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A reencarnação sob o olhar da filosofia

Na primeira parte, o confronto da teoria da reencarnação com a fé católica nos mostrou sua oposição radical. Resta-nos esclarecer o tema à luz da razão natural. A tese com que nos deparamos conforma-se com a realidade? É compatível com a natureza das coisas? A segunda parte de nosso estudo exige notas preliminares. Nosso primeiro ponto de vista fora o da fé, o principal argumento era a autoridade de Deus, que fala pela Tradição, pela Santa Escritura e pelo Magistério da Igreja. Por assim dizer, contribuímos passivamente ao julgamento da reencarnação pelos guardiões da fé.

 

Aqui, o itinerário é bem diferente. Nosso ponto de partida não é mais um argumento de autoridade, mas a observação do mundo sensível. Conforme o princípio realista, “nada há na inteligência que não seja antes nos sentidos”, o homem que deseja compreender o mundo físico e dele extrair as leis fundamentais deve começar a observar as coisas que o rodeiam. Assim, para analisar as complexas noções de vida, de alma, e as relações da alma e do corpo, convém que partamos do real concreto. Caso contrário, nos arriscaríamos construir um sistema coerente e sedutor, talvez mas sem relação com a realidade. Não se trata de escrever um romance, mas de descobrir a verdade. Todavia, o mundo sensível é apenas um ponto de partida. A inteligência busca os princípios explicativos da natureza. Portanto, deve penetrar na intimidade mesma das coisas, ultrapassando a ordem sensível. Deve se elevar do visível ao invisível, a um grau de conhecimento que lhe é próprio e que deixa muito atrás de si a sensibilidade e a imaginação. É bom tocarmos nesse assunto logo no início do estudo, pois os temas abordados aqui são particularmente delicados. Muitos se equivocaram por não saberem desapegar-se de uma visão puramente sensível e materialista do mundo. É o que já constatava São Tomás de Aquino: “os antigos filósofos, não conseguindo ir para além de sua imaginação, diziam que o princípio do conhecimento e do movimento é um corpo”1. “E como os antigos naturalistas criam que nada existiria se não fosse corpo, diziam que a alma é corpo”2. Não surpreenderá, pois, se, nos desenvolvimentos que se seguem, algumas passagens difíceis forem encontradas. Não podemos fazer economia se queremos dar à teoria da reencarnação uma resposta fundamentada que vá para além do “bate-boca”. É sinal de atenção e respeito aos sectários de um erro levar a sério suas objeções e lhes responder com exatidão.
 
Expostos tais pontos, vamos à tese da transmigração das almas. Quais são seus pressupostos filosóficos e quais dificuldades suscitam?
 
Se a alma deve atravessar várias vidas terrestres antes de alcançar a felicidade, passando de corpo em corpo, está claro que não está ligada particularmente a nenhum deles. A alma só ocasionalmente está no corpo, a alma é estrangeira ao corpo. Isso pressupõe uma concepção especial da alma e de suas relações com o corpo. Ademais, a metempsicose, que admite a reencarnação em outros seres que os humanos, parece dar às almas dos vegetais e dos animais as mesmas prerrogativas da alma humana.
 
Alguns partidários dessa tese afirmam ainda lembrar de suas vidas passadas. Está posto o problema da memória. Ela reside na alma espiritual ou no corpo? Nesse último caso, uma mudança de corpo não deveria apagar qualquer lembrança do passado? Somos portanto levados a estudar sucessivamente a alma em si, e após, suas relações com o corpo e, finalmente, as potências da alma, em particular a memória3.
 
A alma se apresenta a nós sob diferentes aspectos, que aproveitamos para estudar separadamente com o fim de penetrar progressivamente na sua natureza, ainda que estes aspectos não sejam separados na realidade: a alma é o princípio da vida, a forma do corpo, o ato do corpo.
 
O princípio da vida
 
A primeira experiência que nos propiciam os sentidos, após a da existência das coisas, é a do seu movimento. Vemos nuvens e pássaros se deslocarem, as estações sucederem-se, a erva brotar, os seres aparecerem e desaparecerem. Contudo, a atenta observação desses vários momentos nos faz descobrir entre eles uma linha demarcatória que separa o mundo em duas partes bem distintas. Alguns seres, com efeito, só se movimentam sob a ação de um princípio exterior. Seu movimento não segue uma determinação interna. Não têm iniciativa. Outros, pelo contrário, têm em si mesmos o princípio de seu movimento. Os primeiros são movidos por um outro. Os segundos se movem a si mesmos.
 
Ora, essa diferença é precisamente a que distingue os seres vivos dos não-vivos. O movimento está de tal forma ligado à vida que, quando algo não se move mais, dizemos que está morto e, ao contrário, que vive quando o movimento aparece. “O que distingue os vivos dos não-vivos é aquilo por que a vida se manifesta em primeiro lugar e que se conserva até o fim. Ora, a primeira coisa que nos faz dizer que um animal vive é o fato dele começar a se mexer, e dizemos que ele vive na medida que esse movimento aparece nele”4. Mas o movimento que revela a vida é somente aquele que a coisa dá a si mesma. “Quando não há mais movimento por si mesmo, mas que é movido por um outro, dizemos que o animal está morto, que a vida o deixou. Daí parece que são propriamente chamados de vivos os que se movem a si mesmos segundo um certo tipo de movimento.”5
 
Observemos os principais movimentos que se apresentam a nós: quanto ao movimento local, constatamos que as dunas das bordas oceânicas se deslocam e mudam de forma, mas isso se deve à ação do vento. Por si mesmas, são inertes. Ao contrário, é por um dinamismo interior que a mosca voa e que o cão corre. Quanto ao aumento, as estalactites subterrâneas crescem, mas unicamente por influência da infiltração de água. Seu crescimento é apenas uma acumulação de matéria e não um processo de desenvolvimento interno, ao passo que o musgo no teto cresce por si mesmo. O jardineiro que poda a grama sabe que ela crescerá novamente devido a um fenômeno que não se explica somente por influências exteriores. Em contrapartida, o metal só se dilata se exposto a uma fonte de calor. Se os minerais se desenvolvessem por si sós, todos teríamos diamantes, prata e ouro em profusão!
 
A análise das outras espécies de movimento próprias aos seres vivos, tais como a nutrição e a geração, nos conduziria aos mesmos resultados. O ser vivo é o que se move por si mesmo, graças a um dinamismo interno que não se reduz a ações exteriores. Os filósofos resumiram isso numa definição concisa: a vida é o movimento próprio de si, motus sui.
 
