneira surpreendente: uma terrível trovoada rebentou no castelo, fulminando sua babá e sua irmã no mesmo quarto em que Santo Tomás dormia, ficando ele ileso. Essa circunstância explica o grande medo de trovão e relâmpago que diziam ter Santo Tomás durante toda a sua vida, e que o fazia freqüentemente se refugiar na igreja durante uma trovoada, a ponto de inclinar sua cabeça contra o tabernáculo para se colocar o mais próximo possível sob a proteção de Nosso Senhor. 2

Ave Maria foram as primeiras palavras que se ouviu pronunciar por seus lábios de bebê. Muito antes de aprender a ler, descobriu-se que um determinado livro era um meio infalível de enxugar suas lágrimas e suas mágoas infantis. Ele costumava se deleitar em manuseá-lo, passando suas páginas com uma gravidade pueril.

 

2. Educação Primária

Quando tinha apenas cinco anos de idade, Santo Tomás começou a ser educado pelos monges da famosa Abadia Beneditina do Monte Cassino, que ficava a poucas milhas de Roccasecca. Os monges descobriram que seu novo pupilo era uma criança grave e quieta, que amava passar a maior parte de seu tempo na igreja, e nunca estava sem um livro nas mãos. Ele tinha uma considerável influência sobre seus jovens colegas, aos quais estava sempre pronto a ajudar e a quem a doçura de sua disposição o fazia muito querido. Porém, importava-se pouco com os divertimentos da infância, e raramente participava deles. Um dia, quando o restante dos colegas brincava alegre pelos bosques, Santo Tomás se isolou em silenciosa meditação. O monge encarregado dos garotos indagou o motivo de suas reflexões, e ele, levantando a cabeça, disse: “Diga-me, mestre, o que é Deus?” Essa foi a pergunta mais repetida por ele, o que mostrava que toda a tendência de sua mente e de seu coração estava já voltada para o Céu.

Aos dez anos, tinha progredido tanto em seus estudos que seus pais resolveram enviá-lo, sob os cuidados de um tutor, à recentemente fundada Universidade de Nápoles. Antes, levaram-no para passar algumas semanas em companhia deles em outro castelo de sua propriedade, em Loreto – um local destinado depois a ser tão famoso como o lugar de repouso da Santa Casa de Nazaré. Na época, uma fome assolou a cidade, e Santo Tomás se deleitou em distribuir as abundantes esmolas que seus caridosos pais tinham reservado para os pobres. Ele levou sua liberalidade tão longe, que o mordomo do castelo reclamou ao seu pai. O conde então surpreendeu o menino enquanto ele se apressava para o portão e perguntou severamente o que estava escondendo embaixo da capa. Santo Tomás a desdobrou e deixou cair no chão não o alimento que carregava, mas uma profusão de flores adoráveis e docemente perfumadas.

Em sua chegada a Nápoles, os extraordinários talentos dos quais ele já havia dado provas a seus professores beneditinos tornaram-se mais e mais manifestos, ao mesmo tempo em que progredia rapidamente na ciência dos santos. Era continuamente tomado como modelo para seus colegas estudantes, o que feria muito sua humildade, mas a modéstia, a doçura, e a gentileza de seu caráter o preservaram da inveja, fazendo-o unanimemente querido. Ele afastava-se de todas as más ocasiões e devotava suas horas de lazer à oração e às boas obras.

 

3. Junta-se aos Dominicanos          

A igreja dominicana em Nápoles tornou-se um de seus refúgios favoritos, e enquanto ele derramava sua alma em oração diante do altar, foram vistos mais de uma vez cintilantes raios de luz emitidos de seu semblante. Um santo frade chamado João de São Julião, que testemunhou o maravilhoso sinal, disse um dia ao pio jovem: “Deus vos deu à nossa Ordem.” Santo Tomás atirou-se aos seus joelhos, dizendo que há muito desejava ardentemente tomar o hábito, mas que temia ser indigno de tão grande graça. A comunidade, então, alegremente admitiu o jovem estudante, e quando ainda era praticamente um garoto, vestiu publicamente o hábito branco de São Domingos.

A novidade logo chegou aos ouvidos da condessa Teodora, sua mãe, que, reconhecendo no evento a realização da profecia do santo eremita, correu a Nápoles para felicitar o filho. Porém, Santo Tomás e os irmãos, ignorantes das disposições dela, ficaram muito alarmados com a ideia da iminente visita, e em observância às suas fervorosas súplicas, o noviço apressou-se ao Convento de Santa Sabina em Roma. Para lá sua mãe o seguiu, mas não pôde induzi-lo a consentir em uma entrevista. O superior da Ordem, João Germano, estava prestes a partir para Paris e resolveu levar Santo Tomás e outros três companheiros com ele, e assim deixaram Roma. Quando Teodora se viu assim frustrada, enfureceu-se contra os frades e enviou ordens a dois de seus filhos mais velhos, que estavam servindo no exército do imperador na Itália, para surpreender o irmão e trazê-lo de volta. 3 O pequeno grupo de frades foi alcançado e surpreendido enquanto tirava seu descanso do meio-dia às margens de uma fonte. Os rudes soldados tentaram rasgar o hábito de Santo Tomás, mas sua forte resistência os impeliu a desistirem do intento. Seus companheiros foram impedidos de seguir viagem, enquanto o jovem noviço foi levado de volta para junto de seus irados pais em Roccasecca.

 

4. Prisão e Fuga

A condessa estava determinada a jamais permitir que Santo Tomás fosse um dominicano. E seu pai, que alegremente aceitaria que ele assumisse o hábito beneditino – como um de seus tios, ele poderia chegar ao grau de Abade do Monte Cassino – estava igualmente determinado a não permitir que ele pertencesse à desprezível ordem mendicante que tinha abraçado. Lágrimas, ameaças e súplicas foram ineficazes para fazer abalar a resolução do santo, e ele foi aprisionado em uma das torres do castelo, onde teve de passar frio, fome, e todo tipo de privação. Suas duas irmãs, Marieta e Teodora, a quem ele era ternamente apegado, tentaram em vão com afetuosas carícias induzi-lo a ceder aos desejos da mãe, mas elas próprias se renderam a uma vida de perfeição, e ambas posteriormente morreram em odor de santidade, uma como abadessa beneditina, e a outra casada como condessa de São Severino. Através da intervenção delas, Santo Tomás conseguia obter livros e roupas de seus irmãos (dominicanos) em Nápoles. Durante seu cativeiro, que durou consideravelmente mais de um ano, ele conseguiu confiar à memória toda a Bíblia e os quatro livros das Sentenças, o compêndio teológico da época. 4 Diz-se que seus primeiros escritos pertencem a esse mesmo período.

Com a chegada de seus irmãos, a constância de Santo Tomás foi posta à prova de modo ainda mais terrível. Os dois jovens oficiais conceberam o projeto infernal de introduzir uma mulher de má reputação dentro de seu quarto. Mas, apanhando da lareira um ferrete em chamas, o santo furiosamente retirou-a de sua presença. Com o mesmo ferrete, ele então traçou uma cruz na parede e lançando-se de joelhos diante dela, suplicou a Deus para conceder-lhe a graça da castidade perpétua. Enquanto rezava, caiu em um êxtase durante o qual dois anjos lhe apareceram e o cingiram com uma corda miraculosa dizendo: “Viemos da parte de Deus para te revestir com o cinto da castidade perpétua. O Senhor ouviu tuas orações e aquilo que a fragilidade humana nunca poderá merecer é assegurado para ti pela irrevogável graça de Deus”. Os anjos o cingiram tão firmemente que ele soltou um involuntário grito de dor, fazendo com que alguns empregados viessem ao lugar. Porém, Santo Tomás manteve o segredo para si mesmo, revelando-o somente em leito de morte para seu confessor, o padre Reginaldo, declarando que a partir daquele dia, nunca tinha sido permitido ao espírito das trevas se aproximar dele. O cinto foi usado pelo santo até sua morte e ainda é preservado no Convento de Chieri, em Piemonte. 5

Nesse período, a família de Santo Tomás compreendeu que sua firmeza não seria vencida pela perseguição. A contragosto, reconhecerem que foram derrotados e consentiram em sua fuga. Assim como São Paulo, ele foi descido da torre em uma cesta, e os frades, como haviam combinado, esperavam-no embaixo. Eles levaram seu tesouro resgatado para Nápoles, onde foi imediatamente admitido ao ofício.

 

5. Seus Estudos em Colônia

Mais uma tentativa foi feita para abalar a constância de Santo Tomás, dessa vez através de um apelo ao papa, que o convocou a Roma. 6 Mas o santo advogou tão bem em sua própria causa que o Santo Padre se convenceu da realidade de sua vocação. Entretanto, para satisfazer a família dele, e assegurar em um posto importante os serviços de uma pessoa tão agraciada, o papa propôs fazê-lo abade do Monte Cassino mesmo sendo dominicano. Porém, Santo Tomás implorou tão fervorosamente para continuar sendo um simples religioso na ordem que escolhera que Sua Santidade concedeu e proibiu estritamente qualquer outra interferência em sua vocação.

Para afastá-lo de outros aborrecimentos, o superior geral da ordem levou Santo Tomás consigo para Colônia, onde se tornou discípulo de Santo Alberto Magno, o renomado professor dominicano. Quando Santo Tomás achou-se seguro dentro das paredes do convento, devotou-se com ardor à obra de sua santificação. Seu tempo era dividido entre oração e estudo, e sua humildade fez com que ele escondesse sua vasta inteligência, e mantivesse absoluto silêncio em todas as disputas escolásticas. Sua alta estatura e a imponência de sua figura levaram seus colegas a chamarem-no “o boi mudo da Sicília”. Um dos estudantes, jovem de boa índole e seu colega, oferecia-se para lhe explicar as lições diárias – oferecimento esse que o santo humilde e gratamente aceitava. Um dia, porém, o jovem professor se deparou com uma difícil passagem que interpretou erroneamente. Então, a caridade do santo e o amor à verdade triunfaram sobre sua humildade; pegando o livro, explicou a passagem com a máxima clareza e precisão. O colega, atônito, implorou para dali em diante ser ele o aluno, ao que Santo Tomás consentiu sob a condição de que mantivesse o sigilo. Pouco depois desse episódio, um artigo escrito pelo santo contendo uma solução magistral de uma complicadíssima questão caiu acidentalmente nas mãos de Santo Alberto. Admirado com o gênio que o artigo revelava, Santo Alberto no dia seguinte pôs o conhecimento de seu virtuoso discípulo a uma prova pública, e exclamou diante dos alunos reunidos: “Nós chamamos o irmão Tomás ‘o boi mudo da Sicília’, mas eu vos digo que um dia ele fará com que seus mugidos sejam ouvidos em todos os confins da terra!”

 

6. Seus Estudos em Paris

No verão de 1245, um ano depois da chegada de Santo Tomás a Colônia, o Capítulo Geral da Ordem Dominicana ordenou que Santo Alberto partisse para Paris para receber o título de doutor na universidade daquela cidade, e ele obteve permissão de levar o irmão Tomás como seu companheiro. Os dois santos partiram a pé, de cajado na mão, tendo como bagagem principal o breviário e a Bíblia, aos quais Santo Tomás juntou o livro das Sentenças.

Ao meio dia, eles paravam para descansar às margens de alguma fonte para comer o alimento que pediam pelo caminho. À noite, geralmente encontravam abrigo nos quartos de hóspedes de algum monastério. Desse modo, chegaram ao convento de São Tiago em Paris, onde Santo Tomás se tornou um modelo para toda a comunidade pelo seu espírito de oração, sua profunda humildade, perfeita obediência e caridade universal. Ele tentava imitar as virtudes que observava em seus irmãos e julgava-se totalmente indigno de viver em tão santa companhia. Nunca se ouviu dizer que ele pronunciasse alguma palavra frívola; quando falava, a beleza de seu divino discurso enchia de consolação espiritual todos os que o ouviam. Uma graça celestial irradiava de seu belo semblante, de modo que alguns diziam que bastava contemplá-lo para sentir dentro de si uma renovação de fervor.

Um jovem franciscano de nome Boaventura estava nessa época estudando em Paris. A ele, Santo Tomás liga-se numa amizade muito próxima. Os dois, que foram posteriormente honrados pela Igreja como os Doutores Seráfico e Angélico, tornaram-se muito caros um ao outro na terra assim como Jônatas e Davi, e depois de seus três anos de estudo, receberam juntos o título de Bacharel em Teologia em 1248.

 

7. Recebe o Título de Doutor

Em novembro daquele mesmo ano, Santo Alberto foi enviado de volta a Colônia acompanhado de Santo Tomás, que ensinava sob sua orientação. Os intelectuais não demoraram a descobrir que os dois professores dominicanos excediam todos os outros, e a nova escola em Colônia rapidamente encheu-se a ponto de transbordar. As aulas de Santo Tomás corroboravam completamente os cinco princípios de ensino que ele mesmo tinha estabelecido, a saber: clareza, brevidade, utilidade, doçura e maturidade. Ele possuía uma admirável graça de comunicar o conhecimento, de modo que se aprendia mais rapidamente com ele em poucos meses do que com outros em muitos anos.

Foi logo após o retorno a Colônia que Santo Tomás ascendeu ao sacerdócio; daquele momento em diante, ele parecia mais próximo de Deus do que nunca. Costumava passar muitas horas do dia e uma grande parte da noite na igreja. Enquanto oferecia o Santo Sacrifício, derramava abundantes lágrimas, e o ardor de sua devoção comunicava-se com aqueles que assistiam à Missa.

