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Category: Perguntas e RespostasConteúdo sindicalizado

O boxe é moralmente permitido?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

Como não há ensinamento oficial da Igreja sobre esse tema, devemos fazer a aplicação dos princípios gerais morais ao caso concreto do boxe.

Um dicionário define o boxe como “um esporte de combate em que duas pessoas, normalmente usando algum tipo de equipamento de proteção, trocam socos por um tempo pré-determinado e em um ringue”. Outro dicionário define-o como “desferir e defender golpes sem a intenção de machucar o oponente severamente”, mas deve-se concordar que isso não é uma definição realista das lutas de Boxe que vemos na TV.

Ambas as definições concordam que ele é um esporte de combate no qual socos são trocados, mas devem-se fazer distinções levando em conta as intenções dos lutadores, seus objetivos e as circunstâncias concretas da troca de socos. Em outras palavras, deve-se distinguir entre o que chamamos de boxe amador e o profissional.

A princípio, não parece haver nenhuma objeção ao Boxe amador entre os teólogos. Seus defensores alegam que é um esporte que oferece oportunidade de desenvolvimento físico e força, melhora na autoconfiança e disciplina, formação de caráter e espírito desportivo. Eles até realçam que essas vantagens do esporte são de tal modo que até São Paulo, levando em conta a autodisciplina a ser exercitada em nossa vida cristã (1Cor 9, 25-27), faz analogia com o Boxe.

Como a disputa toma lugar em condições supervisionadas e, normalmente, usa-se equipamento de proteção, a possibilidade de dano físico é limitada. Além disso, as habilidades adquiridas também podem ser utilizadas fora do ringue em casos de autodefesa genuína, ou para defender outra pessoa.

Apesar disso, também há teólogos que alegam que, como a natureza humana é frágil, até mesmo as formas mais benignas de pugilismo amador podem se tornar moralmente repreensíveis porque os lutadores, embora não desfiram socos com a mesma intenção ou potência que no boxe profissional, podem se deixar levar pelo desejo de vencer e, assim, infligir dano físico imoderado ao oponente.

Os problemas surgem no caso do boxe profissional.

Há esportes em que há o risco de dano físico. Porém, tal dano é acidental, não intencional. Se for infligido de propósito, ele é penalizado.

O boxe profissional é um esporte cujo objetivo primário é privar o oponente da habilidade de lutar, não simbolicamente (como no Jiu-Jitsu ou no Wrestling, por exemplo, imobilizando o oponente), mas ao bater e lesionar o oponente até que ele se torne indefeso, deixando-o fisicamente incapaz de continuar a luta.

O risco de tais danos é tal que o jornal do Vaticano La Civiltà Cattolica chamou o Boxe profissional de “uma forma legalizada de tentativa de homicídio”, notando que os lutadores, normalmente, sofrem danos físicos e psicológicos.

O 5º Mandamento proíbe infligir, intencionalmente, dano físico a si mesmo ou ao próximo. Como criaturas, não temos domínio absoluto sobre nossos corpos e muito menos sobre os corpos dos outros. Somos apenas administradores, encarregados do dever e do privilégio de administrá-los com razoabilidade. Domínio absoluto pertence apenas a Deus.

Um dano deliberado, intencional ao corpo humano é moralmente permissível apenas com uma causa razoável ou se houver um bem que o compense – por exemplo, nocautear ou afogar um homem para o salvar [como no caso de um suicida], cortar um membro para salvar uma vida. Mas no boxe profissional não há essa causa razoável ou o bem que compense, pois o dano físico sofrido por ambos os lutadores não é proporcional ao bem que eles obtêm – fama, riqueza, orgulho de sua superioridade física.

Um acadêmico recente também enfatizou os efeitos na sociedade do Boxe profissional – ele glamouriza a violência, encoraja a ideia de enriquecer e tornar-se famoso através de agressão física e é acompanhado de uma comercialização que favorece a brutalização de todos os esportes de combate.

Ele também pode ter efeitos deletérios sobre nós, os espectadores. É espiritualmente perigoso tomar parte nesses espetáculos. Um filósofo pagão, Sêneca, já havia avisado que quando tornamos a lesão ou a morte de seres humanos um esporte, nós mesmos nos tornamos menos humanos. Santo Tomás não conhecia o boxe profissional, mas, com um conhecimento inerrante da natureza humana, ele apontava que tirar prazer do sofrimento desnecessário de outro homem é um ato bárbaro.

Em suas Confissões, Santo Agostinho fala de um amigo amado, Alípio, que havia desenvolvido uma paixão enorme pelos espetáculos dos gladiadores, realçando tanto o apelo de assistir a violência quanto nosso esforço normalmente infrutífero de resistir a ele. Santo Agostinho descreve os jogos dos gladiadores como “um delírio de excesso extravagante”, com multidões comemorando, enquanto homens são machucados. “Enquanto via o sangue, ele bebia da selvageria ao mesmo tempo” E, longe de ser um deleite momentâneo, quando Alípio voltava do anfiteatro, ele “não era mais o homem que havia entrado ali... Ele saiu dali trazendo consigo a loucura que havia contemplado”. Certamente, o Boxe profissional moderno não vai a esses extremos de banho de sangue. Porém, ele ainda apetece a uma paixão primitiva encarvada em nossa natureza decaída, uma paixão que, de qualquer modo, pode ser superada com a graça de Deus, como Alípio fez, mais tarde tornando-se o Santo Bispo de Tagasta.

 

O que é julgamento temerário? Ele é sempre pecaminoso?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

Todo homem tem direito a uma boa reputação, à boa opinião que comumente se tem sobre ele, pois ninguém deve ser considerado mau até que se prove que ele de fato é mau. Portanto, a difamação injusta do próximo constitui um pecado contra a justiça estrita.

Julgamento é a afirmação ou negação de uma coisa (p. ex., que algo é bom ou não). Um julgamento pode ser verdadeiro ou falso, dependendo de se está ou não de acordo com a verdade objetiva; verdadeiro ou provável, se afirmado ou negado com certeza ou apenas com probabilidade; prudente ou temerário, se emitido com fundamento suficiente ou insuficiente.

Levando em conta essas noções, chegaremos às seguintes conclusões sobre suspeitas infundadas e julgamentos temerários.

Uma suspeita temerária existe quando, sem fundamento suficiente, começamos a duvidar da conduta ou das intenções de nosso próximo, embora sem afirmá-lo definitivamente.

É um pecado contra a justiça devido ao direito do próximo à sua boa reputação, até que se prove o contrário. Mas por não ter assentimento firme, a simples suspeita não lesiona gravemente o próximo, e pode ser justificada de algum modo pelas ações do próximo ou por nossa própria fraqueza humana, que nos torna inclinados a essas suspeitas.

Mas ela pode ser séria em algumas circunstâncias, por exemplo, se a suspeita temerária (a opinião a fortiori) se refere a um pecado muito sério e que não é habitual da pessoa, ou se a pessoa é de reconhecida virtude. Nesses casos, há um pecado mortal na simples suspeita deliberadamente admitida e mantida, pela lesão séria que se comete ao próximo.