Mas o que, na natureza do ser vivo, lhe permite o movimento por si próprio e, assim, distingue-o radicalmente dos não-vivos? Qual o segredo da vida, o princípio desse movimento próprio de si? A linguagem corrente nos dá uma indicação: “dizemos que os vivos são animados, e que os não-vivos são inanimados”6. É o fato de ser animado, de possuir uma alma, que permite a algo ser vivo.
 
Ser vivo é ter alma. Isso é confirmado por uma constatação: para cada alma distinta, uma atividade distinta. O animal, por exemplo, se desloca por um movimento próprio, diferentemente dos vegetais. “A percepção sensível é uma certa mudança; ora, só a encontramos nos que têm uma alma. Da mesma forma, o movimento de crescimento e decréscimo só se encontra nos que se alimentam. Ora, só os que têm uma alma se alimentam. É pois a alma o princípio de todos os movimentos”. Eis o primeiro aspecto, a primeira definição da alma que nos dá a experiência: a alma é o princípio da vida do vivente.
 
Esse primeiro resultado vai fornecer dois elementos para responder ao problema que nos ocupa. De fato, a alma nos foi mostrada sob seu aspecto dinâmico. Ela é a função vital de um corpo vivo. Não é somente a harmonia ou a boa organização das partes do corpo, mas fonte de vida e de movimento. ”A alma é causa e princípio do corpo vivo”7. A etimologia é esclarecedora: o latim anima traduz o grego yuchv, que vem do verbo “eu respiro”. A alma é como o sopro vital que sustenta o corpo. Isso quer dizer que a alma está em contato direto com o corpo; sua função é ser a fonte de vida de um corpo. Uma alma não se pode conceber sem seu correlativo o corpo que ela vivifica.
 
Ao contrário, os adeptos da reencarnação imaginam a alma como criada para si mesma, justificando-se por si só, sem possuir relação necessária com um corpo. A união da alma e do corpo seria o fruto de um erro, não um estado natural. Por outro lado, se a alma é por sua mesma natureza o princípio vital de um corpo, isso quer dizer que ela não é o próprio vivente, mas uma de suas partes. O que vive não é apenas a alma, mas o composto corpo e alma. Aristóteles faz uma comparação: “se o olho fosse um animal independente, a visão seria sua alma”8. Ora, o que vê não é somente o olho, nem é somente a visão, mas o olho dotado de visão. Uma visão sem órgão não vê absolutamente nada! Do mesmo modo, “não dizemos que a alma anda, vê ou escuta, pois é o homem que o faz, graças a ela”... “é o lutador que luta graças à aptidão de lutar adquirida por ele, e não a luta que luta por si mesma”... “Da mesma maneira, não é a alma que desempenha, por si mesma, qualquer uma das funções vitais, mas sim o ser animado que as exerce pela alma”9.
 
Não é isso o que se observa na experiência comum? Suponhamos um homem a passear por um jardim: ele cheira uma flor, recorda-se de um fato, reflete sobre o futuro e se põe a rezar. Quem é o sujeito de todas essas operações? Por acaso seria, sucessivamente e sem um laço entre elas, cada uma de suas potências: a faculdade motora, o odor, a memória e a inteligência? Seria ora seu corpo, ora sua alma? Não seria antes o mesmo personagem, o composto alma e corpo? Temos todos o sentimento desta unidade de nossa vida e experimentamo-la cada vez que empregamos o pronome “eu”. É um só e mesmo “eu” que dorme, come, sonha ou lamenta suas faltas.
 
Para a reencarnação, ao contrário, o vivente é só a alma. O corpo é apenas uma morada fortuita e permutável.
 
A forma do corpo
 
O resultado a que chegamos é confirmado ao considerarmos a alma sob um segundo aspecto. Ela é a forma do corpo.
 
Afastemos o quanto antes o significado trivial dessa palavra, segundo o qual dizemos estar “em forma” aquele que goza de todo o vigor de uma boa saúde. Tampouco se trata aqui da “forma” exterior, da silhueta de um objeto, que nos permite dizer que a lua, por exemplo, possui uma forma circular, ou que a bola de rúgbi, uma forma alongada. Tratamos aqui de um componente íntimo e necessário à realidade natural, de um elemento imperceptível pela experiência sensível e científica, mas de que depende todo o real físico que nos cerca.
 
Por essa noção ser ainda mais abstrata que a de princípio da vida, devemos, por mais forte razão, proceder com prudência e método para lhe esclarecer o teor. Comecemos por analisar uma realidade que possua o nome de forma, ainda que só imperfeitamente realize a definição o que os filósofos chamam de forma acidental. Estando mais próximo de nossa percepção sensível das coisas, ela será uma etapa para compreender a riqueza da forma de que tratamos, a forma substancial. Observemos o crescimento de uma cereja durante a primavera. Miudinha ao fim da floração, cresce pouco a pouco sob influência da seiva e do sol, até atingir em junho seu tamanho adulto. Com suas dimensões, muda também a sua cor. De verde, torna-se vermelha, passando pelo amarelo. Além disso, se alguma mão gulosa a colhe quando madura, ela sofre um deslocamento até então desconhecido. Assistimos, pois, ao seguinte fenômeno: uma só e mesma coisa, uma substância aquela determinada cereja conhece uma série de variações. A cereja apresenta sucessivamente qualidades distintas. Ora, é fácil de ver que as diferentes características (tamanho, cor, lugar) que lhe compõe não são a própria cereja. Apenas lhe dão uma maneira particular de ser. Elas sobrevêm ao fruto já existente para o determinar. Isso é o que chamamos de acidentes (de accidere, sobrevir), de formas acidentais.
 
Podemos, de igual forma, analisar o tecido de uma roupa. Por causa de sua estrutura, possui uma certa realidade: é uma “coisa”, independentemente de sua cor. A brancura da lã não é a lã. Mas a cor lhe dá uma maneira determinada de ser, a faz ser branca.
 
Da mesma maneira, se olharmos uma criança manejar a massa de modelar, a matéria que ela transforma possui certamente uma figura, mas sempre permanece apta a receber uma outra, segundo o capricho da criança.
 
Assim, nesses três exemplos como em toda a realidade, a observação nos revela dois elementos correlativos. Por um lado, o sujeito que existe por si mesmo. Ele apresenta qualidades próprias, mas é totalmente distinto delas e permanece apto a outras determinações. É o elemento “material”. A matéria, nesse sentido, compreende-se como um sujeito que recebe, como uma pura espera, como uma indeterminação de ser de tal ou qual forma, de sofrer uma mudança. No patamar onde nos pusemos, o elemento material é a substância mesma que recebe os acidentes. Por outro lado, os seres físicos comportam um elemento determinante que lhes dá uma dada disposição concreta, uma tal ou qual maneira de ser. É o elemento “formal”, a forma acidental. Ela sobrevém a uma coisa, ou existe em uma coisa, que se relaciona com ela como uma matéria.
 