Após ensinar por quatro anos em Colônia, a Santo Tomás foi ordenado pelo Capítulo Geral que se preparasse para receber o título de doutor. Foi um golpe terrível para sua humildade, pois julgava-se sinceramente indigno de tal honraria. A caminho de Paris, para onde ele tinha de se dirigir, pregou na corte da Duquesa de Brabante, a pedido de quem escreveu um tratado cheio de sabedoria e moderação sobre o governo dos judeus. A partir de então, ele era constantemente consultado nos mais importantes assuntos de Estado, especialmente por São Luís de França, que era ternamente afeiçoado a ele. Santo Tomás chegou a Paris em 1252, e desde o primeiro momento seu sucesso no ensino foi tão grande que os vastos salões do convento de São Tiago não podiam conter seu público. A Universidade (de Paris) parabenizou a Ordem pela aquisição de tão grande tesouro e propôs garantir-lhe imediatamente a licença preliminar para doutorar-se, embora estivesse quase dez anos abaixo da idade requerida pelos estatutos.

Esta etapa, porém, foi atrasada por uma disputa entre os frades e os doutores seculares. A querela começou com a recusa dos primeiros em fazer um juramento para fechar suas escolas, e isso se acalorou com a publicação de um livro intitulado Os Perigos dos Últimos Tempos, no qual as novas Ordens mendicantes eram atacadas nos termos mais caluniosos e escandalosos. Essa obra, que veio da pena de um doutor parisiense chamado Guilherme de Saint-Amour, um homem violento e de opiniões heréticas, foi remetida por São Luís para ser julgada pelo papa. Santo Tomás e São Boaventura foram convocados pelo Tribunal Papal para atuarem como defensores dos regulares, e a pena de Santo Alberto Magno foi também requisitada. A eloqüência de Santo Tomás obteve a condenação do livro, salvou as ordens mendicantes da destruição, e pelos esforços em conjunto do papa e de São Luís, a Universidade foi obrigada a se render e readmitir os frades em suas cadeiras teológicas.

Em 23 de Outubro de 1257, os dois santos puderam doutorar-se. A humildade de Santo Tomás tinha sido tão atingida pela ideia dessa promoção que ele não conseguiu preparar o discurso preliminar até a véspera do dia em que seria proferido. Então, por inspiração divina, ele escolheu para seu texto as palavras do Salmo 103:13: “Regas os montes (do alto) das tuas moradas, com o fruto das tuas obras é saciada a terra” – palavras que em sua interpretação se referiam a Jesus Cristo, que como a cabeça dos homens e dos anjos, rega os espíritos celestes com glória, enquanto enche a Igreja Militante na terra com os frutos de suas obras através dos Sacramentos, que aplicam os méritos de sua sagrada Paixão às nossas almas. Porém, o evento deu a esse texto o caráter de profecia em relação à própria futura carreira do santo.

 

8. O Trabalho em Sua Ordem e na Igreja

Em 1259, Santo Tomás foi incumbido, juntamente com Santo Alberto Magno e outros homens doutos da Ordem, de elaborar regras para regular os estudos dos irmãos. Um ou dois anos depois, ele foi convocado à Itália para ensinar nas escolas ligadas à Corte Papal. Como essas escolas seguiam o papa de lugar em lugar, muitas das grandes cidades da Itália e muitos conventos de sua ordem desfrutaram por um tempo o privilégio dos ensinamentos do santo. 7

Após ter ficado por um período em Roma, em 1269 foi novamente indicado para ensinar em Paris. Os doutores da Universidade referiram a ele uma controvérsia que tinha se levantado sobre as espécies sacramentais na Sagrada Eucaristia. Depois de uma longa e fervorosa oração, o santo expôs por escrito sua opinião sobre o assunto, colocou o manuscrito aos pés do crucifixo no altar do Santíssimo Sacramento e rezou: “Senhor Jesus, que estais verdadeiramente presente e fazeis maravilhas neste adorável Sacramento, rogo-Vos que me concedais que, se o que escrevi for verdadeiro, Vós me habiliteis a ensiná-lo; mas que se houver algo contrário à Fé, Vós me impeçais de prosseguir em declará-lo.” Então, os outros frades, que estavam assistindo, contemplaram o próprio Nosso Senhor descendo e posicionando-se sobre o manuscrito, e ouviram de Seus Divinos lábios estas palavras: “Tomás, tu escreveste bem sobre o Sacramento de Meu Corpo.” O santo imediatamente entrou em êxtase, o que fez com que ele levitasse um cúbito do chão.

Em 1271, Santo Tomás retornou à Itália e começou a ensinar em Roma. Durante a Semana Santa daquele ano, ele pregou em São Pedro sobre a Paixão de Nosso Senhor, e aqueles que o escutaram na Sexta-Feira Santa foram levados às lágrimas e não cessaram de chorar até o Domingo de Páscoa, quando seu sermão Pascal encheu a todos de júbilo. Naquele dia, enquanto ele descia do púlpito, uma pobre mulher, doente há muito tempo, e sem esperanças de cura, beijou a barra de seu manto e ficou imediatamente curada. Nesse ínterim, as Universidades de Paris e de Nápoles estavam competindo entre si para obter a posse do grande Doutor. Nápoles levou a melhor, e o santo a premiou até o final do verão de 1272 com os últimos atos de seu trabalho como professor.

Durante todos esses ativos anos de ensino, a pena de Santo Tomás trabalhou infatigavelmente, enriquecendo as escolas e a Igreja com inestimáveis tratados que encheram muitos volumes. Dentro do estreito limite destas páginas, é impossível fazer mais do que citar alguns de seus mais importantes escritos. Ele comentou as obras de Aristóteles e livrou o texto do filósofo pagão de tudo o que era contrário às verdades da Fé. Ao mesmo tempo, adotou os termos da filosofia de Aristóteles como a classificação mais científica das ideias humanas e assim, estabeleceu um sistema completo de filosofia Cristã. Sua Suma Contra os Gentios (Summa Contra Gentiles) foi escrita a pedido de São Raimundo de Pennaforte, o terceiro Superior da Ordem, para combater as falsas doutrinas filosóficas introduzidas pelos sarracenos na Espanha e que estavam penetrando nas universidades da Europa. Nessa obra, Santo Tomás demonstra a verdade da Religião revelada e prova de modo triunfal que a Cristandade não pode ser contrária à sã razão. O Santo Doutor escreveu tratados sobre o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo8, comentários sobre as várias partes da Sagrada Escritura, e respostas a diversas questões propostas a ele para que as solucionasse. O Papa Urbano IV encarregou-o da tarefa de reunir todas as mais belas passagens dos escritos dos Padres da Igreja sobre os Evangelhos, e o resultado foi sua Catena Aurea, ou A Corrente de Ouro, que é inteiramente composta de citações, e escrita em grande parte de memória. Como viajava de convento em convento, o santo lia as obras dos Padres, uma aqui, outra ali, e sua maravilhosa memória fez com que ele guardasse e transcrevesse as passagens tendo em mente cada assunto. A mais famosa de suas obras é sua Suma Teológica (Summa Theologica), na qual ele trabalhou, nos intervalos entre o ensino e a pregação, pelos últimos nove anos de sua vida, mas que não viveu o suficiente para terminar.

Desse trabalho é dito que o Papa João XXII afirmou que Santo Tomás havia feito tantos milagres quanto a Suma continha artigos, e seu valor é talvez mais bem atestado pelo ódio com o qual ela sempre foi considerada pelos hereges. Em 1520, Lutero fê-la ser queimada em público na praça de Wittenberg, e outro dos chamados reformadores, Martin Bucer, exclamou: “Suprimi Tomás e eu destruirei a Igreja!” “Um desejo vão”, observa Leão XIII, “mas não um vão testemunho.” No Concílio de Trento, apenas três obras de referência foram colocadas na mesa do salão de reunião. Eram elas: as Sagradas Escrituras, os Atos Pontificais e a Suma de Santo Tomás. Foi por causa da Suma que o Catecismo do Concílio de Trento foi escrito por três padres dominicanos e outros teólogos. 

 

9. A Festa de Corpus Christi

A obra de Santo Tomás mais amada e venerada pelos fiéis talvez seja a participação que teve na instituição da Festa de Corpus Christi. Quando ele apresentou ao Papa Urbano IV a primeira parte de sua Catena Aurea, por volta de 1263, o Pontífice maravilhado quis, em sinal de gratidão, elevá-lo ao episcopado. Porém, Santo Tomás atirou-se-lhe aos pés e implorou ao Santo Padre que lhe concedesse como única recompensa pelo seu trabalho que a Festa do Santíssimo Sacramento, já estabelecida na Alemanha e nos Países Baixos pelas orações da Bem-aventurada Santa Juliana e pela influência do cardeal dominicano Hugo de São Cher, fosse estendida para a Igreja Universal. O papa alegremente consentiu e ordenou que Santo Tomás escrevesse o ofício da festa. Nesse ofício, cada responsório nas Matinas é composto de duas frases, uma retirada do Antigo Testamento e outra do Novo, que assim são feitas para darem um único testemunho ao grande mistério central da Fé Católica. Seus hinos Verbum Supernum e Pange Lingua nos são familiares, especialmente suas últimas estrofes, O Salutaris e Tantum Ergo, sempre cantados na Bênção, e desde a infância nossos corações são tocados de emoção enquanto caminhamos nas procissões do Santíssimo Sacramento pela força do Lauda Sion.

Antes de apresentar seu ofício ao papa, Santo Tomás o colocou diante do sacrário, e o milagre anteriormente ocorrido em Paris repetiu-se: as palavras de aprovação procederam dos lábios de um crucifixo ainda venerado em Orvieto. Um testemunho semelhante da aprovação divina foi concedido ao santo em Nápoles, e foi visto por um dos frades. Nessa ocasião, também Nosso Senhor falou com ele de um crucifixo, que é preservado na Igreja de São Domingos Maior, dizendo: “Tu escreveste bem de Mim, Tomás. Que recompensa terás?” Ao que o Santo fervorosamente respondeu: “Nenhuma além de Vós, ó Senhor!”

Também devemos à pena de Santo Tomás o Adoro Te, algumas belas devoções antes e depois da Santa Comunhão, e muitas outras orações sólidas em doutrina e belas em expressão. É tradição dizer que ele compôs a tão famosa “Alma de Cristo, Santificai-me” (Anima Christi), que era a oração favorita de Santo Inácio e que foi introduzida por ele em seu livro Exercícios Espirituais, embora deixando de fora a amável súplica “Luz da Sagrada Face de Jesus, brilhai sobre mim”, que é encontrada nas formas mais antigas da oração. Essa súplica ocorre na versão de Anima Christi encontrada em um antigo livro de orações chamado Horas York, onde se afirma ter sido indulgenciada pelo Papa João XXII quando ele a recitou após a elevação na Missa. Esse livro de orações foi publicado em 1517, quatro anos antes da conversão de Santo Inácio.

 

10. Traços Pessoais

Santo Tomás era alto e forte, de cabeça fina e sólida, fronte elevada, traços refinados e belos, olhos grandes e brandos que irradiavam benevolência. Suas maneiras eram singularmente encantadoras e graciosas, e suas prodigiosas faculdades mentais eram acompanhadas de uma inocente simplicidade de caráter, que juntamente com a pureza de sua doutrina renderam-lhe o título de “Anjo das Escolas”. Embora estivesse muito acima dos outros por sua enorme inteligência, ele era o mais doce e o mais caridoso dos mestres e dos padres, sempre pronto a curvar-se diante da capacidade dos mais jovens e dos mais estultos de seus colegas. Independentemente da importância dos afazeres nos quais estava engajado, sua cela estava sempre aberta para seus irmãos todas as vezes que queriam falar com ele, e alegremente deixava a mais exaustiva ocupação para dar-lhes sua inteira atenção. Ele os ouvia em suas dificuldades, explicava suas dúvidas e confortava-os em suas aflições. Nada que dizia respeito a seus irmãos era banal aos seus olhos, e ele nunca se mostrou cansado de suas interrupções, nem de suas inconveniências. Em troca, seus irmãos lhe davam a mais terna afeição: Doctor noster (Nosso Doutor) era como eles amavam chamá-lo, e a sinceridade de sua amizade era largamente provada pela amarga tristeza de todos quando ele se ausentava.

Muito depois de sua morte, aqueles que o tinham conhecido nunca falavam dele sem lágrimas, tão ternamente o amavam. Verdadeiro filho de São Domingos, cuidou apenas de falar de Deus ou com Deus, e não conseguia entender como um religioso poderia interessar-se por outro assunto. Se a conversa mudava para outros temas, ele cessava de participar e confessava para seus colegas que o surpreendia que um religioso pudesse pensar em outra coisa que não fosse Deus. Também era completamente incompreensível para ele o fato de alguém em estado de pecado mortal conseguir comer, dormir, ou alegrar-se. Quando os seculares vinham buscar conselho e consolação, ele lhes dava ouvidos de boa vontade, e após tirar suas dúvidas e consolá-los em suas dores, nunca deixava de contar-lhes alguma pia história ou falar-lhes algumas palavras edificantes, e em seguida dispensava-os, ficando eles com os corações ardendo de júbilo espiritual e amor divino.