Santo Tomás explica as causas dessas suspeitas temerárias:

Como diz Túlio, a suspeita implica a opinião do mal, fundada em leves indícios. E isto pode dar-se por três razões. -- Primeiro, porque, sendo maus, em nós mesmos, facilmente opinamos mal dos outros, por estarmos como que cônscios da nossa malícia, conforme aquilo da Escritura: O insensato que vai pelo caminho, sendo ele um insipiente, a todos reputa por insensatos. -- Segundo, porque somos mal afeiçoados para com outrem. Pois, odiando-o ou desprezando-o, ou tirando-nos contra ele e invejando-o, pensamos mal do mesmo, fundados em leves indícios. Porque cada um facilmente crê o que deseja. -- Terceiro, por causa da longa experiência; por isso, diz o Filósofo, que os velhos são suspeitosos, por excelência, porque muitas vezes experimentaram os defeitos dos outros. Ora, as duas primeiras causas da suspeita implicam manifestamente a perversidade do afeto. A terceira causa, porém, diminui a suspeita, na sua natureza mesma, porque a experiência nos conduz à certeza que é contra a natureza da referida suspeita. Por onde, a suspeita implica em certo vício e, quanto mais suspeita é, tanto mais é viciosa. (II-II, q.60, a.3)

Um julgamento temerário é o assentimento firme da mente (não apenas uma simples dúvida, suspeita ou opinião), sem fundamento suficiente, acerca dos pecados ou intenções maliciosas do próximo.

É um pecado grave contra a justiça em razão da grave injúria que inflige sobre o próximo, que tem direito de preservar sua reputação até mesmo em nossos pensamentos internos, até que haja prova do contrário. Mas admite leveza da matéria e então, por exemplo, pode ser pecado venial julgar temerariamente que o próximo está mentindo para parecer melhor do que realmente é. A seriedade maior ou menor de um julgamento temerário depende não apenas da qualidade do crime que se presume, mas também da maior ou menor desproporção entre o julgamento e as razões que levaram a ele.

A Sagrada Escritura proíbe severamente esses julgamentos temerários, e Cristo nos avisa que seremos julgados da mesma maneira que julgamos os outros: “Não julgueis, para que não sjais julgados. Pois, segundo o juízo com que julgardes, sereis julgados; e com a medida com que medirdes vos medirão também a vós. Por que olhas tu para a aresta que está no olho de teu irmão e não notas a trave no teu olho? (Mt 7,1-3).

“Com efeito, o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia; mas a misericórdia triunfa do juízo” (Tg 2,13). Essas palavras do Apóstolo São Tiago resolvem, por si mesmas, a objeção que frequentemente se faz ao salutar conselho cristão de sempre interpretar em um bom sentido as intenções do próximo até que o contrário seja certo. É verdade que, ao fazê-lo, corremos o risco de errar muitas vezes. Mas esse erro será para nosso maior benefício, porque, ao tempo de nosso julgamento, Deus usará da mesma misericórdia que usamos com o próximo.

Há, além disso, outra razão, que Santo Tomás explica admiravelmente:

Pode acontecer que quem interprete no sentido mais favorável frequentemente, se engane. Mas, é melhor enganar-se mais frequentemente, formando opinião boa de um homem mau, do que enganar-se raras vezes, fazendo má opinião de um homem bom. Porque, o primeiro modo de proceder injuria a outrem e o segundo, não” (II-II, q.60, a.4, ad)

O que o primeiro mandamento da Igreja ordena?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

A Lei natural impõe a todos os homens a obrigação de adorar a Deus. E Ele mesmo definiu como os homens deveriam cumprir essa obrigação ao emitir Seu preceito divino no Antigo Testamento. O Terceiro Mandamento da Lei de Deus diz:

“Lembra-te de santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás (neles) todas as tuas obras. O sétimo dia, porém, é o sábado (o dia de repouso), consagrado ao Senhor, teu Deus; não farás nele obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu gado, nem o peregrino que está dentro das tuas portas. Porque o Senhor fez, em seis dias, o céu e a terra e o mar e tudo que neles há e descansou ao sétimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Ex 20, 8-11)

Após a Ressurreição de Cristo, esse dia se tornou o Domingo, o “dia do Senhor” – “dies Domini”.

Consequentemente, a Igreja, em seu primeiro mandamento, determinou como os cristãos devem santificar o domingo e os dias de preceito prescrevendo certos atos e proibindo outros, como foi detalhado no Código de Direito Canônico de 1917:

“Nos dias de preceito, deve-se ir à Missa; deve-se abster de trabalho servil, atos jurídicos e, de modo semelhante, a não ser que haja um indulto especial ou que os costumes locais disponham de modo contrário, deve-se abster de comércio, compras e outros atos de compra e venda públicos” (Cânone 1248).

Enquanto o Sábado judaico era marcado principalmente pelo descanso, a Igreja, desde o princípio, deu ao Dia do Senhor um foco mais espiritual, dando primazia ao aspecto positivo, isto é, à obrigação de render a Deus o culto que Lhe é devido e de tomar conta das coisas que dizem respeito à alma da pessoa. A Lei da Igreja deu concretude a esses deveres com a obrigação de no mínimo ir à Missa.

Apesar disso, o dever de descanso também permanece sem sombra de dúvidas. Ele inclui abster-se de trabalhos servis [braçais], procedimentos judiciais e mercados públicos. Abstenção do trabalho e o descanso em decorrência dele, além de ter o propósito natural de restaurar nossas forças, tem a finalidade religiosa clara de nos ajudar a dar atenção a Deus e a desviá-la do mundo.

Em uma edição anterior de The Angelus (Maio-Junho de 2022), tratamos de como cumprir a primeira parte do preceito eclesiástico, a obrigação positiva de ir à Missa. Agora, vamos dar atenção ao aspecto negativo, abster-se do trabalho, um dever que, no mundo de hoje, costuma ser desprezado até por católicos.

 

Qual é a disciplina tradicional acerca do trabalho aos Domingos?

O Catecismo do Concílio de Trento explicou que o descanso sabático significa abster-se de trabalhos servis:

“Todos os trabalhos servis são proibidos, não porque sejam ruins em si mesmos, mas porque eles tiram atenção do culto de Deus, que é o fim último do mandamento”

Mas o que é “trabalho servil”? Embora o termo seja usado pela Igreja por séculos, ele nunca foi definido, e mesmo o Código de Direito Canônico de 1917 se absteve de defini-lo. A descrição do que constitui trabalho “servil” deve ser encontrada nos decretos de certos Concílios, no ensinamento dos teólogos e nos costumes locais que a Igreja aceitou.

A maioria dos manuais de Teologia moral o descrevem como um trabalho físico, manual, feito pelas necessidades e pelos ganhos do corpo; o tipo de trabalho que, no passado, era desempenhado por escravos ou, em tempos mais recentes, por empregos domésticos e lavradores contratados. Enquadram-se nessa categoria os trabalhos agriculturais (aragem, cavar, etc) e trabalhos mecânicos ou industriais (prensa, construção, engessamento, etc).

Ele se distingue dos trabalhos “liberais”, que são produto principalmente das faculdades mentais, imediatamente direcionados ao desenvolvimento da mente e que, no passado, eram realizados por pessoas que não eram escravos ou servos. Trabalhos desse tipo são os trabalhos intelectuais (ensinar, ler, escrever, estudar, etc), trabalhos artísticos (tocar música, cantar, desenhar, pintar, bordar etc) e também trabalhos de recreação (esportes moderados ou diversões, como futebol, baseball, tênis e xadrez).

Na disciplina tradicional, para discernir se uma atividade constitui trabalho servil ou liberal, o fator determinante é a natureza do trabalho em si (finis operis), sem levar em consideração nenhuma circunstância extrínseca, como o propósito do agente (finis operantis), ou o esforço físico despendido para o trabalho, ou sua duração. Portanto, se o trabalho for “servil” ele permanece proibido por qualquer motivo que seja.

A obrigação é grave, mas a contravenção do preceito pode ser consideravelmente reduzida se o trabalho não requerer esforço excessivo, não durar mais de 2 horas e não causar escândalo.

