Editorial Revista Permanência 305
Quando Olavo de Carvalho faleceu certas pessoas manifestaram de modo enfático seus sentimentos em relação ao falecido. Seus inimigos não esconderam sua maldosa felicidade, enquanto seus discípulos extrapolaram todos os limites da sensatez, clamando por “canonização”.
Uma vez baixada a poeira e acalmados os ânimos de uns e de outros, me parece necessário esclarecer alguns pontos do que se tem falado sobre o falecido, em especial sobre sua relação com o catolicismo, de modo que as orações pela salvação de sua alma, não incline a um sentimentalismo cego e equivocado os católicos que lhe tributam algum tipo de agradecimento. Não é a primeira vez na história que antigos discípulos se veem obrigados a se afastarem de um mestre por causa da verdadeira conversão, apesar de guardarem o reconhecimento de ter sido ele um instrumento provisório e natural da conversão à fé.
Um exemplo muito parecido com o de Olavo de Carvalho é o de Henri Bergson. No fim do século XIX e início do século XX, Bergson rompeu com o materialismo cientificista da época, ensinando uma filosofia espiritualista, não católica. Sua sala de aula no Collège de France, em Paris, ficava lotada de entusiastas seguidores. Muitos se converteram ao catolicismo, e não são nomes quaisquer: Charles Peguy, Ernest Psichari, Henri Massis ou Jacques Maritain, entre outros, se converteram e se afastaram do antigo professor. Como hoje, alguns deles procuraram manter relações com o antigo mestre, por motivos sentimentais, e foram criticados pelos colegas que perceberam que continuar a frequentá-lo os levariam a diminuir o brilho de sua fé católica.
Gostaria de deixar claro que a análise que segue não tem um foco subjetivo, uma crítica à pessoa Olavo de Carvalho. Nosso intuito é analisar de modo objetivo alguns aspectos do pensamento do autor. E isso por duas razões principais: a primeira, porque Olavo de Carvalho frequentou as missas na Capela São Miguel, da Permanência, durante mais de um ano, entre 1997 e 1999. A segunda razão vem do fato dele ter sido um homem público, um professor que teve influência real na formação do pensamento “conservador” atual, ou se preferirem, na formação de um pensamento “de direita”, inexistente no Brasil desde o fim do governo militar. Somos católicos e devemos rezar para que tenha morrido na graça de Deus, como também devemos considerar sua atuação como homem público diante do que ensina a doutrina de sempre da Igreja.
Que ele tenha adotado práticas de vida católica, parece certo, pelo testemunho dos seus próximos, mas isso não é suficiente para fazer dele um católico de verdade. A questão é mais profunda, e só poderia ser resolvida diante de uma clara profissão de fé católica, com a recusa do que ensinou no passado sobre as religiões e seitas, e a humilde submissão à Igreja Católica, reconhecida como detentora da verdade, da única Revelação, do único caminho de salvação.
Olavo de Carvalho na Permanência
Em algum momento de 1996, um dos antigos membros da Permanência procurou Olavo de Carvalho na faculdade em que ele dava aula, e pediu um autógrafo no exemplar de O Imbecil Coletivo, que fora publicado um pouco antes. Contava o nosso colaborador ter perguntado ao autor onde ele assistia à missa. Olavo teria respondido: “Eu não gosto muito de padres”. O professor ouviu essa resposta: “Acho que o senhor vai gostar do meu padre. Pode encontrá-lo neste endereço”.
Algum tempo depois, Olavo de Carvalho batia à porta da Capela São Miguel, onde assistiu missa com alguma frequência, aos domingos, até sua ida para a Romênia, cerca de um ano e meio depois.
Alguns anos antes, Olavo de Carvalho tinha participado de uma tariqa muçulmana. Sua formação religiosa girava em torno da ideia de unidade transcendente das religiões e de cursos sobre religiões comparadas, como sempre de muita erudição cultural e nenhum aprofundamento doutrinário. Conhecia a Igreja Católica por fora, como uma casca exterior. Mas nunca vivera a fé como um católico deve viver.