Podemos imaginar Santo Tomás desfrutando da simples distração de subir e descer o claustro de seu convento, ocasionalmente levado por seus irmãos para tomar ar fresco no jardim, mas certamente logo sendo encontrado em algum canto isolado, absorto em pensamentos. Dessas distrações, são contadas algumas anedotas, como a que no-lo mostra jantando com São Luís e de repente esmurrando a mesa, exclamando: “Há um argumento conclusivo contra os maniqueus!” Seus colegas gentilmente esforçaram-se para lembrá-lo da presença real, enquanto o amável rei imediatamente convocou um secretário para anotar o convincente argumento que se apresentava à mente de seu santo hóspede.

De volta a Nápoles, o cardeal legado e o arcebispo de Cápua vieram visitar Santo Tomás. Ele, por sua vez, foi recebê-los no claustro, mas no caminho, ficou tão absorto na solução de uma dificuldade teológica que, quando chegou, tinha se esquecido dos afazeres e dos visitantes, e ficou como alguém que está sonhando. O arcebispo, que tinha anteriormente sido seu aluno, assegurou ao cardeal que aqueles devaneios eram muito familiares para todos aqueles que conheciam os hábitos do santo. Essas distrações às vezes faziam-no insensível à dor, como quando uma vela queimou sua mão enquanto ele permanecia absorto, inconsciente do fato.

A vida austera de Santo Tomás e seus incessantes trabalhos aumentaram a delicadeza natural de sua constituição, e fizeram com que ele freqüentemente caísse doente. Contudo, isso não pareceu tê-lo feito desistir de seu trabalho de composição. Cirurgias eram mal feitas no século XIII, e sua extrema sensibilidade fizeram com que as operações lhe fossem ainda mais terríveis. Em uma ocasião, quando se viu obrigado a passar por uma cauterização, implorou ao enfermeiro para avisá-lo quando os cirurgiões viessem. Quando se deitou em seu leito, imediatamente entrou em êxtase, permanecendo imóvel enquanto sua carne era queimada com ferros em brasa.

Suas roupas eram sempre as mais pobres do convento e seu amor pela santa pobreza era tão grande que sua Summa Contra Gentiles foi escrita no verso de cartas antigas e em pedaços de papel. Em vão os soberanos pontífices insistiram que ele aceitasse o arcebispado de Nápoles e outras honras eclesiásticas juntamente com amplos rendimentos. Nada pôde abalar sua determinação de viver e morrer como um simples religioso, e eles foram obrigados a retirar suas propostas, não querendo afligir alguém tão caro para eles. Ele, que era o oráculo de seu tempo, amava pregar aos pobres e aos humildes, e é sabido que eles sempre o ouviam alegremente e com muito fruto para suas almas. Ele era cheio de compaixão pelas suas necessidades e fazia-lhes o donativo de suas próprias roupas para vesti-los.

 

11. Sua Humildade e Mansidão

A humildade sempre foi a virtude característica de Santo Tomás. Ele percebia tão perfeitamente a grandeza de Deus e sua própria insignificância que em um momento de intimidade, ele disse a um amigo: “Graças sejam dadas a Deus! Nunca meu conhecimento, meu título de doutor, nem nenhum dos meus atos acadêmicos despertaram em mim um único movimento de vanglória sequer. Se algum movimento tiver sido despertado, a razão instantaneamente o reprimiu”. Da humildade brotava a extrema modéstia na expressão de sua opinião. Nunca, no calor de um debate ou em qualquer outra ocasião, se soube que ele tenha perdido a imperturbável serenidade de temperamento, ou que tenha dito alguma palavra que pudesse ferir os sentimentos de alguém, e ele suportou os mais incisivos insultos com uma calma igualmente imperturbável. Sua vida é cheia de exemplos de seu espírito de humildade e obediência religiosa. Uma vez, ainda como um jovem religioso, quando estava lendo no refeitório de Paris, o corretor oficial lhe pediu para pronunciar uma palavra de um modo evidentemente incorreto. Santo Tomás obedeceu e pronunciou a quantidade errada. 9 Quando lhe perguntaram como ele consentiu em um engano tão óbvio, ele respondeu: “Pouco importa se uma sílaba seja longa ou breve, mas muito importa que se pratique a humildade e a obediência”. Anos mais tarde, quando o santo estava ensinando em Bolonha, um irmão leigo obteve a licença do prior para tomar como companheiro o primeiro irmão religioso que encontrasse livre. Vendo Santo Tomás, que era um estranho para ele, subindo e descendo no claustro, foi em direção a ele dizendo que o prior queria que ele o acompanhasse pela cidade, onde tinha negócios a realizar. O santo, embora coxeando e estando perfeitamente consciente de que o leigo estava enganado, imediatamente obedeceu ao chamado e foi mancando pela cidade atrás de seu companheiro, que de vez em quando reclamava de sua lentidão. Quando o leigo descobriu seu engano, desculpou-se copiosamente, mas o santo respondeu: “Não se incomode, meu caro irmão. Eu sou o culpado. Apenas sinto muito de não ter podido ser mais útil”. Para aqueles que perguntaram o porquê de ele não ter explicado o engano, ele deu esta preciosa resposta: “A obediência é a perfeição da vida religiosa; por ela, o homem se submete ao seu próximo por amor a Deus, como Deus fez-se a si mesmo obediente aos homens para a salvação deles”.

A Santo Tomás, custava-lhe acreditar que os outros pudessem ser maus. Sempre achava que todos eram melhores que ele, mas quando era provada uma falta e não havia possibilidade de dúvida, chorava como se ele mesmo a tivesse cometido, e seu zelo exigia que a falta fosse severamente corrigida, de acordo com o que dizia Santo Agostinho: “com caridade para com o pecador, mas com ódio ao pecado”.

Certa vez, um dos irmãos o pressionou a dizer qual a maior graça que já tinha recebido de Deus – com exceção da Graça Santificante. Após alguns minutos de reflexão, ele respondeu: “Penso que ter entendido tudo o quanto tenho lido”. Ele lembrava-se de tudo que ouvia apenas uma vez, de modo que sua memória era como uma biblioteca muito bem abastecida. Freqüentemente, escrevia e ditava ao mesmo tempo assuntos distintos a três ou quatro secretários, e nunca perdia o fio dos argumentos.

 

12. Sua Vida Diária e suas Devoções

Algumas informações sobre o modo como Santo Tomás passava seus dias foram preservadas. Depois do tempo absolutamente necessário de sono, ele levantava durante a noite e descia à igreja para rezar, retornando à cela pouco antes de os sinos tocarem para as Matinas, de modo que sua vigília passasse despercebida. Então descia novamente para o Ofício com a comunidade, sempre prolongando sua oração até a aurora. Após se preparar para a penitência, a Confissão e a meditação, ele celebrava a primeira Missa, e em ação de graças ouvia outra Missa na qual sempre servia. Compôs orações para todas as suas ações diárias, algumas das quais ainda são preservadas. Na Elevação, era seu costume repetir as palavras “Vós, ó Cristo, sois o Rei da Glória” com os últimos versos do Te Deum. Embora licitamente dispensado de comparecer ao coral devido aos seus trabalhos de ensino e escrita e às numerosas visitas dos que procuravam sua orientação, ele assistia com os irmãos todas as horas do Ofício Divino, e sempre derramava lágrimas de devoção.

Quando seus exercícios matinais terminavam, ele dava suas aulas de Teologia ou sobre as Sagradas Escrituras, e depois voltava para sua cela para escrever e ditar até a hora do jantar. Comia uma vez por dia apenas, e não se importava com o que era servido. Na verdade, no refeitório, ficava tão absorto em oração e em pensamentos que não percebia as coisas externas, tanto que mudavam seu prato, ou retiravam sua comida e ele não se dava conta. Depois do jantar, conversava um pouco com os irmãos, e em seguida reanimava sua alma com uma pequena leitura espiritual, sendo as Conferências de Cassiano seu livro favorito10. Após um pequeno repouso, retomava seus trabalhos, e terminava o dia cantando no coral o Salve Regina nas Completas.

O Doutor Angélico era cheio de devoções singelas a Nossa Senhora. Seu confessor, o padre Reginaldo, declarou que Santo Tomás nunca havia pedido algo através da Virgem Maria que não tivesse obtido, e o próprio santo atribuía especialmente à sua intercessão a graça de viver e morrer na Ordem Dominicana, conforme seu sincero desejo. Durante toda uma Quaresma, ele pregou sobre as palavras “Ave Maria”, e as mesmas amadas palavras podem ser encontradas repetidas vezes nas margens de seu próprio manuscrito da Suma Contra os Gentios, recentemente descoberto na Itália. Em seu leito de morte ele confidenciou ao padre Reginaldo que Nossa Senhora tinha lhe aparecido diversas vezes e lhe assegurou do bom estado de sua alma, e da solidez de sua doutrina. Os santos Apóstolos São Pedro e São Paulo também o favoreceram com suas visitas e lhe explicaram difíceis passagens da Sagrada Escritura. As epístolas de São Paulo eram suas matérias favoritas de meditação, e ele costumava recomendá-las aos outros para o mesmo propósito. Tinha uma devoção especial a Santo Agostinho, e a partir das obras desse santo Doutor, compôs o Ofício próprio, ainda em uso na Ordem Dominicana. Santo Tomás costumava usar em volta do pescoço uma relíquia da virgem e mártir Santa Inês, da qual fez uso certa vez para curar o padre Reginaldo de uma febre que o atacou em uma viagem a Nápoles, e é dito que a partir daquele momento, o Santo Doutor resolveu celebrar a festa de Santa Inês com solenidade especial e – com um caráter natural que demonstrava compaixão humana – servir um jantar melhor no refeitório naquele dia.

“Seu admirável conhecimento”, dizia o padre Reginaldo, “era devido muito menos ao seu gênio do que à eficácia de sua oração. Antes de estudar, entrar em uma discussão, ler, escrever ou ditar, ele sempre se entregou à oração. Rezava com lágrimas para obter de Deus o conhecimento de seus mistérios, e uma luz abundante era concedida a sua mente”. Se ele encontrava alguma dificuldade, juntava jejum e penitência à sua oração, e todas as dúvidas eram esclarecidas. Certa vez, São Boaventura, vindo visitá-lo, viu um anjo auxiliando-o em seus trabalhos.

Entre suas notáveis palavras, pode ser mencionada a resposta que ele deu à irmã quando ela lhe perguntou o que deveria fazer para se tornar santa. “Velle”, respondeu ele – i.e., “Querer”. Ao lhe perguntarem quais eram os sinais de perfeição da alma, ele respondeu: “Se eu visse um homem afeiçoado a conversas frívolas, desejoso de honra e relutante em ser desprezado, eu não acreditaria que fosse perfeito, ainda que o visse obrar milagres”.

 

13. Sua Morte

Na festa de São Nicolau, no dia 6 de Dezembro de 1273, Santo Tomás estava rezando a Missa na capela do santo no convento de Nápoles, quando recebeu uma revelação que o mudou de tal maneira, que a partir daquele momento, não pôde mais nem escrever, nem ditar. Pouco depois, em resposta às prementes súplicas do padre Reginaldo, ele disse: “Chegou o termo de meus labores. Depois de tudo o que me foi revelado, tudo o que escrevi até hoje me parece apenas palha. Espero na misericórdia de Deus que o fim de minha vida possa em breve seguir o termo de meus trabalhos.”

Sofria de uma doença quando recebeu um chamado do papa para comparecer ao Concílio Geral convocado em Lião para a reunião das Igrejas Grega e Latina. 11 O santo, portanto, partiu de Nápoles, acompanhado do irmão Reginaldo e alguns outros frades em 28 de Janeiro de 1274. No caminho, piorou muito. “Se Nosso Senhor estiver prestes a me visitar”, disse aos companheiros, “é melhor que Ele me encontre em uma casa religiosa do que em meio aos seculares”.

Como não estava próximo de nenhum convento dominicano, rendeu-se ao premente convite de alguns colegas cistercienses e deixou que o levassem para a Abadia de Fossa Nova. Chegando lá, foi direto para a igreja adorar o Santíssimo Sacramento, e em seguida, ao passar pelo claustro, exclamou: “Aqui é o lugar do meu repouso eterno!” Foi instalado na cela do próprio abade e esperou com a mais extrema caridade. Os próprios monges foram cortar lenha para lhe acender uma fogueira. Ao vê-los trazendo aquela carga para sua cela, o santo gritou: “Por qual razão devem os servos de Deus servir a um homem como eu, trazendo de longe tão pesados fardos?”

Em observância às diligentes súplicas dos cistercienses, ele começou a explicá-los o Cântico dos Cânticos, mas não viveu para completar sua exposição. Como se aproximasse seu fim, ele, com muitas lágrimas, fez uma confissão geral de toda sua vida ao padre Reginaldo, e então pediu para deitar-se sobre cinzas no chão quando lhe foi trazido o Santo Viático. Ao contemplar o Santíssimo Sacramento, colocou-se de joelhos e disse em clara e distinta voz, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto: “Recebo-Vos, ó preço da redenção da minha alma; recebo-Vos, ó viático da peregrinação de minha alma, por amor de quem eu tenho estudado, observado, trabalhado, pregado e ensinado. Escrevi muito, e freqüentemente discuti os mistérios de Vossa lei, ó meu Deus. Vós sabeis que não desejei ensinar nada salvo o que aprendi de Vós. Se o que escrevi for verdadeiro, aceitai-o como uma homenagem à Vossa infinita majestade; se for falso, perdoai minha ignorância. Consagro-Vos tudo o que já fiz e submeto tudo ao julgamento infalível de Vossa Santa Igreja Romana, em cuja obediência estou prestes a partir desta vida”.