Como Nosso Senhor também disse que “o Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado” (Mc 2, 27), a Igreja, distanciando-se de excessos farisaicos, reconhece diferentes razões que podem escusar a abstenção do trabalho no Sábado:

  • Necessidade ou dever para com o próximo permite o trabalho no Domingo ao menos em alguma medida (por exemplo, aqueles que devem trabalhar no Domingo para sobreviver, ou para se manter fora de risco sério, ou para prestar serviços ou obras de caridade que não possam ser realizados facilmente em outro tempo);
  • Piedade para com Deus, trabalhando naquilo que é imediatamente necessário para o culto divino;
  • Costumes que permitem trabalhos necessários, como cozinhar, serviços domésticos ordinários, etc
  • Dispensa pode ser dada sob certas condições pelo pároco para seus paroquianos. Um confessor não tem poder para dispensar nessa matéria, mas, em casos dúbios, ele pode interpretar a lei e permitir que seus penitentes façam trabalhos necessários.

É claro que nem toda razão escusa do preceito. Portanto, aqueles que, desnecessariamente, colocam-se em situação de impossibilidade de observar a lei cometem um pecado (por exemplo, aceitando um trabalho que peça que trabalhem o Domingo inteiro), ou aqueles cujas razões são frívolas (como aqueles que trabalham no Domingo só para ter algo para fazer).

Para evitar o autoengano, os fiéis devem consultar seu pastor ou confessor, se houver dúvida acerca da suficiência da escusa.

 

O que a legislação atual diz?

Através do Século XX, e especialmente após as duas grandes guerras, considerando as circunstâncias sociais e econômicas alteradas do mundo, houve muita discussão entre os teólogos acerca da definição de trabalho servil.

Um eco dessas discussões encontra-se na presente disciplina da Igreja, que está estabelecida no Cânone 1247 do Novo Código de Direito Canônico, promulgado em 1983:

“No domingo e nos outros dias de festa de preceito, os fiéis têm a obrigação de participar na missa; além disso, devem abster-se das atividades e negócios que impeçam o culto a ser prestado a Deus, a alegria própria do dia do Senhor e o devido descanso da mente e do Corpo”

O novo Código, em comparação com a legislação anterior, não menciona o trabalho “servil”, porém mantém a obrigação de abster-se de trabalho aos Domingos, ao mesmo tempo em que altera a ênfase de como deve ser feito, acrescentando a referência ao “descanso da mente e do corpo”.

O Catecismo da Igreja Católica (n. 2187) desenvolve o requisito canônico:

“Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes, etc) e as obrigações sociais (serviços públicos, etc) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis ficarão atentos, com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem econômica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus empregados”

 

Então, o que devemos fazer?

Como podemos ver, a nova legislação não contradiz, nem rejeita o que a Igreja pedia antes, mas expressa-a em termos mais gerais. Ao mesmo tempo, realça o espírito no qual a lei deve ser observada, isto é, o objetivo que o legislador – Deus e a Igreja – desejava obter ao impor uma obrigação particular. Como São Paulo (2Cor 3, 6) já havia explicado, devemos evitar desprezar o espírito da lei ao cumprir sua letra.

Portanto, em geral, devemos submeter-nos à disciplina tradicional, mas sem perder de vista os critérios expandidos de discernimento que a nova lei trouxe.

A abstenção do trabalho servil visa permitir-nos livrar-nos de nossa labuta diária, deixando-nos livres para render a Deus o culto que Lhe é devido. Ela também nos permite cuidar do bem de nossas almas, dando-nos tempo e oportunidades de descanso e divertimentos honestos. De tempos em tempos, precisamos de uma pausa das preocupações e cansaços inerentes ao esforço diário. Sem recreações prudentes e bem administradas, nossas forças físicas e mentais logo ficariam exaustas, incapacitando-nos para qualquer tipo de trabalho.

Portanto, no Domingo, devemos, preferencialmente, dar tempo a Deus, às coisas espirituais e à elevação de nossas almas a Ele. Claro, ir à Missa é o mínimo que a Igreja requer, mas isso não significa que podemos esquecer Deus pelo resto do dia e apenas aproveitar o descanso.

Embora a Igreja não imponha uma observância excessiva, farisaica do descanso do Domingo, ela também não admite lassidão na observância do Dia do Senhor. Como um autor colocou, “o Domingo não precisa ser fúnebre, mas também não pode ser ateu”

Não podemos entregar-nos a coisas inapropriadas ou danosas para nós ou para outros, nem perder completamente nossa seriedade da alma, ou fazer algo em circunstâncias desonestas.

Portanto, nosso Domingo não pode ser tomado por jogos ou pela televisão, por conversas fúteis ou risadas sem propósito, ou ficarmos grudados no computador, olhando sem parar nossas redes sociais – ações que, em si mesmas, não são necessariamente más, mas que tiram nossas mentes e corações de Deus.

 

Alguns exemplos práticos

Às vezes, pessoas de boa fé se encontram em situações complicadas, porque gostam de relaxar com atividades aos Domingos como jardinagem, que, em sentido estrito, seriam um trabalho “servil” e, portanto, estariam proibidas.

Mas mesmo a legislação tradicional considerava que tal trabalho não seria uma violação séria do descanso do Domingo se não demandasse um esforço físico intenso, se fosse realizada por um breve período, sem causar escândalo e sem interferir com nossas obrigações para com Deus.

À luz do novo Código, o mesmo trabalho, realizado em tais circunstâncias, também seria permitido se com a intenção de relaxamento e recreação, como uma maneira simples de se afastar das preocupações que atingem nossas mentes pelo resto da semana. Se esse for o caso, essas almas não precisam se preocupar.

Por outro lado, a legislação tradicional permitia trabalho intelectual, “liberal”, tal como o de um advogado preparando um processo, um arquiteto desenhando planos de uma construção, um contabilista preparando declarações de impostos, etc.

Mas à luz da legislação recente, essas atividades – embora não constituam pecado, pois são autorizadas pela lei anterior – devem ser desencorajadas, ao menos como imperfeições, se desnecessariamente trouxerem para o Domingo as preocupações mundanas e as tarefas que nos absorvem nos demais dias da semana, pois, nesses casos, o espírito da lei, a intenção do legislador, não estaria adequadamente atingida.

 

Em conclusão

Todas essas explicações servem para nos ajudar a emitir um julgamento prudente quando se trata de decidir se devemos ou não realizar certo trabalho ou atividade.

Apesar disso, devemos não apenas evitar o pecado, mas também buscar uma perfeição maior em todas as nossas ações. Portanto, não devemos tentar tirar vantagem de qualquer brecha que encontrarmos ou procurar desculpas. O amor de Deus, fortalecendo nosso bom senso e guiando nosso discernimento prudencial, deve prevalecer em tudo e acima de todas as coisas.

Nesse tema de se abster do trabalho, devemos ter em mente o terrível aviso de Nossa Senhora de La Salette:

“Se meu povo não obedecer, eu soltarei o braço de meu Filho. Ele é muito pesado, tão pesado que não consigo mais segurá-lo... ‘Eu designei seis dias para o trabalho. O sétimo eu reservei para Mim. E ninguém quer Me dá-lo’... É isso que faz o peso do braço de meu Filho ser tão insuportável”

Conhecendo nossa própria fraqueza, dirijam-nos, portanto, a São José, pedindo sua ajuda e sua orientação na hora de guardar o Dia do Senhor:

“Ó gloriosíssimo Patriarca, São José, obtende, pedimos a Vós, de Nosso Senhor Jesus Cristo bênçãos abundantes sobre aqueles que mantêm santo os Domingos e os Dias de Preceito da Igreja e dai a todos aqueles que os profanam que possam perceber, enquanto ainda podem, o grande mal que cometem e o castigo que trazem para si mesmos tanto nesta vida quanto na próxima, e dai-lhes que se convertam. Ó fidelíssimo São José, Vós, que, durante vossa vida terrena, observastes tão lealmente as Leis de Deus, dai-nos que chegue o dia em que todos os Cristãos abster-se-ão de trabalhos proibidos nos Domingos e Dias de Preceito, preocupar-se-ão seriamente com a salvação de suas almas e darão glória a Deus, que vive e reina para sempre. Amém” (São Pio X, 20 de Maio de 1905).