Passemos agora à análise da forma substancial. A distinção que acabamos de fazer encontra-se num nível muito mais profundo, se nos interessarmos não tanto pelas variações das coisas, mas pela sua constituição íntima. Todas as coisas naturais são compostas de um princípio material absolutamente indeterminado, e de um princípio formal que dá ao composto a sua própria natureza. Dois fenômenos da vida ordinária no-lo fazem descobrir: a destruição e a nutrição. Quando um jardineiro corta e queima a erva, cada haste sofre uma transformação muito mais radical que a que encontramos mais acima. Ela é destruída em seu próprio ser. Após passar pelo fogo, deixa absolutamente de existir. Mas nem tudo o que a constituía desapareceu. Um elemento de sua natureza transformou-se em cinzas. Uma parte da erva perdeu seu ser de haste de erva e recebeu um outro, o de cinza. Esse elemento substrato da coisa material, que recebe o ser de uma determinada natureza faz o papel de matéria, que vimos acima, mas de uma forma muito mais radical. Isso é o que os filósofos chamam de matéria-prima. Ela não é objeto de experiência científica, mas tampouco um composto menos necessário a toda realidade natural. A matéria-prima é em si absolutamente indeterminada e, por isso, pura espera, toda receptividade. Ele tem de receber um princípio alheio para existir e ser a matéria de uma determinada coisa.
 
O princípio que tira a matéria-prima de sua indeterminação é a forma substancial. Esta não se contenta em dar uma qualidade ou maneira de ser particular, como, um pouco depois, o faz a forma acidental. Ela dá ao composto a sua própria natureza. Faz com que a matéria-prima se torne a matéria de um ser de determinada natureza.
 
O mesmo fenômeno ocorre na nutrição. O alimento é destruído pela digestão, perde sua natureza própria para ser assimilado ao corpo vivo. A matéria é, ainda neste caso, revestida de uma nova forma substancial, a do ser vivo.
 
Um outro fato permite descobrir a existência e as funções respectivas da matéria-prima e da forma substancial. Cada realidade natural é, com efeito, dotada de propriedades opostas. Se considerarmos uma de suas partes, ela está sujeita à divisão. Todas as suas partes, consideradas em si mesmas, tendem a se separar do todo. Contudo, a coisa física goza de unidade enquanto existe: ela perfaz um todo. Do mesmo modo, se por um lado, a coisa tende a se difundir ou a crescer, por outro lado, ela é limitada.
 
Tais fenômenos contraditórios só podem ser explicados por princípios internos irredutíveis, que entram na constituição íntima das coisas: a matéria-prima, princípio da divisibilidade; e a forma substancial, princípio da unidade e da limitação. Esforcemo-nos por tirar dessas observações as funções próprias da forma substancial. Elas são em número de três.
 
A matéria-prima nos aparece antes de mais nada como um componente de coisas totalmente indeterminado, apto a ser matéria de qualquer realidade. A forma substancial tem por função primeira dar uma natureza à matéria. Ela a faz ser de uma determinada espécie, é o princípio daquele ser. “Porque determinada matéria é determinada coisa? pergunta Aristóteles. Por exemplo, estes materiais são uma casa, por quê? Porque a qüididade de casa lhes pertence como atributo. Diríamos ainda que esta coisa aqui é um homem ou que este corpo, possuindo tal determinação, é um homem”. Qual é a sua causa? “Essa causa é a forma em virtude da qual a matéria é uma coisa determinada”10. “É pela alma que a matéria torna-se uma natureza, e não o contrário”11. “É a forma que dá ao composto sua qüididade, ela é ‘aquilo que a coisa tinha de ser’”12.
 
Também constatamos que a matéria era princípio de divisibilidade. A forma é, pois, princípio de unidade da coisa. Ela une aquilo que, por si, é vário. O que quer dizer que, entre os vivos, é a forma que preside a organização e o crescimento do corpo. Ela dirige as transformações da matéria para fazer dela um todo coerente e organizado.
 
Enfim, depreende-se claramente da observação que a forma substancial não dá à matéria somente sua qüididade (ser de tal espécie) e sua unidade, mas ainda lhe dá o existir enquanto tal. Antes de receber sua forma, a matéria não existe. Esta encontra naquela sua perfeição. Dizemos, em linguagem filosófica, que a forma é o ato da matéria.
 
Tais considerações nos distanciam de nosso tema? Veremos que não. Ao contrário, são decisivas para responder à tese da reencarnação.
 
No ser vivo, a forma substancial que acabamos de analisar não é outra coisa senão a alma. O que dissemos da matéria e da forma se aplicará diretamente ao corpo e à alma. Provemo-lo, com Santo Tomás. A alma, como vimos, é o princípio da vida do corpo. Ora, a vida é o “movimento próprio de si”. Vivo é o que é capaz de atividades próprias. Ora, a observação nos mostra a ligação entre o ser e o agir. Por um lado, vemos que a natureza do agente (seu ser, tomado como sua qüididade) determina a natureza da ação assim, uma cerejeira produz cerejas e não peras e, por outro lado, que nada pode agir antes de existir e que um ser encerra toda operação após sua destruição. Desta forma, a alma, princípio da vida e do agir do ser vivo, é também o princípio de seu ser; é dizer, sua forma. “O porquê de uma coisa agir de uma certa maneira é a sua forma, à qual atribuímos a operação... A razão disso é que nada age senão enquanto está em ato: logo, é por um mesmo princípio que uma coisa está em ato e age. Todavia, é manifesto que o que faz, em primeiro lugar, que um corpo viva é sua alma”13.
 
A alma é, pois, a forma substancial do corpo. Esta nova definição dá-nos três novas respostas à reencarnação. Basta aplicar ao caso da alma as três funções da forma substancial estudadas acima. Limitamo-nos aqui às duas primeiras, reservando para um parágrafo ulterior o estudo mais aprofundado da alma enquanto ato do corpo.
 
Primeiramente, vimos que a forma dá à matéria sua natureza. É o princípio que constitui o composto numa determinada espécie. Se determinado animal é um gato, deve-o à sua alma felina. Um tal homem deve o ser homem à sua alma humana. Não se pode conceber uma alma sem relação a um corpo. Sua função primeira é a de ser o princípio da essência desse corpo. Por conseguinte, uma determinada alma não pode dar um outro ser senão o seu. Ela é realmente a origem de uma determinada natureza. Se a transmigração das almas fosse possível, um indivíduo que tivesse sido, numa vida passada, um esquilo ou um nabo, seria para sempre um esquilo ou um nabo. Se tivesse alma de suíno, seria, no sentido próprio da palavra, um suíno em sua própria natureza. Eis algo para tirar o ânimo de um bom número de nossos oponentes!
 