Pouco antes de receber a Sagrada Hóstia, pronunciou sua jaculatória favorita: “Vós, ó Cristo, sois o Rei da glória, Vós sois o Filho Eterno do Pai”. Após receber o Santo Viático, ele fez fervorosos atos de fé e amor nas palavras de seu belíssimo Adoro te. No dia seguinte, ao receber a Extrema Unção, respondia calmamente todas as orações, enquanto as vozes dos assistentes eram atravancadas por soluços. Tentou confortar seus irmãos, que estavam inconsoláveis com a perda que se aproximava, e muito agradeceu aos cistercienses por sua caridade. Um deles lhe perguntou qual era a melhor maneira de viver sem ofender a Deus. “Esteja certo”, respondeu o santo, “que aquele que caminha na presença de Deus e está sempre pronto a dar a Ele contas de seus atos nunca se separará Dele pelo pecado”. Essas foram suas últimas palavras. Logo em seguida, entrou em agonia e expirou tranqüilamente em 7 de março de 1274, não tendo ainda completado cinqüenta anos.

No mesmo dia, Santo Alberto, então em Colônia, rompeu em lágrimas na presença de toda a comunidade e exclamou: “Irmão Tomás de Aquino, meu filho em Cristo, que foi a luz da Igreja, está morto! Deus revelou-mo.”

Em Nápoles, também, agradou a Deus tornar conhecida a morte do santo de uma maneira milagrosa. Um dos frades, enquanto rezava na igreja, entrou em um êxtase no qual pareceu contemplar o Santo Doutor ensinando nas escolas, rodeado de uma grande multidão de discípulos. São Paulo Apóstolo também apareceu acompanhado de muitos santos, e Santo Tomás perguntou-lhe se tinha interpretado suas Epístolas corretamente. “Sim”, respondeu o Apóstolo, “até onde alguém ainda na terra pode entendê-las. Mas vem comigo; eu te conduzirei a um lugar onde terás um conhecimento ainda mais claro de todas as coisas”. O Apóstolo, então, pareceu tocar o manto de Santo Tomás e levá-lo, e o frade que contemplara a visão surpreendeu a comunidade ao gritar três vezes em alta voz: “Ai de nós! Ai de nós! Nosso Doutor está sendo levado de nós!”

 

14. Honras Após Sua Morte

O funeral de Santo Tomás foi realizado na Abadia com grande solenidade. Padre Reginaldo fez um breve discurso, freqüentemente interrompido por seus próprios soluços e pelos de seus ouvintes. Ele declarou que, tendo sido por muitos anos o confessor de Santo Tomás, podia solenemente atestar que o Santo Doutor nunca tinha perdido sua inocência batismal, e tinha morrido tão puro e livre de mácula como uma criança de cinco anos de idade. Ele então revelou alguns favores particulares que Santo Tomás lhe tinha proibido revelar durante sua vida.

Muitas revelações da glória do santo deram-se após sua morte, das quais a que se segue talvez seja uma das mais interessantes: um fervoroso discípulo seu orou ardentemente para que pudesse saber qual a categoria a que seu amado mestre tinha sido elevado em glória. Um dia, enquanto fazia suas preces usuais diante do altar de Nossa Senhora, dois veneráveis personagens cercados de uma maravilhosa luz pararam de repente diante dele. Um deles estava vestido como um bispo; o outro usava o hábito de um frade pregador, mas estava resplandecente com pedras preciosas. Em sua cabeça estava uma coroa de ouro e diamantes, de seu pescoço pendiam duas correntes, uma de ouro, outra de prata, e uma joia na forma de um sol brilhava sobre seu peito, vertendo raios de luz por toda parte. “Deus ouviu tua oração”, disse o primeiro personagem. “Eu sou Agostinho, Doutor da Igreja, enviado para te comunicar a glória de Tomás, que reina comigo e que iluminou a Igreja com seu conhecimento. Isso é representado pelas pedras preciosas com as quais ele está coberto. Isto que brilha em seu peito significa a reta intenção com a qual ele defendeu a Fé; as outras simbolizam os livros e escritos que ele compôs. Tomas é igual a mim em glória, mas excedeu-me pela auréola da virgindade.”

Santo Tomás foi canonizado pelo papa João XXII em 1323 na cidade de Avignon. Apenas em 1367 os dominicanos conseguiram obter a posse de seu corpo, que foi levado para o convento de Toulouse, onde foi recebido com todas as demonstrações de honra. Uma festividade anual foi realizada pela ordem em 28 de janeiro, em memória dessa transladação, que foi acompanhada de muitos milagres. Porém, em 1923 foi suprimida em favor da nova festa do Patrocínio de Santo Tomás, em 13 de novembro. Valiosas relíquias do santo foram dadas a vários conventos da ordem. Na época da Revolução Francesa, os restos mortais do santo foram removidos para a cripta da igreja de São Saturnino em Toulouse, onde ainda repousam.

Em 1567, São Pio V conferiu a Santo Tomás o título de Doutor da Igreja, sendo conhecido como “o Doutor Angélico” devido à sua inocência e sua inteligência. Na carta encíclica Aeterni Patris (1879), o Papa Leão XIII instou a restauração do ensinamento de Santo Tomás em todas as escolas, e por um Breve apostólico (1880), o mesmo Pontífice nomeou Santo Tomás de Aquino como Patrono de todas as universidades, academias, colégios e escolas católicos. Para o louvor de seus predecessores, o Papa Pio XI adicionou o toque final ao declarar que o Doutor Angélico merecia o esplêndido título de “Doutor Universal da Igreja” (29 de junho de 1923).

“Assim como foi dito aos antigos egípcios em tempos de fome: ‘Ide a José’ para receberem dele abundância de trigo e nutrirem seus corpos, assim também hoje nós dizemos a todos que desejam a verdade: ‘Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê de sua abundância o alimento da doutrina substancial com a qual podeis nutrir vossas almas para a vida eterna.’” (Da encíclica Studiorum Ducem do Papa Pio IX, 29 de Junho de 1923)

O dia da festa tradicional de Santo Tomás de Aquino é 7 de março.

 

***

 

Oremos:

Ó Deus, que ilustrais a Igreja com a admirável ciência do bem-aventurado Tomás, Vosso Confessor e Doutor, e a fecundais com a santidade de suas virtudes, concedei-nos a graça de compreender o que ele ensinou e de fielmente imitar o que ele fez. Por nosso Senhor Jesus Cristo12.

R/ Amém.

 

(St. Thomas Aquinas, Saint Benedict Press, LLC 2009)

  1. 1. [N. da T.] O Condado de Aquino pertencera à família de Santo Tomás até o ano de 1137.
  2. 2. Por isso, a devoção popular a Santo Tomás o coloca como padroeiro contra trovoadas e morte repentina. São bentas cruzes contra relâmpagos, trazendo de um lado a imagem do Santo e do outro, uma inscrição em latim que ele deixou escrita na parede de uma caverna em Anagni, onde ele mais de uma vez se refugiou durante as trovoadas. Esta é uma tradução da inscrição: “A Cruz para mim é a certeza da salvação. A Cruz é o que eu sempre adoro. A Cruz do Senhor está comigo. A Cruz é meu refúgio.”
  3. 3. [N. da T.] O imperador era Frederico II da Germânia, neto de Frederico I e primo de Santo Tomás, que governou o Sacro Império Romano-Germânico entre os anos de 1220 e 1250.
  4. 4. [N. da T.] Os Quatro Livros das Sentenças (Libri Quattuor Sententiarum), escrito do bispo e teólogo Pedro Lombardo, são uma compilação de textos bíblicos e sentenças de Padres da Igreja e outros pensadores que expõe de maneira detalhada toda a teologia cristã da época. Santo Tomás escreveu um comentário a essa obra – Scriptum super sententiis.
  5. 5. No século XVI, foi estabelecida uma confraria chamada “Milícia Angélica”, para obter através da intercessão de Santo Tomás de Aquino a virtude da castidade. Essa confraria foi enriquecida com muitas indulgências.
  6. 6. [N. da T] Corria o ano de 1244, e o papa era Inocêncio IV.
  7. 7. [N. da T.] O papa a essa época era Alexandre IV.
  8. 8. [N. do E.] A Editora Permanência promoveu a digitação integral da Suma Teológica, bem como traduziu e publicou os Sermões sobre o Pai Nosso e a Ave Maria, sobre o Credo e sobre os Dez Mandamentos. Com exceção deste último, estão todos no nosso site: www.permanencia.org.br
  9. 9. [N. do E.] Quantidade de uma vogal ou de uma silaba é a maior ou menor duração de sua pronúncia. Em latim, a pronúncia da vogal ou sílaba longa dura o dobro da pronúncia da vogal ou silaba breve.
  10. 10. [N. da T.] São João Cassiano (360-435) foi teólogo e monge, ordenado diácono por São João Crisóstomo, de quem se tornou amigo e defensor quando este foi perseguido pela imperatriz Eudóxia e levado a exílio. São Bento recomendou a leitura de suas Conferências a todos os monges.
  11. 11. [N. da T.] Esse Concílio, o Segundo Concílio de Lion, foi convocado em março de 1272 e reunido nessa cidade dois anos depois, em 1274, pelo Papa Gregório X.
  12. 12. [N. do E.] Oração retirada do Missal de Gaspar Lefebvre.

Grandes intelectuais católicos brasileiros: Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo

Introdução

Deixe-me, antes de começar propriamente a conferência, explicar o tema: “grandes intelectuais católicos brasileiros”. Preparando a conferência, havia pensado em falar sobre a relação entre a Inteligência e o Bom Senso. Hoje em dia se pensa, muitas vezes, que há uma oposição entre ambas e que quanto mais a pessoa vai se tornando culta e erudita, mais o bom senso é desprezado, porque a inteligência seria a negação do bom senso [ou senso comum]. Ouvindo a gravação de certa palestra, fiquei impressionado com o palestrante, que se dizia católico, e parecia ter erudição enorme, mas falava coisas inteiramente contrárias ao bom senso.

Quando fui pesquisar sobre o assunto acabei encontrando um livro chamado o “Bom Senso” do escritor Jackson de Figueiredo. E aí a idéia do tema mudou completamente. Há muito tempo tinha interesse em conhecer Jackson de Figueiredo, um grande homem, e como o tema é vida intelectual — e foi um grande intelectual católico — resolvi falar sobre ele. E junto com a vida dele a de outro homem, Carlos de Laet que foi comparado a Machado de Assis e Rui Barbosa na habilidade do uso da Língua Portuguesa.

Jackson de Figueiredo nos é muito familiar, sobretudo no priorado do Rio de Janeiro e Niterói, porque de alguma forma somos seus netos, sem sombra de dúvida, o que tornou muito agradável e familiar a leitura sobre ele.

 

A Época de Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo

Antes de falar desses dois homens, vou explicar o panorama, como pano de fundo, para depois localizá-los na época em que viveram; em seguida contarei a vida e a obra de cada um.

Carlos de Laet nasceu em 1847 e veio a falecer em 1927; Jackson de Figueiredo nasceu em 1891, e faleceu em 1928. A vida dos dois é completamente distinta, mas o ambiente em que viveram muito os influenciou.

Quando falamos de 1850, falamos de um Brasil que ainda não era uma república, mas Império, com D. Pedro II como imperador. Nessa época, no enorme território brasileiro havia muito poucos bispos. Para se ter uma idéia, nos atuais estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, onde cabem Espanha e França juntas, só havia um bispo [responsável]; Rio Grande do Sul inteiro também havia um bispo somente. Era impossível que esses bispos cobrissem todo o território, e os padres viviam longe de seus bispos, conseqüentemente a formação era má e deficiente. São Pio X, por esse tempo, era bispo de Mântua, e muitos daquela região foram convidados por D. Pedro II a ocupar a região sul, que era bastante despovoada; disse o futuro papa aos mantuanos: “Aqui em Mântua vocês passam fome, mas se forem para o Brasil, podem até possuir terra para trabalhar, porém ficarão sem padres, não terão formação católica e nem quem os apóie e lhes dê os sacramentos; tudo isto vai perder-se”. Mesmo assim um grupo veio e foi justamente a colônia [mantuana] que fundou a [cidade] de Santa Maria, [no Rio Grande do Sul].

Em conseqüência da escassez de clérigos e da má formação da vida católica, a maçonaria conseguiu lograr bastante influência: por ex., para ser membro da Confraria do Santíssimo Sacramento na região Nordeste, [mais exatamente], em Recife, era obrigatório ser maçom. A maçonaria conseguiu uma influência absurda, já que o clero era malformado, e logicamente alguns padres acabavam entrando para a maçonaria; aos bispos era impossível algum controle. Foi então que dois grandes bispos reagiram, Dom Vital e Dom Macedo Costa, por ocasião da grande questão religiosa — há uma charge que ilustra esse acontecimento, na qual aparece D. Vital batendo com o báculo na cabeça de um padre, durante um casamento, porque o noivo era maçom — eles dois foram presos, e logo depois que saem da prisão morrem, particularmente em decorrência dos sofrimentos da prisão no Rio de Janeiro, então a sede do Império. Os bispos, vendo essa vida católica tão complicada e tão complexa, vendo a maçonaria se estendendo e novas idéias nos ambientes católicos, perceberam a necessidade de uma reforma intelectual e pastoral do clero, incentivando assim certas devoções para conservar o povo na fidelidade, mesmo à falta de uma vida católica normal. No Nordeste, ainda hoje, encontra-se nas casas de família, um livro escrito pelo padre português Manuel José Gonçalves Couto, intitulado “A Missão Abreviada”, que explicava o que se deve fazer quando não há padres; por ex., quando morre alguém, o manual indica os cânticos que se devem rezar, como fazer o funeral. Os bispos tiveram de impor certo rigor na disciplina do clero, justamente porque existiam desordens as quais prefiro não comentar. Por outro lado, passaram a enfraquecer as confrarias [e as irmandades]; foi notável que diligenciaram pela intensificação da vida das paróquias, para que os católicos ficassem ligados às paróquias e não às tais confrarias [e irmandades], que não andavam nada bem.