O que é a virtude da afabilidade?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

 

Afabilidade é a simpatia, a virtude que nos compele a preencher nossas palavras e ações externas com aquilo que possa contribuir para tornar amigáveis e agradáveis as nossas relações com o próximo. É uma virtude eminentemente social, moralmente necessária para a existência humana, e um dos sinais mais delicados e inequívocos de um autêntico espírito cristão.

Suas manifestações são inúmeras, todas gerando a simpatia e a afeição daqueles ao nosso redor – bondade, elogios simples, indulgência, gratidão manifestada com entusiasmo, educação nas palavras e maneiras etc.

Ainda assim, como é uma virtude moral, a afabilidade sempre deve ser mantida em um meio termo justo, pois pode-se pecar contra ela por excesso (adulação) e por falta (litígio, espírito de contradição).

Adulação é o pecado daquele que tenta agradar alguém de modo desordenado ou exagerado para extrair dele alguma vantagem. No fundo, ela sempre vem acompanhada de hipocrisia e egoísmo. Ensina Santo Tomás: “Como dissemos, a amizade referida, ou afabilidade, embora tenha como fim principal causar prazer àqueles com quem convivemos, contudo, quando é necessário, para conseguir um bem ou evitar um mal, não teme contristar. Por onde, quem quer de todos os modos  falar a outrem para lhe causar prazer, excede o modo devido de fazer e portanto peca por excesso. E se o fizer só com a intenção de causar prazer, chama-se complacente, segundo o Filósofo; se, porém, tirar algum proveito, chama-se lisonjeiro ou adulador. Mas, comumente, a palavra adulação costuma ser aplicada só àqueles que, excedendo o modo devido da virtude, querem agradar aos outros na convivência ordinária com palavras e obras” (IIa-IIae, 115, 1)

Ao responder à objeção de que louvar ou querer agradar a todos não é um pecado, pois São Paulo mesmo diz “eu tento agradar a todos em tudo” (1Cor 10,33), o Doutor Angélico escreve que louvar o próximo pode ser uma ação boa ou má, se certos requisitos foram observados ou negligenciados. Na verdade, se o louvor tem como intenção, observadas as circunstâncias corretas, de satisfazer a alguém e encorajá-lo em sua obra e encorajá-lo nos propósitos de suas boas obras, é o fruto da virtude da afabilidade. Ao invés, ela é adulação quando o louvor se direciona a algo que não deveria ser louvado, seja porque é uma coisa má ou pecaminosa, ou porque a fundação desse louvor não é clara, ou quando pode-se esperar que o louvor será ocasião de vanglória para o próximo. Também é bom querer agradar aos homens para os encorajá-los na caridade e para encorajar os outros no progresso na virtude. Ao contrário, é um pecado querer agradá-los por razões de vanglória, ou interesse pessoal, ou em coisas más.

Litígio, ou espírito de contradição, é um pecado que se opõe por falta à afabilidade e consiste em frequentemente e sistematicamente opor-se à opinião dos outros com a intenção de contradizê-los ou, ao menos, de não os agradar.

Se a contradição às palavras do próximo procede de falta de amor por ele, ela se opõe diretamente à caridade; se é feita com raiva, é contrária à mansidão, e se é feita com intuito de contristar o próximo ou de desagradá-lo, constitui propriamente o pecado do litígio (ou espírito de contradição), que é diretamente oposto à afabilidade.

Em si, o litígio é um pecado mais sério que a adulação, porque ele se opõe mais radicalmente à afabilidade, que, em si, tende a agradar ao invés de contristar. Porém, devemos levar em conta os motivos externos que nos impelem a cometer esses pecados. E, conforme eles, às vezes a adulação é mais grave, quando ela tenta, por exemplo, obter, por uma enganação, uma honra ou um proveito injusto. Às vezes, porém, o litígio é mais grave: por exemplo, quando a verdade é desafiada ou o próximo é desprezado ou ridicularizado (IIa-IIae, 116, 2).

Como devemos cumprir o preceito de assistir à Missa?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

O terceiro mandamento da Lei de Deus requer que “santifiquemos o Sábado” (Ex 20, 8). No Antigo Testamento, Deus definiu como cumprir essa obrigação, na Nova Lei, a Igreja determinou que o preceito divino deve ser cumprido pela presença na Missa aos domingos e dias santos. Isso é uma obrigação – sob pena de pecado mortal – para todo católico de sete anos ou mais, que tem o uso habitual da razão.

Para cumprir o preceito eclesiástico de assistir à Missa, a primeira condição é a presença física no lugar onde a Missa é celebrada, de modo que as ações do padre possam ser acompanhadas. Não se requer, porém, que se esteja dentro da Igreja, nem mesmo que se veja ou ouça o padre. Basta fazer parte daqueles que ouvem a Missa (p.ex., da sacristia ou de uma Capela lateral, ou atrás de uma coluna, ou fora da Igreja, se ela estiver lotada) e ser capaz de segui-la de algum modo, como pelo som dos sinos ou pelos gestos dos outros presentes. Portanto, mesmo fora da Igreja, é possível assistir à Missa, desde que se esteja unido ao grupo de fiéis que estão dentro.

Na falta dessa presença física, aquele que ouve a Missa pelo rádio ou pela televisão, ou via streaming online, ou que permanece tão longe do grupo de presentes que não pode ser considerado parte deles, este não cumpre o preceito.

Essa presença deve ser contínua durante toda a Missa. A Missa deve ser completa e inteira, isto é, deve-se estar fisicamente presente do começo ao fim, do primeiro sinal da Cruz até o último Evangelho. Se alguém voluntariamente, de propósito ou por negligência culpável, omite alguma parte notável dela, comete um pecado.

Para determinar qual parte é considerada notável e, portanto, a gravidade do pecado, é necessário levar em conta a dignidade das partes que se perdeu e a duração da ausência.

A essência do Sacrifício consiste na consagração dupla, completada pela comunhão do padre, quando a vítima é consumada. Portanto, quem chega na Missa após a dupla consagração ou vai embora antes da comunhão do celebrante, definitivamente faltou à Missa e deve ir a outra Missa para cumprir o preceito. Se não fizer isso, comete um pecado grave.

Por outro lado, é um pecado venial perder, de maneira culpável, uma parte não essencial da Missa (por exemplo, do começo até o princípio do Ofertório, ou tudo que se segue após a Comunhão, ou do prefácio até a consagração, ou da consagração até o Pater Noster). Aquele que chega atrasado na Missa deve suprir a parte que perdeu, a não ser que seja material ou moralmente impossível (por exemplo, porque é a última Missa, ou porque deve estar ausente por força maior).

O cumprimento do preceito também requer a atenção religiosa, devota da mente. Atenção é a aplicação da mente ao que está sendo feito. Pode ser interna ou externa, dependendo de onde a mente está fixada ou aplicada à ação sendo realizada, ou evita qualquer ação externa que possa atrapalhar a atenção interna.

Para ouvir validamente a Missa, ao menos uma atenção real externa é necessária. Portanto, não está prestando atenção aquele que não ouve a Missa porque está lendo um livro profano, ou porque conversa demais com o próximo, ou porque contempla atentamente as imagens ou a arquitetura do templo, ou porque dorme.

Uma certa atenção interior, ou presença da mente, é necessária para que isso seja um ato verdadeiramente humano e não apenas uma simples presença física. A atenção interior pode ser: a) material, isto é, às palavras e ações do Padre; b) literal, isto é, ao sentido dessas palavras e ações e c) espiritual ou mística, realizando atos de amor a Deus ou recitando orações piedosas (p.ex., o terço). Qualquer delas basta para cumprir o preceito piedosamente.