A forma substancial, diga-se também, é o princípio da unidade da coisa. Assim, num ser vivo, a alma preside o desenvolvimento e a estruturação do corpo. “O movimento de crescimento ou diminuição só existe nas coisas que se alimentam, e só se alimenta o que possui uma alma. É, pois, a alma o princípio desses movimentos”14. O corpo assim constituído é, para a alma, um organismo no sentido etimológico da palavra. “Órgão” vem do grego organon, instrumento, utensílio. O corpo é um composto de partes várias e hierarquizadas, a serviço da alma para lhe permitir exercer suas funções. “Todos os corpos físicos são órgãos da alma... como que existindo tendo em vista a alma”15.
 
Logo, uma alma de uma dada espécie vai elaborar um corpo que corresponda exatamente à sua natureza, o que lhe permitirá perpetrar os atos que lhe são próprios. Eis a razão proposta por Santo Tomás para mostrar que a uma alma humana, dotada de tal forma de inteligência, somente poderia corresponder um corpo dotado de tais faculdades e tais sentidos externos16. Isso vale não somente quanto às espécies (num corpo humano, alma humana), mas também para cada indivíduo. Uma alma concreta é formada para si mesma, e não pode ter senão tal corpo, de tal compleição. Isso contradiz, de forma absoluta, a reencarnação. Ela só seria possível para uma alma num corpo absolutamente idêntico.
 
A união da alma ao corpo, a título de forma, levanta uma dificuldade. Como é possível que a alma humana, tão elevada em dignidade por sua inteligência e vontade livre, esteja unida tão intimamente à matéria, realidade vil e desprezível? Não é uma insuportável humilhação para o espírito ter parte com esse princípio de corrupção? Com certeza, essa objeção mora no coração de muitos adeptos da metempsicose, é como que a raiz oculta de seu posicionamento. É possível enxergar aqui um traço de maniqueísmo, para o qual tudo que é espiritual vem de um princípio bom e é, portanto, a única realidade válida, enquanto a matéria, procedente de um princípio mau, é objeto de desprezo. A presença da alma no corpo torna-se um castigo, uma escravidão da qual convém libertar-se na medida do possível. Tal estado é uma imundice, uma humilhação, uma limitação contra a natureza.
 
A definição de alma, que acabamos de esclarecer, responde por si mesma tal dificuldade. Uma vez que as relações da alma e do corpo são as da forma com a matéria, o corpo é o órgão, o instrumento da matéria. Ora, não é de forma alguma humilhação a um agente se valer de um utensílio. Ao contrário, a aptidão para se servir de um instrumento é, para ele, sinal de dignidade. A mão do homem, por exemplo, excede os demais membros pelo fato de ser capaz de utilizar uma régua ou uma tesoura. A causa principal (a mão) eleva as causas instrumentais (os utensílios) a uma dignidade superior, mas de modo algum se diminui. Santo Tomás teve o cuidado de precisar que “quanto mais nobre é uma forma, mais domina a matéria corporal e menos se submete a esta; logo, ultrapassa-a por sua operação e virtude”17.
 
Mas a superioridade da alma humana sobre o corpo material não torna sua união caduca ou artificial. Santo Tomás ainda nos diz: “A união entre uma substância intelectual e a matéria corporal não resulta em qualquer coisa de menos una que a forma do fogo com sua matéria; ao contrário, resulta numa unidade muito maior. Porque quanto mais uma forma domina a matéria, mais perfeita será a unidade entre a matéria e esta forma”18.
 
Desta feita, o fato de a alma ser forma do corpo assegura ao composto alma-corpo uma unidade substancial, única, superior a qualquer outra unidade natural, ao mesmo tempo que assegura à alma humana sua dignidade de substância espiritual, que sobrevive à destruição do corpo. Essa função da alma impede os extremos opostos: o da reencarnação, que nega toda solidariedade, toda união substancial entre a alma e o corpo; e o erro dos que vêem a alma humana apenas como organizadora da matéria, recusando-lhe, pois, o papel de substância espiritual indestrutível.
 
O ato do corpo
 
Retornemos um pouco e detenhamo-nos na terceira característica da forma substancial: ela é o ato da matéria. Isso vai nos permitir chegar a uma definição mais precisa da alma: ela é o ato do corpo.
 
Ao final desse novo esforço, daremos à reencarnação o golpe definitivo. Tratemos pois de estudar a noção de ato, e a de potência, que lhe é correlata, para aplicá-las ao caso da alma, e daí tirar luzes para o nosso objeto.
 
Antes de tudo, afastemos de ambos os termos a acepção da linguagem corrente: o ato tomado como ação, atividade, e a potência entendida como força. Aqui falamos de realidades muito mais profundas, inalcançáveis pela experiência científica. Nós analisamos o real que nos rodeia, não sob o ângulo da vida ou da qüididade, mas na ordem da existência. Três fatos da experiência vão nos conduzir à noção de ato e potência. Primeiramente, o movimento. Ele só se explica pela existência de uma coisa que está privada de algum bem, de uma qualidade, de uma determinação, e que busca possuí-los. Duas realidades bem distintas apresentam-se em todo movimento: por um lado, um ser que tende a um fim e recebe progressivamente uma nova qualidade e, por outro lado, uma perfeição realmente possuída, o mesmo ser que chegou a seu fim. O movimento só se explica se existe uma coisa perfectível que dizemos estar “em potência” e um termo, uma perfeição alcançada, “o ato”.
 
Por exemplo, ponhamos uma panela de água fria sobre o fogo. Ela é toda receptividade, toda tendência, em relação ao calor. Desejamos que ela atinja a temperatura de oitenta graus — enquanto não a tiver atingido, estará “em potência” quanto à essa temperatura. Quando a possuir atualmente, realmente, dela se dirá estar “em ato”. Os oitenta graus terão se tornado realidade.
 
O mesmo vale para a cerejeira do jardim. Por sua natureza, ela é apta a produzir cerejas. Estas, uma vez maduras às pontas dos galhos, são uma perfeição da árvore, o termo de toda sua atividade. A cerejeira carregada de cerejas é dita em ato em relação à mesma árvore sem os frutos, que está em potência em relação às cerejas. Em todos os casos de movimentos que conhecemos, chamamos “ato” o termo, a conclusão do movimento. A coisa que atinge sua finalidade é dita possuir “em ato” tal perfeição, encontrou o pleno desenvolvimento que buscava. Essa mesma realidade, enquanto imperfeita, enquanto tendia a tal riqueza para possuí-la, estava “em potência”.
 