Quando a Igreja já não fortalece o Estado ou a Coroa, é iminente a queda [dos governos]. Uma vez, Napoleão III conversando com o Cardeal Pie, dizia que já não era possível uma França oficialmente católica, ao que o cardeal respondeu: “Bom, de política eu não entendo, mas o que sei é que se não chegou o tempo de Cristo reinar, então não chegou o tempo de os reis durarem”. Logo depois, caiu Napoleão.

A primeira universidade de Direito do Brasil se estabeleceu em Recife. Começa ali o que se chama a Escola de Recife, sob a chefia de Tobias Barreto, de forte influência alemã, trazendo [em seu bojo] o positivismo, Nietzsche e o evolucionismo. Por meio dessa universidade, onde se formavam os advogados, e as inteligências [em geral], tais idéias eram espalhadas pelo país.

Diante do Imperador Pedro II e do Círculo Militar reunido, Benjamin Constant fez um discurso claramente positivista racionalista. O general que era chefe do Círculo Militar, [percebendo a natureza do discurso] levantou-se e disse ao ouvido do imperador que se ele aceitasse aquele discurso logicamente antimonárquico, estaria preparando a queda da coroa; se é racionalista, é anticatólico. Quando falo em racionalismo, falo também em naturalismo, que é a negação do sobrenatural: só o que a razão alcança existe, negando-se assim a Revelação de Deus e sua Igreja. Se o imperador aceita o discurso, rejeita a Igreja, e a coroa estaria desprovida do que lhe dá fortaleza.

Mas o imperador disse apenas: “Deixa!” Um homem, Carlos de Laet, presente ao discurso, escreveu num de seus textos, que na hora em que o imperador disse “deixa” e permitiu que se proferisse o discurso positivista, a coroa iria cair, porque o imperador estava colocando as bases da república.

Em 1889, os republicanos conseguem derrubar a monarquia, o imperador é expulso do país junto com os que o apoiavam, entre eles o Visconde de Ouro Preto. Se a relação Igreja e Estado durante o Império já era claramente tensa, na república torna-se explosiva; é decretada oficialmente a separação entre a Igreja e o Estado, a liberdade religiosa, casamento civil — tornando o casamento religioso “desnecessário”; [segundo as leis da Igreja], o casamento civil é um simples concubinato, não é considerado casamento.

Outra coisa que os bispos perceberam na separação entre a Igreja e o Estado, que se manifesta de várias formas, é a quebra da autonomia dos estados federativos. Esta separação foi de tal forma chocante que se tornou impossível o diálogo entre as duas esferas. Vinte anos depois da instituição da república, apesar da maioria da população ainda ser católica, o estado já não o era. A república tolerava a Igreja e, na medida do possível, ia avançando com leis cada vez piores. Por ex., em 1977 é aprovada a lei do divórcio, a qual já era discutida desde 1915. É incrível como vem de longe o combate contra a concepção católica da família.

 

A Ação de Grandes Bispos no Brasil

Os bispos brasileiros perceberam que era preciso recristianizar o país; este é o momento em que aparecem os grandes bispos — São Pio X era o Papa então reinante — com grandes idéias, como o Bispo do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, Cardeal Arcoverde, e outros cinco bispos. Um deles era um padrezinho de São Paulo de uma cidade pequena perto de Campinas, chamada Espírito Santo do Pinhal, que foi estudar em Roma, Padre Sebastião Leme. É ordenado em Roma, aos vinte e três anos de idade, e em razão da necessidade de um bispo para Recife, São Pio X, percebendo sua qualidade, sagra-o bispo aos vinte e nove anos; diz-se que ele era no dia da sagração, o bispo mais jovem da Igreja. Os outros eram o de João Pessoa [Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques], o de Porto Alegre [Dom João Batista Becker], o de Belo Horizonte [Dom Antonio dos Santos Cabral] e o de Cuiabá [Dom Francisco de Aquino Correia].

Dom Sebastião Leme afirmava que era preciso conquistar para Nosso Senhor as elites do pensamento, e que as idéias estão presentes na massa de um modo implícito. As pessoas têm certas idéias sem “pensar”. Se nós formos conversar com alguém hoje em dia — com as senhoras, por ex. — provavelmente elas vão responder tal como aprenderam pela televisão, isto é, serão liberais, defensoras da liberdade religiosa, etc. Se formos mais além e lhes perguntarmos sobre as leis iníquas, elas nos responderão o que a mídia estiver falando. Enfim, o que está de um modo implícito nas massas, necessariamente esta de modo explícito e claro nas elites intelectuais. Dom Leme insistia na necessidade de formar uma elite católica, com princípios católicos muitos claros e que soubesse transmiti-los ao povo, para fazê-lo de novo católico, sobretudo porque estava ele em Recife, de onde fluíam as idéias positivistas, racionalistas e marxistas. Ele também tentava buscar formas de convivência entre a Igreja e o Estado.

Outro bispo, o da Paraíba, compreendeu que a ordem moral é o que fundamenta a sociedade; o mais importante deveria ser o amar a Deus sobre todas as coisas; só a partir daí conseguir-se-ia uma base social católica.

Lendo sobre cada um desses bispos, tenho de reconhecer que não imaginava que fossem tão bons. Comparados aos de hoje em dia, pode-se dizer que aqueles eram bispos católicos; não haveria o menor problema em ajoelhar-me aos pés deles, e obedecê-lhes, pois representavam a autoridade católica perfeita; o que diziam era profundamente católico e bem fundamentado.

O bispo da Paraíba, Dom Adauto, era tão bom que o Papa São Pio X o convidou para que saísse do seu estado e se dirigisse para o Rio de Janeiro como bispo auxiliar do Cardeal Arcoverde, com direito à sucessão, a fim de que fosse cardeal do Rio de Janeiro; assim, de certa forma, ele seria o líder de todos os bispos do país. Por sua doutrina ser antiliberal, seria uma grande luz para o Brasil inteiro. Mas, por humildade, recusa o cargo, e o Papa convida Dom Sebastião Leme, e este, aos trinta e poucos anos de idade, vai ao Rio de Janeiro para auxiliar do Cardeal Arcoverde, vindo a ser mais tarde o cardeal Dom Sebastião.

O bispo de Minas defendia o que se pode chamar de nação católica e princípio de autoridade. O bispo de Porto Alegre, Dom João Becker, nascido na Alemanha, era mais intelectual; em textos bastante longos, ele descreveu a corrupção do país. Também defendeu o princípio de autoridade contra a concepção do indivíduo autônomo, que o Pe. Calderón explicou ser próprio do liberalismo. Dom Becker defende duas idéias que se pode resumir numa frase: junto à fé o amor à pátria. Ele também defendia não só a formação de elites intelectuais, mas que saíssem delas homens para ocupar cargos no governo. E foi no estado do Rio Grande do Sul onde houve de fato liderança católica, como também posteriormente em Belo Horizonte.

O bispo de Cuiabá — estado com um território gigantesco — Dom Francisco de Aquino, chegou a desempenhar também o cargo de governador do Estado de 1918 a 1922, e seus textos também são bastante luminosos.

Naquele tempo não havia a CNBB, mas havia certa coordenação entre os bispos que iam com certa regularidade ao Rio de Janeiro, a então capital do país. Por ex., Dom Sebastião Leme, sagrado bispo em 1911, ficou responsável por Olinda e Recife até 1921, mas em 1916, escrevia uma carta à Diocese de Olinda do Rio de Janeiro.

 

Carlos de Laet

Dito isto, vamos falar agora sobre os dois grandes homens. Primeiro, Carlos Maximiliano Pimenta de Laet. Pronuncia-se Laéti e não Laê. Sabemos disso ao ler uma carta dele a Machado de Assis, por ocasião do surgimento de um projeto de reforma ortográfica, que tornaria o Português escrito mais próximo ao oral; ele escreve a carta ironicamente, grafando-a tal como se fala, já conforme a [pretendida] reforma ortográfica; e a carta, embora engraçadíssima, é horrorosa, porque a ortografia não coincide com a fonética, evidentemente. E ele assina Laéti.

Nasce de uma família profundamente católica. Nosso Senhor deu a ela uma inteligência excepcional; para que se tenha uma idéia, aos vinte anos de idade ele se gradua em Letras, no Colégio Pedro II. Durante sete anos tirou sempre o primeiro lugar, e nunca obteve nota que não fosse a máxima. Aos vinte e quatro anos se forma engenheiro e geógrafo; aos vinte e cinco em Física e Matemática sempre com notas máximas. Aos vinte e seis anos, começa a dar aulas no próprio Pedro II, como professor de Português, Geografia e Aritmética; nessa época ele publica um livro de poesias. Casa-se e começa também a escrever nos jornais uma das crônicas mais famosas de todo o Brasil, que se intitulava Microcosmos.

Carlos de Laet era um homem muito profundo. Seus textos e artigos em geral eram polêmicos e combativos. Cada vez mais conhecido, convidavam-no freqüentemente a proferir discursos e conferências e a comparecer em formaturas como paraninfo. Em 1922, houve um congresso eucarístico no Rio de Janeiro, ele foi convidado a dar uma das conferências, mesmo com vários bispos presentes. No seu estilo há muita ironia, que algumas vezes exagerava nas farpas. Num dos artigos ele comenta uma tradução da obra de Virgílio, a Eneida. O tradutor, Odorico Mendes, queria que o Português guardasse a quantidade original de sílabas em cada verso. Só que nossa língua é mais extensa que o Latim, o que o obrigou a inventar e mudar palavras. Carlos de Laet comenta e finaliza: “Bom essa tradução latino-brasileira da Eneida saiu de tal forma que é mais fácil ler do Latim diretamente”.

Como grande católico, muitas vezes entrava em polemicas para defender a Igreja. Por ex., ele traduziu um livro de um padre italiano sobre espiritismo, no qual escreve um apêndice sobre o espiritismo no Brasil, num trabalho muito bem feito. Outra polêmica foi com um pastor prebisteriano, e saiu-se tão bem que acabou escrevendo o livro “A Heresia Protestante”, que se tornou bastante conhecido na época.

Em 1889, o Visconde de Ouro Preto, amigo de Carlos de Laet, o aconselhou a se candidatar a deputado pelo Partido Liberal. Mas os liberais, que o odiavam porque ele era católico, chamavam-no de ultramontano. Mesmo assim se candidatou e se elegeu pela Paraíba e pelo Mato Grosso. Porém, esse é o ano do advento da república e ele não toma posse. A república, na sua guerra contra a Igreja, não só combatia as idéias católicas, mas também coisas que tinham nomes católicos: mudaram o nome do Campo de Sant’ana no Rio de Janeiro para Praça da República. Um dia, chegando à sala de aula, Laet declara aos alunos que o tema da aula era “regência verbal”, e como tudo o que recorda a religião ou o império caducou, ele teria de falar sobre “presidência verbal”.

O Colégio Pedro II troca de nome e passa a se chamar Instituto Nacional de Educação Secundária; ele propõe uma votação aos professores para o retorno do nome antigo, e por isso é demitido, aos 43 anos de idade, após o quê, passa a lecionar no Colégio São Bento e no Seminário São José. Por sua influência como jornalista e escritor, torna-se membro e fundador da Academia Brasileira de Letras; ainda no papado de São Pio X recebe de Roma o título de conde papalino. Aos 68 anos, chamam-no de volta ao colégio de onde fora demitido, para em seguida ser nomeado diretor. Suas ocupações o impedem de continuar a escrever para os grandes jornais. Dom Sebastião Leme protesta, rogando-lhe que volte a escrever artigos porque muitos brasileiros só liam sobre religião quando ele escrevia nos jornais.

Carlos de Laet morre aos 80 anos de idade.

Suas principais idéias podemos resumi-las em três: em primeiro lugar, a tradição religiosa: ele não só defendia o catolicismo com a pluma, mas com a própria vida, pois era profundamente católico, e antes mesmo que o episcopado começasse a promover as devoções populares, pediu ao bispo do Rio que promovesse o mês de Maria, cuja devoção ele já fazia em casa com o Pe. João, que mais tarde viria a ser arcebispo do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, a defesa do bom uso da Língua Portuguesa. E em terceiro lugar, uma devoção à pátria-mãe, Portugal, uma vez que, segundo ele, se a religião e a língua formam a pátria, devemos ambas a Portugal; e junto a essa devoção, um encantamento pela monarquia e D.Pedro II, apesar de dois bispos terem ido para a cadeia e da enorme influência da maçonaria no governo imperial. Neste caso, compreende-se que o encantamento dele com a monarquia [se baseasse] sobretudo no choque negativo do advento da república.

Podemos tirar da vida dele, como ensinamento, o bem que faz uma vida católica profunda, firme, vinda do berço, não importando o ofício a que se dedique.