Os teólogos morais já debateram a questão de se aquele que se confessa cumpre o preceito. Alguns dizem que não, porque a confissão requer toda a atenção do penitente, até mesmo a atenção externa. Outros dizem que sim, desde que se tenha a intenção de assistir à Missa e participar dela o quanto seja possível. Na prática, essa segunda opinião pode ser seguida, especialmente se fosse muito penoso ao penitente esperar pelo fim da Missa, ou se houvesse um perigo de não poder receber a Comunhão, etc, pois, indubitavelmente, a intenção da Igreja é facilitar a frequência aos sacramentos para os fiéis, e não é totalmente impossível prestar alguma atenção à Santa Missa durante a confissão. Seria apropriado, porém, interromper a confissão durante a consagração das duas espécies, permanecendo recolhido e atento ao mesmo tempo.

A mulher que daria luz a Cristo teria, necessariamente, que ser uma virgem?

As considerações anteriores mostraram que a Mãe de Deus não apenas era virgem antes, durante e após o nascimento de seu Filho Jesus Cristo, mas que fez um voto de castidade por inspiração do Espírito Santo. Nessas condições, é natural indagar-se se deveria ter um marido.

Na verdade, o Arcanjo Gabriel foi enviado "a uma virgem desposada por um homem cujo nome era José, da Casa de Davi" (Lc 1,27). Esse detalhe, expressamente descrito na Sagrada Escritura, bem como nos relatos do Evangelho, mostra a vontade de Deus nesse ponto. Mas os Padres e teólogos questionaram o que motivou o plano divino. Santo Tomás resume a questão com sua clareza habitual.

 

Em consideração com a Encarnação do Filho de Deus

O Verbo assumiu a natureza humana em todos os seus aspectos, com exceção daquilo que seria contrário a Sua dignidade; ele, portanto, tinha vida social e, em primeiro lugar, vida familiar: por isso Ele nasceu em uma família.

Era igualmente importante que o Messias não fosse rejeitado como um filho ilegítimo: "Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos?" (Jo 6,42).

A filiação era essencial para os judeus do Antigo Testamento. Isso pode ser observado nas genealogias que a Sagrada Escritura faz até mesmo no Evangelho. Mas ela deve ser realizada, de acordo com o costume, pela linha paterna.

Finalmente, Deus quis que a divina criança tivesse um protetor e um pai. O papel de pai consiste, no plano especial da Redenção, dar ao Verbo Encarnado a possibilidade de levar uma vida oculta.

 

Em consideração com a Mãe de Deus

Uma jovem que falhasse no cumprimento de seus deveres era apenada com apedrejamento. O nascimento de Cristo na Sagrada Família fez essa ameaça desaparecer.

E, presumindo que essa pena não fosse aplicada, o nascimento de Jesus protegeu Maria da infâmia de ser uma mãe solteira. A desonra, ainda que aparente, teria passado, de alguma maneira, para o Filho de Deus.

Finalmente, esse casamento assegurou à Santíssima Virgem o auxílio de São José. E sabemos quão precioso esse auxílio foi depois.

 

Em consideração com os homens

Os costumes judeus não permitiriam que uma mulher não se casasse, devido às regras de transmissão da herança e ao dever de gerar o povo de Israel. De fato, para evitar a passagem de uma porção da herança a outra tribo, as mulheres se casavam dentro de sua tribo.

O testemunho de São José eloquentemente confirma a concepção virginal do Salvador. De fato, era incumbência dele denunciar o adultério. Essa hesitação de José mostra a virtude da Virgem Maria.

O testemunho de Maria afirmando sua virgindade, porém, tem maior autoridade. Se a Virgem diz que foi concebida sem perder sua virgindade, seu testemunho é digno de maior confiança sendo ela casada que solteira.

Também era necessário que a Mãe de Deus fosse um exemplo às jovens. Se ela tivesse concebido carnalmente sem ser casada, sua reputação poderia ser -- erroneamente -- maculada. A concepção virginal de uma mulher casada protege sua reputação e serve de exemplo a todas as mulheres.

Desse modo, a Virgem se torna uma maravilhosa imagem da Igreja Católica: ela é virgem, esposa e mãe.

Finalmente, em Maria, a virgindade e o casamento estão honrados na mesma pessoa: assim, a dignidade desses dois estados é garantida.

A Mãe de Deus fez um voto de virgindade perpétua?

Nossa Senhora preservou sua virgindade por toda sua vida. Os Padres da Igreja se indagaram se Maria fez um voto de virgindade. Santo Tomás resume seus pensamentos sobre essa questão.

O ponto de partida dessa reflexão é a resposta de Maria ao Arcanjo Gabriel, que anunciou sua maternidade: "Como isso se dará, se não conheço homem?" (Lc 1,26). Para compreender adequadamente essa resposta, devemos lembrar que o verbo "conhecer" é empregado pela Sagrada Escritura para se referir a relações carnais.

Como a Virgem Maria estava noiva de São José -- noivado esse que, entre os judeus do Antigo Testamento, praticamente equivalia a um casamento -- essa pergunta significa que Nossa Senhora tinha a intenção de preservar sua virgindade em espírito de consagração a Deus.

É assim que Santo Agostinho compreende a passagem: "Na anunciação do Anjo, Maria responde: 'Como isso se dará, se não conheço homem?' Resposta essa que ela, certamente, não teria dado se ela não tivesse consagrado sua virgindade a Deus previamente" (De Sancta Virginitate, citada por Santo Tomás). Muitos Padres seguem Santo Agostinho.

 

A bela explicação do Doutor Comum

Ao expor a adequação desse voto, Santo Tomás aplica o princípio da atribuição de privilégios: é necessário presumir o mais perfeito possível na Santíssima Virgem; ora, a virgindade consagrada pelo voto é mais perfeita que a virgindade não consagrada. Então ela fez esse voto.

O Doutor Angélico, em outra passagem, explica que "o que é feito pelo voto se torna mais perfeito. Mas o principal fim do voto é fortalecer a vontade no bem". Ele também diz que a "uma vontade já santificada como a de Nossa Senhora, que goza de perfeita virtude, não é útil fazer muitos votos".

Portanto ele se indaga: "Por que o voto de virgindade, se a prática da castidade perfeita já era suficiente?" A resposta é clara e belíssima: "porque ele [o voto] fixa um estado de vida", para que, nesse voto, possa-se doar a própria vida.

Ele prossegue: "Se o comparamos [o voto de castidade] com os outros votos de religião, o de obediência é suficientemente substituído pelo casamento sob a autoridade de São José, e o voto de pobreza não é prudente para uma mãe de família"

Porém, ele observa que as regras sociais da época não aceitariam que uma mulher não se casasse, porque todos os membros do povo escolhido eram obrigados a participar da propagação da espécie. Então ele crê, com alguns Padres, que a Virgem, primeiramente, noivou com São José, e então, de mútuo acordo, ambos fizeram voto de castidade.

Mas também é possível, de acordo com outros autores, que o acordo de José e Maria aconteceu antes do noivado, e que eles fizeram o voto antes de se casarem.

O Cardeal Caetano -- um grande comentador de Santo Tomás -- acrescenta: "Não é natural que creiamos que esse Santo marido, ao aceitar que sua esposa dedicasse sua virgindade a Deus na constância do casamento, fez ele mesmo esse voto?"

É necessário levar em conta ainda, acima de tudo, a Divina Providência, que teria que inspirar José com essa resolução, para que a Santíssima Virgem tivesse, como companhia e guardião, um esposo que fosse também virgem. Além disso, Maria não seria "cheia de graça" se essa graça, que ela desejava acima de tudo em sua santidade, estivesse ausente em seu marido.