Parece necessário explicar melhor essa questão da religião na vida dos homens. A natureza humana nasce com uma inclinação natural a Deus, chamada de sentimento religioso. Por fazer parte da natureza humana, este sentimento está presente em todos os homens, e explica a razão de todos os homens terem certa noção de que Deus existe, e que Ele recompensa os bons e castiga os maus. As religiões pagãs nascem desse sentimento natural, quando os homens procuram prestar algum tipo de culto a Deus, e inventam cerimônias diversas, indo do culto dos antepassados ou do oferecimento de um sacrifício de animais, a ritos bizarros incluindo sacrifício do filho recém-nascido, e coisas parecidas.
Os esotéricos confundem esse sentimento religioso natural com as chamadas ideias inatas, oriundas de certa “revelação” primordial que teria sido dada a Adão e transmitida aos homens por iniciação esotérica, explicando a unidade transcendental das religiões. Vejam nesta expressão a palavra transcendental: para eles, toda religião, qualquer que seja, é uma manifestação ritual de uma ideia única, transcendente, vinda de Deus. Por isso Olavo de Carvalho orientava seus discípulos a praticarem a religião tradicional na qual teriam nascido, qualquer uma delas. Evidentemente isso contraria o dogma católico.
O mestre detém os segredos dessa “revelação” que ele ensina na sua “metafísica”. Toda doutrina religiosa passa a ser inferior à sua “metafísica”, visto que brota dela. No caso de Olavo de Carvalho, ele chegava a inverter o papel da filosofia, afirmando ser a Teologia serva da Filosofia.
Porém, a doutrina católica ensina e define como dogma de fé:
- O homem possui em sua razão natural a capacidade de conhecer a existência de Deus.
- Isso significa que não é necessária a revelação, ou ideias inatas, para que o homem conheça a existência de Deus.
- O homem não é capaz de agradar a Deus sem a ajuda da graça sobrenatural.
- A vida sobrenatural da graça é um dom gratuito de Deus, elevação e participação do homem na vida divina, não necessária à natureza humana, mas fruto do amor infinito de Deus pelos homens.
- Só existe um meio ordinário de se receber a graça santificante, através da fé em Nosso Senhor Jesus Cristo recebida no Batismo católico, e no ensinamento da Igreja Católica, única Religião revelada por Deus para a salvação dos homens.
Indo à Capela São Miguel, Olavo manifestava uma conversão ao catolicismo? Talvez seja possível dizer que uma graça lhe fora oferecida nesse sentido. Havia algo acontecendo. Rezava, acompanhava a missa num velho missal Latim-português, porém havia empecilhos que talvez o impedissem de ir adiante num movimento de verdadeira conversão.
Olavo não conhecia a doutrina católica. Para um professor como ele, dotado de um poder de intuição muito grande, de muita erudição e de ideais filosóficos muito autônomos e independentes, voltar ao estudo do catecismo exigiria uma grandeza de alma que ele nunca conseguiu demonstrar.
Há, pois, um primeiro ponto de doutrina que seria preciso buscar no ensino mais recente de Olavo de Carvalho, para se poder dizer que ele se converteu ao Catolicismo: o que ensinou, nos últimos anos, sobre a Revelação de uma única e verdadeira Igreja? Onde Olavo de Carvalho ensinou, por aula gravada ou por escrito, sua fé na Santa Igreja, ou seja, sua submissão pacífica e amorosa ao ensinamento constante da Igreja Católica?
Por outro lado, são variados os exemplos de ensinamentos fortemente contrários ao Catolicismo, sobre os quais não parece ter havido retratações ou correções. Mesmo já tendo compreendido que a distinção entre esoterismo e exoterismo não se aplica ao catolicismo, Olavo manteve sua crença na astrologia, chegando a afirmar:
Apesar de algumas deficiências no modelo astrológico, foi ele quem estruturou a humanidade pelo menos a partir do império egípcio-babilônico, o que significa, no mínimo, cinco mil anos de história. A Astrologia é um elemento obrigatório, por isto quem não a estudou, não estudou nada, é um analfabeto, um estúpido.
O católico sabe que para realizar a salvação do gênero humano, prometida a Adão na porta do paraíso perdido, Deus revelou-se através dos patriarcas e profetas, nos tempos antigos, e através do seu próprio Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, em nossos dias; esta Revelação foi transmitida à única Igreja fundada por Cristo, a Igreja Católica, única detentora das quatro notas essenciais – una, santa, católica e apostólica – que definem ser ela a Religião revelada por Deus, excluindo todas as outras. E que o católico recebe no Batismo o dom gratuito da fé sobrenatural, que consiste na adesão total e completa da sua alma à doutrina do Evangelho e ao Magistério da Igreja.