 

Jackson de Figueiredo

Outro grande intelectual católico brasileiro é Jackson de Figueiredo. A vida dele é muito contrastante com a de Carlos de Laet, e mais atraente por mil aspectos. Ele nasceu em Sergipe, Aracaju, em 1891, dois anos depois da instauração da república. Ao contrário de Carlos de Laet, ele não nasceu numa família católica. Seu pai era muito culto, professor de muitas disciplinas, uma delas grego; não era católico e por isso Jackson de Figueiredo não recebera formação católica. Ele era o filho mais velho. O pai, desde cedo, notou a vivacidade, a capacidade e a belicosidade do filho que, embora capaz de brigar por uma idéia, era muito reservado. Contam-se vários casos, como o ocorrido na escola, onde sendo ele muito conhecido, informaram-lhe de uma festa à qual ele estaria obrigado a comparecer, mas ele recusou; ordenaram que fosse porque todos da escola iriam; “Não vou”, disse ele; um o chama para a briga e Jackson lhe dá uma surra e diz: “Eu é quem escolho meus amigos, não quero ir à festa”. Na faculdade ocorreu coisa parecida, dessa vez enfrentando sem medo soldados armados de espada, enquanto ele munido com um pedaço de pau. Um deles bateu com a espada em sua cabeça; não o matou mas deixou-lhe uma cicatriz.

Nos estudos foi fomentado pelo pai, que desejava tivesse ele uma grande formação, a tal ponto que nos fundos de sua casa havia uma biblioteca só para o filho estudar. Quando cresce e entra na Faculdade Livre de Direito da Bahia, em 1919, o pai já não se contentava com a biblioteca nos fundos da casa, e comprou um sítio, para que toda vez que o filho voltasse da Bahia a Sergipe, pudesse lá ir e estudar em paz. O pai tinha obsessão com estudos; e Jacson aproveita a oportunidade e se aplica a eles. Mas, como eu disse, o contraste dele com Laet é muito grande: não vinha de uma família católica, sua formação em casa estava longe da fé e na faculdade fora muito pior; ele aprende muito das idéias provenientes da “Escola de Recife”, a filosofia individualista e pessimista do filósofo Nietzsche.

Dessa má formação ele viria a se ressentir durante toda a vida. Em muitas de suas cartas, já convertido, ele escreve aos amigos explicando a angústia e o choque que sentia na alma; o contraste entre a vida católica que vê, entende e pratica, e o sentimento de que dentro dele há algo que a contraria. Numa das cartas, escreve: “Eu sinto dentro de mim como se fosse um anarquista, um liberal”. Ele não era nem liberal nem anarquista, porém sofria porque nele havia o choque entre a conversão e a formação.

Ele se formou em 1913. No ano seguinte foi ao Rio trabalhar como advogado. Através de relações da família, ele entrou em contato com um filósofo nordestino, mais exatamente do Ceará, Farias Brito. Jackson era jovem, tinha 24 anos, e o filósofo já era de bastante idade. Fiquei impressionado que mesmo jovem Jackson de Figueiredo entra tanto e tão a fundo nas idéias do filósofo que logo publica dois livros chamados “A filosofia de Farias Brito” e “A filosofia social de Farias Brito”. Sua filosofia era reputada neo-tomista, mas não se aplicava à letra de São Tomás; também era considerada espiritualista, mas nunca se declarava católica, o que era indício de que havia alguma coisa errada. Pesquisando um pouco mais, parece que Farias Brito era maçom, por isso esse “Santo Tomás” e por isso esse espiritualismo vago.

Farias Brito, ou melhor, Santo Tomás trouxe de certa forma Jackson de Figueiredo às portas da fé. Farias Brito faleceu dois anos após conhecê-lo. Jackson abandonou as idéias trágicas de Nietzsche e as idéias positivistas e começou a conhecer Santo Tomás, em 1917. Nessa época ele lera uma carta de certo bispo que estava passando pelo Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme, em que se tratava da necessidade de uma espiritualidade profunda, de um catolicismo profundo, de uma formação intelectual profunda, de formação de elites; em suma, de uma vida católica de verdade. Jackson de Figueiredo foi conhecê-lo pessoalmente, converteu-se, casou-se e começou então uma vida católica. Vindo a ser bispo no Rio, Dom Sebastião Leme tornou-se seu amigo.

Em 1921, aos trinta anos de idade e três após a conversão, relendo o que o bispo escrevera na Paraíba, compreendeu que era preciso retomar o princípio de autoridade em Deus Nosso Senhor, e passou a publicar uma revista chamada A Ordem. No ano seguinte, entendeu que não bastava uma revista, era também necessário reunir essa elite intelectual; fundou então o Centro Dom Vital. Por isso podemos dizer que de certa forma é o avô da capela do Rio. Dom Lourenço Fleichman ontem falou justamente do Centro Dom Vital, do qual Gustavo Corção era membro, e saiu nos anos 60 para fundar a Permanência. Podemos dizer que a Permanência é filha do Centro Dom Vital; e se Gustavo Corção é o pai de nossas capelas, Jackson de Figueiredo é o avô.

Com o Centro Dom Vital ele buscou a formação de uma elite católica seriamente comprometida com sólidos princípios católicos, os quais ele comparava com uma muralha sobre a qual punha sua metralhadora contra os erros modernos.

Um escritor dos anos trinta, ao comparar Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo, ambos já falecidos, dizia que faltou ao primeiro esse caráter apostólico de difusão da fé por meio da fundação de alguma coisa como Jackson de Figueiredo fez logo após a conversão.

Jackson, certa vez, indo a Minas Gerais, em Muzambinho — cidade natal de várias pessoas de Passos, onde temos uma capela — conheceu dois senhores muito católicos que acabam indo ao Rio mais tarde, Hamilton Nogueira e Pedro Alves. O primeiro torna-se vice-presidente do Centro Dom Vital. Formado em Direito, jornalista, ele escreve artigos em vários jornais, como o Gazeta de Notícias, onde também trabalhava Carlos de Laet do qual ele era discípulo.

Jackson também escreve vários livros, como “A Reação do Bom Senso”, “A Coluna de Fogo”, “Afirmações”. Percebendo a mediocridade do catolicismo no Brasil, afirmou: “O catolicismo só tem uma coisa a temer: ser mal conhecido. Existem cristãos que imaginam agradar a Deus sacrificando a própria razão, imolando-a, querendo crer de olhos fechados, isto é um erro”. Deseja uma recristianização da inteligência brasileira.

Numa vida muito breve, aos trinta e sete anos de idade morre Jackson de Figueiredo. Ele gostava muito de pesca e, num domingo, após a Missa, com um amigo e o filho de oito anos de idade, foi pescar nas imediações entre São Conrado e a Barra. Nesse lugar há uma gruta à beira de um penhasco, um paredão de pedra. Ele tinha uma fé muito profunda, e lá ensinava ao filho que se deve ter um olhar sobrenatural para todas as coisas: “Vê esse mar enorme, dizia ao filho, e esse céu admirável, e toda a beleza em que vivemos, tudo criado por Deus Nosso Senhor”. E erguendo uma folha qualquer ensinava ao filho que o homem não é capaz de fazer uma simples folha. Uma aula de fé, uma aula de catecismo simples diante da paisagem. Esse lugar era de fato bastante perigoso. Em determinado momento ele puxa o anzol e, quando vai enfiar a isca, perde o equilíbrio e cai, chocando-se nas pedras antes de cair no mar.

As ondas rebentavam nas pedras e, por causa da pancada que sofrera, Jackson de Figueiredo não conseguiu sair do mar. Tanto o filho quanto o amigo entram em desespero, por não poderem fazer nada. Ele ergue o braço como numa despedida e não mais é visto. Assim morre Jackson de Figueiredo, desse modo tão inesperado.

A última carta que ele escreveu, muito me impressionou. Ela foi escrita numa sexta-feira, num Dia de Finados, dois de novembro de 1928, justo antes de sua morte, a Alceu Amoroso Lima, que se convertera em agosto. Eles trocavam cartas, e Jackson dizia que escrevia para que ele, Alceu, se convertesse.

Suas últimas palavras foram: “Vou adiante, levado nas costas, no dorso dessa grande onda da vida para onde Deus quiser”. E foi assim que ele morreu, levado pelas ondas do mar. É curioso também que muitas de suas poesias são sobre o mar...

Depois de sua morte, muitas pessoas escrevem sobre Jackson de Figueiredo. Dom Sebastião Leme, já bispo do Rio, escreve um artigo lindíssimo sobre ele, assim como o Padre Leonel Franca e tantos outros.

E aquele homem, recém-convertido, Alceu Amoroso Lima, passa a ser o presidente do Centro Dom Vital, e presidente vitalício.

O Centro Dom Vital se espalhou pelo Brasil inteiro, num total de 20 “centros”. Em 1932, o CDV funda uma faculdade católica, que seria a primeira do Brasil, com o objetivo de reunir todas as áreas de conhecimento, no espírito da fé. Essa faculdade veio a ser a PUC, que hoje é um desastre. Incentivou uma liga eleitoral católica para que se promovesse entre os católicos o conhecimento de quais candidatos fossem realmente católicos e tivessem uma plataforma conforme a doutrina social da Igreja, além de uma associação universitária católica para formação religiosa e militante dos estudantes ou para os operários.

Alceu Amoroso Lima assim que foi eleito fez uma declaração que me chocou muito, em razão do um tom pretensioso para um recém-convertido. Afirmava que Jackson tinha imposto ao Centro Dom Vital um espírito polêmico que ele pretendia arrancar do movimento, porque ele, Jackson de Figueiredo, havia-o colocado lá por temperamento. Jackson se definia como uma metralhadora em cima de um muro de princípios — essa era a sua orientação. Os nossos rumos que tentaremos imprimir, propunha Alceu, iam em direção contrária: tratava-se dos rumos da liberdade, da universalidade e da paz. Isso ele escreve logo depois que assumiu o Centro Dom Vital. Um recém-convertido que já quer mudar a orientação da instituição... Bom, o Centro Dom Vital continuou, mas nós entendemos hoje quais seriam os frutos das palavras ditas por Alceu que nos anos 60 iria se tornar um homem de esquerda, um católico entre aspas — na verdade, comunista.

 

Conclusão

Era isto o que eu gostaria de lhes mostrar sobre a vida desses dois homens, Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo; não somente suas vidas, mas o que é possível fazer. É possível a existência de um grupo de leigos católicos. Aqui em São Paulo as coisas andaram bastante ruins porque os grupos que existem, infelizmente também muito ruins, fundam-se distantes da orientação dos sacerdotes. E vemos que a obra de Jackson de Figueiredo foi grande, porque ele começou seguindo a idéia de um bispo, Dom Sebastião Leme, e a levou adiante unido a esse bispo, e assim continua com o Pe. Leonel Franca. Por isso, o Centro Dom Vital conseguiu fazer tanto bem naquela época. Não é só possível ter uma formação, mas necessário, para se formar uma elite intelectual católica, cada um no seu lugar, e cada um segundo suas aptidões, dentro de uma vida verdadeiramente católica. Jackson se tinha uma formação neo-tomista com Farias Brito, assim que se converteu passa a ler Santo Tomás, diretamente da Suma Teológica. Era um homem muito prático, muito fogoso, mas era Santo Tomás a fonte onde ele ia beber a boa doutrina.

Santos Missionários, orai por nós

Gustavo Corção

 

Amanhã, 3 de dezembro, a Igreja comemora a festa de São Francisco Xavier, o admirável companheiro de Santo Inácio de Loyola, que levou ao grau heroico o cumprimento do preceito de Jesus: “Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20).

No século XVI quando o medievo compacto, côncavo e mediterrâneo, se expandia e se abria, convexo e atlântico para a conquista do orbe, e a descoberta do Novo Mundo do Ocidente e do antiquíssimo e oculto mundo do Oriente, a Igreja viveu um estranho e dilacerante paradoxo: perdia sua força de critério supremo sobre toda uma civilização mais do que milenar, em favor de um novo humanismo ainda cristão, mas já arrogante e inebriado com suas conquistas. Por outro lado, entretanto, nos mesmos dias em que perdia sua substância em torno de Roma, o Cristianismo era levado ao mundo inteiro, diluído, mas também dilatado, às vezes mais humano do que divino, mais épico do que evangélico, mais cobiçoso do que caridoso. Mas nesse mesmo processo de enfraquecimento e de difusão com perda de densidade, surgiu na história da Igreja, um dos mais belos aspectos de santo heroísmo — o dos missionários que terão não somente a função de difundir o Evangelho, como também a complementar função de contrariar, de certo modo, o expansionismo dos brutais conquistadores. E não há de ser mero acaso esta a palavra de Jesus que primeiro vulnerou e converteu o coração de Francisco Xavier: “De que vale ao homem ganhar o universo se perde a sua alma?”.

Ardendo de zelo pela conversão das almas, Francisco Xavier cruza este santo empenho com aquele outro que leva seus contemporâneos à conquista do mundo com a finalidade de espalhar por toda a parte os sinais da Salvação.

Séculos atrás, num paradoxo semelhante, coube às ordens religiosas, isto é, aos homens enclausurados, aos homens com votos de estabilidade, a tarefa aventurosa de cristianizar os bárbaros e dilatar as terras da Cristandade.

Agora, ao século XVI caberá aos missionários pagar com heroica dedicação, com zelo de santa caridade, o preço do arrogante humanismo que o “velho de aspecto venerando” tão severamente estigmatizou:

“Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama! ”

São Francisco Xavier deu-se todo à obra de evangelizar na Índia e no Japão, e de suas humildes e obscuras conquistas pode-se dizer, com mais seguro fundamento:

“(que) entre gente remota edificaram

Novo reino, que tanto sublimaram”

Pio X declarou São Francisco Xavier padroeiro principal das Missões. Outra padroeira de todas as missões é Santa Teresinha do Menino Jesus, que nunca saiu do Carmelo de Lisieux, mas logo depois de morta fez inúmeros milagres no mesmo Japão onde também abundantemente os semeou o companheiro de Santo Inácio. A Igreja é toda ela estruturada com paradoxo, que são verdades crucificadas.