Portanto, a Virgem Maria, de acordo com a opinião comum, foi a primeira a fazer o voto de castidade de acordo com o tempo e de acordo com a perfeição do ato.

A Mãe de Deus permaneceu virgem após o parto?

A Tradição distingue a virgindade em Nossa Senhora antes do parto, durante o parto e após o parto (ante partum, in partu e post partum). A presente questão diz respeito ao terceiro aspecto: virgindade post partum. A Mãe de Cristo permaneceu virgem após o nascimento de Seu Divino Filho?

Algumas pessoas quiseram ver, nos "irmãos de Cristo", mencionados em São João, outros filhos de Maria. A propaganda modernista [N.T.: e protestante] apresentou esse argumento. Mas outros textos do Evangelho também sugerem essa ideia: em São Mateus, Nosso Senhor é chamado de "primogênito de Maria" (Mt 1,25).

Deve-se asseverar que a Sagrada Escritura frequentemente chama de irmãos a outros parentes que não nasceram da mesma mãe. Nesse sentido, os "irmãos de Jesus" tiveram inveja dEle (Mc 6, 4); deram-lhe conselhos (Jo 7,1); tentaram levá-Lo para casa (Mc 3,21). Na Igreja Oriental, isso só seria compreensível se eles fossem mais velhos que Ele. Mas Nosso Senhor foi o primogênito.

O termo "primogênito" tem um certo sentido absoluto, independentemente de haver nascimentos posteriores. É um status jurídico. Em 1930, por exemplo, descobriu-se o túmulo de uma jovem mulher em Jerusalém em um cemitério judeu do Século I, que morreu dando à luz seu primogênito.

Mas, no relato da Anunciação, a Santíssima Virgem indaga ao Anjo: "Como isso se dará, se não conheço homem?" Conhecer, no sentido bíblico, refere-se a relações carnais. A objeção de Maria só faria sentido se ela tivesse a intenção de permanecer sem conhecer homem no futuro.

 

Os Padres da Igreja

Eles repetem essas verdades frequentemente. Santo Efrém afirma que Maria permaneceu virgem após o parto. São Zenão resume essa doutrina: "Maria foi concebida sem corrupção, ela gerou permanecendo virgem e permaneceu virgem após a Natividade". E Santo Ambrósio fulmina: "Alguns negaram que ela permaneceu virgem (após o parto). Preferimos desprezar tal sacrilégio".

São Sirício, papa, afirma: "Não podemos negar que Maria não teve outros filhos, e é com boas razões que sua santidade rejeita que, do mesmo ventre virginal, do qual Cristo nasceu de acordo com a carne, outro filho tenha nascido. O Senhor Jesus não teria escolhido nascer de uma virgem se a julgasse tão incontinente a ponto de profanar o palácio do Eterno Rei"

Portanto, é de fide que a Mãe de Deus permaneceu virgem post partum.

 

Razões disso

Elas estão enumeradas por São Tomás de Aquino na Suma Teológica (III, 28, 3):

- É adequado que Aquele que é o Filho do Pai, gerado na eternidade, seja o único filho perfeito de sua Mãe no tempo;

- Não seria apropriado que o corpo virginal de Maria, que havia se tornado o Santuário do Verbo através de obra do Espírito Santo, viesse a ter uma nova concepção. Isso implica dizer que a concepção virginal de Jesus foi uma nova consagração de Nossa Senhora a Deus, para que ela estivesse inteiramente dedicada à glória de Deus. Usar o relacionamento conjugal nessas condições seria uma violação. Maria é o modelo da vida religiosa;

- Não estaria de acordo com a gratidão que Maria, tendo a honra e graça de ser Mãe de tal Filho, conhecesse um homem e gerasse outro filho; de maneira semelhante, a santidade de José respeitava a pureza de Maria.

A maternidade divina da Mãe de Deus é integralmente virginal. A virgindade é uma característica tão própria de Maria, que se tornou um de seus títulos mais comuns: a Virgem Maria.

Há provas de que os cristãos primitivos rendiam culto aos santos e veneravam suas relíquias?

Pe. Juan Iscara, FSSPX

“Culto” é a manifestação pública da honra dada em memória de um Santo pela comunidade dos fiéis e ratificada pela autoridade eclesiástica.

Desde os primórdios da Igreja, os corpos dos mártires eram resgatados por fiéis piedosos, que corriam risco de vida às vezes, e recebiam um sepultamento honroso. Até mesmo suas roupas ensanguentadas eram resgatadas e preservadas com veneração. Portanto, os Atos Proconsulares do martírio de São Cipriano relatam que os fiéis de Cartago espalharam linho próximo a ele, para coletar o sangue derramado em sua decapitação.

Os mártires foram os primeiros a se tornar objeto de veneração da Igreja local, porque o martírio é a expressão mais elevada da fé e a comunhão mais íntima no mistério de Cristo. Eles eram solenemente lembrados nos aniversários de suas mortes, que os cristãos consideravam seu dies natalis, o dia de seu nascimento no Céu. Esse louvor e comemoração periódicos vinha sempre em conjunto com a celebração do sacrifício eucarístico, como testemunhado no Século III pelas Constituições Apostólicas. Era uma Eucaristia alegre pelo triunfo de Cristo em um dos membros de Seu Corpo Místico.

A disposição dos cristãos de honrar e comemorar os mártires é claramente observada no relato do martírio de São Policarpo de Esmirna (falecido em 155):

Coletamos seus ossos, mais preciosos que as joias mais raras e mais puros que ouro e depositamo-los em um local adequado, onde, reunidos conforme a oportunidade nos permitisse, com alegria, o Senhor nos dava a chance de celebrar o aniversário de seu martírio, tanto em memória daqueles que já haviam terminado seu curso, quanto pelo treinamento e preparação daqueles que ainda estavam por imitar seus caminhos (Martyrium Polycarpi, 18).

A mesma narração, claramente, esclarece a natureza do culto oferecido ao mártir:

A Cristo, de fato, sendo Filho de Deus, adoramos; mas os mártires, como discípulos e seguidores do Senhor, nós os amamos em razão de sua afeição pelo Rei e Mestre, de Quem possamos também ser companheiros e discípulos! (Martyrium Polycarpi, 17).

A veneração especial dos mártires também se manifesta nas inscrições em cemitérios. Inscrições cristãs antigas têm muitas orações pelos mortos, suplicando os favores de Deus por eles – Requiescat in pace, Vivat in Christo, “Descanse em paz”, “Que ele viva em Cristo”. Mas, como o martírio abriu as portas do Céu para eles, as orações diretamente aos mártires advieram espontaneamente da consciência do povo cristão, pedindo-lhes que intercedam por nós. Portanto, por exemplo, sob a Basílica de São Sebastião em Roma, do ano aproximado de 260, encontra-se uma inscrição: Paule et Petre, petite pro Victore, “Pedro e Paulo, rogai por Victor”. Na catacumba de Praetextatus, outra pede pela intercessão dos mortos perante Deus: Succurrite cum judicabitis, “Auxiliai-nos quando chegardes ao juiz”. E, na Igreja de Santa Sabina, do ano aproximado de 300: “Ático, descansai em paz, seguro em vossa segurança, e rogai por nossos pecados.”

Santo Agostinho, claramente, distingue essas duas formas de oração.

Se lembramos os mártires, tomando nossos lugares na mesa do Senhor, não é para rezar por eles, como pelos outros mortos que descansam em paz. É para que eles rezem por nós e para que sigamos seus caminhos. Pois eles atingiram aquele amor do qual diz o Senhor que não pode haver outro maior. Eles ofereceram a seus irmãos aquilo que receberam na mesa do Senhor.

Além de rezar pedindo sua intercessão, o culto dos Santos também se manifestava pela veneração de seus restos e de suas imagens, uma veneração que logo adquiriu um caráter litúrgico.