Encontramos a mesma distinção ato e potência em outra ordem a da atividade. É um caso particular do exemplo precedente. A ação é uma certa perfeição. Quando um sujeito passa da inação à ação, conhece um certo desenvolvimento, exerce suas faculdades. “O ato será como o ser que constrói está para o ser que possui a faculdade de construir; ou o ser acordado para o que dorme; ou o ser que vê para aquele que possui a visão, mas está com os olhos fechados; ou ao que foi separado da matéria à matéria; ou o que é elaborado para o que não foi elaborado. Damos o nome ato ao primeiro membro dessas várias relações; ao outro, o de potência”19.
 
A terceira experiência, que nos faz descobrir as noções de ato e de potência, é a da linguagem. Limitemo-nos a considerar os significados do verbo ser e estar. [N. da P.: Esse texto foi escrito originalmente em francês, língua que possui, como a maioria das línguas européias, um só correspondente para os verbos “ser” e “estar”, o verbo être]. Esses verbos possuem distintos significados, como nas seguintes expressões: Pedro é homem, Pedro está doente; ou nessa que se segue: Pedro é20. No primeiro caso, traduz uma essência, uma natureza ou modo de ser; no segundo caso, exprime a existência real, o fato de Pedro exercer a existência. Tal distinção da linguagem traduz a distinção, na realidade concreta, entre essência (qüididade) e existência, que é ademais uma distinção entre potência e ato. Podemos perfeitamente pensar num Pedro que possua natureza humana e esteja doente, sem que, para tanto, exista realmente. A existência concreta é um termo, uma perfeição sem a qual o sujeito considerado é apenas aptidão a ser. Passar desta pura capacidade de ser à existência é passar da potência ao ato. “O ato, portanto, é o fato de uma coisa existir realmente e não do modo por que dizemos que existe em potência, como quando dizemos, por exemplo, que Hermes está em potência na madeira (a estátua de Hermes está em potência na matéria da madeira), ou o segmento da reta na reta inteira, porque aquela poderia ser extraída desta; ou quando chamamos de sábio em potência aquele que não especula, caso ele possua a faculdade de especular: pois bem! modo bem diferente deste é a existência em ato”21. A existência em ato é a existência plenamente realizada.
 
Esta perfeição, que é a existência, é o ato mais fundamental, é o que mais perfeitamente realiza a noção de ato: o ato de existir. É o ato fundamental, pois é o que sustenta e possibilita os demais. Antes de ser belo, de correr rápido e de se reproduzir, o cão deve existir. Deve possuir a existência em ato. Os outros atos que o podem aperfeiçoar apóiam-se no seu ato de ser. Ato este isento de toda outra consideração anterior. O ato de ser é simplesmente a perfeição que tira uma coisa do nada e da virtualidade de sua causa.
 
Em suma, as três observações precedentes chegam a esta conclusão: o ato é uma entidade que aperfeiçoa e determina uma coisa em uma certa linha. É a sua realização, sua plenitude. É a efetiva realização de uma qualidade. Ao contrário, a potência é uma entidade imperfeita, capaz de aperfeiçoamento. É a capacidade, o movimento para tal perfeição. É espera do ato, recebendo o aperfeiçoamento e o ser do ato.
 
Quais são as relações entre o ato e a potência?
 
• A potência e o ato são correlativos. O ato, dizíamos, é o que dá uma determinada perfeição, única, e a potência é o que recebe tal perfeição. Um não pode ser concebido sem o outro e, exceção feita a Deus, que é ato puro, não pode haver um sem o outro. Uma potência não é capacidade para qualquer perfeição, mas de um determinado ato. E o ato é tal realização, tal plenitude. A potência é potência para um ato único. O ato é ato de tal potência. Por exemplo, não pode existir um trem correndo sobre os trilhos que não vá a parte alguma. O movimento só existe em função de sua conclusão, de seu termo efetivamente alcançado.
 
• A potência está para o ato. Ela é, com efeito, o objeto apto a receber uma perfeição, está toda orientada para isso. O ato é o fim da potência, o termo para o qual tende. A coisa imperfeita, inacabada, está para a coisa perfeita, acabada, tal como o movimento está para seu termo. A potência está para o ato e é determinada por ele, não se compreende senão por ele. Assim, ela é dependente do ato no seu mesmo ser. O termo grego enteleceia (enteléquia), que traduz a palavra “ato”, exprime-o à perfeição, visto que construído sobre o radical telos o fim, o resultado, a conclusão.
 
• Nenhum intermediário intervém no composto potência-ato para assegurar-lhe a unidade. Se o suposto intermediário fosse ele mesmo uma potência, não existiria, propriamente falando seria indeterminado, e não faria senão aumentar a indeterminação da potência. Se fosse ato, daria à potência o ato de ser; uma vez que este é o ato fundamental, que sustém todos os outros, formaria com a potência uma realidade determinada, o que tiraria desta o caráter de potência. O composto desta potência e do ato intermediário estaria, como conjunto, em potência em relação ao ato pretendido. Basta compreender as noções de potência e de ato para entender que elas são ordenadas uma a outra e que se unem imediatamente.
 
• O que acaba de ser dito vale, em primeiro lugar, para a união da potência e do ato que resulta num ser uno, subsistente por si mesmo, uma substância. Acima, demos o exemplo de uma panela de água aquecida a oitenta graus. Naquele caso, um ser completo, a água, recebe um ato acidental, a temperatura. O objeto, que já realizava perfeitamente a essência da água, só se considerava em potência sob um certo aspecto a temperatura de oitenta graus. O todo doravante formado, água e calor, é um todo acidental. A potência já estava em ato naquele modo de ser. Aqui, a unidade do composto ato-potência é apenas ocasional. A união substancial, pelo contrário, resulta em um ser que é absolutamente uno por si mesmo, antes de toda outra determinação acidental. Ora, essa unidade primeira e elementar só pode originar-se da união com uma potência “que nada mais é que a potência daquele ato (...). Todas as vezes que um só ato se une a uma só potência, só se produz um só ser em razão daquele ato; e, por conseguinte, temos um ser que é ser por si mesmo e uno por si mesmo”22. Isso nos faz compreender melhor a unidade das coisas, em razão de sua composição de potência e de ato. As substâncias são absolutamente “unas”, uma vez que são o fruto da união de uma só potência e de um só ato: de uma potência que só é potencia desse ato; de um ato que só é ato dessa potência.
 