Olavo de Carvalho se afastou da Permanência quando foi para a Romênia. Chegou um dia na Capela São Miguel e perguntou se poderiam indicar algum amigo em Paris, que o pudesse abrigar por uma semana. Estava de mudança para a Romênia porque fora alertado por alguns militares que o MST o jurara de morte. Hoje compreendo, diante do que acontecerá pela frente, que aquele motivo talvez não tenha sido o verdadeiro. Olavo vendeu tudo o que tinha no Brasil e partiu afirmando que não voltaria mais.
O que aconteceu no tempo em que esteve fora não podemos saber ao certo. No seu retorno, não voltou mais à Capela São Miguel, não entrou em contato, e alguns dos seus alunos ficaram assustados, pois Olavo passara a exigir deles uma atitude de “discípulos” e não mais de alunos. Exigia deles, entre outras coisas, um engajamento com suas ideias. Estávamos no início de 2000, e Olavo deu uma entrevista à Revista República em que afirmava:
Revista República - Qual sua religião?
Olavo - Eu sou ecumenista radical:
católico-protestante-islâmico-judaico-budista-hinduísta. Eu acredito que
essas religiões têm todas um núcleo de verdade metafísica que é eterno,
revelado, que o ser humano não poderia ter inventado. Acredito que não se
inventam religiões e que elas não vão poder se dissipar.
Devemos anotar essa característica da sua vida: frequentou diversas seitas, navegou de religião em religião, jamais declarando publicamente ter renunciado a qualquer uma delas. Como ele mesmo afirma na entrevista ao site Porto do Céu, ele deixa uma seita e passa a outra não porque reconheceu seus erros, mas porque superou a sua “sabedoria”.
Os métodos do Olavo
Há certas atitudes de Olavo de Carvalho que se repetem em diversas ocasiões e que fogem da moral católica. Muitas vezes elas escondem a sua verdadeira intenção por detrás de uma fachada, outras vezes são simplesmente rasteiras e ignóbeis, feitas para chocar e avaliar sua influência. Em todas elas Olavo se posicionava como um homem despreocupado com qualquer regra moral, com qualquer ensinamento católico. Ou, se preferirem, Olavo de Carvalho defendia uma filosofia só sua, e agia segundo uma moral também inventada por ele mesmo. Era considerado bem aquilo que Olavo determinava ser o bem; era verdade aquilo que Olavo dissera ser verdade. A fé católica ficava a léguas de distância.
- A manipulação da verdade – Olavo era capaz de silenciar sobre algum ponto do seu discurso, por alguma razão de conveniência, e relançar esse mesmo ponto, tempos depois. Isso aconteceu no caso de um artigo em que afirmava que os quatro bispos da Fraternidade São Pio X tinham sido levados ao seminário pelo indiano Rama Coomaraswamy. Imaginem o impacto que isso podia causar no mundo do catolicismo tradicional. Mas não era verdade. Publicamos, então, um artigo que nossos leitores podem verificar no link em nota, rebatendo a falsa afirmação do Olavo. Este enfiou a viola no saco, fez grandes declarações na internet de que Julio Fleichman era aquele grande católico que ele conhecera e, dois anos depois, relançou a mesma ideia, como se fosse a pura verdade.
- A eliminação dos intermediários – Olavo formava seus discípulos na desconfiança de autoridades naturais, pais, sacerdotes ou professores. Aproveitava-se da situação de decadência de instituições como a família, as universidades ou a Igreja, para tornar-se ele próprio o assunto único nas conversas dos seus alunos, sua única referência. Na relação com a Igreja, seus alunos ficavam impedidos de conhecer o simples catecismo ou a verdadeira Tradição católica, e passavam a tratar com os padres como meros administradores de sacramentos. Infelizmente essa atitude é percebida pelos padres da Tradição em alunos ou ex-alunos de Olavo que se converteram e se aproximaram dos Priorados. São marcados pela autonomia do pensamento e pela soberba.