Embora escrevesse séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino expressa a razão da prática da Igreja a esse respeito desde os tempos mais remotos:

Por onde é claro que quem tem afeto por outrem venera-lhe também o que dele resta depois da morte; e não só o corpo ou partes do corpo, mas também certos bens exteriores, como as vestes e outros semelhantes. Ora, é manifesto que devemos venerar os santos de Deus como membros de Cristo, filhos e amigos de Deus e nossos intercessores, por isso devemos lhes venerar quais relíquias com a honra devida em memória deles; e sobretudo os seus corpos, que foram os templos e os órgãos do Espírito Santo, que neles habitou e operou, e hão de assemelhar-se ao corpo de Cristo pela glória da ressurreição. Por isso, o próprio Deus honra convenientemente essas relíquias, fazendo milagres na presença delas (Summa Theologiae, III, q. 25, a.6).*

Na Igreja primitiva, as catacumbas eram, acima de tudo, os locais de sepultamento dos mártires. Contrariamente às lendas, se os cristãos em Roma se reuniam nas catacumbas para celebrar a Eucaristia, era menos para se esconder (pois as catacumbas eram locais muito públicos) do que para estar próximos às tumbas dos mártires. Os fiéis estavam dispostos e até competiam para serem enterrados ad martyres, ad sanctos, “próximo aos mártires, aos santos”. Como São Paulino de Nola explicou, quando decidiu enterrar seu filho Celso próximo aos mártires de Complutum, ele desejava fazê-lo “para que, pela proximidade do sangue dos mártires, ele possa adquirir a virtude que purifica nossas almas como o fogo”.

Nas circunstâncias, as tumbas em si se tornaram altares. Dessa primeira Liturgia, quase ditada pelo layout das catacumbas, adveio a ideia de que não poderia haver celebração real sem a presença protetiva do corpo, ou, ao menos, algum resto de um mártir.

De acordo com o Liber Pontificalis, o Papa São Félix I (falecido em 274) transformou o costume em uma obrigação. Ao final do Século IV, Santo Ambrósio de Milão respeitosamente depositou os corpos dos mártires sob o altar:

Que as vítimas triunfantes tomem seu lugar onde Cristo Se oferece como vítima. No altar, Ele sofreu por todos e, abaixo, aqueles que Ele redimiu por Sua Paixão.

O 5º Concílio de Cartago, em 401, formalizou essa prática, tornando compulsório que todo altar tivesse relíquias, chegando até mesmo a ordenar a destruição dos altares que não as tivessem. Desde essa data, não pode haver consagração do altar sem que haja relíquias ali. O traslado solene dos restos dos Santos torna-se parte da Liturgia da dedicação das Igrejas até os dias atuais.

Infelizmente, a piedade popular, se transviada, arrisca transformar o culto das relíquias em superstição. No Século IX, Vigilâncio, um Padre de Toulouse, chegou a condenar como idolatria. Mas São Jerônimo (falecido em 420) escreveu uma carta severa, Contra Vigilantium, na qual explicava que damos honra às relíquias dos mártires para adorar Aquele pelo Qual eles foram mártires.

Todos os Padres da Igreja apoiavam com sua autoridade e iluminavam com sua ciência tão estimável veneração. No Oriente, São João Crisóstomo (falecido em 407) fez-se seu inspirado cantor:

Quereis experimentar delícias inexplicáveis? Vinde às tumbas dos mártires, curvai-vos humildemente ante seus ossos sagrados, beijai devotamente o relicário que os contém, lede os combates que travaram, os traços edificantes de sua fé e de sua coragem [...] e vós sentireis os efeitos de sua poderosa intercessão com Deus (Homilia I sobre os Mártires)

A piedade cristã primitiva também honrava as imagens dos Santos: pinturas em cemitérios, mosáicos nas Basílicas. Essas representações não eram, originalmente, objeto de veneração, mas parte de uma decoração que dava glória e servia de lembrete das virtudes a serem praticadas. Foi o Oriente que desenvolveu a Teologia do ícone, sustentando a legitimidade de sua veneração contra os imperadores iconoclastas.

 

Há provas históricas de que os cristãos primitivos rezavam para Nossa Senhora?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

 

Há um pequeno problema quando falamos de “Igreja primitiva” ou “cristãos primitivos”. O começo desse período histórico é claro: a fundação da Igreja, Pentecostes; mas, quando esse período acaba? Para responder a essa pergunta de forma mais segura, vamos nos ater às provas da devoção a Nossa Senhora nos relativamente obscuros Séculos II e III até o reconhecimento magisterial da maternidade divina no Concílio de Éfeso, em 431.

Nas Escrituras, Maria aparece de forma velada nas profecias do Antigo Testamento, sendo exposta nos primeiros capítulos do Evangelho de São Lucas; então, ela volta a uma relativa obscuridade durante o ministério de Cristo e reaparece no Apocalipse. Esse padrão de exposições e obscuridades, de alguma maneira, repetiu-se no desenvolvimento da doutrina e da devoção mariana durante os primeiros séculos da Igreja.

Os primeiros cristãos pregavam um Deus, encarnado em Cristo, criador e redentor, ao contrário da multiplicidade dos deuses pagãos. Nos primórdios dessa pregação, enfatizar a pessoa da Virgem-Mãe poderia ter criado confusão, comparações infelizes ou sincretismos com os mitos pagãos*. Mas, por outro lado, a humanidade e a maternidade de Maria tinham que ser enfatizadas para expor a realidade da Encarnação de Cristo como Homem-Deus, principalmente contra aquelas heresias antigas que negavam a humanidade de Cristo.

Portanto, os Padres dos Séculos II e III enfatizaram apenas com o passar do tempo a excepcionalidade de Maria, sua santidade, os privilégios extraordinários que lhes foram dados por Deus para cumprir sua missão única e universal ao lado de seu Filho. Eles tornam claro que sua doutrina mariana não era supérflua ou uma opinião teológica, mas necessária para preservar a integridade da fé, pois Maria está intimamente unida ao mistério da união das naturezas humana e divina em Cristo. Portanto, nas primeiras profissões de fé, a confissão de Cristo estava inseparavelmente unida à confissão da excepcionalidade de Maria.

O primeiro grande teólogo, Santo Irineu de Lyon (falecido em 202), ao traçar um paralelo entre Eva e Maria, enfatizou essa excepcionalidade. Maria cooperou na obra de nossa salvação: ela “se tornou causa de salvação para si mesma e para toda a raça humana”. Como ela é “o ventre puro que regenera os homens em Deus”, ela se tornou “a advogada de Eva” perante Cristo.

Esses temas foram melhor desenvolvidos por Orígenes em meados do Século III, não apenas se dirigindo a Maria como “Mãe de Deus”, mas, baseado no fato de que ela era a “nova Eva”, também se dirigindo a ela como “mãe dos fiéis”. Sendo duplamente santificada por uma consagração dupla (a descida do Espírito Santo em sua alma e de seu Filho em seu ventre), ela se tornou um canal ativo do Espírito Santo para a santificação dos homens.

Enquanto a compreensão teológica do papel de Maria na economia da salvação se desenvolvia nesses séculos, também a piedade mariana se desenvolvia em correspondência a ela, gerando o recurso à sua intercessão.

A primeira prova dessa piedade dos fiéis é encontrada na decoração e nas inscrições das catacumbas cristãs. As mais antigas e importantes são das catacumbas romanas (Priscilla, Agnes, Coemeterium majus), dos Séculos III e IV, representando a Virgem com seu Filho, ou a adoração dos Reis Magos, com um homem de pé atrás da Virgem e apontando para uma estrela, ou mesmo a Anunciação.