* * *

Seria o caso de nos determos aqui a refletir longamente, pausadamente, sobre o que, em verdade, em verdade, quis dizer Jesus em Mateus (28, 19-20). À primeira vista parece dirigir-se mais a Vasco da Gama do que a Santa Teresinha e mesmo a São Francisco. Há no versículo um inevitável preceito de difusão; mas é mister observar que não há nenhum anúncio de bom sucesso para o empreendimento. E se houvesse aí estaria a história para desmentir Jesus. O mundo inteiro está salpicado de sinais de Cristianismo, está marcado, mas não está conquistado, não está ocupado pelos soldados de Cristo. Longe disso. E até se pode dizer que os missionários fazem uma obra de antemão condenada ao fracasso, ao naufrágio, à imersão no espesso mundo das coisas materiais. Enganou-se então Jesus quando nos propôs empreendimento tão acima de nossas forças? Na verdade, parece-me que, desde aquele santo instante em que pronunciou o preceito, Jesus já sabia que, sendo tudo desproporcionado na história da salvação, desproporcionado seria o cumprimento de tal preceito. E efetivamente desproporcionadíssimo tem sido.

Muitos estão e estarão sempre a dever muitíssimo a tão poucos. Hoje lembremo-nos do ardente jesuíta que bem sabia o valor da salvação de uma só alma, e adivinhava que a cada uma que no imenso Oriente ganhava para Deus, correspondiam milhares e milhões de outras que em torno das paróquias tranquilas deixavam de cair no nadir dos infernos. Lembremo-nos hoje de São Francisco Xavier como quem se apega a um dos poucos que ouviu e entendeu totalmente a palavra de Deus. E roguemos ao Bom Jesus que vincule ao nosso espesso, pesado e ingrato corpo a uma esquírola de osso da tíbia que está em Roma, ou de alguma costela que está enterrada em Goa; e assim, no dia da Ressurreição nossa inércia, nossa resistência, nossa ingratidão, será elevada e nós mesmos seremos imantados e incompreensivelmente arrebatados. Sabemos que não somos dignos, mas se disserdes uma só palavra Senhor, nossa alma se salvará. Mas é preciso que alguém ouça com a devida atenção essa palavra que nós mal ouvimos; e foi para isso que anteontem tivemos Santa Teresinha, e ontem tivemos São Francisco Xavier a trabalhar por nós.  

No dia de trevas em que Ele viveu toda uma infinita solidão entre os homens, Jesus disse que estaria conosco até o fim do mundo. De vários modos cumpre dia a dia sua promessa. E um desses modos é a presença exemplar com que Ele escalona nossos caminhos. Hoje tomou o nome e os traços de São Francisco Xavier que no século completou com sua parte a Paixão de Cristo nas Índias, no Japão, e no céu continua a função missionária na Terra, ao lado de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face. Apeguemo-nos a eles. Santos missionários, orai por nós.

(O Globo, 02/12/1971)

O cristianismo que não morrerá

Gustavo Corção

As reflexões que no artigo de quinta-feira andamos fazendo, despertadas pela releitura de uma página de Chesterton, levam-nos à conclusão de que haverá arrefecimento do cristianismo todas as vezes que os homens se afligirem, se envergonharem ou se cansarem de o sentir tão incôngruo em relação ao curso da história, e daí tirarem a intenção de afeiçoá-lo àquele andamento.

A crise de nossos dias, a mais ampla e profunda de toda a história da Igreja, começou por um propósito de aggiornamento. O cristianismo estava envelhecido, a Igreja esclerosada, e o bravo mundo moderno passou a interessar-se prodigiosamente por sua renovação. Reformas... reformas... reformas... O pastor anglicano John Robinson, que andou por aqui a fazer conferências, escreveu um volume inteiro para explicar que hoje, na era espacial, não é possível ter a mesma idéia de Deus “fora de nós” tida e mantida pelos antigos. Eis o que diz na tradução portuguesa esse tipo bem representativo de nossa época: “Enquanto não tinham sido explorados, ou era possível explorar (por meio de radiotelescópios, se não com foguetões) os últimos recantos do Cosmos, ainda se podia localizar Deus mentalmente nalguma terra incógnita. Mas agora parece não haver lugar para Ele, não apenas na estalagem, mas em parte alguma do universo: é que já não há lugares vazios.”

É difícil, em tão poucas linhas, dizer mais densa coleção de asneiras sobre a presença de Deus que, para esse notável anglicano, ao que se vê, sempre esteve no limbo das primeiras imagens infantis. O reverendo (que o Prof. Cândido Mendes Almeida importou quando por aqui é abundantíssimo o similar nacional), fascinado por leituras de vulgarizações, e esquecido da presença de Deus em todas as coisas como causa primeira, e como sustentador de todas as existências, pensa que o homem já explorou todos os recantos do universo!

O leitor encontrará no livro Progresso e Progressismo, AGIR, p. 130, e seguintes, considerações mais desenvolvidas sobre o autor anglicano e sua obra Honest to God que foi best-seller em vários idiomas.

No momento quero deter a atenção do leitor diante deste bonzo “a atualidade” que tem mais adoradores do que todos os Budas do oriente. Passou pelos seminários, pelas salas de capítulo, pelos claustros mais serenos e austeros um frenesi de atualização, um furor indecente de se prosternarem todos diante de um Hoje tornado suprema divindade. Ninguém percebe, nem tenta demonstrar as vantagens da substituição de tais fórmulas por tais outras. Não são mais claras, não são mais belas, mas são reformadas e nisto consiste sua suprema nobreza.

***

Há mil maneiras de tentar banalizar o cristianismo. A mais ampla mas também mais humilde e mais triste é aquela produzida pelo fato de não sermos santos, ou de serem tão poucos os que realizam desde já, aqui e agora, ao menos em algumas cintilações, a maravilhosa e permanente novidade que é Cristo Jesus; mas a mais espessamente estúpida é aquela que, não vendo a supernal, a transcendental Novidade, quer submeter o cristianismo à tirânica frivolidade das pequeninas coisas novas com que o homem tece e borda sua frágil atualidade que já nasce em processo de envelhecimento.

Nunca se falou com tanto garbo no “mundo moderno” e em suas terríveis exigências, mas ninguém se dá ao cuidado de especificar essa modernidade, nem ao cuidado de esconder suas espetaculares misérias. Ninguém, evidentemente, contestará que os veículos hoje são muito mais rápidos do que o cavalo de Carlos Magno, ou o burrico que São Bernardo montou para ir aonde o chamavam, e onde confundiria o bom mas trêfego Abelardo. Eu não preciso fazer malabarismos de imaginação para rever a figura do Santo abade de Claraval, e para imaginar as santas cogitações com que se preparava para defender a Sagrada Doutrina enquanto o bom burrico o ia levando no mesmo doce ritmo com que um outro irmão burro mil anos atrás levara ao Egito, Nossa Senhora e o Menino Jesus. O que preciso fazer esforço para imaginar é o quadro atualizado de um São Bernardo a sair de seu mosteiro, num Fusca a 120 quilômetros por hora. Não digo que seja impossível. Metafisicamente é possível que um grande santo de hoje dirija um carro; mas tudo parece contraindicar que esse veículo possa proporcionar ao hipotético santo o mesmo lazer para a meditação, como também tudo leva a crer que a velocidade do veículo não possa modificar o bom fundamento da argumentação que venceria Abelardo.

Curioso progresso! O que hoje se vê todos os dias são revoadas de Abelardos, e de sub-Abelardos, que a mil quilômetros por hora atravessam os oceanos para se reunirem em congressos, sínodos, conferências, onde serão propostas mil pequenas e efêmeras renovações por dia. E é com esse frenético ativismo que querem atualizar o Cristianismo; e é com essa submissão ao século que querem vitalizá-lo. Depressa se desencantam de correr e voar, e então, para reduzir o Cristianismo a um puro humanismo, resolvem anunciar a morte de Deus.

Mas o menino Jesus, no mesmo ritmo lento de outrora, continua a nascer virginalmente todas as manhãs nas almas submissas, e continua a ressuscitar triunfalmente todas as manhãs para deixar em nós o anúncio de nossa própria ressurreição. E nisto pomos todo o fervor de nossa Fé: passarão os impérios, as máquinas do mundo, mas esse cristianismo sempre pequenino, manso, único e eterno não passará.

(O Globo, 14/8/71)

O encolhimento do universo

Pe. Robert Brucciani, FSSPX

 

Queridos fiéis,

Os astrônomos dizem que o universo está se expandindo. Isso é verdadeiro no sentido físico, mas, em várias outras maneiras, ele, na verdade, está encolhendo.

 

Nos sentidos

Primeiro, nos sentidos. Porque podemos voar até praticamente qualquer ponto do mundo dentro de 24 horas, a terra parece ter reduzido dramaticamente em tamanho. De modo semelhante, com a habilidade de conversar com qualquer pessoa no planeta em segundos, todos se tornaram nossos próximos. Com tecnologias incríveis de vídeo, áudio e nuvens, todo o mundo visível e audível está, potencialmente, diante de nossos olhos e nossos ouvidos. O mundo, certamente, encolheu.

Há benefícios nesse encolhimento, mas também há custos: pois nenhum destino é tão apreciado quanto aquele conquistado através da prudência e da fortaleza; nenhuma conversa é tão significativa quanto aquela olho no olho; nenhuma cena é tão intensa quanto aquela assistida pessoalmente. O universo tecnológico é menor, mais barato, mais rápido e mais malvado. Ele nos rouba experiências reais e rouba-nos tempo precioso.

 

Na Filosofia

Não apenas nos sentidos o universo encolheu: no intelecto também. Na compreensão filosófica do homem moderno do universo, houve um grande achatamento desde a reforma protestante, depois no iluminismo racionalista, e no ateísmo comunista. Para o homem moderno, hoje, não há:

 

-- ordem sobrenatural (não há Deus nem religião)

-- ordem espiritual (não há alma, não há anjos) e

-- Lei Natural (não há finalidade, verdade, moralidade ou humanidade – alguém pode se identificar com o que quiser: homem, mulher, negro, branco, gato ou cachorro), e não há

-- dados de uma verdade objetiva cognoscível (tudo está na mente, e nada pode ser conhecido)

 

Só há matéria e forças físicas no universo do homem moderno. O homem, portanto, é apenas uma justaposição fortuita de moléculas. Que universo triste: sem beleza, sem verdade, sem esperança, sem céu.

 

Na educação

A educação clássica da gramática (trabalho de memória), dialética (raciocínio) e retórica (comunicação) foi completamente abandonada. Os estudantes recebem alguns blocos de informação crua (sem memorização), devem sentir ao invés de raciocinar, e usam frases de efeito ao invés de discurso. Eles também são imbuídos da ideologia liberal.

Não apenas possuem pouco conhecimento do universo: os estudantes, normalmente, têm pouco conhecimento de si mesmos, pois todos tiram nota 10, todos recebem prêmios, todos ouvem que estão cheios de direitos e se sentem privilegiados.

As universidades não lidam mais com o conhecimento universal, mas treinam seus estudantes em áreas cada vez mais especializadas; não ensinam a ver o quadro geral, mas a trabalhar para empresas globais em sua busca por lucro. Poucos se importam com as questões universais do ser, da finalidade e do sentido da vida.

 

Nas relações sociais

O encolhimento do universe dos sentidos necessariamente influencia o universo das relações sociais.

Conversamos rosto a rosto com cada vez menos pessoas que em qualquer outro período. Nós nos enclausuramos em veículos de metal e tornamo-nos estranhos à vizinhança, às lojas locais, até mesmo àqueles que estão na casa ao lado.

Damos tanto tempo à comunicação e ao entretenimento virtuais que temos pouco tempo para atividades sociais reais, amizades reais, clubes reais, sociedades, enriquecimento cultural real através de passatempos e recreações.

A sociedade está saindo da era da família nuclear para a mentalmente insalubre era do indivíduo atômico. Cada vez menos crianças nascem nas famílias graças à contracepção e à guerra econômica, política e cultural contra a família. Há, agora, apenas 1.56 nascimentos por mulher na Inglaterra de acordo com as últimas estatísticas. Não ajuda em nada a situação a realidade de cada vez menos casamentos (e mais tardios), além do número crescente de casamentos arruinados.

Há algum tempo, era normal haver três gerações vivendo na mesma casa. Hoje, os filhos mudam-se logo que se tornam economicamente capazes de fazê-lo, e os avós são jogados em um asilo, porque não há ninguém para cuidar deles.

Isolamento, solidão, problemas de saúde mental são marcas dos nossos tempos. Para muitas almas, seu universo social desabou.

 

Em nossas vidas cotidianas

Diversidade é a palavra moderna para homogeneidade. A cultura se tornou superficial e homogênea em todo o mundo: separados da geografia, da história, da fé; separados da Lei Natural e da razão.

Comemos as mesmas comidas ao longo do ano e em todo o mundo; usamos a mesma linguagem, vestimos as mesmas roupas, praticamos os mesmos esportes. Fazemos compras nos mesmos lugares e compramos os mesmos produtos globais, fabricados por empresas globais.

Elegemos os mesmos politicos – fantoches em débito com outra força política – e a maioria dos homens têm as mesmas aspirações: copiar os ícones bidimensionais apresentados a nós pela mídia global. A moralidade predominante é liberal. A religião predominante é “nenhuma”. Nosso universo, hoje, é culturalmente muito apertado.