Essas precisões das relações do ato e da potência esclarecem o problema da reencarnação, que nos ocupa? Nós a vemos desde a primeira questão que Santo Tomás se colocou, no seu estudo da alma humana na Suma Teológica: A alma é corpo?23. Sua resposta nos leva diretamente ao cerne da essência da alma: a alma é o ato do corpo. Com efeito, a alma não é somente um princípio de vida do corpo, ela é seu primeiro princípio de vida. Ora, é pelo fato de ser um corpo que um corpo é vivente? Claro que não, porque há corpos que não são viventes os minerais, por exemplo. “Convém a um corpo ser vivo, ou mesmo ser princípio da vida, pelo fato de ser tal corpo”24; i. é, pelo fato de ser constituído em uma espécie determinada, de realizar em ato as potencialidades de sua essência, de formar uma substância. Em um corpo vivo, o princípio primeiro da vida, que é sua alma, como vimos, é também o princípio que o faz estar em ato, é o seu ato. Enquanto estiver em potência, o corpo não estará vivo. O princípio de vida é também o princípio que lhe dá o ser. A alma é o ato que concorre com o corpo para formar uma substância, é o ato primeiro do corpo. “Na matéria, a coisa está em potência; na forma, está em ato”25. Daí a definição de alma, descoberta por Aristóteles: “A alma é o ato primeiro (enteléquia) de um corpo natural (para distingui-lo dos corpos artificiais), orgânico (dotado de instrumentos, organa, bastantes para as operações da alma), possuindo a vida em potência (o composto alma-corpo é vivo e pode desempenhar as atividades vitais de sua espécie).”26
 
Recapitulemos as considerações que fizemos sobre as relações do ato e da potência. Ao tratarmos de alma e corpo, estamos precisamente naquele caso da união substancial. Ato primeiro do corpo, a alma é, pois, sua realização na ordem do ser, sua conclusão. Desse fato, ela constitui com o corpo uma substância, uma realidade completa, una. O fruto dessa união é um ser único e, no caso do homem, uma pessoa. Suponhamos o impossível, que a alma possa se unir com outro corpo: ela formaria com este uma realidade outra, um sujeito de vida e responsabilidades totalmente diferentes. Seria absurdo dizer, por exemplo: “Fui tal homem”, ou “serei tal outro”. Ademais, unidos como ato e potência, a alma e o corpo são feitos um para o outro. O corpo é para a alma. Em sua constituição íntima, tal alma não é senão o ato de tal corpo. Esse mesmo corpo é apenas a potência de tal alma. Esta só existe em função daquele corpo só pode dar existência àquela potência, àquele corpo concreto ao qual a vemos presentemente unida. Nós o constatamos mais uma vez: a reencarnação contradiz radicalmente a estrutura mais íntima da realidade natural. Logo, ela é impossível.
 
Resumamos os resultados obtidos:
 
• A alma é o princípio da vida do corpo: logo, está necessariamente em relação com um corpo. Contrariamente à tese da reencarnação, o que vive não é somente a alma, mas o composto alma-corpo.
 
• A alma é a forma do corpo. A alma dá ao corpo sua essência. Uma alma humana não pode comunicar a um corpo a natureza vegetal. Se sua alma foi a alma de uma banana, você ainda é uma banana.
 
• A alma é o ato primeiro do corpo. Ela dá ao corpo, e só a esse corpo, seu próprio existir. O composto alma-corpo é único.
 
A análise atenta da natureza da alma desmente, por si só, a tese da reencarnação.
O estudo das potências da alma confirma tal resultado. Limitar-nos-emos aqui às potências que mais se relacionam com nosso objeto: a inteligência e a memória.
 
A inteligência humana
 
Os filósofos oscilam entre duas concepções contraditórias da inteligência humana. Uns gostariam de reduzi-la a um fenômeno biológico. O que chamamos espírito não seria senão o exercício de um cérebro desenvolvido ou da imaginação. Eis a tendência sensualista. Para outros, ao contrário, a inteligência humana seria um puro espírito decaído. Atribuem-lhe ora a estrutura da inteligência divina, que cria ela mesma seu objeto; ora a dos anjos, que recebem seus conhecimentos por iluminações vindas do alto. Eis a tendência idealista. Esta última corrente encontra-se na raiz da versão contemporânea da tese da reencarnação. Argumentam que tendo a inteligência humana nascido para estar em relação direta com o mundo dos espíritos, sua estada no corpo é contra a natureza. Ele vela o olhar da alma e obscurece a inteligência. A união da alma e do corpo dá-se em detrimento da alma, que se encontra como que paralisada por sua queda.
 
Santo Tomás responde a esta maneira de ver num artigo de singular beleza27, onde brilham a um tempo o bom senso e a sabedoria do doutor. “Convém à alma intelectiva estar unida a um certo corpo?”, i. é, a um corpo material dotado de sentidos.
 
Antes de tudo, precisemos uma questão de método: “Uma vez que não é a forma que está para a matéria, mas a matéria que está para a forma, é da forma que se retira a razão por que a matéria é tal, e não o contrário”. Como dizíamos acima, o corpo está para a alma, é a alma que o determina e o constrói. Assim, para saber se a união da alma humana com o corpo é boa ou, ao contrário, se é nociva à alma, é preciso analisar a estrutura desta e, no presente caso, a natureza mesma da inteligência humana.
 
“Ora, a alma intelectiva, como vimos acima28, segundo a ordem da natureza, possui o grau mais baixo entre as substâncias espirituais, pela razão de que não tem, por sua natureza, um conhecimento infuso da verdade, como os anjos, mas tem de apreender a verdade a partir das coisas divisíveis (materiais), através dos sentidos” (realismo de Santo Tomás!). Eis um fato que não podemos negar, salvo se negarmos a evidência. “Como nos mostra a experiência, uma vez que a alma está unida ao corpo, não pode conhecer nada senão dirigindo-se às imagens das coisas sensíveis”29. Por si mesma, a inteligência é uma como tábula rasa. Não pode formar conceitos senão a partir do mundo material que o rodeia. “Ora, na natureza não há privação das coisas necessárias. É preciso, pois, que a alma intelectiva possua não somente a virtude de apreender (virtus intelligendi), mas também a virtude de sentir. Ora, a ação do sentido só se pode dar com um instrumento corporal. É necessário que a alma intelectual esteja unida a um certo corpo que lhe possa ser o órgão conveniente do sentido”30.
 
A análise da realidade da inteligência humana, seu funcionamento, seus limites, mostra-nos que a união da alma e do corpo é uma necessidade da natureza. “É para o proveito da alma que ela está unida ao corpo, conhecendo à medida que se dirige às imagens das coisas sensíveis”31.
 
Eis posta novamente em xeque a reencarnação.
 