Essas são representações claras, “literais” de passagens evangélicas e da Mãe e de seu Filho, apontando diretamente para o mistério da Encarnação, pois a imagem afirma o que a heresia nega, tanto a realidade da natureza humana de Cristo, quanto a maternidade divina de Maria. Portanto, essas imagens não eram objetos de veneração, mas um sinal de reconhecimento, uma profissão de fé e uma esperança e um convite aos visitantes para rezarem por aqueles enterrados ali.

Nos tempos em que essas imagens começaram a ser pintadas nas catacumbas romanas, isto é, pelo Século II, um peregrino veio à Cidade, Abércio, Bispo de Hierápolis na Phrygia Salutaris (um nome grande do que, hoje, é uma pequena cidade na atual Turquia). Sendo um homem velho, ao retornar de sua longa jornada, ele preparou essa tumba, com uma inscrição que, hoje, está no Museu de Latrão. A inscrição dá testemunho, em termos velados, não apenas da difusão do Cristianismo, da preeminência da Sé de Roma, do Batismo e da Eucaristia, mas também menciona Nossa Senhora:

A fé me levou adiante em todos os locais, e, em todos os locais, providenciou, como meu alimento, um Peixe de grande tamanho e perfeito, que uma Santa Virgem apanhou com suas mãos de uma fonte, e essa fé sempre dá a seus amigos o alimento, dispondo de um vinho de grande virtude, ministrando-lhe misturado com o pão.

A menção do “Peixe” é um acrônimo para Iēsous Christos, Theou Yios, Sōtēr, “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”, como Santo Agostinho explica (De Civ. Dei, XVIII:23), e a Virgem é a que trouxe Cristo a nós.

De quase um século mais tarde, temos um fragmento de um papiro egípcio em grego, hoje na Biblioteca John Rylands, Manchester, Reino Unido. Ele data de 250-280, um período de perseguições metódicas e cada vez mais violentas (Valeriano, Décio, até chegarmos a Diocleciano). Ele contém uma versão de uma oração que ainda rezamos, o Sub tuum prasesidium:

Sob vossa proteção nos refugiamos, ó Santa Mãe de Deus! Não desprezeis nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos do mal, puríssima e beatíssima.

Ela expressa a fé da Igreja em Nossa Senhora de maneira simples, sucinta. Ela é a Mãe de Deus, a Theotokos, “portadora de Deus”, Deipara, Dei Genitrix, “a que dá nascimento a Deus”. Ela tem um poder inaudito de intercessão – embora ainda não se lhe tenha dado o título ainda, ela é reconhecida como Mediatrix de todas as graças. Finalmente, ela é a “única bem aventurada”, escolhida especialmente por Deus, e “a única pura”, perpetuamente virgem.

Ao fim do Século IV, no Império Romano do Oriente (Império Bizantino), a festa litúrgica em honra de Nossa Senhora mais antiga de que se tem registro era celebrada no dia após o Natal.

Nos Séculos IV e V, as orações litúrgicas em uso no Oriente ajuntavam, à moda oriental, os termos de louvor a Maria e invocavam sua intercessão. Por exemplo, na Liturgia Antioquena dos Doze Apóstolos:

Celebremos o memorial da toda pura, imaculada, gloriosíssima, bem aventurada Senhora, Mãe de Deus e sempre virgem Maria; que sejamos protegidos do mal por suas orações e súplicas, e que a misericórdia esteja sobre nós em ambos os mundos.

Finalmente, em 22 de Junho de 431, o concílio ecumênico reunido em Éfeso declarou, solenemente: “Se alguém não confessar que Emmanuel é Deus em verdade e que, portanto, a Santíssima Virgem é Mãe de Deus (pois ela trouxe consigo, carnalmente, o Verbo de Deus tornado carne), seja anátema”. A devoção do povo a Nossa Senhora era tamanha que, quando essa frase se espalhou pela cidade, espontaneamente, uma multidão alegre se reuniu na Igreja de Santa Maria, onde o Concílio aconteceu, e acompanhou os padres conciliares na saída, em procissão, com tochas.

Até Éfeso, o discurso teológico sobre Maria estava intimamente conectado à expressão de verdades cristológicas, mas, após Éfeso, a atenção se voltou para Maria em si, e uma veneração triunfante da Theotokos se espalhou como fogo nas Artes, na Liturgia e nas devoções populares.

 

ADENDO DA PERMANÊNCIA:

Tudo o que o Pe. Iscara afirma nesse ponto é verdadeiro; porém, apenas para ilustrar que os cristãos sempre creram e praticaram o culto mariano desde os tempos mais remotos (e que, portanto, essa crença é apostólica), tomamos a liberdade de reunir as seguintes citações:

- Santo Inácio de Antioquia (Séculos I e II): “Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, Filho de Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeira passível e agora impassível, Jesus Cristo Nosso Senhor” (Epístola aos Efésios, Capítulo 7)

“Nosso Deus, Jesus Cristo, foi, de acordo com os desígnios de Deus, concebido no ventre de Maria, da linhagem de Davi, mas pelo Espírito Santo” (Capítulo 18);

“A virgindade de Maria estava escondida do príncipe deste mundo, bem como o nascimento de seu Filho e a morte do Senhor; três mistérios concebidos em silêncio pelo Senhor”; perceba-se que Santo Inácio compara a virgindade de Maria com a própria Paixão de Cristo (Capítulo 19);

- Santo Aristides de Atenas (Século II): “Os cristãos, portanto, remontam o princípio de sua religião em Jesus, o Messias; e Ele é chamado de Filho do Deus Altíssimo. E está dito que Deus desceu do Céu, e de uma virgem hebraica assumiu e cobriu-se da carne [...] “(Apologia de Aristides)

- São Justino Mártir (Século II): “[...] Jesus Cristo, o Filho de Deus, nasceu sem pecado, de uma virgem da linhagem de Abraão” (Diálogo com Trifo, Capítulo 23)

“[...] de acordo com a vontade do Pai, era necessário que elas [as tradições judaicas] tivessem seu fim com Ele, que nasceu de uma virgem, da família de Abraão e da tribo de Judá (Capítulo 43)

“Contemplai: a virgem conceberá e terá um filho, e seu nome será Emmanuel” (Capítulo 43)

“É evidente a todos que, na raça de Abraão, ninguém nasceu de uma virgem de acordo com a carne, nem se diz que alguém tenha nascido de uma virgem, exceto Cristo, Nosso Senhor. Mas, como vós e vossos professores ousais afirmar que, na profecia de Isaías, não está dito ‘contemplai: a virgem conceberá’, mas ‘contemplai: a jovem mulher conceberá e terá um filho’, e como vós explicais a profecia como se falasse de Ezequias, eu me proporei a debater esse ponto com vós em oposição a vós e a mostrar que essa passagem faz referência Àquele que reconhecemos como Cristo (Capítulo 43); o restante do Diálogo faz outras referências a essa profecia de Isaías, atribuindo-a a Cristo, bem como ao fato de que Cristo nasceu de uma virgem

- São Dionísio Areopagita (Século I): “Que [referindo-se a Cristo), sendo concebido, formado e gerado pelo Espírito Santo e do sangue virginal da Virgem Maria, santa mãe de Deus, era verdadeiro Homem [...] (Liturgia de São Dionísio, Bispo de Atenas); o mesmo Santo chega a afirmar que, quando a viu, tê-la-ia tomado por uma divindade – devido aos seus secretos atrativos e à sua beleza incomparável – se a fé, em que estivesse bem confirmado, não lhe tivesse garantido o contrário (Tratado da Verdadeira Devoção, São Luís Maria Grignion de Montfort);

- “[…] E ele [São Gabriel] revelou a Maria como, nela, deveria nascer o mistério supremo divino de Deus” (Da Hierarquia Celestial, Caput IV, Seção IV)

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