- A “fritura” dos adversários. Muito característico dos métodos de Olavo de Carvalho era o modo como “fritava” qualquer um que ousasse levantar uma opinião contrária ou uma crítica a alguma afirmação sua. O “professor” lançava publicamente contra sua vítima um ataque demolidor, usando palavras duras, xingamentos grosseiros e descabidos, que só deixava uma opção para o sujeito: desaparecer daquele curso, daquele meio. Com a maior tranquilidade, Olavo deixava de lado o mérito da questão e caía com força sobre a pessoa que ousara levantar uma opinião contrária à sua. Virtudes como humildade, caridade, e atitudes oriundas do Evangelho não eram sequer cogitadas.
Dentro desse contexto cabe assinalar a calúnia, frequentemente usada como instrumento de combate contra opositores do seu pensamento. Os seus alunos são testemunhas disso.
- Um dos aspectos mais importantes dos métodos com que defendia suas ideias e sua autoridade de mestre é o fato de escapar propositadamente de qualquer definição mais precisa do seu pensamento. Hoje guénoniano, amanhã contra René Guénon; hoje astrólogo, amanhã cristão; hoje “ultra-ecumenista”, amanhã rezando o Terço. Olavo formou uma espécie de biblioteca de onde extraía argumentos para rebater qualquer crítica, fosse ela num sentido ou em outro.
Mas a fé católica não tem abertura para qualquer tipo de duplicidade. “Mas seja o vosso falar: Sim, sim; não, não; porque tudo o que daqui passa, procede do mal” . Isso vem do fato de que, uma vez a alma tendo recebido de Deus o dom sobrenatural da Fé, ela realiza uma adesão do seu conhecimento e da sua vontade à totalidade da Revelação, de tudo que Deus disse de si mesmo através de certos homens, e do que Ele entregou como Depósito da verdade à sua Igreja, fundada no Sangue de Jesus Cristo. E o motivo dessa entrega, dessa submissão, não vem de qualquer evidência racional, iniciática ou científica, do objeto material da fé, mas sim da autoridade de Deus se revelando. É verdade porque Deus disse que é assim. E se eu creio porque Deus disse, então não posso negar nada, não posso acatar um dogma e negar outro.
É justamente este tipo de adesão que não encontramos nos ensinamentos, mesmo mais recentes de Olavo de Carvalho.
Há vídeos dele falando sobre o amor de Deus. Apesar de algumas passagens corresponderem à doutrina católica, outras se afastam do dogma da fé. Quando Olavo fala da Confissão, mostra não compreender a essência deste Sacramento, e orienta seus alunos num sentido diferente do que ensina a Igreja, causando o descrédito do aluno no ensinamento constante da Esposa de Cristo. Em dado momento, Olavo afirma que no caso da Confissão, prefere seguir o pensamento do Pe. Pio, quando este diz: “Confia em Deus e deixa o resto por Sua conta”. Uma citação como essa, ou quando cita Santo Agostinho, dá ao aluno a impressão de que Olavo é perfeitamente católico, mas ele não percebe que a citação é truncada. O padre Pio afirmava esse tipo de conselho, mas nunca para induzir seus penitentes a não fazerem um exame de consciência detalhado, como pretende Olavo de Carvalho.
Há uma espécie de falsa mística de fundo modernista, imanentista. Ensina Olavo certo existencialismo, vida da alma marcada pela “experiência do eu”, em que a alma se encontra “dentro de Deus”, só e isolada, isenta de qualquer juízo de terceiros sobre seus atos. É uma situação muito cômoda, sem dúvida, mas que conduz seus discípulos a desprezarem o ensinamento católico sobre a vida da alma, sobre a oração, sobre a realidade do pecado e a necessidade da confissão completa dos seus pecados.
Os católicos que guardam um laço afetivo com Olavo de Carvalho devem ter a coragem de olhar para o seu ensinamento de modo reto, sem sentimentalismos. Devem escolher a segurança do dogma católico contra as ondulações e variações de uma gnose herética. Na sua posição de professor, de pensador, de filósofo, Olavo de Carvalho deve prestar mais contas a Deus sobre sua fé e sua conduta do que um simples homem. Se foi como católico que ele se apresentou ao Juízo de Deus, rezamos para que tenha pedido perdão dos seus pecados e dos erros que ensinou por tantos anos.