A memória
 
Recordemos a mensagem religiosa da metempsicose: as almas conhecem uma sucessão de vidas terrestres em expiação de suas faltas passadas. Mas, para que uma punição tenha razão de ser, convém que o culpado lembre-se um pouco que seja dos atos de que é incriminado. De fato, ainda que seja um caso raro, algumas pessoas dizem se recordar de suas vidas passadas. Por exemplo, Paco Rabane nos garante que fazia parte da conjuração que tentou assassinar Tutankamon, no Egito, e que se lembra dos menores detalhes do caso32. Sem dúvida! Mas, que é a memória? Se ela é uma faculdade sensível, ligada então ao corpo, não deve desaparecer com este? Se ela reside na inteligência, pode conservar as lembranças sensíveis e concretas, tais como cores, odores, circunstâncias de tempo e lugar? Santo Tomás resolve essa dificuldade no artigo I, q. 79, a. 6: “A memória está na parte intelectual da alma?”
 
A “Memória” pode ser entendida de duas maneiras. Em sentido amplo, ela é uma faculdade cuja função é conservar as formas das coisas. Quando conhecemos, nossos sentidos ou nossa inteligência são determinados pela forma do objeto conhecido. O próprio ato de conhecimento consiste em que a potência cognitiva possui em si, de certo modo, a forma do objeto. Ora, bem sabemos por experiência que, mesmo depois de ter abandonado a coisa conhecida, guardamos-lhe a impressão em nós. Conservamos a imagem de um ser que nos é caro, podendo rapidamente trazer de volta à consciência essa idéia, essa verdade espiritual.
 
Desse ponto de vista, podemos dizer que há uma memória na inteligência que nada mais é que a mesma inteligência. Quando ela não está mais em contato com seu objeto, guarda o conhecimento que dele tem pelo menos, em estado de suspensão. Poderá reconsiderá-lo à vontade. Mas notemos logo que uma potência não pode conservar senão o que ela recebeu. Se eu colocar cinco reais num cofrinho, ele só me dará cinco reais. Se eu introduzir uma certa informação na memória do computador, será essa mesma informação que ele guardará. Ora, a inteligência é uma faculdade espiritual. As formas que recebe são formas abstratas, conceitos universais, separados de toda consideração de tempo e lugar, despojados de toda característica particular de cor, odor etc. Por exemplo, numa pessoa, a inteligência só considera sua natureza humana, seus caracteres universais, não a cor de seus cabelos ou o tom de sua voz. Só a memória sensível ligada à matéria corporal recebe e retém tais circunstâncias concretas.
 
Ora, precisamente, o lembrar-se não é somente considerar uma coisa em nós, com as informações que, no passado, tenhamos recebido dela, mas considerar sua relação com esse passado. Em sentido estrito, a memória baseia-se no passado enquanto passado. Consiste em situar determinadas coisas no passado. Tais formas aparecem em mim como as de uma coisa que não é mais e que, num certo momento do tempo, era. Em sentido estrito, a memória se interessa por uma circunstância determinada o tempo. Ora, justamente “o passado, enquanto passado, pois que significa ser num determinado tempo, é uma condição particular”33. É uma característica concreta, particular, ligada à matéria. Nesse sentido, a memória não se situa na inteligência, mas na sensibilidade, ligada à constituição do corpo.
 
Assim, mesmo que a reencarnação fosse verdade, seria estritamente impossível lembrar-se de um determinado evento concreto de nossas vidas passadas. Cada mudança corporal destruiria ipso facto todas as informações particulares recebidas durante uma vida inteira.
 
À guisa de explicação
 
Resta-nos confrontar um argumento que é tido como definitivo a favor da reencarnação o dos fatos. Contra factum non fit argumentum. Os melhores argumentos não se sustentam contra os fatos. Se a reencarnação é impossível, como interpretar os abundantes testemunhos dos que dizem se lembrar de vidas passadas? São todos charlatões? Parece-nos difícil sustentar tal solução; convém proceder por eliminação. Nosso primeiro artigo excluiu por absoluto uma intervenção divina. Deus não pode visto que não pode se contradizer querer a reencarnação, nem dela dar a ilusão aos homens. Quanto a isso, a sã filosofia acaba de mostrar-nos que essa tese está em oposição radical às leis da natureza. Um pensamento sadio e reto não pode portanto aderir a tal tese.
 
Dois fenômenos restam, pois, que poderiam explicar tais experiências impactantes: influência preternatural e doença psíquica.
 
Não se deve rejeitar rapidamente a intervenção diabólica. O demônio possui efetivamente um poder sobre nossa imaginação e sentidos. Ele pode perfeitamente simular em suas vítimas a lembrança de uma vida passada, com detalhes espantosos, fazendo-lhes falar uma língua até então deles desconhecida34. Ademais, como se espantar que o diabo exerça até hoje uma influência tão larga, visto que muitas são as pessoas que se consagram a ele, apelam às forças ocultas, aos “espíritos”, às fábulas da astrologia? Por assim agirem, abrem suas almas ao demônio.
 
Demais, lembremo-nos do caráter religioso da metempsicose. Ela não é um sistema filosófico, mas se pretende uma explicação global do mundo, do homem, do seu destino. Ela é uma religião, e tão mais perigosa quanto se apresenta sob aspecto de uma disciplina austera. Somos autorizados a nos perguntar: a quem aproveita o crime? Não há mão invisível, força preternatural, por trás das numerosas variantes da reencarnação, de sua propaganda prodigiosa e até mesmo de certos fatos sobre que se apóiam? Duas vozes autorizadas parecem-nos soprar a resposta: “Afirmo que o que os pagãos oferecem em sacrifício, fazem-no aos demônios, e não a Deus”35. “Não somente os deuses dos gentios (os pagãos) não são deuses, senão que são ídolos de demônios”36.
 
Mas é preciso ir tão longe para interpretar todos os casos de reminiscências de outras vidas? Parece que não; devemos examinar uma outra explicação, que não exclui a primeira: os problemas mentais. As doenças psíquicas, de que são vítimas muitos de nossos contemporâneos, o abuso do álcool, o uso de alucinógenos, não podem explicar o fenômeno que estudamos? Para não fazer afirmações gratuitas, nos dirigimos a um profissional, a um psiquiatra. Seu conhecimento de doenças mentais e sua experiência vêm confirmar os resultados que obtivemos por meio da filosofia. Eis o texto de sua resposta:
 
“Refutar a metempsicose e todas as teorias que gravitam em torno da reencarnação é realmente louvável. Tais idéias se propagam mui rapidamente, e adere-se a elas sem refletir, por esnobismo.
 
“Na patologia psiquiátrica, encontramos em duas circunstâncias discursos delirantes a propósito da vida passada. O primeiro caso é o das psicoses delirantes crônicas:
 
na psicose alucinatória crônica;
 
nos delírios imaginativos (ou delírios parafrênicos);
 
nos delírios esquizofrênicos.
 