 

No Estado

O abandono da religião, o pessimismo filosófico, a educação deficitária, a atomização social e a concentração de poder são ingredientes do universo mais visivelmente restritivo, que é a tirania.

Liberdades estão sendo corroídas tão rapidamente em nossos dias que todo mundo vive apenas a um passo de ser processado pelas mais variadas razões, intencionalmente ou não. Estamos submetidos a uma vigilância crescente, tanto de nossos movimentos quanto de nossas crenças, e estamos sendo coagidos a permitir que o Estado edite nosso DNA, estamos sendo forçados a cooperar com a cultura da morte: tudo isso com uma eficácia demoníaca tão grande, que concluímos que Satã, de fato, é o grande artífice desse movimento.

O homem moderno vive agora em um universo muito pequeno. O universo encolheu tanto, que o homem se encontra em um confinamento espiritual solitário pelo seu modernismo e, em breve, pode encontrar-se em confinamento físico pelas mãos de um Estado faminto. Quando isso acontecer, o encolhimento de seu universo estará completo.

 

Eles não podem aprisionar o espírito

Mas para nós, queridos fiéis, embora não possamos evitar todos os efeitos da tecnologia moderna, da filosofia moderna, da cultura moderna e do Estado moderno, nossas almas jamais poderão ser aprisionadas se seguirmos a razão, a Lei Natural e a religião revelada por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O fundamento da verdadeira liberdade é a participação ativa no Corpo Místico de Cristo. Ela, necessariamente, implica em desapego do pecado, que é a escravidão às paixões; ela, necessariamente, implica na adesão à doutrina, aos sacramentos e ao governo da Igreja Católica, que levará o homem à sua perfeição suprema na Visão Beatífica de Deus.

Se nos mantivermos próximos da Igreja, então, apesar de atrair a atenção indesejada do Estado, teremos paz interior.

Impérios terrenos erguem-se e caem, e é interessante notar que sua duração diminui conforme as tecnologias avançam. O Império Soviético durou por, apenas, 70 anos, o que significa que a juventude de hoje, provavelmente, assistirá ao fim da tirania da Cultura da Morte, hoje em ascensão. O universo encolherá por mais algum tempo ainda, mas aqueles que possuem a liberdade dos filhos de Deus jamais estarão confinados.

 

In Jesu et Maria,

Pe. Robert Brucciani

A tragédia da autoridade

Gustavo Corção

Todos nós sabemos que o mundo moderno está envolvido numa guerra mais mundial, porque mais geral e mais penetrante, do que as duas anteriores. Uma torrente histórica vem de longe, recebendo afluentes, engrossando, para desaguar num estuário de anarquia e desordens com que os visionários pretendem contestar a obra de Deus e dos homens, pretende repelir a ideia de continuação e tradição, e até ousa pretender uma revolução mundial a fim de voltar à estaca zero para a recriação do mundo do homem a partir desse zero, ex nihilo.

Uma das peças essenciais do jogo é o princípio da autoridade que nunca esteve tão molestado e nunca foi tão contestado. E uma das consequências desse estado de coisas é o mau exercício da dita autoridade por todos que dela se acham investidos. Há uma razão profunda na raiz de tamanho mal: a autoridade, em seus variados níveis, é uma exigência da lei natural. Sem essa ideia é impossível a família, é impraticável a Cidade, é impensável uma Civilização.

Por outro lado, há na ideia de autoridade algo que parece soar falso, ou que parece antinatural: como poderemos admitir que um homem se torne rei ou chefe da multidão de homens feito do mesmo barro? A ideia de autoridade aparece logo como antagônica do ideal de igualdade que parece ser uma das metas do dinamismo da história: os séculos trabalham para produzir um nivelamento humano, dizem os vários seguidores do anarquismo revolucionário. A autoridade será então, no dizer deles, uma categoria anti-histórica. O senso comum, ao contrário, nos diz que o sucesso de qualquer obra humana exige unidade de ação, e essa unidade exige que uns mandem e outros obedeçam. Mas o senso comum é a primeira vítima das correntes revolucionárias. E o mundo moderno, desaguador de uma civilização que durante quatro séculos apostou tudo nas revoluções, está aí para nos oferecer uma amostra do que será o próximo mundo cada vez mais moderno, condenado a ser continuamente moderno.

Já se disse mil vezes que a crise de civilização em que estamos imersos é uma crise de autoridade; mas é preciso acrescentar que a crise da autoridade tem dois lados: o primeiro consiste na agressão exterior e na contestação do princípio pelos anarquistas; o segundo consiste no mau exercício da autoridade.

As pessoas investidas de algum superiorato sentem-se vagamente envergonhadas porque uma das coisas mais difíceis para o indivíduo é resistir de algum modo ao empuxo irracional que vem da massa em movimento histórico. E todos pensam que a autoridade será tanto melhor quanto mais benigna e suave, como todos também pensam que, democracia será tanto melhor quanto mais puramente democrática, isto é, quanto menos acentuado é o valor e o prestígio das elites, e quanto mais decapitado o corpo político.

A dificuldade do exercício das mais legítimas autoridades, a do Papa, a de um bispo, a de um abade, a de um pai de família e a de um chefe de Estado, começa na cercadura dos seus mais próximos auxiliares. E o que mais frequentemente se vê, nessa matéria, produz tais deformações, tamanhos disparates, que, em vez de falar na tragédia da autoridade, seria melhor dizer comédia da autoridade. A crise da hierarquia eclesiástica é hoje um dos mais graves e pungentes dramas de nossa história. Desde o papado, onde a suprema autoridade da Igreja é o sucessor de Pedro e, portanto, o “doce Cristo na Terra” como dizia Catarina de Sena, tem-se a penosa impressão de um cerco. Com o pretexto de melhor servir a Igreja, segundo critérios que vê mais dos trovões sísmicos da história do que dos trovões do Sinai, muitos bispos se levantaram para diminuir a autoridade do Papa, para contestar o primado de Pedro, ou para colocá-lo numa espécie de presidência, no mesmo nível do colegiado de Bispos.

Além disso há a cercadura, os assessores, os secretários, os peritos, que se movem em torno do Cristo-na-Terra pomposamente crucificado, como em torno da Cruz primeira se moviam os soldados romanos, os curiosos, enquanto junto à cruz se imobilizada Stabat, a Mãe de Deus, Mãe da Igreja, Mãe dos homens.

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E de onde vem o fermento de des-Ordem que corrói no mundo todas as formas de autoridade? Respondo a essa interrogação com as palavras de São Pio X, que deveria ser considerado o patrono de todas as legítimas autoridades, porque soube levar a sua a um grau heroico.

“Poderá alguém ignorar a doença grave e profunda que neste momento, mais do que nunca, mina as entranhas da sociedade, e dia a dia se agrava corroendo-a até a medula e arrastando-a à ruína total? Essa doença, que bem conheceis, é a atitude do homem diante de Deus: é o abandono, a apostasia (dos mais próximos e é a soberba e insensata indiferença de muitos), mas nós não duvidamos da palavra do profeta (Sl 72, 27): ‘Eis que perecerão todos os que se afastarem de Vós...’”

É o afastamento de Deus, que a parte do mundo mais cristianizada vem operando há quatro séculos, que torna absurda e inaceitável a ideia da autoridade, porque todas as situações humanas de superiorato só têm sentido, e só encontram verdadeiro apoio, não na confusa e irracional “vontade geral”, mas no temor de Deus que é o modelo perfeito de todas as autoridades. Na verdade – agora compreendemos melhor – toda a corrente revolucionária, que quer destruir o passado de pedra em favor de um futuro de névoa, é uma corrente parricida.

Dentro dela, as instituições de direito divino, como o Episcopado, oscilam, vacilam e dão espetáculos derrisórios de desmoralização da autoridade, de dentro para fora, deixando abandonado à perplexidade e às lágrimas o povo humilde dos fiéis que, em lugar da figura de um Pai, veem frequentemente um burocrata, quando não veem um acrobata ou uma vedeta.

(O Globo, 10/2/72)

A falsa bondade

Gustavo Corção

Quando hoje percorremos, já com fastio, as páginas dos novos catecismos, ou dos novos livros escritos e ilustrados à sombra da frondosa pastoral catequética, a impressão dominante que logo nos assalta é a de uma açucarada e viscosa falsificação da bondade produzida pela tenebrosa estupidez, ou pela mais tenebrosa perversidade dos "novos" que aos borbotões se desprendem todos os dias da verdadeira Igreja, una, santa, católica etc, em demanda de outra mais tolerante, e por isso apontada como mais bondosa do que a Igreja de Jesus Cristo e dos Santos que imitaram seu áspero e difícil exemplo.

Seria mais exato dizer que essa edulcoração e esse amolecimento dos valores formam uma espécie de peste rósea que atingiu o mundo, a começar pela civilização ocidental em processo de crepuscular decadência e de desintegração. À Igreja caberiam o alarma e a lição do revigoramento, mas para nosso maior sofrimento, e para imprevisíveis e inimagináveis sofrimentos de nossos filhos e netos, processou-se neste mesmo glorioso século a maior e mais grave trahison des clercs e é na Igreja-egrediente (por derrisão chamada de "progressista") que se notam as mais espantosas e repugnantes falsificações de tudo, a começar pela falsificação do amor, feita num tom infinitamente repugnante que lembra as vozes das prostitutas do princípio do século, que atrás das rótulas chamavam os pedestres: "entra simpático!"

Nos tempos de Pio X, quando foi preciso opor uma severa condenação aos abusos do Sillon, pôde o grande e santo pontífice dizer aos desgarrados que se perdiam "levados por um mal norteado amor pelos fracos", porque nesse tempo o mundo católico ainda guardava a ressonância da doutrina dos dois amores que desde a Didaqué ilumina a cristandade. Nos tempos que correm espalhou-se pelo mundo a pestilencial doutrina de que qualquer sentimento meloso merece o mesmo nome de amor.

No mesmo limiar deste dolente e amolecido século, ainda podia um Marcel Proust fazer a belíssima evocação de figuras humanas marcadas pelo "visage antipathique et sublime de la vraie bonté". Anos antes, a pequenina Bernardette, que trouxe toda a vida estampada em sua figura o reflexo da Virgem Santíssima, e que sempre se destacou das irmãs por ser la plus petite, teve um temporário cargo de vigilância e superiorato na enfermaria. Sua função, que cumpriu irrepreensívelmente, era a de observar que fossem bem cumpridas as recomendações do médico e da superiora. Um dia, entrando na enfermaria, viu uma das irmãs sentada numa cadeira a ler um livro de piedade. Surpreendida em falta, desculpou-se dizendo que se sentia muito bem e que se levantara para ler melhor o livro piedoso. E Bernardette, instantaneamente: "Onde é que se viu piedade cosida com linha de desobediência?"

Hoje vão-se tornando inacreditáveis ou incompreensíveis todas as frases de gênios e de santos porque o mundo inteiro parece acometido de uma hepatite espiritual, e os homens se tornam cada dia mais fracos, ou "flacos" como diria Oswald de Andrade.

Em famosa alocução, já no seu tempo, Pio XII queixava-se dos afrouxamentos e temia sobretudo "o cansaço dos bons". Hoje seria o caso de temer não apenas o cansaço, mas o amolecimento e a transfiguração da fraqueza, da omissão, de todas as tolerâncias em nova virtude que vem substituir a "antipática e sublime" virtude da força moral que hoje só se vê nos fioretti dos santos e nos retratos antigos.

Além disso convém notar que a pomada de nova bondade que envaselina o planeta tem uma característica muito especial: cada um fabrica a sua, graduando-lhe a viscosidade e especificando-lhe o cheiro. O que importa, nessas campanhas de mãos, pés e demais partes do corpo estendidas, sim, o que importa soberanamente nesse afã de ver em toda a parte fragmentos do Evangelho, boa-vontade, humanismo e interesse pela pessoa humana, é o completo e límpido desprezo pela vontade de Deus.

* * *

Já observei que em todos os chamados "catecismos" munidos de todas as aprovações eclesiásticas comparecem arquétipos da nova idade do mundo, e nunca faltam Luther King e o astronauta. A presença constante do astronauta se explica pela infinita estupidez de alguns homens de Igreja que acham muito mais maravilhosa a ida do homem à Lua do que a vinda do Filho de Deus à Terra. Quanto à obsessão em torno de Luther King confesso que não atinei com nenhuma explicação plausível, nem cheguei a encontrar uma pista. Qual será o denominador comum, a afinidade? Não sei.

Sei que nós outros, católicos, temos uma maravilhosa coleção de heróis da santidade. Falei atrás em Bernardette, a menina que viu a Virgem Santíssima. Essa menina é sem dúvida possível um dos mais belos exemplos da humanidade. Sua força, disfarçada pela pequenez e pela asma, chega aos mais altos níveis do heroísmo. sua personalidade tem a riqueza e a dureza de um diamante. Suas respostas admiráveis são cintilações de um coração que já é fácil e diretamente movido pelos Dons. Pois bem, no último catecismo caído da frondosa pastoral catequética, a propósito de variedades temperamentais, Bernardette é dita "caráter amorfo".

Na verdade, o que esses autores não conseguem esconder é a sua profunda aversão pela santidade. Certamente lhes parece, a todos esses fabricantes de pomadas, duras demais, não-somente a palavra referente ao pão da vida, mas todas as palavras de Deus.

(O Globo, 4/3/72)

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