“Convém saber que o delírio, ou as alucinações, enquanto sintoma, é um meio de defesa. O paciente .escolhe. sem o saber, inconscientemente, tornar-se delirante, para amainar a angústia que lhe acomete face ao enfrentamento de uma realidade penosa e com a qual não pode estabelecer laços. Daí então, resulta uma convicção inabalável do delirante por seu delírio, uma apego desesperado a seus sintomas. .Seria preciso ser louco para não crer nisso., dizia Gaëtan de Clérambault. Pudemos observar que alguns delirantes, brutalmente despojados do delírio através de uma cura neuroléptica, apresentavam estado depressivo profundo, podendo se suicidar.
 
“O segundo caso é o uso toxicômano de alucinógenos (LSD, cogumelos, peiote etc.). Encontramos na embriaguez alucinatória um bom número dos sintomas clássicos da esquizofrenia e eventuais episódios delirantes.
 
“Você não me pediu como explicar o fato de que muitas pessoas se lembram, de boa fé, das vidas passadas?
 
se se trata de pessoas “normais”, não o creio, de forma nenhuma. São mistificadores;
 
se são delirantes “curados”, podem ter lembranças de seus momentos fecundos;
 
“Pessoalmente, nunca encontrei pessoa tida como normal com lembranças de vida passada”.
 
Este estudo sobre a reencarnação deu-nos a felicidade de constatar novamente o acordo perfeito entre a Revelação, a sã filosofia e as ciências humanas. Ele nos propõe igualmente o único remédio para essa epidemia: o retorno à uma fé profunda, à filosofia realista de Aristóteles e de Santo Tomás, assim como à uma vida equilibrada.
 
Originalmente Publicado na revista Le Sel de La Terre nos. 11 e 12.
Tradução: Permanência

 

  1. 1. ”Horum autem principium antiqui philosophi, imaginationem transcendere non valentes, aliquod corpus ponebant.” I, q. 75, a. 1.
  2. 2. Et quia antiqui Naturales nihil esse credebant nisi corpora, posuerunt (...) quod anima per se movetur, et est corpus.”, I. q. 75, a. 1, ad 1.
  3. 3. Eis o plano que Santo Tomás segue em seu Tratado da Alma Humana, na Suma Teológica, I pars, q. 75: A natureza da alma em si; I pars, q. 76: A união da alma e do corpo; I pars, q. 77: As potências da alma.
  4. 4. I, q. 18, a. 1.
  5. 5. I, q. 18, a. 1.
  6. 6. ”Animata enim viventia dicimus, res vero inanimatas vita carentes.” I, q. 75, a. 1.
  7. 7. Santo Tomás, com. In De Anima, l. 2, c. 4, l. 7, 323, Marietti, Turin, 1956, p. 83.
  8. 8. Aristóteles, Da Alma, II, 4, 415.
  9. 9. Aristóteles, Da Alma, II, 1, 412, b.
  10. 10. Alexandre de Afrodisia, Filósofo ateniense do começo do séc. III de nossa era, comentador de Aristóteles. Tratado da Alma, 23, 8. Estas citações foram tiradas do livro de Louis Millet, Pour connaître Aristote, Bordas, Paris, 1987, p. 47.
  11. 11. Aristóteles, Metafísica, I. Z 17, II, 121-134.
  12. 12. Aristóteles, Part. Na. I, 1 641, a, 30.
  13. 13. Aristóteles, Física, I, 2, 194, B, 8.
  14. 14. I, q. 76, a. 1.
  15. 15. Santo Tomás, in. Da Al., l. 2, lição 7, 323, Marietti, Turim, 1959, p. 83.
  16. 16. Aristóteles, Da Alma, II, 4, 415, b, 18.
  17. 17. I, q. 76, a. 5. Para mostrar a correlação unívoca entre a alma humana e o corpo, Santo Tomás chega a dizer aqui que “entre os homens, os que possuem a faculdade do tato mais desenvolvida, são também os mais inteligentes”
  18. 18. I, q. 76, a. 1. “Quanto forma est nobilior, tanto magis dominatur materiae corporali, et minus ei immergitur, et magis sua operatione vel virtute excedit eam”
  19. 19. C. G. II, c. 68.
  20. 20. Notemos que, se a expressão “Pedro é homem” pretende afirmar uma realidade, o verbo “ser” diz também sobre a existência real. Pelo contrário, na expressão “o homem é um animal racional”, o verbo “ser” é apenas uma ligação entre duas qüididades.
  21. 21. Aristóteles, Metafísica, livro IX, 1048, b5.
  22. 22. Caetano, in I, q. 76, a. 1, n. 31.
  23. 23. I, q. 75, a. 1.
  24. 24. ”Manifestum est enim quod esse principium vitae, vel vivens, non convenit corpori ex hoc quod est corpus: alioquin omne corpus esset vivens, aut principium vitae. Convenit igitur alicui corpori quod sit vivens, vel etiam principium vitae, per hoc quod est tale corpus. Quod autem est actu tale, havet hoc ab aliquo principio quod dicitur actus eius. Anima igitur (...) est corporis actus” I, q. 75, a. 1. A brevidade deste raciocínio deve ser interpretado à luz do comentário de Santo Tomás a respeito do livro segundo do tratado “Da Alma”, onde Aristóteles estabelece, com exatidão, a definição da alma.
  25. 25. Aristóteles, Metafísica, l. VIII, c. 6, 1045, b.
  26. 26. Aristóteles, Da Alma, II, 1, 412, b, 5-6.
  27. 27. I, q. 76, a. 5.
  28. 28. I, q. 55, a. 2.
  29. 29. I, q. 89, a. 1. Ver também I, q. 84, a. 7.
  30. 30. I, q. 76, a. 5.
  31. 31. I, q. 89, a. 1. Neste artigo, Santo Tomás chega a dizer que a união da alma e do corpo é de tal forma íntima, que o conhecimento da alma unida ao corpo é mais perfeito que o da alma em estado de separação (se nos limitamos à ordem natural, claro).
  32. 32. Annick Lacroix, “La réincarnation est-elle possible?” Madame-Figaro, junho de 1989, p. 87.
  33. 33. Santo Tomás, loc. Cit.
  34. 34. Notemos que o ritual do grande exorcismo, em suas advertências ao padre para ajudá-lo a discernir um caso de possessão, lhe recomenda que antes ele se faça esta questão: “Fala em línguas estranhas?”, considerando tal fenômeno como um primeiro sintoma de influência demoníaca. “Signa autem obsidentis daemonis sunt: ignota língua loqui pluribus verbis, vel loquentem intelligere”, etc. Rituale romanum, Ratisbone, Pustet, 1937, p. 327, par. 3. Tal observação também não pode ajudar a interpretar o “falar em línguas”, de que os carismáticos são tão orgulhosos?
  35. 35. São Paulo, 1 Cor 10, 19.
  36. 36. Santo Irineu, adv. Haer., l. 4, n. 703.